O CINEMA À MARGEM DA DITADURA 1964-1985: CONTRAPONTO À VIOLÊNCIA DO MODERNIZAR CONSERVADOR. Rubens Machado Jr. O historiador crítico precisa repensar o legado das experiências artísticas, culturais e contra-culturais vividas no período da ditadura civil-militar de 1964 em seus desdobramentos até a década de 1980. Há uma produção cinematográfica dispersa que merece ser reavaliada pelo que traz de formas e conteúdos até hoje recalcados, herança que ultrapassa as melhores contribuições conhecidas, seja a respeito dos cinemanovistas ou dos marginais, da Boca do Lixo ou da Embrafilme. Algo que ainda não está sintetizado, teorizado, analisado, e que seria então uma espécie de contra-discurso que, desafiando a análise (já pelo seu experimentalismo), exige um esforço inicial de compreensão e de crítica. Pois é tudo aquilo que não está de fato debatido (com o devido distanciamento), em parte sequer conhecido, divulgado, embora algum começo de reflexão haja a respeito. Há um contra-discurso audiovisual — quase exclusivamente cinematográfico, já que a TV foi braço direito da ditadura em sua modernização conservadora — mas contra-discurso em voz sumida, sutil, nem sempre identificável pelos Censores de plantão, e que mesmo hoje escapa aos Sensores de uma percepção crítica catalisada desde então pela mesma modernização conservadora implantada pela ditadura. Interessa-nos aqui tratar de como se formou na década de 1960 o desvio conservador, a inversão da promessa progressista no projeto moderno. O golpe de Estado de 1964, como diz Francisco de Oliveira, “pintou-se com as cores do atraso, mas na realidade realizou o programa capitalista em suas formas mais violentas. Não foi um conflito entre o atraso e o progresso, mas entre duas modalidades de avanço capitalista. O vencedor fez seu o programa do vencido, radicalizando-o e ultrapassando-o.” 1 Assim como não produzimos ainda uma narrativa comum a respeito da história política da ditadura, e os aspectos ligados à violência repressiva, também na esfera da criação artística persistem máculas de proporções insondáveis. Entretanto foi sob a ditadura que se engendram os estudos decisivos na direção de compreender os dilemas do cinema nacional, basta lembrar o papel da reflexão de vários críticos e ensaístas, depois atuando na universidade com estudos fundamentais, formando as novas gerações, entre outros Paulo Emílio Sales Gomes, Jean-Claude Bernardet, José Carlos Avellar, Ismail Xavier, João Luiz Vieira. 1
“O avesso do avesso”, Piauí, nº 37, Rio: outubro 2009.
Essa face oculta da produção audiovisual que se desdobra a partir de 1964 sofrendo seu impacto — do silenciar, do desarticular pela repressão política, pela censura, autocensura — desarticulação do fazer artístico que estava em voga na primeira metade da década e que ainda se inflama e desenvolve nos anos que seguem, mas que veio a experimentar um golpe mais duro no final de 1968 com o AI-5 e o endurecimento repressivo, ocasionando nessa linha uma nova série de desdobramentos. Deveríamos esboçar um mapeamento com base não tanto em sínteses possíveis, pois são filmografias pouco vistas e comentadas, obras de que sequer se ouviu falar, cujos aspectos e paradigmas demandarão futura análise para se começar a entender um pouco o grau de consequências que o golpe, que o regime político que se desenvolve a partir daí operou no plano estético e no plano da produção cultural. Uma das questões que faz parte desse debate já foi exposta e mapeada, a própria ruptura do Cinema Marginal com o Cinema Novo. Aliás em determinados aspectos uma falsa ruptura, no sentido de que ela mais retoma e radicaliza uma tradição de ruptura que era prática corrente no Cinema Novo — nada mais cinemanovista que os marginais num certo sentido — ao aprofundar alguns dos seus legados mais interessantes. Aponta-se a expressiva ruptura d’O LUZ VERMELHA
