Cafajeste, o marginal que seduz Daniel Caetano.
Entre o final da década de 1960 e os primeiros anos da década seguinte, foram produzidos no Brasil alguns filmes que, vistos em perspectiva pela tradição historiográfica, ganharam diversos nomes: cinema “udigrudi”, “do lixo”, “cafajeste”, “de poesia”, “de invenção” ou “pós-novo”. Seus filmes inaugurais foram os longas de estréia de Ozualdo Candeias, A margem, e de Rogério Sganzerla, O bandido da luz vermelha, ambos filmados em 1967. Os realizadores do(s) grupo(s) costumam incluir José Mojica Marins como um precursor e um mestre, a partir do primeiro filme de seu personagem Zé do Caixão, À meia-noite levarei sua alma, de 1964. Além destes, outros nomes centrais do movimento são Julio Bressane – que antes era considerado um dos jovens “príncipes” do Cinema Novo e no seu longa de estréia, Cara a Cara, apontou com clareza a divisão entre gerações que estava ocorrendo -, Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, João Silvério Trevisan, Neville D’Almeida, João Callegaro e Jairo Ferreira. Nos últimos anos, consolidou-se a expressão “Cinema Marginal” para designar estes filmes e cineastas embora nenhum dos realizadores que o compuseram aceite o nome de bom grado. Numa entrevista conjunta feita na década de 1970, Ozualdo Candeias e Carlos Reichenbach discutem longamente sobre a pertinência do rótulo. Já Rogério Sganzerla e Andrea Tonacci, em certas ocasiões, tiveram o cuidado de adicionar um sufixo para afirmar que esta marginalização aconteceu a contragosto: marginalizados, ao invés de marginais. Flávio Moreira da Costa apresentou ponto de vista parecido em um artigo da revista Filme Cultura publicado em 1970: “Não se pode considerar marginal um conjunto de filmes que são lançados comercialmente e concorrem em festivais”. Segundo Ismail Xavier escreveu num artigo de 2000: Mesmo quando agressivo, em tensão flagrante com o grande público, o Cinema Novo pensava em termos de um “nós”. Queria aglutinar autores e plateias, entendendo a crítica do estado de coisas como ação política legível no seio de uma coletividade que se interrogaria, nos filmes, sobre o seu destino, como se houvesse um contrato a legitimar o cinema nessa direção. O Marginal é a ruptura desse contrato, o momento de afastar de vez qualquer suposta unidade entre tela e plateia que faria do cinema um ritual de identidade nacional. Ele é a expressão maior da sociedade cindida.
Vale notar que, ao romper com toda sorte de utopia e anunciar um mundo em decomposição, o grupo marginal não se distinguia apenas do cinemanovismo que o antecedeu. Na verdade, a “tradição da vanguarda” no Brasil se caracterizou por movimentos utópicos de toda sorte. Ao contrário de modernismos, bossas novas, concretismos, tropicalismos, cinemanovismos e outros movimentos de invenção, o marginalismo não prenunciou tornar melhor o mundo das pessoas, e sim torná-las conscientes da sua precariedade. Para marcar a exceção que confirma a regra, vale notar que Carlos Reichenbach, que sempre se afirmou um utopista, teria um ponto a opor à observação sobre a visão distópica do grupo marginalista, conforme disse numa entrevista concedida em 1980: “A maior parte do udigrudi foi feita para demonstrar a insatisfação diante dum fato histórico: a falência da esquerda e a ditadura militar. Mas não era uma produção apenas pessimista. Era otimista sim. Porque acreditava no dado revolucionário de se criar um conflito extremo nas pessoas, algo não imobilista.”. A ruptura com as ambições cinemanovistas de chegar ao grande público foi apontada por Walter Lima Jr. como uma forma de responder, através de uma radicalização, às mesmas questões que afligiam a geração anterior: A visão política que eu tenho do cinema brasileiro é a seguinte: em 1960, cineastas oriundos da pequena burguesia e da classe média se propuseram a fazer cinema no Brasil. Confundiram, ou não, fazer cinema com a tomada do poder, e isso está nos filmes. Está nos filmes, é a grande crise dos filmes. No final, as pessoas já estavam filmando nos palácios, já estavam até cometendo suicídio - o tiro não saía, mas já estavam se suicidando, como no filme do Gustavo Dahl, O bravo guerreiro. (...) O underground foi uma síntese do nosso suicídio. Vejo uma conotação bastante crítica nesse cinema mais barato que de repente começou a se fazer aqui. Mas o que pretendíamos naquele momento era armar um tipo de produção culturalmente mais pretensiosa, economicamente mais pretensiosa, pelo menos na aparência. Deixamos de fazer filmes de cem milhões para fazer filmes de trezentos, quatrocentos milhões. A necessidade de falar com o público se tornou vital. Não poderíamos mais fazer filmes se não conseguíssemos falar com o público.1
Este gesto de rompimento completo com as expectativas de comunicação com o público, em oposição aos anseios cinemanovistas, foi comum a uma parcela majoritária dos filmes marginais. Isto se fazia ver nos filmes, com um dilaceramento tornado evidente por gritos, vômitos, sujeira, ações desordenadas. Segundo Inácio Araújo: A sujeira tornou-se um apanágio. O mundo não era belo. Era injusto, sujo, agressivo. Não será por acaso que, aqui em São Paulo, esse cinema se tornou conhecido como Boca do Lixo. Era o lugar onde se faziam filmes, onde as pessoas se reuniam, a Rua do Triumpho e imediações. A zona de prostituição, em suma. Melhor simbolismo,
1 “Entrevista com Arnaldo Jabor, Walter Lima Jr. e Tereza Trautman”, no livro O processo do cinema novo, composto por entrevistas feitas por Alex Viany.
