Al Thawra - Março 2012

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Al Thawra

No 1 - março / abril 2012

A Revolução continua!


Editorial

Na onda das revoluções

Enquanto os levantes continuam a sacudir o mundo árabe, no fechamento deste boletim, o registro de mais um ataque por parte de Israel à faixa de Gaza. Segundo notícias veiculadas pela imprensa internacional, o saldo em apenas quatro dias (a partir de 9 de março) foi de 25 mortos e mais de 70 feridos. Na mesma semana, o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, esteve em Washington para pedir apoio a invasão ao Irã. De olho no seu eleitorado, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, contudo, prefere aguardar. Mas faz questão de declarar o sagrado apoio ao estado sionista. A solidariedade internacional fazse fundamental. Enquanto isso, tendo protagonizado grandes revoluções em 2011, que resultaram na queda de quatro ditaduras, o mundo árabe permanece movimentado. No Egito, as massas voltam às ruas, assim como no Bahrein. Na Líbia, a população rechaça o governo interino do Conselho Nacional de Transição e o prenúncio é de que continue a se levantar para assegurar as necessárias transformações. Na Síria, a revolução atinge o ponto alto. Sem qualquer possibilidade de recuo diante de um ditador sanguinário, a situação avança

para uma guerra civil. Peça chave no jogo geopolítico na região, a Palestina anseia por mudanças. Enquanto isso, seus cidadãos promovem suas próprias manifestações, seja em solidariedade às revoluções nos países vizinhos, seja contra o apartheid a que estão submetidos. A resistência dentro e fora dos territórios ocupados segue. Em 25 de fevereiro último, 8 mil marcharam contra os assentamentos e a política segregacionista em Al Khalil (nome árabe da cidade de Hebron, na Cisjordânia). Em 30 de março, Dia da Terra para os palestinos, uma grande marcha rumo a Al Quds (Jerusalém) está programada. Os palestinos expandem ainda o chamado por BDS (boicotes, desinvestimentos e sanções) ao apartheid de Israel. Na contramão, o governo brasileiro tem firmado nos últimos anos acordos militares com Israel e universidades consagradas têm ampliado os convênios de cooperação com instituições que sustentam a ocupação de territórios palestinos. Diante desse cenário, intensificar a campanha de BDS em âmbito nacional é imprescindível. Programado para ocorrer em Porto Alegre, entre 28 de novembro e 1o de dezembro deste ano, o Fórum Social Palestina Livre reveste-se de grande importância para se amplificar essa iniciativa em todo o Brasil e na América Latina. Além de levantar essa bandeira, é o momento de a solidariedade

internacional erguer suas vozes pelo direito de retorno, o fim da ocupação israelense e a liberdade aos presos políticos, entre outras demandas urgentes dos palestinos e palestinas. O ano de 2012 promete. Diante de toda essa movimentação, nós, que estivemos envolvidos em construir solidariedade a todas as revoluções (Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Iêmen e Bahrein) e à resistência palestina, decidimos lançar este boletim para discutir as perspectivas desse grandioso processo revolucionário e desfazer mitos. Não é um informativo acadêmico, é um boletim para os ativistas que estão diretamente envolvidos nos movimentos de solidariedade. Neste primeiro número, artigos sobre a Palestina, a Síria, o Egito, a Líbia e também sobre o protagonismo feminino nas revoluções, no mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher. E uma entrevista sobre documentário gravado em campos de refugiados palestinos situados na Jordânia. Boas lutas!

Soraya Misleh

sorayamisleh@yahoo.com.br

Mohamed El-Kadri

assisp2000@hotmail.com

Fábio Bosco

fabinhobosco@yahoo.com.br


BDS para denunciar e combater o apartheid na Palestina Soraya Misleh

“A definição legal para apartheid se aplica a qualquer situação no mundo em que se encontram três elementos centrais: dois grupos raciais podem ser identificados; atos desumanos são cometidos contra o grupo subordinado; e ações são cometidas sistematicamente no contexto de um regime institucionalizado de dominação de um grupo sobre outro”. O conceito foi apresentado pelo Tribunal Russell sobre a Palestina em sessão realizada em novembro de 2011 na África do Sul que concluiu ser o regime imposto por Israel aos palestinos de apartheid. A conclusão fundamenta-se em fatos. Entre eles, a discriminação cotidiana imposta aos palestinos que vivem desde 1948 sob estado teocrático judeu – cerca de 1,5 milhão (20% do total da população que ali se encontra). Apesar de terem direito a voto, não têm reconhecidos os mesmos

direitos humanos que o restante da população, por não serem judeus. Além disso, os 3,9 milhões que vivem nos territórios ocupados ilegalmente por Israel em 1967 – ou seja, Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – não podem transitar livremente entre as cidades da Palestina, submetidos a uma diferenciação nas cores de placas de automóveis e documentos de identidade. Há estradas exclusivas para colonos judeus e uma série de aparatos, como muros, cercas, checkpoints, que impedem ou dificultam sua circulação, garantem a colonização sobre as terras árabes e o controle militar por parte da potência ocupante. O regime de apartheid, como observou o Tribunal Russell, é proibido pela lei internacional e considerado crime contra a humanidade – determinação motivada pelo modelo que prevaleceu na África do Sul até os anos 90 de segregação de negros e, portanto, sua distinção em relação aos brancos. Em clara violação de princípios universais, Israel promove um apartheid que chega a ser ainda mais grave do que aquele. Segundo a jornalista Naomi Klein denuncia em seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre”, “as semelhanças são grandes, mas há di-

ferenças também. Os bantustões da África do Sul eram, essencialmente, acampamentos de trabalho, uma forma de manter os trabalhadores africanos sob estreita vigilância e controle e forçá-los a trabalhar nas minas por baixos salários. Israel construiu um sistema destinado a fazer o oposto: impedir que os trabalhadores trabalhem, com uma rede de amplas cercas de contenção, para milhões de pessoas que foram classificadas como humanidade excedente”. Em outras palavras, enquanto os negros na terra de Nelson Mandela eram autorizados a sair dos guetos mediante passes para servir de mão de obra barata, nos territórios ocupados, imigrantes foram usados como substituição à força de trabalho nativa. Esses, ainda segundo Klein, serviriam para consolidar a face mais visível da agressiva colonização israelense – com a multiplicação de assentamentos judeus em terras árabes, impulsionada em especial por uma leva de russos após os acordos de Oslo em 1993. Entre esse ano e 2000, o número de colonos dobrou, conforme escreveu a jornalista. Como Klein demonstra no livro “A doutrina do choque”, Oslo foi um ponto de virada numa política que sempre teve


na sua base a limpeza étnica dos habitantes nativos – os palestinos. De 1948, ano que marca a sua nakba (catástrofe), com a criação unilateral do Estado de Israel, até então havia certa interdependência econômica, a qual foi interrompida. “Todos os dias, cerca de 150 mil palestinos deixavam suas casas em Gaza e na Cisjordânia para limpar as ruas e construir as estradas em Israel, ao mesmo tempo em que agricultores e comerciantes enchiam

caminhões com produtos para vender em Israel e em outras partes do território”, aponta Klein na obra. Após os acordos de 1993, o estado judeu se fechou a essa mão de obra, que desafiava o projeto sionista de exclusão dessa população. Simultaneamente, Israel passou a se apresentar, nas palavras da jornalista, “como uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”. Em seu livro, a autora afirma que, ao final

de 2006, ano da recente invasão de Israel ao Líbano, a economia do estado sionista, baseada fortemente na exportação militar, expandiu-se vertiginosamente (8%), ao mesmo tempo em que acentuou-se a desigualdade social dentro da própria sociedade israelense e as taxas de pobreza nos territórios palestinos alcançaram índices alarmantes (70%).