(1968), de Rogério Sganzerla, e d’O
ANJO NASCEU
BANDIDO DA
(1969), de Júlio
Bressane, com filmes do Cinema Novo, sem levar em conta a formidável ruptura que já operavam entre si os filmes cinemanovistas. Seus primeiros filmes, pelos inícios do anos 60 chocavam pela cisão com toda expectativa de crítica e público nacional. Em seguida, os filmes cinemanovistas não cessam de romper, e às vezes com o próprio filme anterior do cineasta. Por exemplo DESAFIO (1965), de Paulo Cezar Saraceni, ao ser lançado parece romper com tudo o que se fizera até então no cinema brasileiro. O que não impede a magistral ruptura de TERRA EM TRANSE (1967), de Glauber Rocha, justamente ao retomar com imensa força negadora o mesmíssimo mote do DESAFIO, o impasse político e artístico do intelectual brasileiro face às forças do Golpe de 64. É interessante repensar o Cinema Marginal a partir de parâmetros presentes no Cinema Novo, em particular certo potencial poético da Estética da Fome, escrita em 1965 por Glauber. Ele preconizava, entre outras coisas, uma contraposição à realidade da invasão cinematográfica estrangeira (emulada mesmo na produção local), se respondendo com um cinema mais simples, em sintonia maior com o estágio existente das forças produtivas estéticas em nosso país, os nossos técnicos e atores concretos, um cinema menos industrial, ou pseudo industrial, e de oposição ao modelo importado, hollywoodiano, primeiro mundista, percebido como inextricavelmente ligado a um modo
de ver imperialista. Do ponto de vista poético, as coordenadas estéticas presentes no manifesto, que foi mais lido entre nós pela contundência imediata, como um manifesto importante do ponto de vista político, e político-cultural, pode ser hoje lido nas entrelinhas como uma espécie de novo campo, pensado em termos de diretrizes estéticas possíveis ao nosso alcance: Fazer um cinema conscientemente pobre em sua logística industrial e técnica, artisticamente simples e correspondente ao nosso meio, que fosse porém rico do ponto de vista de uma estética radical que atingisse o público. O manifesto chega a propor fazermos filmes mal feitos, feios, o que depois de 1968 se radicalizaria quando Rogério Sganzerla fala com maior ambiguidade e humor da necessidade de fazermos filmecos. Chega a propor isso trazendo o que era um tanto recalcado pela tradição engajada até ali, em ruptura com a seriedade cinemanovista que estigmatizou a Chanchada enquanto alienação colonizada. Em resposta ao Sabe com quem está falando?, persistente em nossa cultura como moeda sem troca na sociabilidade vivida, com que recurso podemos contar? O caráter abismal do país no que tange à diferença de condição social entre aquinhoados e desvalidos, tais vãos e desvãos separando as classes sociais acabam por constituir um traço distintivo da cultura brasileira. Razão pela qual se torna aliás enigmático esse estarno-mundo brincante, seu caloroso entusiasmo, loquaz fleugma amistosa que nos distingue ora cordiais, ora alegres, bem humorados, com larguezas de puro desassombro. Talvez sejamos assim para projetar pontes, ligações entre as distâncias, desdenhar da fragmentação, em prol do convívio? Vencer o abismo com sublimações, vislumbres de sutura? Objetar-se-ia do caráter quase mágico deste arranjo enigmático entre envolvimentos e segregação na sociedade brasileira, que até hoje não teria sabido livrar-se dos encadeamentos próprios do escravagismo. Recalcando talvez toda nódoa sorumbática e tristonha diremos com espontâneo otimismo: — Mas com o lance risonho e folgazão, não é da cicatrização das distâncias que cuidamos? Últimas ondas inequivocamente inventivas na história do cinema brasileiro, o chamado cinema marginal, seguido de perto pelo experimentalismo superoitista e algumas manifestações independentes nos anos 70, possuem bastante complexa e merecedora de estudos a sua especificidade cinematográfica enquanto se produzem em resposta diametral às formas e conteúdos da modernização conservadora postas pela ditadura. Pelo seu amadorismo acessível, sobretudo o Super-8 estaria nesta seara mais próxima àquela da poesia de mimeógrafo, do happening, manifestações artísticas que traziam elementos de difícil administração, absorção mercadológica ou burocrático-