impossível. (...) Naquela altura, nada parecia mais desprezível do que o cinema esteta.”2
No entanto, é preciso ressaltar dois aspectos que nem sempre são observados nas análises sobre este cinema. Um deles é que este movimento de ruptura radical e distópica costuma ser apontado como uma consequência direta das circunstâncias políticas daquele momento no Brasil pós AI-5, que se somou ao conflito com os propósitos da geração cinemanovista – tal como afirma Inácio Araújo no trecho citado acima. Sem pretender negar isso, creio que é preciso apontar também a importância da herança histórica das relações de público e crítica com os filmes feitos no Brasil - esta herança que foi discutida nos parágrafos anteriores. Não se tratava somente de romper com a geração para se destacar ou porque o grupo cinemanovista estava chegando a acordos com um governo que impunha o ambiente ditatorial daqueles dias – havia também em questão a relação com o público e com a história pregressa do cinema brasileiro. Não foi por acaso que diversos filmes do marginalismo buscaram os velhos astros das chanchadas para fazer parte do seu elenco. O segundo aspecto a ser ressaltado, uma consequência nem sempre lembrada desta relação crítica com a herança histórica, é uma diferença entre dois caminhos seguidos pelos filmes produzidos nesse contexto. Se a maior parte dos filmes do Cinema Marginal rompia com os modelos narrativos vigentes e com as expectativas do público, houve um grupo menor, mas expressivo da produção marginalista que investiu num discurso duplo: ao mesmo tempo em que os filmes “entregavam” o que era contratado pelos espectadores no modelo de difusão cinematográfica da época, eles o fizeram de modo transgressivo, apimentado. Assim, se por um lado a maior parte dos filmes ditos udigrudis não se prestava aos modelos de cinema de gênero habituais e era difícil compreender o enredo que estava sendo narrado, indicando que estes filmes não se sentiam constrangidos a comunicar esses enredos (em certos casos, nem mesmo a os desenvolverem), houve uma parcela menor, mas também expressiva, de filmes que procuraram se enquadrar parcialmente nos modelos de gênero, ainda que de forma irônica e transgressora - como se aceitassem seguir uma receita já conhecida de todos, mas fizessem questão de acrescentar ingredientes indigestos e muita pimenta. Neste sentido, ao observarmos as carreiras dos dois diretores mais profícuos do grupo marginal, Julio Bressane e Carlos Reichenbach, podemos perceber que a observação de Walter Lima dá conta razoavelmente bem da postura crítica que Bressane 2 “No meio da tempestade”, artigo de Inácio Araújo publicado no catálogo da mostra “Cinema Marginal e suas Fronteiras”. Disponível em http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/marginal/ensaios/03_04.php .
manteve ao longo de toda sua carreira – mas, por outro lado, ela se mostra equivocada para tratar da produção de Reichenbach. Esta corrente “de gêneros” dentro do Cinema Marginal não se resume ao percurso de Reichenbach: por exemplo, além de seus primeiros filmes, desde As libertinas, também os de João Callegaro (O pornógrafo) e, mais tarde, Ivan Cardoso (O Segredo da Múmia e outros) também fizeram o mesmo gesto de se adequar em certa medida às expectativas dos espectadores interessados em filmes de gênero – assumindo explicitamente a defesa de uma atitude “cafajeste”. Não por acaso, para apresentar As libertinas Callegaro escreveu um texto intitulado “Manifesto do cinema cafajeste”: Cinema cafajeste é cinema de comunicação direta. É o cinema que aproveita a tradição de 50 anos de exibição do "mau" cinema americano, devidamente absorvido pelo espectador e que não se perde em pesquisas estetizantes, elocubrações intelectuais, típicas de uma classe média semi-analfabeta. É a estética do teatro de revistas, das conversas de salão de barbeiro, das revistinhas pornográficas. É a linguagem do "Notícias Populares", do "Combate Democrático" e das revistinhas "especializadas" (leia-se Carlos Zéfiro). É Oswald de Andrade e Líbero Rípoli Filho; é "Santeiro do Mangue" e "Viúva, Porém Honesta": obras primas. É cinema tipicamente brasileiro, portanto é o cinema cafajeste paulista, sem bairrismos, porém com uma visão lúcida da fauna paulistana. Preparem-se cinéfilos frustrados, adoradores dos Cahiers e de Godard, pois o cinema cafajeste já é uma realidade. É o cinema de Rogério Sganzerla, o cinema de Roberto Santos (de "O Grande Momento" e o genial episódio de "As Cariocas"), de Mojica Marins; é o verdadeiro cinema paulista. E o seu valor será contado em cifras, em borderôs, em semanas de exibição: em público. E os filmes serão geniais.3
. Também a primeira fase de Sganzerla – os longas O bandido da luz vermelha e A mulher de todos – está intimamente ligada a estas propostas (como se pode ver nos vários textos que Sganzerla escreveu sobre seus filmes, entre eles um em que afirma fazer “filmecos”) e não se encaixa no modelo ultra-modernista de narrativa obscura e rarefeita. Estes dois filmes de Sganzerla foram fundamentais para dar forma às propostas daquele grupo, de inventividade através do uso de detritos da indústria cultural. Vejamos, por exemplo, como o texto de Reichenbach, escrito em seguida a uma das primeiras exibições do filme, transmite seu entusiasmo ressaltando tanto o dilaceramento radical quanto os aspectos formais do filme que revelam sua disposição antropofágica diante dos detritos culturais: Da obra de cinema: O Luz faz com que Rogério se aproxime de Glauber Rocha (seria ele um Glauber do asfalto?). O barroquismo do cineasta de Deus e o Diabo na Terra do Sol Este texto de Callegaro foi incluído no material enviado à imprensa no lançamento de As Libertinas (1968) e, por conta disso, foi mencionado em inúmeras reportagens de jornais – mas não chegou a ser publicado na íntegra na época. A versão original deste material pode ser encontrada atualmente no acervo da Cinemateca do MAM-RJ. 3