Boicotes, desinvestimentos e sanções Diante de uma economia a solidificar o regime de apartheid, o contraponto veio sob a forma de um chamado da sociedade civil palestina por BDS (boicotes, desinvestimentos e sanções). Feito em 9 de julho de 2005 e reiterado desde então, traz como proposta que governos e sociedade civil de todo o mundo promovam embargos e sanções a Israel até que se reconheçam os direitos fundamentais do povo palestino. Assim, tem como metas: o fim imediato da ocupação militar e colonização de terras árabes e a derrubada do muro de segregação, que vem sendo construído na Cisjordânia desde 2002 e divide terras, famílias e impede a livre circulação; a garantia de igualdade de direitos civis a todos os habitantes do território histórico da Palestina, independentemente de religião ou etnia; e o respeito ao direito de retorno dos refugiados palestinos às suas terras e propriedades (estimados em cerca de 6 milhões em todo o mundo). Face a imagens e fatos que comprovam o apartheid a que tem sido submetida essa população, em diversas partes do globo a campanha de BDS tem se intensificado. Na Europa, governos como o da Noruega

desinvestiram em contratos com empresas israelenses. Ademais, cidadãos comuns recusam-se a comprar produtos oriundos da potência ocupante, sindicatos e intelectuais têm se engajado nessa luta, bem como universidades têm cancelado convênios de cooperação com instituições que mantêm e legitimam o regime de segregação. Nos Estados Unidos, também tem

Aline Baker

havido mobilizações nesse sentido. No Brasil, organizações sociais, estudantis, sindicais e populares começam a impulsionar a iniciativa. Reunidas na Frente em Defesa do Povo Palestino, lançaram em 20 de setembro de 2011 a campanha nacional por BDS. Tal ação faz-se fundamental perante forte ofensiva por parte de Israel em conquistar mercados aqui e em toda a América Latina. Investida essa que tem encontrado guarida por parte do governo brasileiro, na contramão da tendência de fortalecimento do BDS ao apartheid de Israel em outras partes do globo e em franco descumprimento das suas obrigações em não assistir a violações do direito internacional. Nessa linha, o País ratificou em 2007 o TLC (Tratado de Livre Comércio) Mercosul-Israel e tem ampliado os acordos militares com o estado sionista. De acordo com estudo feito pela organização palestina Stop the Wall, o TLC em questão inclui até mesmo a venda de produtos e serviços feitos em assentamentos ilegais na Cisjordânia. Ainda conforme aponta a análise, a cooperação e os contratos militares vêm sendo facilitados por um acordo de cooperação de segurança firmado entre a potência ocupante e o Executivo Federal em novembro de 2010. Fortalecendo essa parceria, as Forças Armadas brasileiras abriram um escritório em Tel Aviv, capital de Israel, em 2003. E têm havido constantes intercâmbios, com delegações daqui sendo enviadas para o estado sionista e de lá sendo acolhidas no território nacional – o qual tem servido como ponte para que empresas israelenses entrem em contato com países latinoamericanos, conforme declarações dadas publicamente por autoridades brasileiras. Complementa esse apoio a instalação no País de indústrias armamentistas, como a Elbit Systems em Porto Alegre. Tal, também segundo denuncia a organização palestina, “fornece armas que o Exército israelense usa para o assassinato de civis, bem como equipamentos para o muro do


apartheid e os assentamentos na Cisjordânia”. A companhia comprou várias empresas nacionais entre as quais a AEL Sistemas, que tem contratos com a Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica). De olho nos Jogos Olímpicos de 2016 e na Copa do Mundo de 2014 – a serem sediados em território nacional, duplicará até 2013 seus investimentos no Brasil, o que foi assegurado em visita do prefeito da capital gaúcha, José Fortunati, a Israel em fevereiro último. Iniciativas como essa levaram o Brasil a alçar a vergonhosa classificação de segundo maior importador de armas de Israel, como afirmou o coordenador do Stop the Wall, Jamal Juma, em visita ao País em novembro último. Pressionar, portanto, o governo brasileiro a que rompa unilateralmente de imediato esses acordos é objeto crucial da campanha por BDS lançada em setembro último. Além disso, seu objetivo é conscientizar os consumidores sobre o apartheid promovido contra os palestinos e, dessa forma, levá-los a se engajarem na campanha de

boicotes a produtos da potência ocupante. Entre eles, estão os da marca Café Três Corações, cuja empresa firmou joint venture com a israelense Strauss Coffee, que

teria divulgado em seu site em hebraico a cooperação com o exército sionista. Pela colaboração, a marca vem sendo boicotada em países da Europa.

Cessar a cooperação acadêmica e cultural Essa é outra linha de frente nessa luta. Entre seus adeptos estão a própria Naomi Klein e o cantor Roger Waters, o qual fará turnê pelo Brasil em abril próximo, passando inclusive por Porto Alegre. Conforme escreve o ativista Omar Barghouti em “BDS – Boycott, divestment, sanctions, the global struggle for Palestinian rights”, nesse sentido, o chamado palestino reivindica: cessar qualquer forma de cooperação acadêmica e cultural, colaboração ou projetos com instituições israelenses; suspender todas as formas de fundos e subsídios a essas e “desinvestir”

nelas; trabalhar para condenar as políticas de Israel e pressionar pela adoção de resoluções nesse sentido; apoiar instituições acadêmicas e culturais palestinas sem contrapartida em relação ao estado sionista. A prisão sistemática de intelectuais por parte de Israel pode servir de ingrediente a fortalecer essa iniciativa. No País, denunciar arbitrariedades como essa é tarefa essencial da campanha por BDS, perante um quadro nada alentador em que instituições de ensino superior têm firmado convênios de cooperação com instituições israelenses. Uma das principais, a USP (Universidade de São Paulo), tem seguido por esse caminho desde 1994. Um desses acordos, inclusive, é com a Universidade de Ariel, situada na colônia que leva esse nome, um dos maiores assentamentos israelenses em terras palestinas. Firmado em 2010 com o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da universidade pública paulista, tem vigência de cinco anos. Além de afronta ao direito internacional, tais acordos funcionam, como afirmou Indra Habash, da Frente Palestina da USP, em artigo de sua autoria sobre o tema, “como instrumento facilitador e normalizador da situação de ilegalidade das colônias israelenses, da construção do muro de separação e dos crimes cometidos contra os palestinos”.