autoritária 2 — ao contrário de posteriores criatividades do cinema e do vídeo dos anos 1980, menos avessas à linguagem, ao universo e à integração nos circuitos existentes. Continua, no entanto, atraente o paralelo mais geral dessa Marginália cinematográfica com outras manifestações, como a livre inquietude da poesia de mimeógrafo; como o recurso ao humorismo multifacetado da imprensa independente, de que O Pasquim, com seus chargistas e cronistas, foram exemplo central. Ou como o significado que teve para a música popular brasileira o despontar do movimento tropicalista e o experimentalismo que o sucedeu, lá pela mesma ocasião histórica. De modo análogo ao Tropicalismo, considera-se que, depois daquela onda, apenas individualmente um ou outro nome se destacaria talvez com radicalidade comparável; sempre, porém, pressupondo-se os passos ali dados. 3 Uma questão anterior, no entanto, se impõe dificultando a observação desse paralelo: por que Cinema Marginal, se o Cinema Novo antes dele (e também durante), sobretudo Glauber Rocha, é posto como paradigma igualmente cotejável para com o Tropicalismo? Figuras decisivas como Caetano Veloso e José Celso Martinez Correia têm lembrado de TERRA
EM TRANSE
como momento em que se tornou possível o descortinar das novas perspectivas. Mais tarde, por outro lado, dois marginais-expoentes como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane vieram a revelar cada vez maior estranhamento com a designação “marginal” e alguns indícios de simpatia pelo Cinema Novo, ao qual se viam ligados quando começaram. Isto não quer dizer, entretanto, que alguém queira se esquecer do que entre marginais e cinemanovistas houve de ruptura e de oposição, implícita ou declarada. O lado explícito tem documentos memoráveis, como a famosa entrevista de Rogério Sganzerla e Helena Ignez n’O Pasquim. O implícito, segue interessando enormemente à crítica pela sua riqueza, densidade e controvérsia. Entre as inúmeras oposições considero das mais significativas o interesse dos marginais pelo humor e a consequente 2
3
Para uma ética do mimeógrafo, escrevia T. W. Adorno em 1944: “O progresso e a barbárie estão hoje tão intrincados na cultura de massa que só a ascese bárbara contra a barbárie e o progresso dos meios poderia reconstruir o não-bárbaro. (...) Os meios mais antigos e não calculados para a produção em massa ganham nova atualidade: ao não terem sido capturados e na improvisação. Somente eles podem escapar da frente unida de trustes e técnica. Num mundo em que há muito os livros não se parecem com livros, só o são aqueles que não o são mais. Se no início da era burguesa estava a invenção da tipografia, está na hora de substituí-la pela mimeografia, o discreto único meio de difusão adequado.” “30: Interesse próprio”, Minima moralia. (tr. G. Cohn) Rio: Azougue, 2008, pp. 46-47. Cf.: Machado Jr., Rubens. “Cidade & Cinema, duas histórias a contrapelo nos anos 1970” em: Machado, C. E. J.; Machado Jr., R.; Vedda, M. (orgs.) Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: Ed. UNESP, 2014. Cf.: Machado Jr., Rubens. “Das vagas de experimentação desde o Tropicalismo: Cinema e Crítica” in: Ikeda, Marcelo; Lima, Dellani. (orgs.) Cinema de garagem 2014. Rio: Wset Multimídia, 2014, pp. 79-93, disponível em <http://issuu.com/alinepaiva68/docs/cgrj_catmiolofinal_web>, acesso em 2/8/2014.