(1964) está contido ao longo de suas seqüências. Em Rogério, a multiplicidade de elementos a serem decodificados está em cada plano. Por isso muitas pessoas, espectadores preguiçosos, irão se dar ao luxo de considerá-lo um filme completamente confuso. Ora, se riqueza de informações novas for prosaicamente traduzida em caos, onde irá a arte que procura uma interrogação mais intensa no mundo moderno? O Luz não é um filme para ser visto uma só vez ou mesmo duas. Trata-se de uma visão ribombantemente espontânea do baixo mundo paulista e, como tal, pela aproximação que faz de nós, burgueses não conformados , com a também não conformada laia dos marginais (os conformados que se danem!), não deverá ser encarado como mero espetáculo dominical. Tropicalista, no melhor sentido, diz tanta coisa que nos causa desespero. Cada fotograma, coisa raríssima no cinema mundial, é tão importante quanto o outro; e por isso O Bandido deveria ser exibido na íntegra, mesmo que alcançasse nove horas de projeção, com claquetes e tudo. (...) O filme é isso, o desespero em cada enquadramento. (...) Finalmente, O Bandido da Luz Vermelha é o filme que deveria ser exibido no cine Arizona, pois você assiste a um documentário, vários trailers, um seriado empolgante, um short e dois filmes: um sobre o nascimento, paixão e morte de Luz Vermelha e outro sobre as aventuras e desventuras da misteriosa organização Mão Negra. Tudo isso e o céu num filme só. Qualquer coisa de extraordinário e à parte no cinema nacional, que pronuncia uma obra única na seara cinematográfica. Cinema voltado para cinema.4
Estes filmes mencionados deixam evidente que, diante dos dilemas dos filmes brasileiros na relação com o público, a resposta udigrudi não se deu de forma unânime e unívoca. Além da ruptura radical com os constrangimentos dos modelos narrativos e as expectativas dos espectadores, aquele grupo de filmes incluía propostas ditas “cafajestes” de uma relação ambígua, decerto agressiva, mas igualmente inquietante e inventiva.
A audácia de Reichenbach e seus comparsas
Reichenbach contou mais de uma vez que foi nos corredores da São Luiz que ele ouviu pela primeira vez a frase de que um país péssimo merecia filmes péssimos. Em conversa com João Callegaro, ambos decidiram que, se não tinham condições de produzir um grande filme revolucionário, deveriam fazer um filme que rendesse dinheiro suficiente para financiar novas produções. Aliados ao crítico mineiro Antonio Lima, decidiram fazer um filme baratíssimo que pudesse ganhar o público do circuito de filmes do Centro de São Paulo daqueles dias. Os três notaram que um filme francês intitulado Sexy Gang permanecera em cartaz em São Paulo por mais de 25 semanas – na avaliação deles, graças à publicidade que insinuava erotismo (e apesar da má qualidade do filme). A participação de Lima foi fundamental para que conseguissem um empréstimo bancário 4 Inédito na época, este texto de Reichenbach foi publicado pela primeira vez dentro de Cinema de Invenção, livro de Jairo Ferreira. São Paulo: Max Limonad, 1986.
que financiou as filmagens de As libertinas, filme composto por três episódios, cada um filmado por um dos diretores. Segundo Reichenbach contou décadas mais tarde num depoimento a Marcelo Lyra: “O filme custou, em valores atuais, cerca de 30 mil dólares. É o valor do empréstimo que fizemos na época.” Quando estava filmando o seu episódio, Reichenbach recebeu uma ligação de Callegaro informando que os dois outros episódios, já montados, contavam com vinte minutos cada um – o que o obrigava a esticar o seu episódio para cerca de quarenta minutos, para permitir que o filme tivesse a duração necessária para obter o certificado de longa metragem. Isso o levou a abandonar parte do roteiro já escrito e abrir espaço para improvisos e ralentação da trama em longos planos. Movidos pelo desejo de transgredir os bons modos cinematográficos, os realizadores ainda incluíram um longo strip-tease, que Reichenbach atribui a uma irônica homenagem de Callegaro a um filme intitulado Super beldades.5 Várias informações passadas à imprensa ressaltavam o erotismo, tanto no release (que incluiu o Manifesto do cinema cafajeste de Callegaro) quando em entrevistas concedidas pelos diretores. Por exemplo, veja-se uma reportagem feito no Jornal do Brasil com eles: Segundo seus realizadores, As libertinas é a primeira experiência do chamado cinema cafajeste. “Tem um sentido picaresco”, diz Carlos Reichenbach. Antonio Lima concorda e acrescenta: - Nosso cinema não tem tradição em filmes eróticos. Para inaugurar o gênero, abandonamos qualquer pretensão de analisar os problemas colocados no filme através dos personagens, pois isso poderia afastar o espectador.