Como divulga ela em seu texto, relatório do AIC (Alternative Information Center) não deixa dúvidas sobre isso. Aponta que “todas as principais instituições acadêmicas em Israel estão envolvidas na ocupação e apoiam plenamente as forças de segurança israelenses e suas políticas em relação aos palestinos”. E ainda que a educação ali “não é isenta de questões políticas e suas universidades são parte indispensável do regime de apartheid israelense”. Frente a isso, a autora conclui: “A longo prazo, os países e suas instituições perderão credibilidade se não defenderem, de fato, o direito internacional e humanitário e os valores universais garantidos ao povo palestino, incluindo os direitos à autodeterminação, à igualdade e ao retorno.” Claro está que a campanha por BDS ao apartheid de Israel é estratégica. Elevá-la ao topo da lista da solidariedade internacional pela Palestina é, portanto, tarefa urgente. O Fórum Social Palestina Livre, a se realizar entre 28 de novembro e 1o de dezembro em Porto Alegre, pode servir de impulso nesse sentido. O que exige que se consolide como espaço de discussão e deliberação de iniciativas concretas para se pôr fim a mais de 60 anos de colonização e limpeza étnica sionistas. Uma intifada por boicotes, desinvestimentos e sanções é o caminho para firmar-se na Palestina o que Omar Barghouti denomina em seus escritos “momento África do Sul”.


Líbia: povo comemora aniversário da revolução Fábio Bosco “Homens, mulheres e crianças tomaram as ruas de Trípoli, Bengazi, Misrata e outras cidades no entardecer da quinta-feira para iniciar as celebrações.” Dessa forma a Al Jazeera descreveu as manifestações em todo o país no aniversário da revolução, em 17 de fevereiro de 2012. “Eu não tenho palavras para descrever minha felicidade. Toda Trípoli está em júbilo”, afirmou Naima Misrati, uma moradora de Trípoli, àquele jornal. No entanto, essa alegria não é compartilhada pelo governo interino nomeado pelo CNT (Conselho Nacional de Transição), nem pelas potências colonialistas. O governo não organizou nenhuma comemoração oficial, sob alegação de respeito aos 15 mil mortos pelas forças de Kadafi durante a revolução. Na verdade, está desprestigiado junto à população, mal pode aparecer em público e não tem o controle do país. O repórter Tony Birtley, da Al Jazeera, relata: “As milícias estão fora de controle e muito bem armadas. Quando encontrei o vice-primeiro-ministro, ele disse: ‘Você tem que entender que nossa segurança ainda está nas mãos deles (as milícias). Nós

precisamos deles para a segurança’”. O desespero das potências colonialistas é visível. O New York Times afirma que a situação na Líbia é de caos crescente por conta de “um governo cuja autoridade não vai além dos seus escritórios e de milícias fartamente armadas”. O mesmo porta-voz do imperialismo estadunidense relata que só em Misrata, um dos centros da revolução, há cerca de 250 milícias populares, segundo grupos de direitos humanos. No último dia 2 de março, a ONU (Organização das Nações Unidas) divulgou um relatório que critica a fragilidade do governo interino em coibir as ações das milícias revolucionárias, que, na sua avaliação, violam os direitos humanos e o estado de direito. O relatório reconhece

que o governo Kadafi cometeu crimes contra a humanidade, mas afirma que as milícias também cometeram abusos: prisões em massa de apoiadores do ditador e execuções extrajudiciais, como a do próprio Kadafi. Além disso, critica a perseguição aos moradores de Tawergha pelas milícias de Misrata. Esse último local resistiu durante meses a um cerco sanguinário de Kadafi organizado a partir da cidade de Tawergha. Curiosamente, tal relatório critica ainda a falta de investigações sobre os bombardeios da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que mataram pelo menos 60 civis e feriram outros 55, segundo a ONU. É claro que numa revolução contra um ditador assassino se estabelece uma justiça revolucionária. Mussolini, preso em Milão, foi executado “extrajudicialmente” e seu corpo exposto aos moradores por vários dias. Após a revolução cubana, os imperialistas protestaram contra a execução "extrajudicial" de contrarrevolucionários no paredão. Não é difícil prever o que fará a população síria quando colocar as mãos no ditador assassino Bashar el-Assad.

na quem tem o poder. Essa é a lição da revolução no Egito. Desprovidos de armas, os revolucionários egípcios são reprimidos pela polícia do regime e não conseguem estabelecer um novo poder. Na Líbia não é assim. No dia 13 de fevereiro último, a Associated Press relatou que representantes de 100 milícias da região oeste da Líbia, onde ficam Trípoli e as cidades nas montanhas

de Nafusah, formaram uma nova federação para evitar disputas internas às milícias e para pressionar por direitos e reformas. O líder da nova federação, coronel Mokhtar Fernana, denunciou que o governo interino quer sequestrar a revolução, desarmando as milícias revolucionárias e formando um novo exército com kadafistas. Ele afirmou que os milicianos não entregarão armas para um governo corrupto.

Armamento e poder O desespero dos países imperialistas é compreensível. Kadafi já caiu há seis meses, mas a produção de petróleo ainda está em 40% do volume anterior à revolução, e o governo transitório do CNT, que é aliado do imperialismo, não tem o controle sobre centenas de milícias populares que são o poder efetivo nas ruas. O imperialismo quer o desarmamento imediato das milícias populares para assegurar seus interesses. Mas a história mostra que os interesses da revolução são outros. Já no século XIX, o revolucionário socialista Karl Marx defendia o armamento da população através de milícias como um direito democrático do povo trabalhador, já que o monopólio de armas nas mãos do Estado só interessaria aos burgueses capitalistas. A posse das armas na verdade determi-


Perspectivas A proposta do governo interino e das potências colonialistas é clara: constituir um governo forte ligado ao imperialismo para desarmar a população e retomar integralmente a exportação de petróleo aos países europeus. Para isso, estão chamando eleições para uma Assembleia Constituinte, em 23 de junho. Nessa, 20 assentos entre 200 serão destinados às mulheres. Esperam que das eleições surja um governo com legitimidade para impor uma ordem capitalista. Ao mesmo tempo, para ganhar tempo, aumentaram os salários dos trabalhadores. Os revolucionários precisam trilhar um caminho diferente. As milícias estão atomizadas e, às vezes, lutam entre si. É necessário uní-las em uma federação nacional que destitua o governo interino

e assuma o poder. Sua missão é julgar e punir os líderes kadafistas, garantir amplas liberdades democráticas para que a população trabalhadora possa governar, com direito de organizar sindicatos livres e partidos políticos, e nacionalizar o petróleo para atender as demandas sociais por emprego, salário, educação, saúde e moradia. Além disso, um governo revolucionário dos trabalhadores tem que apoiar a extensão da revolução a todos os países árabes e enfrentar Israel e as potências imperialistas. O principal obstáculo está na ausência de uma organização política revolucionária que lute por constituir esse poder alternativo baseado nas milícias populares armadas contra o governo interino do CNT e o imperialismo.