revalorização da Chanchada, que vinha em desgraça desde os primeiros acordes cinemanovistas. É preciso recompor os passos desse desprestígio intelectual da chanchada, enrijecido entre o final dos anos 1950 e dos anos 1960 para se ter uma ideia daquilo que então veio a se desrecalcar. Tem a ver com a noção de que a paródia dos chanchadeiros prendia-se (submetendo-se) ao modelo importado de cultura e de cinema, uma macaqueação dos gringos como alçada menor e tacanha da condição brasileira; mais: capítulo da subserviência espiritual colonizada. A inversão de perspectivas parece ter-se operado na virada das décadas de 1960 e 1970, como se fosse mais por influências indiretas do Tropicalismo do que por uma reavaliação de cineastas, críticos ou estudiosos (que viria em seguida, em textos de JeanClaude Bernardet e de João Luiz Vieira, entre outros, a discutir os aspectos especificamente críticos da paródia). O que não foi observado é em quanto o ponto de inflexão mais contundente deveria recuar ao impacto causado em 1968 pelo primeiro longa-metragem de Sganzerla, O BANDIDO DA LUZ VERMELHA. O choque do novo é aí convincente, creio, na medida em que ele chega como forma cinematográfica inusitada e provocativa, cuja virulência está na fusão moderna de elementos da chanchada à perspectiva crítica perante o Brasil aberta pelo Cinema Novo. Talvez seja possível afirmar categoricamente que foi a partir das sessões do BANDIDO que nunca mais se registraram descasos ou reprimendas intelectuais à chanchada. E isto nos indica o potencial de certos filmes como texto crítico e historiográfico efetivo, já que percebido por todos, ainda que não aflorado nos termos racionais de um debate público em curso. Complica o quadro se recordarmos que Glauber houvera já, antes disso, no TERRA
EM TRANSE
(1967), introduzido com muita felicidade num pequeno papel de
senador o comediante Modesto de Souza, figura indissociável da chanchada, responsável pelo efeito sarcástico e a catarse de cenas inesquecíveis do filme. Desse pequeno senador, pioneiro desbravador no até então sisudo e compenetrado Cinema Novo, à homenagem que sela a sua reconciliação com a chanchada QUANDO O CARNAVAL CHEGAR (1972), de Carlos Diegues, gradativas aproximações foram se verificando, uma vez contado o passo seguro do MACUNAÍMA (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Isto, porém, não altera a percepção de maior simpatia dos marginais pela chanchada, bem como a sua iniciativa mais incisiva de resgate. É como se o Ciclo Marginal tomasse o gesto chanchadesco mais pelo cerne; por assim dizer, pelo seu princípio ativo, e não por suas “citações” e decantações acadêmicas de patrimônio afetivo. Com Glauber ou sem Glauber, o importante é que o Ciclo Marginal, ao seu modo, redime a chanchada, integrando,
desfigurando e recriando o humor que nela tinha livre circulação, mas repropondo-o em chave mais corrosiva, numa simbiose moderna. Amplia a modernização que o Cinema Novo tinha colocado em marcha, já com décadas de atraso em face das outras artes. Já o impacto proporcionado pelo filme O BANDIDO
DA LUZ VERMELHA,
de
Sganzerla, exprimiria no final de 1968 contradições centrais da vida brasileira que se foram acumulando durante toda a década que o antecede. Não se explica o seu choque explosivo sem recuar um tanto às marchas e contramarchas desse processo de modernização tal como percebido pelo nosso cinema. A explicação só cinéfila deixaria muito a desejar, mesmo quando cultivada do debate brasileiro do Moderno e do Tropicalismo: — Uma deglutição antropófaga de Godard, Welles, do policial B estadunidense — a par do próprio Cinema Novo (do qual, aliás, se ramificara), do cinema “sério” paulista, a que o Sganzerla crítico havia chamado de “expressionismo caipira”, ou o não-sério de Primo Carbonari, a Chanchada etc. O fato é que também se manifesta em seu timbre espalhafatoso uma pobre TV nascente, a inspiração tonificante do rádio, a imprensa popular, os quadrinhos, todo um universo mediático que se mimetizará em novidade, na sua fórmula impactante. Nesse quadro, O BANDIDO se dispõe como divisor de águas na história do filme nacional, sugerindo qualquer coisa como um cinema pré e um pós mídia. A última intenção nesse sentido se perderia talvez em algum eco otimista dos anos 50, naïf e já arcaico, talvez um ABSOLUTAMENTE
CERTO!