A propaganda do filme frisou isso sem pudores. No anúncio publicado nos jornais, o texto informava: “Três sexo-estórias: 1ª sobre sexo, 2ª sobre sexo, 3ª sobre sexo”. O resultado de As libertinas pode ter sido esteticamente desastroso, conforme afirmou Reichenbach diversas vezes anos depois, mas financeiramente foi bastante positivo. Em pouco tempo, os realizadores conseguiram saldar seus compromissos e obter um lucro bastante razoável, que os permitiria levar adiante novas empreitadas. Conforme relatou a mesma reportagem: Feito a partir de seu esquema de produção, com roteiro escrito a partir do orçamento, As libertinas deveria custar NCr$ 60 mil, mas quando estava no copião o dinheiro acabou. Um acordo de co-produção feito com a Companhia Fanco-brasileira permitiu que o filme ficasse pronto, começando sua carreira de boas bilheterias. Já foi lançado em Santos, Curitiba, São Paulo (onze semanas em cartaz), Porto Alegre, Salvador e Belo Horizonte. As libertinas já rendeu mais de NCr$ 200 mil, duas vezes e meia o custo da sua produção.
5 Super beldades, dirigido pelo ucraniano Konstantin Tkaczenko, foi lançado em 1962 e era composto, segundo Reichenbach, por “um fiapo de enredo costurando dez strip-teases filmados em planos únicos”.
Alguns anos mais tarde, Antonio Lima rememorou a recepção ao filme: “As libertinas ficou 11 semanas em cartaz em São Paulo e foi tão bem de bilheteria que permitiu a realização de Audácia!, com nossos próprios recursos.” Se a performance do filme nas bilheterias foi melhor do que se esperava, a recepção pela crítica foi negativa. No Correio da Manhã, por exemplo, Fernando César Ferreira deu lições aos cineastas: Reichenbach, Lima e Callegaro precisam atentar para o que é o defeito mais grave do seu filme: a má compreensão do que seja necessário para se alcançar a perseguida comunicação com o público. Não basta falar de sexo, mostrar mulheres bonitas (e até nisso o filme é pobre). É preciso, em primeiro lugar, aprender a fazer cinema para que aquilo que apresentem tenha uma estrutura definida. Depois, falar de sexo nem é tão fácil assim. O grotesco é uma ameaça constante e, em As Libertinas, tem vitória total.
No Diário de Notícias, a crítica de Jaime Rodrigues condenou o interesse do público pelos aspectos apelativos e popularescos do filme: Mambembe, inseguro, amadorístico e sem preocupações de espécie alguma com o cinema, com tudo aquilo que este acumulou ao longo de sua história, os três episódios de As Libertinas incidem num tipo de cinema popularesco ou “cafajeste” (...). Está, assim, lançada a equação básica: se o público chapinha na mediocridade e na incultura, submetido a um contínuo processo de alienação, o que importa não é elevá-lo à categoria de um público consciente e atuante, mas extrair dele, do seu reduzido poder de renda, o máximo possível, dando-lhe aquilo que ele é levado a acreditar que deseja. Se o público concorda com isso, que vá ao cinema.
No Jornal do Commercio, o crítico da redação (não identificado pelo jornal) se lamentou pelo insucesso dos profissionais ligados ao projeto: A apresentação é vulgar, os enredos batidos, entremeados com idéias mais ou menos exóticas e inaproveitadas. Os atores, dialoguistas e fotógrafos comportam-se como amadores, embora Valdemar Lima seja responsável por um dos filmes com maior força em matéria de luz já feitos no Brasil: Deus e o diabo na terra do sol. O montador, profissional já veterano, Glauco Mirko Laurelli, não consegue eliminar a disritmia e a impossibilidade de montagem lógica do filme.
É difícil extrair do próprio filme algo que permita contestar estas críticas - o que se pode fazer em favor de As libertinas é entrar no seu espírito irônico. Foi o que fez Jairo Ferreira na sua coluna do São Paulo Shimbum, elogiando As Libertinas como crítica à hipocrisia: A grossura está na ordem do dia, em todos os planos. E esta é uma fita grossa sobre grossura sexual, social etc., guardando um distanciamento crítico bem cafona. (...) Num momento em que até o Papa ameaça deixar o papado, visto o “progressismo” que invade a Igreja, As libertinas surge como programa salutar, recomendável aos fiéis. Em suma: um filme cristão, que devolve o espectador às suas origens, lançando com virilidade o movimento Cafonália no cinema brasileiro. É um filme para o Natal, para o verão, desejando ao espectador um ótimo 69.