Muammar Kadafi (1942-2011) Do nacionalismo árabe ... Em setembro de 1969, o coronel Kadafi afasta o rei Idris e assume o poder. Seguindo o exemplo do egípcio Gamal Adbel Nasser, instaura um regime sem liberdades democráticas, mas que enfrenta os interesses imperialistas. Seu governo fecha as bases militares estrangeiras em solo líbio e nacionaliza

a principal riqueza do país, o petróleo, cujos recursos passa a utilizar para elevar o nível de vida da população. No plano internacional, Kadafi apoiou lutas e organizações nacionalistas e socialistas em vários países, entre as quais o Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela, que liderou a revo-

lução negra contra o apartheid na África do Sul, e o IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava contra a ocupação britânica. Opunha-se à existência do Estado de Israel. Por conta dessa política, a Líbia foi atacada pela força aérea estadunidense em 1986.

Nos últimos anos, patrocinou a campanha eleitoral de Nicolás Sarkozy, chefe do imperialismo francês, e era amigo de Sílvio Berlusconi, então primeiroministro italiano. Abandonou a luta contra Israel e passou a defender um estado único que chamava de "Isratina" (Israel + Palestina). Na Líbia, promoveu um amplo programa de privatizações, incluindo o petróleo. Seu filho Saif defendia implantar zonas francas para corporações multinacionais, transformar o país num paraíso fiscal livre de impostos para estrangeiros e numa Dubai do norte da África com hotéis de luxo. Para eliminar qualquer dissidência, promovia execuções públicas televisionadas para toda a população líbia. Bombardeou Benghazi e outras cidades para coibir um levante liderado por islâmicos. Assassinou 1.200 prisioneiros na prisão de Abu Salim. No entanto, a revolução democrática

iniciada em Benghazi em 15 de fevereiro de 2011 foi o seu fim. A população se revoltou contra a prisão de um advogado. O desemprego era de 30%, o descaso com a população era tanto que até mesmo o lixo se acumulava nas ruas, sem coleta. A revolução se espalhou por todo o país. As potências imperialistas aliadas de Kadafi perceberam que o ditador não teria mais condições de defender seus interesses e em 19 de março iniciaram bombardeios contra a Líbia. O objetivo foi impedir que uma revolução democrática vitoriosa ameaçasse os interesses das multinacionais. As milícias revolucionárias entraram em Trípoli em 12 de agosto. Em 20 de outubro, as milícias populares de Misrata encontraram o ditador e o executaram imediatamente aos gritos de "Deus é Grande" e tiros ao ar. Imitando o ditador, seu corpo foi disponibilizado para exibição pública.

... a lacaio do imperialismo Em 1999, Kadafi entregou ao imperialismo dois líbios suspeitos de explodir o jato da Pan Am que sobrevoava a cidade de Lockerbie, na Escócia, em 1986. Em 2003 ele aceitou indenizar as famílias com US$ 2,7 bilhões. Em 2001, Kadafi foi um dos primeiros líderes árabes a condenar os ataques de 11 de setembro em Nova Iorque e o primeiro a exigir a prisão de Bin Laden, dando apoio tácito à invasão do Afeganistão. Iniciou então uma colaboração com serviços secretos estadunidense e britânico e outros governos ocidentais sobre “terrorismo”, armas nucleares e imigração. Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, e Condoleeza Rice, então secretária de Estado dos EUA, visitaram Kadafi em Trípoli. O ditador líbio declarou à Al Jazeera sobre Condoleeza: “Eu a admiro e estou orgulhoso sobre a maneira como ela dá ordens aos líderes árabes.”


Síria: armar os revolucionários para derrubar Bashar e retomar as colinas de Golã Mohamed El-Kadri Há um ano, no dia 15 de março, começou a revolução síria. Inspirada nas revoluções tunisiana, egípcia e líbia, a população de Deraa tomou as ruas para protestar contra a prisão de crianças que supostamente pixaram um muro e exigir reformas. A resposta do ditador Bashar veio rápida e cruel. Comandada por seu irmão Maher, a quarta divisão assassinou dissidentes, sufocando os protestos em Deraa. No entanto, a revolução radicalizou e se nacionalizou. Toda sexta-feira era a mesma coisa. De Deraa a Idlib, passando por Hama e Homs, e de Deir el Zour aos subúrbios de Damasco, o povo vai às ruas cantando: “Vá embora Bashar”. Comitês de Coordenação Local se formaram em várias cidades, vilas e bairros. Em todas as

manifestações há cristãos, drusos, curdos, ismaelitas e alauítas junto com sunitas que cantam: “Um, um, um, o povo sírio é um só”. Às vésperas do Ramadan, as mobilizações em Hama chegaram a 500 mil pessoas. Durante o Ramadan, temendo que as mobilizações semanais se tornassem diárias, Bashar atacou Hama, matando centenas de sírios. Mesmo assim as mobilizações continuam em várias cidades. A economia está quase paralisada. A produção agrícola despencou, a inflação é de 20% ao ano, e a libra síria caiu pela metade frente ao dólar em um ano. Soldados se recusam a atacar manifestantes e desertam. Surge o Exército da Síria livre. Agora Bashar fez outro massacre exemplar. Por três semanas atacou bairros de Homs, arrasando Bab Amr. Homs, essa cidade maravilhosa, tem um alto grau de organização. O jornalista Nir Rosen, da Al Jazeera, descreve em um artigo: “O Conselho Revolucionário de Homs foi formado em setembro. Ele tem comitês de segurança, mídia, manifestações, assistência médica, ajuda humanitária e assuntos legais. Em janeiro, eles alimentavam 16 mil famílias em toda a província. Sua liderança é eleita e vive clandestinamente”. Isso mostra que a revolução não é uma criação estrangeira. como diz Bashar, mas sim uma verdadeira revolução popular, com líderes em cada cidade síria. O massacre em Homs e em outras cidades coloca a necessidade de armamento para se defender da violência do regime.