(1957), de Anselmo
Duarte. Posto que antes disso a Chanchada deveras conectava com o mundo midiático da época, porém quase apenas com o mundo radiofônico, na sua repercussão popular de massa, em ligação feliz e, a rigor, de força inaudita. Sganzerla avança recuando, não só refazendo o humor daquela simbiose chanchadesca, mas ao incorporar a mídia mesma, em reflexividade, funcionando em seu conjunto insidioso, invasivo e estridente — sua contemporânea indústria cultural, peculiar à experiência cotidiana concreta que se vivenciava numa cidade grande brasileira. Do início ao fim da década de 60, ou seja, dos estertores da Chanchada ao Cinema Marginal, o advento mais decisivo da modernização cinematográfica se instalara no país. Vale dizer, eclodiu o Cinema Novo. Nessa movimentação as transformações são muitas num momento em que a população urbana ultrapassa a rural no país, a revolução cinemanovista ofusca e mesmo eclipsa a cidade, naquilo que também ali se transformava. Desde O
GRANDE MOMENTO
(1958), de Roberto Santos, “um filme adiantado
para a sua época”, comenta Jean-Claude Bernardet, “um ponto de partida magnífico para
um cinema urbano” 4, com seus novos ambientes, temas e personagens a desenvolver, se foram isolando das telas no moderno cinema nacional que eclodia, as pulsações de um Brasil urbano do maior interesse, que ficaria, em retrospecto, na promessa. Num mesmo fluxo d’O GRANDE MOMENTO poderia ser pensado o Nelson Pereira dos Santos inicial, da trilogia carioca: RIO 40º (1955), RIO ZONA NORTE (1957) e BOCA DE OURO (1963); ou o CINCO VEZES FAVELA (1962). Já vinha no cinema anterior, pré (ou infra) moderno, dos estúdios cariocas e paulistas amadurecendo a vida controversa da grande cidade, de modo por vezes promissor, mesmo no confinamento interno dos primeiros filmes de Walter Hugo Khouri ou até em aspectos da Chanchada; para não falarmos do acadêmico e esquecido, mas hoje surpreendente MORAL
EM CONCORDATA
(1959) de Fernando de
Barros, baseado em peça de Abílio Pereira de Almeida. Com efeito, já estavam lá certos aspectos trazidos pela filmografia de Khouri e sobretudo, pelo inesperado SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA (1965), de Luiz Sérgio Person, referência maior e incontornável do cinema urbano brasileiro. Nele, Carlos, interpretado por Walmor Chagas, sob a égide da ruína de seu casamento, remonta à história de seus projetos e de seus amores. Isso equivale à reconstrução de seus passos pela cidade, e cada um dos seus três amores lembrados reconduz a diferentes circuitos que vão se entrelaçando no filme, carregados das motivações correspondentes às perspectivas que formou em cada um dos relacionamentos, fundindo-se em filigrana cheia de arestas com os meios tons cinzentos, que o fotógrafo Ricardo Aronovich destilou na dura paisagem paulistana. O entrelaçamento destes seus diferentes circuitos da memória no decorrer do filme pontilha um ciclo vicioso do qual o personagem não aparenta ter condições de sair. Carlos parece estar determinado por essa confluência de desejos e fracassos e se vê obrigado em continuação a retomá-los, como inescapável identidade sobre a qual se funda o seu vazio, mas também a sua história pessoal. Aí está o axioma existencialista segundo o qual nas profundezas da angústia se encontram as verdadeiras dimensões do ser. Quando a angústia máxima o leva à irreflexão da fuga, ele rouba um carro e procura sair da cidade. Ele cai em si ao acordar de um descanso, no amanhecer à beira da estrada de Santos, retornando à cidade para apenas recomeçar. O que faz do amargo Carlos o mais denso e espesso paulistano do cinema vem do timbre traumático com que revisita os circuitos de seu vazio existencial, que emprestam à cidade um tom estranhamente realista, concretizando de fato a característica paulistana de cidade construída mediante ambições constantemente irrealizadas. Desse modo a matéria de que é feita esta São 4
Brasil em tempo de cinema, [1967] 3ª ed., São Paulo: Companhia das letras, 2007, p. 111.