A molecagem transgressiva de As libertinas parece se esgotar na idéia em si, sem se realizar plenamente na tela – os enredos se apresentam preguiçosamente e, de fato, os planos ralentados do episódio de Reichenbach parecem “intermináveis”, conforme o próprio reconheceu. Seja como for, o sucesso nas bilheterias não apenas permitiu que Reichenbach e Lima fizessem um novo filme em episódios, Audácia!, ou A fúria dos desejos, e Callegaro dirigisse seu primeiro (e único) longa metragem, O pornógrafo, como também indicou a Rogério Sganzerla um caminho para seu segundo filme, A mulher de todos, cuja publicidade de apelo erótico e “cafajeste” deveu bastante ao filme do trio de amigos. A lembrança constantemente feita por Reichenbach, em entrevistas e depoimentos, da simultaneidade de produção de As libertinas e O bandido da luz vermelha, assim como da influência do sucesso de As libertinas para a produção de A mulher de todos, pode ser vista como uma forma de responder às avaliações de que seu cinema é inteiramente derivado do de Sganzerla, conforme fizeram inúmeros críticos desde então.6 Sem negar o lugar de liderança exercido por Sganzerla naquele momento, nem a influência que os filmes dele tiveram sobre os seus, Reichenbach indicou assim que, embora o dito Cinema Marginal não tenha se constituído como grupo fechado, aquele punhado de cineastas que podiam ser classificados como a tendência “cafajeste” chegou a ser, sim, um grupo de amigos com troca de idéias e influências entre si. Assim, As libertinas, junto com O bandido da luz vermelha, trouxe à luz a motivação transgressora dos seus realizadores e da geração que estava surgindo, aquela que logo seria chamada de marginal. Isto, segundo Reichenbach lembrou anos depois, foi notado já naquele momento por alguns críticos atentos: Anatol Rosenfeld, com aquela generosidade monumental dele, foi o primeiro que observou o nascimento de uma anti-estética, através de filmes como O bandido da luz vermelha e As libertinas, que foram feitos, por sinal, exatamente ao mesmo tempo. Nasceu uma anti-estética, uma coisa que estava muito ligada também ao surgimento do Tropicalismo – não é? Quer dizer, de um momento para o outro, a gente trocou a subversão pela transgressão: era atacar o mau gosto, era provocação.
Seja como for, os filmes que Reichenbach veio a fazer nos anos seguintes, principalmente aqueles com maior dose de humor, deixam evidente a relação fundamental com os primeiros trabalhos de Sganzerla. E, se devido à cronologia As libertinas não pode ser visto como um prolongamento de O bandido da luz vermelha, isto 6 Veja-se, por exemplo, o insuspeito Ismail Xavier num trecho do seu célebre Alegorias do Subdesenvolvimento: “Muito do que O bandido da luz vermelha propõe em termos de uma “estética do lixo”, já em 1968, tem seu desdobramento na produção paulista de Carlos Reichenbach, João Callegaro, Antonio Lima”.
certamente acontece com Audácia!, ou A fúria dos desejos, o segundo filme realizado em parceria por Reichenbach e Antonio Lima. Audácia! não disfarça o contato direto com o longa de estreia de Sganzerla – ao contrário, explicita isso ironicamente: desde o uso da locução radiofônica a duas vozes, conforme acontece no prólogo do filme, até um momento em que a protagonista Paula Nelson vê um rapaz cabeludo de costas e chama: “Rogério!”, para depois se desculpar, dizendo que o confundiu com um amigo. Audácia! também é um esforço de tornar mais explícito o caráter crítico da proposta “cafajeste” existente em As libertinas. A grossura e o mau gosto se mantiveram claramente na ordem do dia – tanto que a primeira frase de Paula Nelson no episódio de Reichenbach é o lema do grupo: “O negócio é fazer filmes péssimos!”. Uma declaração irônica do diretor a um jornal da época deixava clara a postura provocativa – ao relembrar o sucesso de As libertinas numa reportagem de divulgação de Audácia!, Reichenbach afirmou o seguinte: “A reação do público na minha história foi sensacional. Como se tratava de um filme comercial, coloquei dez minutos finais de sexo, que o público também aceitou, sem problemas”.7 Financiado com recursos próprios, Audácia! pôde ser produzido com liberdade criativa, o que permitiu que a improvisação desse o tom. Segundo Reichenbach rememorou anos depois: “O filme não tinha roteiro. Eu e Jairo Ferreira, meu assistente, íamos escrevendo diariamente conforme as condições de filmagem”. Foi, novamente, um filme mal recebido pela crítica. No Jornal do Brasil, o crítico Ely Azeredo chegou a criticar o Instituto Nacional de Cinema por ter permitido que viesse a existir um filme que, segundo ele, deveria ter sido censurado desde o princípio por razões estéticas: Com o elogio e o cultivo da sordidez, essa corrente de anticinema chegou a um ponto em que fica nitidamente caracterizado um abuso contra o público. Quando se procura enraizar uma indústria cinematográfica que já mostrou o que pode (...), a voz da Boca do Lixo ingressa (na prática) no coro dos argumentos contrários a um objetivo nacional bem definido. E, estranhamente, este produto ganha exibição compulsória e prêmios em dinheiro do órgão público ao qual compete evitar que aquele objetivo nacional seja sabotado. O parco erotismo fornece as fotos que os cinemas arrumam nos displays. Os incautos não percebem que todas as fotos exibidas pertencem a duas ou três cenas. O faturamento, embora modesto, é certo. Para isso, porém, não havia necessidade de citar Godard e Samuel Fuller, nem de provocar baratinamento de nervo ótico por meio de um trêmulo e tonto trabalho de câmara na mão.