O mesmo jornalista da Al Jazeera escreve: “A insurgência síria não é bem armada, nem bem financiada”. Os revolucionários compram suas armas de contrabandistas que as trazem do Iraque, Líbano e Turquia. Ou ainda de integrantes do próprio exército sírio. Mas isso não é o bastante para enfrentar Bashar. A maior parte do financiamento vem de sírios vivendo no exterior. A intervenção estrangeira não é uma solução. Se a revolução avançar, é possível que o imperialismo ou a Liga Árabe intervenham. Mas o objetivo deles não é fortalecer a revolução, e sim paralisá-la e destruí-la. Os países imperialistas querem defender seus interesses econômicos e políticos, que estão ameaçados pela revolução. A Liga Árabe teme que uma vitória da revolução alimente movimentos semelhantes em seus países.


A proposta da Liga Árabe, apoiada pelos Estados Unidos e países europeus, é que Bashar se afaste do governo e seu vice assuma, negociando com a oposição. Ora, o regime não é apenas Bashar, mas o bando que está com ele. Nessa proposta das ditaduras árabes, Maher Assad, o irmão assassino de Bashar, continuaria à frente da quarta divisão do exército.

Até o momento, as potências imperialistas não querem intervir, nem as ditaduras árabes. Essa é a conclusão do sociólogo Immanuel Wallerstein: “Por mais que seja elevado o volume da retórica e por mais terrível que seja a guerra civil, ninguém quer realmente que Assad saia. Arábia Saudita, Estados Unidos, Israel, Turquia e França, nenhum desses países quer inter-

vir diretamente no conflito sírio”. A solução é exigir que todos os países forneçam armas para os revolucionários seguirem a luta. O povo sírio tem o direito de decidir democraticamente os rumos de seu país e de se armar. Com armas, o exército vai se dividir, e a revolução vai vencer. A revolução na Síria só vai estar completa com a queda de Bashar e das elites dominantes, e com a retomada das colinas de Golã. Os revolucionários têm que declarar desde já que não vão colaborar com Israel, como Bashar tem feito. A retomada das colinas será um golpe contra Israel e vai fortalecer a luta dos palestinos. Revolução até a vitória sempre!

Nacionalistas e “esquerdistas” apoiando a ditadura Sob a alegação de que se posicionam em defesa do povo sírio, líderes nacionalistas como o presidente Chávez e Fidel Castro, juntamente com o Hezbollah e partidos comunistas em todo o mundo, na prática estão apoiando a ditadura de Bashar. No início, diziam que o regime do Baath era anti-imperialista. Mas como explicar que esse regime mandou 5 mil soldados para combater Saddam Hussein junto com os Estados Unidos e as potências europeias na primeira guerra do Golfo? Como explicar a invasão do Líbano em 1976, atendendo a um pedido de Kissinger para atacar o Movimento Nacional Libanês liderado por Kamal Jumblatt, com a participação da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), dos xiitas, dos sunitas e dos vários partidos comunistas, que estavam às portas de tomar o poder no Líbano contra as forças fascistas da Falange? Como explicar a passividade do regime sírio frente à ocupação das colinas de Golã por Israel? Hoje a fronteira com a Síria é a mais segura para Israel. Escreve Immanuel Wallerstein: “A Síria tem sido um vizinho árabe relativamente tranquilo, uma ilha de estabilidade para os israelenses. Sim, os sírios ajudam o Hezbollah, mas o Hezbollah

também tem se mantido calmo”. Ele conclui: “Por que iriam os israelenses querer correr o risco de uma turbulenta Síria pós-baathista? Quem assumiria o poder? Não iria querer reforçar as suas credenciais ampliando a jihad contra Israel? E a queda de Assad não abalaria a estabilidade relativa que o Líbano parece agora desfrutar? O resultado não acabaria por ser uma renovação do radicalismo do Hezbollah? Israel tem muito a perder, e não muito a ganhar, se Assad cair.” Outro argumento dos apoiadores de Bashar é que a Síria apoia os palestinos. Todos conhecem a famosa frase de Yassir Arafat sobre o regime sírio: “Assad fi Lubnan wa arnab fi jaulan” – Assad é um leão no Líbano (contra os palestinos) e um coelho nas colinas de Golã (contra Israel). O regime sírio nunca reconheceu a OLP e ajudou a expulsá-la do Líbano em 1982. Os palestinos sabem disso. Muitos lutadores passaram pelas prisões do regime sírio. Muitos palestinos não apoiam Bashar. Ismail Hanieh, do Hamas, discursou: “Um povo que luta por liberdade e justiça contra a ocupação sionista da Palestina jamais poderia apoiar um regime que mata seu povo que pede liberdade e justiça”. Cem intelectuais palestinos fizeram um manifesto apoiando a revolução na Síria. E o jornalista Nir

Rosen, da Al Jazeera, informa naquele jornal que vários grupos palestinos estão ajudando a revolução dentro da Síria. Por fim, a chamada ingerência estrangeira do imperialismo e das ditaduras do Golfo na Síria. Em primeiro lugar, os apoiadores de Bashar não fazem menção à interferência da Rússia e do Irã, que têm dado assistência logística ao regime. Em segundo lugar, se os Estados Unidos, a Europa e a Liga Árabe tivessem intervido, Bashar já estaria deposto. Eles não deram nem o mínimo, que são armas, para o povo sírio se defender da ditadura. Por isso, Bashar massacra o povo sírio impunemente, como fez em Bab Amr. Para terminar, um chamado em particular ao Hezbollah. Vocês conhecem o que foi a ocupação síria no Líbano por 30 anos. Vocês sabem que, na primeira oportunidade, Bashar vai negociar com Israel e entregar o Hezbollah como moeda de troca. Vocês sabem dos massacres que Bashar está fazendo contra seu povo, e há milhares de refugiados no Líbano. É hora de mudar de posição. O Hezbollah tem que seguir o exemplo do Hamas, romper com Bashar e apoiar a revolução. Esse é o caminho da libertação do mundo árabe frente a Israel e ao imperialismo.


Egito: revolução e consciência de classe Aldo Sauda, direto do Cairo Revoluções em curso não são feitas apenas por momentos de glória. O dia 11 de fevereiro de 2012, data do aniversário da queda do presidente egípcio Hosni Mubarak, certamente não foi um deles. Movimentos da juventude, relembrando a greve geral que há um ano derrubou o então ditador, decidiram investir todas as suas esperanças em uma nova paralisação da economia contra os remanescentes do antigo regime. Suas expectativas se assentavam, na prática, em uma mobilização semi-espontânea das massas operárias em

torno de temas quase puramente políticos. Após muita expectativa, só o movimento estudantil entrou em greve. O fato de que nenhum setor da classe trabalhadora paralisou surpreendeu até os mais cautelosos dos observadores. Em um país com um movimento operário em franco ascenso e uma forte politização nas ruas, o grau de apatia frente ao chamado desanimou boa parte dos ativistas egípcios. A derrota, porém, deixa importantes lições ao jovem movimento revolucionário do país.