Paulo imaginária é a de uma indiferença dos ambientes face ao desejo primordial que necessariamente os abstrai em perpétua e fértil nonchalance, ou seja, em resignada acolhida para um reinício de projetos. Esse mal estar de Carlos parece pressentir e prefigurar num lampejo o horizonte plúmbeo da modernidade conservadora que então pouco se intuía com o Golpe de 64. Diversos outros filmes da época irão dedicar-se a pesquisar o tédio deste esvaziamento de perspectivas da cidade grande, o spleen proporcionado pela experiência de estímulos continuadamente repostos até o ponto de sua saciedade tornarse mecânica. Em NOITE VAZIA (1964), de Walther Hugo Khouri, dois executivos parecem firmar um estilo de vida que busca na noite vivenciar as paixões que se perderam no dia. As noitadas com mulheres de programa tornam-se um jogo que por sua vez configura também as suas próprias regras à semelhança do que ocorre no mercado de trabalho em que sobrevivem. Num crescendo complexo IMITANDO
O
SOL (1964), de Geraldo Vietri, NOITE
VAZIA e SÃO PAULO S.A., apontariam na direção de problemas sociais diferentes daqueles que o Cinema Novo vinha construindo num Brasil imaginário mais centrado nas contradições do campo, se discutindo e se diagnosticando o atraso e o moderno nacional no quadro crítico e arquetípico da tradição política. Distante mesmo da configuração urbana que os cinemanovistas começam a apresentar do universo urbano a partir de A GRANDE CIDADE (1966), de Carlos Dieguez. Ambientado no Rio, esse filme inaugura uma temática à qual o Cinema Novo resistiu, até pelo menos 1965: enfrentar o mundo da metrópole dentro de seus padrões estéticos mais interessados na estigmatização simbólica das forças políticas. Talvez o próprio ambiente da metrópole já indicasse afirmativamente os valores que devessem ser estrategicamente evitados. Em A GRANDE CIDADE os personagens principais são figuras vindas para a metrópole e que não conseguem ali realizar seus sonhos. A cidade grande é vista como um lugar marcado por valores que desagregam projetos de realização popular. A figura do marginal em A GRANDE FEIRA (1962), de Roberto Pires, rodado em Salvador, havia anunciado os contornos e limites deste horizonte avesso à modernidade desigual, vigentes antes do Golpe de 1964. O mesmo se poderia dizer do ESSE
MUNDO É MEU
(1963), de Sérgio
Ricardo, lançado no Rio em 1º de abril de 1964, aziago day after para toda uma expectativa de emancipação popular que se perscrutava, numa antítese imaginária do seu próprio título. Todos à sombra de uma perspectiva popular mais risonha porém já problematizadora, entre 1955 e 1963, na trilogia carioca de Nelson Pereira dos Santos.
Com o regime militar, a repressão e a censura, se tonifica uma modernização ainda mais desigual e injusta. Pode-se dizer que se instala o que o cronista Stanislaw Ponte Preta chamava de Febeapá, o Festival de Besteira que assola o País, de que a mídia foi um protagonista catalisador e construtor. A modernização conservadora é fenômeno merecedor de um debate maior no país em proporção ao seu significado histórico em geral, e em particular à dimensão nefasta que a indústria cultural e os meios de comunicação vem trazendo à vida ideológica do país. Seu lado contraditório apontado nos ensaios de Roberto Schwarz e Francisco de Oliveira 5 sugere que os parâmetros até aqui levantados exigem maior análise. Bernardet em seu livro de 1967 aponta que algo se recalcava na visão que os cinemanovistas buscavam do protagonismo popular. Eles trariam, depois de 1964, de trás para a frente das câmeras a classe média e o intelectual, junto com um resignado, paulatino e nauseabundo retorno às cidades. OPINIÃO PÚBLICA (1966), de Arnaldo Jabor, O DESAFIO (1965), de Paulo Cezar Saraceni, e TERRA TRANSE
EM
(1967), de Glauber Rocha, descrevem esta rotação angular em que ainda a vida
das ruas ofusca bem mais que a dos espaços reclusos. Diferente desta presença invertida da urbe, as polarizações presentes nesta mudança solicitam para compormos um painel mais amplo e meridiano da cidade sessentista expressiva, dois filmes da maior singularidade se imporiam: A FALECIDA (1965), de Leon Hirszman, e A MARGEM (1967), de Ozualdo Candeias. O primeiro, apoiado na dramaturgia de Nelson Rodrigues, estrutura sombriamente uma cidade triste, arrastada e deprimente dos suburbanos cariocas de classe média. Já Candeias vai a um outro avesso da metrópole, o que já não é cidade no seu próprio espaço habitado, constrói uma inusitada geopoética da várzea 6, o não lugar do lumpesinato, do sub-proletário paulistano marginalizado, despojado de toda cidadania. Ex-camioneiro e roteirista eventual de José Mojica Marins, Candeias surgia como que do nada, desvinculado de grupos e movimentos, com este analogon da Estética da Fome, seu estado bruto. A originalidade singela do filme, a novidade de sua poética sublime, reconhecida ao derrotar em dois festivais nacionais a incontornável obra prima que é TERRA EM TRANSE, trouxe inspiração para o ciclo marginal que se segue; soproulhe até o nome. Aquele espaço e tempo d’O BANDIDO se perfaz de um fragmentário simultâneo, gerado em imaginário múltiplo, já patente em suas imbricações sonoplásticas e nas 5 6
Oliveira, Francisco de. “Hegemonia às avessas”, Piauí, nº 3, 2007; “O avesso do avesso”, Piauí, nº 37, 2009. Schwarz, Roberto. “Cultura e Política: 1964-69”, O pai de família e outros estudos. Rio: Paz e terra, 1978, pp. 61-92. Machado Jr., Rubens. “Uma São Paulo de revestrés: Sobre a cosmologia varziana de Candeias”, Significação nº28. São Paulo, 2007, pp. 111-131.