Jairo Ferreira (que havia defendido o filme entusiasmadamente no texto já citado “Audácia! Fita de cinema”, escrito na época das filmagens, em que afirmava que “é preciso muita audácia para olhar em torno do cinema nacional. Olhar não para badalar os efeitos, mas para 7
Em “Paulista e gaúcho mostram Audácia!”, reportagem do jornal Correio da Manhã de 20/09/1970.
apontar os defeitos”) voltou a escrever sobre ele um ano depois, num texto sintomaticamente intitulado “Audácia!, uma autocrítica”: O filme de sexo (As Libertinas) entra como conteúdo em Audácia! no episódio de Antonio Lima, enquanto o metacineasta Rogério Sganzerla é criticado no episódio de Carlos Reichenbach. Lima denuncia o mau-caratismo de um diretor de cinema. Reichenbach entra de sola na metalinguagem e faz o filme mais crítico do lixão. Não há crítica de cinema no Brasil hoje. Em São Paulo nenhum crítico está entendendo o filme. Se ninguém sabe mais o que critica, muito menos saberão da crítica. E em Audácia! há uma autocrítica justamente de uma das tendências mais críticas do novíssimo cinema brasileiro. O filme que a personagem de Reichenbach está fazendo confunde-se com o próprio filme que Reichenbach está fazendo. Audácia! flagra a feitura de um filme, é um filme-que-vai-se-fazendo e que não chega a terminar. O episódio de Lima é um prolongamento crítico do seu episódio em As Libertinas. Como trabalhei no filme, como assistente geral, prefiro não fazer uma crítica mas uma autocrítica, se bem que hoje Reichenbach é que deveria ter escrito sobre o filme, dado que a parcela de autocrítica que me cabe no filme é pequena. Considero o episódio de Reichenbach como a melhor fita de cinema já feita no cinema paulista. É a mise en scène total do cinema, do filme filmado e do filme que está sendo filmado. É um filme que não esconde nada. Um filme sobre cinema, sobre o tipo de cinema que gostamos. Recomendo-o ao público como um dos dois ou três mais importantes da atual temporada. Assisti-lo é estar por dentro, entendê-lo é estar por dentríssimo.
A autocrítica do cineasta viria mais tarde. Nas entrevistas feitas no período de lançamento do filme, Reichenbach frisou os aspectos do filme críticos em relação ao resto da produção daquele período: Audácia! é o filme-limite entre o cinema novo, pessoal e destinado às moscas do cinema da boca do lixo, e o cinema atual, que procura o encontro com seu consumidor. É a análise dos masoquistas que enfrentam o gangsterismo de nosso mercado exibidor, realizando obras sinceras, nas piores condições técnicas possíveis, para encontrar o desacreditado espectador conterrâneo. O cineasta paulista enfrenta o perigo da mentalidade hollywoodianesca dos produtores. Tudo em São Paulo é mais difícil, burocratizante, castrador. A solução está em calcar os nossos defeitos, partir do péssimo, do execrável.
Ao longo dos anos seguintes, sua relação com este filme foi se tornando cada vez mais depreciativa. No final da década de 1980, mesmo reconhecendo o valor do confronto com os padrões estéticos vigentes, o cineasta afirmou que não suportava rever Audácia!: Havia um cinema extremamente metafórico e rico, feito com grana do governo, e um cinema evidentemente mais pobre, indigente, preto e branco, escroto. Havia esse lado de o cinema ser também atitude de vida. Eu fiz um filme que hoje não consigo nem assistir, chamado Audácia!, que era totalmente improvisado, feito sob efeito de droga e falando um pouco dela. A importância do cinema dito marginal é que ele vira o cinema abjeto, que busca a coisa mais escabrosa, não a mais bela, do ser humano.
Já em meados da década de 1990, num texto escrito para a Folha de São Paulo ele apresentava o filme somente como um registro de sua época, sem qualquer qualidade além desta: Documento ou testamento, Audácia é pior que As Libertinas, ao buscar o fetiche do próprio umbigo. Meu episódio é um tributo underground à fase junkie de minha geração. Diálogos improvisados na hora da filmagem, muita câmera na mão, Jimi Hendrix na cabeça, desbunde na frente e atrás das câmeras e um desprezo absoluto pelas convenções da narrativa cinematográfica. Curtição pura de difícil assimilação fora da época.