Uma consciência em construção Mohamad Said, dirigente do recém fundado sindicato independente dos petroleiros de Alexandria, viajou por mais de cinco horas de trem para ser entrevistado. Trajando um terno verde oliva, claramente destacado para sua tarefa internacionalista, Mohamad carregava debaixo dos braços livros de sua autoria para presentear seus entrevistadores estrangeiros. O tema do seu texto passa longe da luta

de classes. Ele revela, de forma bastante pitoresca, o grau de consciência da vanguarda do operariado egípcio. O sindicalista redigiu um livro a respeito dos desperdícios e gastos supérfluos na indústria de petróleo do país. O assunto é preocupação central desse maquinista com formação técnica em contabilidade. “Nossa produção de riquezas é uma vergonha, se tivéssemos mais contro-

le e eficiência, o Egito seria um país muito mais rico”, afirma. Com precisão de contador, passa quase uma hora detalhando os problemas técnicos da indústria petroleira do país. Para ele, seu recém fundado sindicato tem papel central em propor métodos para elevar e melhor organizar a produção nacional. Em alguns momentos, fica difícil discernir se estamos diante de um militante sindical ou um gerente do Estado.


Uma nova conjuntura A queda de Mubarak, em boa parte produto da militância de homens e mulheres como Mohamad, abriu um novo momento na organização da classe trabalhadora egípcia. Juntamente com a derrubada do regime, a antiga lei sobre organização sindical, que proibia sindicatos independentes, foi rescindida pela junta militar que atualmente governa o país. Quatro meses depois da abolição da lei, sob pressão dos sindicalistas independentes, a antiga central pelega, atrelada ao Ministério do Trabalho e ao partido do governo, teve toda a sua cúpula dirigente demitida. Tal dispensa, assim como a abolição da lei sindical revelam o caráter incompleto da revolução no Egito. Enquanto a central pelega não possui mais uma direção política stricto sensu, o governo em momento

algum anunciou a sua abolição. Na prática, a entidade foi colocada na geladeira, podendo ser tirada de lá quando o governo acreditar ser conveniente. A própria derrubada da antiga lei sindical carrega uma dualidade. Se por um lado o fim da odiada lei atende a uma reivindicação histórica da classe trabalhadora, por outro, o Egito se encontra hoje sem uma legislação específica para reger o direito de organização sindical. Tal limbo legislativo tem permitido ao empresariado total liberdade nos seus ataques ao movimento operário. Não que tal fato não se desse nos dias de Mubarak, mas a ausência dos instrumentos do

Estado para controlar o movimento dos trabalhadores introduziu uma dinâmica inteiramente nova na luta de classes. Se por um lado a burguesia bate com força, o proletariado, mesmo que com pautas pouco radicalizadas, tem tentado responder com igual vigor, muitas vezes chegando até a “deter” por dias os gerentes das fábricas.

Os petroleiros de Alexandria Fundador do sindicato de sua companhia, Mohamad representa um dos setores mais radicalizados do movimento operário egípcio. Seu sindicato teve uma participação importante na onda de greves de setembro de 2011, que parou por volta de 700 mil trabalhadores. O movimento, entretanto, sofreu duras retaliações. A direção do sindicato livre, segundo

o militante, foi em boa parte demitida de seus empregos. Visando desmontar o novo sindicato, gerentes industriais, acompanhados por oficiais do governo, obrigaram os operários filiados a se desfiliarem da entidade, sob ameaça de retaliações no trabalho. Junto a isso, um novo sindicato atrelado às empresas petroleiras (muitas delas multinacionais) foi fundado em Alexandria. Sindicatos no setor privado eram algo inexistente até a queda de Mubarak. A abertura econômica e o processo de privatizações, lentamente iniciados na década de 70 e acelerados durante os anos 2000, transformaram radicalmente as relações de trabalho nacionais. A antiga lei que regia a organização dos trabalhadores, na

prática, proibia a formação de sindicatos nas empresas particulares, em que os mais básicos direitos sociais eram negados. No atual vácuo legislativo, as empresas estão rapidamente organizando entidades atreladas a elas para assim impedir um possível avanço do sindicalismo independente. A maioria repete o modelo político dos sindicatos oficiais atrelados ao antigo regime, com funções semi-estatais acopladas a sua estrutura, como a de organizar a aposentadoria de seus filiados. Não por acaso, o sindicato independente, com seus dirigentes demitidos, sua base obrigada a se desfiliar da entidade, e tendo que competir com uma instituição estatal que controla direitos básicos da cidadania, foi duramente enfraquecido.

“Juventude é estado de espírito, e não um período específico de tempo.” Entusiasmado, aponta no jornal do grupo o ícone dos jovens, o ativista Rafez Salama, de mais de 90 anos. “Ele participou de todas as guerras contra Israel, foi preso diversas vezes pela ditadura e mesmo aos 90 anos fez questão de ir todos os dias aos atos de rua contra Mubarak”, conta. Assim como os jovens que chamaram a greve geral, Mohamad defende a imediata retirada dos militares da política. “Temos que completar nossa revolução. Fortalecendo a luta da classe trabalhadora, con-

seguiremos derrubar os remanescentes do regime”, enfatiza. Questionado sobre a greve geral, de repente, indo no sentido inteiramente oposto de tudo o que vinha dizendo, o sindicalista muda o tom: “Sou contra. Não podemos espalhar desordem no país... Esse tipo de iniciativa atrapalha a produção.” Retornando rapidamente ao tema de seu livro, com um palavreado que em boa parte reproduz o discurso do governo, o operário afirma de forma convencida à sua plateia: “Precisamos garantir o crescimento do Egito. A eficiência na indústria tem de ser nossa prioridade.”

A luta continua Apesar dos desafios, Mohamad e seus companheiros petroleiros continuam firmes na luta. “Depois de criarmos os sindicatos de base nas fábricas e os dos trabalhadores de Alexandria, agora estamos filiados à central sindical independente”, afirma o militante. “Junto com ela, estamos redigindo nossas contribuições para a nova legislação sindical.” Mohamad também faz parte da “Juventude Revolucionária dos Trabalhadores do Petróleo”, algo um tanto quanto curioso, dada a idade avançada do militante. “Tenho mais de 50 anos, mais isso não importa”, explica com um sorriso no rosto.

Texto publicado no site da revista Caros Amigos: www.terra.carosamigos.com


Na linha de frente, as mulheres Soraya Misleh As revoluções no mundo árabe vêm derrubando não só ditaduras e trazendo à tona suas relações com o império. Vêm também desconstruindo estereótipos. Entre eles, as tão frequentes quanto equivocadas generalizações em relação às mulheres árabes.