alusões compulsivas da sua fotografia, sua mise en scène. Mas esse imaginário vai além, implicando diversas São Paulo – a da Boca, das avenidas, da Favela, do pachorrento subúrbio remediado; e, de quebra, interligações controversas (físicas, sonoras, verbais etc.) com o Paraguai, Araraquara, Amazonas ou o litoral paulista. O mundo estilhaçado do filme evoca uma disparidade democrática de diferentes matrizes da experiência nacional; matrizes em princípio incompossíveis, de ressonância meio absurda. Este, o seu aspecto retumbante — num país que se opunha em inquietude moderna à modernização conservadora, pelo viés cinematográfico engajado e desafiador, pelo refinamento estilístico e depuração cinética do ponto de vista. A enumeração caótica em perspectiva alegórica (de que fala Ismail Xavier) pulveriza algo do que se perseguia antes, na modernidade anterior. Mas, o quê? O país vira de súbito inopinada cidade degradada, metrópole de um progresso obscuro, o “gigante intimista” feito espetáculo mambembe, impostação deslocada do público ao privado e vice-versa, gerenciada em vulgares expansões que vão do sensacionalismo radiofônico ao testemunho subjetivo parodiado, do resquício midiático ao confessional deslocado: — “posso dizer de boca cheia: eu sou um boçal”, “sei que fracassei”, “quem sou eu?” São palavras do bandido Jorginho que bem caberiam ser ditas por um ente ainda mais abstrato que ele, reverberações involuntárias de um espontâneo simulacro do brasileiro médio; este mesmo ente social que ia passando empiricamente de maioria rural para voraz e abrupta maioria urbana. Tínhamos em Candeias uma urbe dos excluídos, uma cidade dos homens sem categoria; nos filmes de Khouri a sociedade bem colocada na pirâmide social; em tantos outros filmes os diversos segmentos populares, da burguesia ou da classe média. Mas a linguagem tropicalista de Sganzerla parece acumular num mosaico atravessado pelos midia, cada uma das diferentes óticas anteriormente produzidas. A inspiração deste procedimento advém da incorporação de uma nova vivência imersa na modernização desigual do urbano: as formas do arcaico e do moderno, do erudito, do kitsch e do desqualificado se sobrepõem, ora em contraste e segregação, ora em mistura e condensação. Desse modo só os meios de comunicação permitem a fruição anárquica desta nova cidade. E a São Paulo d’O BANDIDO
DA LUZ VERMELHA
transcreve a
fermentação luxuriante e avacalhada de uma nova sensibilidade do urbano. Em O QUARTO (1969), de Rubem Biáfora, mas já a partir de NOITE VAZIA e SÃO PAULO S.A., personagens masculinos passam a oscilar pendularmente entre perspectivas amorosas diferentes. A moça-direita, para casar, começa a perder a atração inquestionável e pregnante de antes. A possibilidade de enraizamento na cidade não imanta mais tão
peremptoriamente os nossos protagonistas. Sucedem-se em suas vidas as “outras”, as “aventureiras”, “vigaristas” e “garotas de programa”. As promessas renovadas de melhor fortuna causam ansiedade em cidadãos combalidos pela competitividade árida e oportunista no mundo do trabalho. Profissões asfixiam e o amor não pode virar estagnação maçante. Exorbitar essa ordem, como alternativa de realização pessoal, se mostrará afã vicioso pelos percalços do arrivismo e da absoluta instabilidade afetiva. Uma galeria de “outras” cintila progressivamente, depois de NOITE
VAZIA
de Walter Hugo
Khouri, cujo personagem Marcelo por décadas repete, a cada filme a sua ciranda interminável de renovadas mulheres. Filmes como ANUSKA, MANEQUIM E MULHER, de Francisco Ramalho, e BEBEL,
GAROTA PROPAGANDA,
de Maurice Capovilla, ambos de
1968, fazem aflorar uma simbologia da mulher desenraizada face à cidade que se expressa agora desumana, corrompida, hostil aos valores comunitários tradicionais. Em seu segundo longa, A MULHER DE TODOS (1969), Sganzerla retoma a cidade como ponto de partida para uma aventura no litoral — a “Ilha dos Prazeres Proibidos”. Embora o filme se passe em locações da cidade balneária de Itanhaém, a plêiade dos personagens que o filme apresenta se revela uma constelação de figuras paulistanas em espaço de weekend, veraneio, da grã-fina ao farofeiro. A matriz cinematográfica da “mulher fatal” excede aqui o estereótipo que tem seu paroxismo no final da década, num momento que a resgata do melodrama para a alegoria cômica, no efervescente tropicalismo da MULHER
DE TODOS.