Talvez as cenas de As libertinas não ofereçam nada que ajude a contestar os críticos severos do filme, mas Audácia! apresenta elementos que permitem desconfiar das más impressões do realizador e dão base ao tom entusiasmado de Jairo Ferreira. Se não tem a inventividade dos dois primeiros filmes de Sganzerla, nem a radicalidade de um Bang bang, para mencionar a fina flor da produção marginalista, Audácia! talvez tenha sido, junto com a chanchada Carnaval Atlântida, dirigida por José Carlos Burle, a melhor representação da crítica autofágica sobre a produção de cinema no Brasil. Conforme escreveu João Luiz Vieira sobre o filme de Burle: “A paródia surge como a única resposta subdesenvolvida possível de um cinema que, ao procurar imitar o cinema desenvolvido, acaba rindo de si próprio”. O filme udigrudi disfarça menos o seu mal estar do que a chanchada, mas o tom cruel não difere entre um e outro (e a composição do personagem Banana Macaco, o assistente de Paula Nelson que assassina ela no final, é visivelmente calcada no estilo das chanchadas). De certa maneira, a paródia radical do próprio marginalismo era uma forma de tornar mais explícita a ironia que motivava os “filmes péssimos”, ironia que passara despercebida em As libertinas. Curiosamente, apesar do tom irônico, o que Audácia! transmite com sua crítica é o afeto radical por aquele ambiente, aquele grupo e aquele desejo de cinema, com toda sua arrogância ingênua. Não é por acaso que os trechos mais fortes do filme falam diretamente do cinema feito naquele momento – sobretudo o prólogo filmado por Reichenbach, registrando alguns encontros na região da Boca do Lixo e uma “entrevista” feita por Paula Nelson com José Mojica Marins. A movimentação cinematográfica underground encerrou seu caráter de ciclo nos primeiros anos da década de 1970 – filmes experimentais continuariam sendo produzidos por alguns realizadores, mas o aspecto de movimento coletivo - provocado pelo surgimento de diversos filmes com características em comum, como já se disse – esvaziou-se rapidamente. Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Helena Ignez, depois da aventura da produtora Belair (em que produziram sete filmes de longa metragem em
menos de quatro meses), exilaram-se em Londres; Tonacci foi para os EUA; Callegaro trocou o cinema pela publicidade. Audácia!, de certa maneira, registrou aquele universo de um modo que prenunciava a crise. Numa resposta ao texto “Notas de um cinema underground”, de Flávio Moreira da Costa (já citado anteriormente), Reichenbach apontava tanto a ambição romântica quanto o resultado desiludido do marginalismo. Diante da afirmação do crítico de que, naquelas circunstâncias, “o underground passou a ser uma saída viável”, o cineasta contrapôs: Esse underground colocado por ele, em contraponto à indústria de filmes, seria a opção necessária. O marginalismo redentor. Acontece que o artigo propõe as atitudes tomadas por Godard, Straub, Garrel e outros gringos que têm atrás de si uma organização, por assim dizer, exploradora de filmes malditos. Os filmes destes senhores se pagam em Paris, Itália, Inglaterra, EUA, países que já possuem uma larga metragem de espectadores que consomem cinema subterrâneo. Como exportar nossos filmes marginais, se a censura não carimba LIVRE PARA EXPORTAÇÃO em seu certificado? Jardim de Guerra, Barão Olavo, Perdidos e Malditos e tanto outros conseguirão ser exibidos no Brasil? Certo estava Rogério, na cola do sucesso comercial de As Libertinas. Certos estão Márcio e Ana Lúcia de Souza realizando Delírios eróticos. O cinema brasileiro está tão desinteressante quanto a ópera. Trevisan no Rio, saiu de um filme underground de saco cheio, de tanto negativo gasto com bobagens colonializantes. A meleca é que o pessoal acredita naquilo que está fazendo. Não troco por nada o triste depoimento dos mambembes de Flávio em Os caras de pau por metade desse cinema pseudomarginal. Fico com A ilha dos prazeres extremos, ao invés da Boca wellesiana do primeiro Sganzerla. Renego a minha Paula Nelson a favor de Lilian M., que não cita ninguém, preferindo a reflexão das sarjetas da Rua Aurora. Depois de ter reencontrado Ângela Carne e Osso, vou deixar de ser um falido transatlântico para me tornar nudista profissional. Canalha em crise está para o Brasil, assim como Intolerância para os EUA. A mulher de todos é o Cidadão Kane nacional. O sórdido ou obsceno não é mais um estilo; no momento é o método.
Este método, no entanto, não foi praticado pela geração udigrudi nos seus aspectos fundamentais. A sordidez prenunciada por As libertinas e A mulher de todos foi herdada pelos produtores e cineastas que se estabeleceram na Boca do Lixo a partir de então: não mais os vanguardistas marginais, mas os produtores de pornochanchadas. Tratou-se de um cinema cujos marcos não eram os filmes dirigidos por Candeias e Sganzerla, mas aqueles produzidos por Pedro Carlos Rovai, Anibal Massaini e Antonio Polo Galante. Com a crise e o exílio dos amigos, Reichenbach deu início a um projeto a que se referiu diversas vezes, Guatemala ano zero. Embora não tenha sido terminado, boa parte do roteiro deste filme chegou a ser rodado, com longos planos registrando viagens de carro pela Avenida 23 de Maio – que, não por acaso, é a avenida que leva ao aeroporto de Congonhas, na cidade de São Paulo. Depois de filmar parte do que pretendia,