No Brasil e em várias partes do globo, a imagem transmitida por agências de notícias internacionais e mídias corporativas é de um grupo absolutamente homogêneo. São mulheres cobertas com véus, submissas, que escondem uma sensualidade intrínseca por trás de suas pesadas roupas, normalmente de cor escura. O colorido da diversificada e rica sociedade árabe é deliberadamente omitido. O primeiro mito que as revoluções que tiveram início na Tunísia em fins de 2010 e se alastraram por diversos países colocou por terra foi de que essas mulheres jamais se colocariam na linha de frente das batalhas por direitos. Os levantes que derrubaram até agora quatro ditaduras e continuam em curso demonstraram que seu protagonismo foi e tem sido fundamental para pôr fim a regimes opressores. No Egito, tornou-se comum a cena de milhares de mulheres na Praça Tahrir. Ao se congelar essa imagem, outro mito é desfeito: o de que todas elas usam véus. O senso comum, fundamentado na ideia de que toda árabe é muçulmana, é desafiado (como se não houvesse outras religiões ou nenhuma fé no seio dessas sociedades e todas as islâmicas usassem obrigatoriamente véu, o

que também é uma falácia). Há mulheres cobertas, descobertas, com roupas de todo tipo, como em qualquer outra sociedade. A ideia de que as muçulmanas estão à margem desses processos também é desmontada no curso das revoluções. A egípcia feminista Nawal El Saadawi, que pôde ser vista ao lado de outras lutadoras nas grandes manifestações na Praça Tahrir, explica em seus escritos que o Islã chega a ser mais suave no que se refere às diferenças de gênero. O que ocorre é que a religião tem sido usada como meio de dominação, mediante distintas interpretações, de modo a favorecer o grupo político hegemônico e manter a opressão de classe. O que ainda está por ser desconstruído é a ideia de que a participação feminina em revoluções no mundo árabe é novidade. Quem elucida esse tema é Nawal. Em seu único livro traduzido para o português, “A face oculta de Eva - As mulheres do mundo árabe”, ela salienta: “A história tem descrito, com falsidade, muitos dos fatos relacionados ao sexo feminino. As mulheres árabes não são mentalmente deficientes, como os homens e a história, escrita por eles, tendem a afirmar, tampouco são frágeis e passivas. Ao contrário,


as árabes mostraram resistência ao sistema patriarcal centenas de anos antes que as americanas e europeias se lançassem a essas mesmas lutas.” Sistema esse que passou a predominar a partir do surgimento da noção de propriedade privada e divisão de classes, como ensina Nawal em sua obra. Em tempos ancestrais, em que predominava o nomadismo e a agricultura de subsistência, as mulheres detinham a igualdade em assuntos sociais, econômicos e na esfera política. Destituídas dessa posição e relegadas às camadas sociais inferiores, as mulheres da região, assim como em outras partes do globo, vêm assumindo a linha de frente na oposição a esse status quo. Assim, ao longo dos séculos, têm desempenhado papel fundamental nas lutas contra o colonialismo, a dominação, por direitos, justiça. Não poderia ser diferente: acabar com a desigualdade de gênero é bandeira crucial na transformação dessas sociedades. Nesse ponto, Nawal é categórica: “Enquanto

os assuntos do Estado ou do poder administrativo forem delegados à mulher dentro de uma estrutura social de classes, baseada no capitalismo e no sistema familiar pa-

triarcal, homens e mulheres hão de permanecer vítimas da exploração.” Mudar esse estado de coisas mantém-se na ordem do dia de muitas mulheres.

destacado no movimento nacional de libertação contra os ingleses. No Kuwait, na Líbia, no Iêmen, no Marrocos, têm dado sua contribuição por justiça e liberdade. Na Palestina, foram pioneiras em protestar contra a instalação dos primeiros assentamentos sionistas ainda no final do século XIX, com fins coloniais – e têm re-

sistido aos mais de 60 anos de ocupação israelense na linha de frente. “A extensa lista de mártires serviria para encher as páginas de todo um capítulo, mas entre as mais conhecidas estão Leila Khaled, Fátima Bernaw, Amina Dahbour, Sadis Abou Ghazala e outras cujos feitos intrépidos um dia serão admirados pelas futuras gerações de jovens e mulheres.”

Protagonismo histórico Em seu livro, Nawal descreve uma série de acontecimentos que não deixam dúvidas de seu protagonismo histórico em diversas áreas – nos campos de batalha, na literatura, na poesia. Ela cita diversos nomes femininos que inclusive combateram nas fileiras do profeta Maomé ou contra ele e seus seguidores, na era islâmica. As próprias esposas do profeta eram exemplos de mulheres firmes, que não abriam mão de seus direitos. Dando um salto no tempo até o início do século XX, a escritora relata que no Egito foram as mulheres as primeiras a deflagrar greves, ocupar fábricas e marchar por direitos. Participaram ativamente na revolução nacional de 1919, contra o imperialismo britânico. No país, em 1923, foi fundada a Federação das Mulheres. Em outra revolução, em 1956, arrancaram o direito a voto. A autora complementa: “O Egito não foi o único país árabe no qual a mulher participou ativamente na luta contra o imperialismo estrangeiro e a opressão interna. A mulher em todo o mundo árabe lutou ombro a ombro com o homem pela libertação nacional e pela justiça social.” Na Síria, no Líbano e na Argélia, tiveram papel fundamental contra a ocupação francesa. No Iraque, também se opuseram ao imperialismo e contribuíram “para acelerar as transformações sociais”. Na Jordânia, historicamente têm “organizado a luta nas frentes sociais, políticas ou econômicas”. No Sudão, tiveram papel


Documentário aborda direito de retorno dos refugiados palestinos Gabriele Bortolucci / ICÁrabe Como resultado da contínua limpeza étnica imposta por Israel desde sua criação unilateral há quase 64 anos, milhares de pessoas foram expulsas de suas casas. Atualmente, estima-se que haja aproximadamente 12 milhões de palestinos e descendentes em todo o mundo. Cerca de 4,7 milhões vivem em campos de refugiados em países árabes vizinhos dos territórios ocupados. Em 2011, o palestino-brasileiro Hasan Zarif, membro do Mopat (Movimento Palestina para Tod@s), esteve na Jordânia e visitou vários campos. Nesses, em condições precárias, encontram-se 1,9 milhão de palestinos.

Durante o período em que conviveu com os refugiados para realizar um documentário - 35 dias -, veio a constatação inexorável: a esperança de retornar a suas terras e propriedades mantém-se viva, entre jovens e idosos. Como observa Zarif, isso prova que Ben Gurion, primeiro-ministro de Israel em 1948 e um dos arquitetos da limpeza étnica que se abateu sobre os palestinos, estava errado, quando, em uma de suas célebres frases, fez a afirmação de que “os velhos morrerão, os jovens esquecerão”. Em quase 40 entrevistas feitas em diferentes campos, com pessoas de distintas faixas etárias, a demonstração de que essa

memória e identidade não serão apagadas. Sob a direção de Zarif, o média-metragem que aponta essa realidade e tem o apoio do ICArabe (Instituto da Cultura Árabe), além da UNI (União Nacional de Entidades Islâmicas) e do Mopat, está em fase de edição. Tem lançamento previsto para novembro deste ano, juntamente com um livro cujas imagens foram colhidas nos campos pela fotógrafa Stella Carvalho. Nesta entrevista, Zarif - que coordenou também o documentário “Campo da paz”, a ser lançado em meados de 2012 - conta um pouco dessa produção independente e de suas motivações.