Enquanto não chega o marido, Dr. Plirtz (Jô
Soares), que ficou trabalhando em São Paulo, a personagem título vai colecionando casos com uma galeria inacreditável de figuras. A voragem da grã-fina “devoradora de homens” Ângela Carne Osso, feita por Helena Ignês, entra numa linhagem da blondemignon dos anos 60 sem nenhum traço de ingenuidade, a léguas da banalidade da loira burra. Suas tiradas irônicas de coquete antropofágica e sua cena faceira de dengosa sedutora trazem numa escancarada plenitude o comportamento do que seria uma brasileira ultra-emancipada em seu tempo. O inimaginável atrevimento dessa femme fatale pouco tem do investimento despótico, da presença dominadora da sua estirpe cinematográfica, ao contrário consome uma galeria de tipos aparentada às enumerações caóticas do filme anterior de Sganzerla: aqui, a sequência ninfomaníaca da serial lover substitui os inarredáveis assaltos d’O BANDIDO. Mesmo com o nivelamento estilístico do singular pop sganzerliano, a diversa origem ou lugar social da variedade de tipos que a namoradeira democrática enfileira ao longo do filme, em vez de um subjugar qualquer,
ou de consumações em submissão obsessiva, fala mais alto certo humor do envolvimento alegre em que desponta um maroto desejo de alteridade. A primeira fala do filme vem numa locução off sobre Plirtz e sua figura redonda na praia com uniforme de general nazista: “Este é o marido brasileiro do século XXI? Do XVI ou do XXI?” Plirtz é dono de uma indústria de história em quadrinhos, e parece ele próprio saído de uma página de gibi, pelo jeitão de caricatura pop que, aliás, pode-se estender a todo o afresco inenarrável de personagens. Alude à elite autoritária que adora simular o jogo popular desde que através da modernidade mediática. Em ação paralela, com pequenas aparições ao longo do filme, um casal farofeiro se refestela na praia com diálogos lapidares. A mulher, feita pela opulenta Thelma Reston, esparramada na areia implora todo tempo ao marido (Abrão Farc) que lhe pague uma cuba libre. É ignorada pela truculência e avidez do par, que devora pedaços de frango assado e melancia, bradando inebriado o sotaque paulistês do ABC: “Num vórto mais prá São Paulo co’aquelas passeata!” Surdo à súplica desafinada da esposa, ele prossegue de boca cheia: “Num posso, tenho que botá na poupança, vou comprar o bilhete, quero ser um dos primeiro privilegiado da viagem pra Lua.” Segue no seu encômio à Natureza, alternando safanões na coitada: “Pago nada. — Que cenário! Que paisagem! — Toma! Toma! Gostou né?, sua depravada. — Que cenário!... Deus fez... e o homem se aproveita!” A cena deste filme esquecido ultrapassaria pela contundência crítica o melhor sarcasmo brechtiano do nosso cinema. Paulo Emílio um dia explicou que Glauber fazia as vezes de um profeta alado entre nós, no sentido em que profetas não existem para acertar, mas para profetizar. Sganzerla não está longe deste papel na sua fusão abrupta e inextricável da cena nacional com o descalabro da indústria cultural, vislumbrando no pesadelo do progresso conservador paulista o futuro brasileiro. No weekend pseudo consumista do trabalhador ascendente tivemos a mais precoce profecia do brasileiro do Século XXI. Rubens Machado Jr.