1. Como surgiu a ideia de realizar esse documentário e quais são seus objetivos?

4. Você poderia nos relatar a visão que os refugiados possuem em relação às revoluções atuais?

A ideia foi dar voz aos refugiados de diversas gerações e propiciar conhecimento sobre a questão palestina a partir dessa população, muitas vezes esquecida. Com isso, o objetivo foi abordar o direito inalienável e inegociável de retorno, que é central para que se faça justiça em relação aos palestinos. Nos campos, é possível confirmar isso e que a esperança de voltar está mais viva do que nunca.

Eles possuem uma visão de esperança. Veem nas revoluções a possibilidade de mudanças de fato e queda de regimes aliados ao sionismo.

2. Qual a realidade que vocês buscaram mostrar com o documentário?

O vídeo foi dividido em duas etapas. Na primeira, recolhemos relatos de idosos que vivenciaram os massacres sofridos pelo povo palestino. Entendemos quão trágico foi seu passado, como tiveram que abandonar seus lares às pressas, como foi viver com a perda de familiares e o impedimento de voltar a suas terras. Com todas essas lembranças, o desejo de retornar é grande. Já a segunda etapa baseia-se em entrevistas com jovens que vivem nos campos de refugiados, que também querem retornar. Todos, sem exceção, querem voltar a sua terra de origem. 3. De que maneira os refugiados lutam pelo direito de retornar à Palestina?

A resistência é um direito assegurado pela legislação internacional a qualquer povo que viva sob ocupação e opressão. No caso dos palestinos, portanto, não é diferente. A alternativa hoje tem sido recorrer à resistência popular pacífica. No ano passado, tiveram início algumas manifestações realizadas para chamar a atenção do mundo. No aniversário da nakba (termo árabe utilizado para se referir à catástrofe palestina em 15 de maio de 1948, data da criação unilateral do Estado de Israel), milhares de jovens palestinos, inclusive muitas mulheres, caminharam até as fronteiras com os territórios ocupados ilegalmente por Israel em 1967, expondo sua vontade de retornar à Palestina, num movimento que ficou conhecido como terceira intifada (levante popular). Esse movimento foi divulgado nas redes sociais e teve muitos adeptos.

Entrevista publicada no site www.icarabe.org

5. Para desenvolver o documentário, vocês fizeram contato com alguma organização da Palestina?

Tivemos o auxílio de uma produtora da região e em especial da Khulud, uma refugiada que nos acompanhou durante as filmagens. 6. Como você vê o papel do Brasil em relação à questão palestina e de que forma a arte contribui para essa aproximação?

Para apoiar verdadeiramente os palestinos, o governo brasileiro precisaria rever acordos com Israel, inclusive militares. No ano passado, a Frente em Defesa do Povo Palestino, que reúne diversas organizações da sociedade civil brasileira, lançou uma campanha por boicotes ao apartheid de Israel, atendendo a chamado da sociedade civil palestina. Em uma das entrevistas feitas na Jordânia, um palestino especialista em Direito Internacional apontou esse como um dos únicos caminhos possíveis para se chegar à justiça. Além disso, entidades brasileiras, através de projetos culturais relacionados à Palestina, têm contribuído para mudar a imagem desse povo perante a sociedade. É o início da ruptura do preconceito. 7. Você coordenou também o documentário “Campo da paz”, realizado em território palestino. Esse trabalho serviu de inspiração no desenvolvimento do filme atual?

“Campo da Paz” foi minha primeira experiência com documentário em território palestino. Existe um leque muito grande para se trabalhar, seja com a cultura, a religião, a história ou hábitos de nosso povo. Daí, então, a ideia de realizar um novo projeto sobre Palestina.


Manifesto de intelectuais palestinos de apoio à revolução síria: Não em nosso nome! Como escritores palestinos e signatários dessa declaração, é uma honra nos apresentarmos à União de Escritores Sírios, recentemente formada pelos escritores e intelectuais sírios livres, os quais levantam-se junto ao povo à medida que sobem as escadas da liberdade, a qual vem sendo manchada com sangue pelas mãos dos tiranos. O estabelecimento da União de Escritores Sírios constitui um pilar essencial da revolução síria e põe o verdadeiro intelectual no seu lugar de direito, ao lado do povo, como parceiro efetivo ao construir uma nova Síria livre do autoritarismo dinástico - um sistema diverso, democrático, civil, baseado nos direitos do cidadão, de modo a abraçar a liberdade de expressão e criação, um sistema incapaz de falsear o livre arbítrio do intelectual sírio através de estruturas vazias que apropriam os potenciais de cultura, usurpam o papel do in-

telectual e falseiam sua vontade, sempre a serviço dos tiranos e seus aparatos. Agora mais do que nunca, a Síria precisa de uma voz madura que discurse a partir de seu coração, uma voz que fortaleça a unidade nacional e proveja força da diversidade e riqueza da sociedade síria, a qual servirá como base para construir a democracia. Recentemente ouvimos um representante do regime sírio no Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) usar da causa palestina e de seu curso doloroso e honroso como pretexto para os aterrorizantes crimes do regime na Síria. Dizemos ao regime sírio e seus representantes: não em nosso nome, tampouco no nome da Palestina, esses crimes serão cometidos em nossa amada síria, oh, assassinos. Não façam da nossa justa causa uma máscara para seus crimes desumanos

contra nossos irmãos e irmãs sírios. Foi o povo sírio que historicamente adotou nossa causa e sacrificou mártires pelo seu intento, não seu regime, do qual temos dolorosas memórias. Jamais esqueceremos seu papel no massacre de Tel Al-Zaatar em 1976, nem sua terrível investida no campo de Nahr al Bared, próximo a Trípoli, em 1983, ou o cerco aos campos de Beirute em 1985, ou quaisquer outros atos que vêm amargamente enfraquecendo a unidade nacional palestina. Não usem o nome da Palestina, pois esse já não é seu cartão de vitória. Uma Síria unida, livre e democrática é do que necessita a Palestina, e essa é a Síria que está nascendo hoje, do ventre de uma revolução sangrenta inflamada por um povo grandioso. Nós estamos confiantes de que o nome da Palestina permanecerá no coração desse corajoso povo revolucionário e de sua elite cultural.

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