Reichenbach interrompeu as filmagens (segundo relatou algumas vezes mais tarde, em grande parte por pressão familiar). Anos depois, doou o material rodado ao amigo Andrea Tonacci para que usasse em outro filme. Foi então que o produtor Renato Grechi, que havia apoiado a produção de As libertinas, procurou Reichenbach com um convite para um filme a ser produzido, com parte do financiamento já garantida e presença de um astro no elenco: Ronnie Von. Segundo o projeto, o filme, intitulado Corrida em busca do amor, seria uma comédia de aventuras, filiada ao subgênero de corridas de carros (como A corrida do século, filme de sucesso dirigido por Blake Edwards, com Jack Lemmon e Tony Curtis) e atrairia bom público com o prestígio do cantor8. No entanto, às vésperas de filmar, após diversas reuniões e acordos do produtor, Ronnie Von decidiu não participar do filme. Grechi não teve como arrecadar os recursos necessários para fazer o filme segundo o orçamento original – no entanto, tinha que terminar o filme para honrar os compromissos assumidos. Com isso, Reichenbach teve liberdade total e praticamente nenhum recurso para fazer o filme. Logo nos primeiros dias de produção, percebeu que teria que fazer um filme sobre uma corrida de carros... sem carros à sua disposição. Teve também que assumir a tarefa de diretor de fotografia. Com poucos atores, pôs o seu assistente, Jairo Ferreira, para atuar. Ao final, ele mesmo assumiu um papel no filme (sem dúvida, a melhor atuação de todo o elenco). Alguns anos mais tarde, num depoimento escrito para a revista Filme Cultura, ele relembrou as dificuldades de produção: Com o Jairo Ferreira, meu colaborador habitual, tentei escrever um roteiro que, aproveitando o repertório do lixo importado, glosasse o gênero. Mas o caos acabou dominando a produção de tal forma que fui, aos poucos, obrigado a esquecer o roteiro e improvisar com tal fúria que meu assistente, o Percival de Oliveira, quase enlouqueceu. Como sempre a piração geral incitava-me ao delírio, e num determinando momento resolvi curtir o trabalho desnorteante. Inventei um novo personagem e pulei p’ra frente das câmeras. Sem ninguém p’ra me dirigir, fui pondo tudo p’ra fora e consegui concluir a fita. No último dia o diretor de fotografia viajou para o norte, e eu fotometrei a cena, ensaiei os atores, fixei o tripé e corri p’ra cena.
Em seguida a essa experiência que considerou fundamental para sua formação, apesar e justamente por causa das dificuldades (“nenhuma escola de cinema me ensinaria tanto quanto este filme”, disse ele depois), Reichenbach se afastou por alguns anos da produção 8 Naqueles anos, diversos filmes foram protagonizados por astros da música, que encarnavam a si mesmos ou alter egos em tramas de ação e/ou comédia. Obviamente inspirado nos filmes dos Beatles, este subgênero teve vários representantes na produção de filmes brasileira do final dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970. Por exemplo, Roberto Carlos fez três filmes com Roberto Farias, Wilson Simonal fez É Simonal sob a direção de Domingos Oliveira, Jorge Ben fez Uma nega chamada Tereza, dirigido por Fernando Coni Campos, Agnaldo Rayol fez Agnaldo: perigo à vista, dirigido por Reynaldo Paes de Barros, e Sidney Magal fez Amante latino, com direção de Pedro Carlos Rovai e roteiro de Paulo Coelho.
de cinema. Tornou-se sócio de uma empresa produtora de filmes publicitários, dirigiu vários deles, assinou a fotografia de outros tantos (seu trabalho como diretor de fotografia continuaria sendo uma fonte de sustento ao longo dos anos seguintes), deu aulas na FAAP e na ESPM. Após alguns anos estabelecido na área de publicidade, tendo dirigido ou fotografado mais de 150 filmes publicitários, Reichenbach resolveu abandonar a carreira e apostar num projeto pessoal cujo título já havia sido anunciado anos antes: Lilian M, que ganhou o subtítulo de Relatório confidencial. Lilian é o nome “de guerra” de Maria, cuja trajetória é contada pelo filme em episódios que recriam gêneros bastante distintos de cinema. Feito com poucos recursos, o filme conseguiu bom público, estreando em grandes salas populares (como o Cine Marabá, do Centro de São Paulo) e permanecendo em cartaz por várias semanas. No período de lançamento, a ironia de Reichenbach voltou à carga numa reportagem em que ele declarou que seu filme não era destinado aos amantes de filmes artísticos: “Não faço questão de conquistar o público que vai ao Belas Artes. Meu filme é feito para os frequentadores do cine Marabá, para a gente que consome e que gosta do filme brasileiro.” A mesma reportagem fala do material de divulgação do filme: Absolutamente convencido de que o ‘bom gosto’ nada tem a ver com um cinema brasileiro mais consciente, ele mostra as frases que a distribuidora oferece como sugestões de publicidade e onde há coisas como “Nada lhe foi proibido! Ela conheceu e ousou TUDO!” e “Lilian M desvenda a lama para explicar o erro”. E sorri, conivente.
É interessante ressaltar o termo escolhido pelo redator do texto: “conivente”. Numa reportagem publicada para divulgar o filme, havia uma reprovação moral envolvida na percepção do apelo erótico. Lilian M evidentemente trazia marcas da geração marginalista, mas foi além do universo urbano que caracterizou aqueles filmes, voltando a um universo marcado na memória do cinema brasileiro desde os filmes de Humberto Mauro. Logo no princípio, Lilian M revisa esse viés histórico da produção de imagens no Brasil e denuncia seu patriarcalismo frágil. Depois que Maria abandona o marido e vai para a cidade grande trabalhar com prostituição, o filme se abre para cenas musicais e interpretações chanchadescas – que não escondem em momento algum a profunda melancolia que dá o tom do filme. Lilian M é um dos filmes mais amargos do diretor, com um personagem de propensões suicidas (o jovem Fausto, que namora Maria depois de seu pai) e um amante sádico, que sente prazer em torturar fisicamente, entre outros. Com esse estilo de recortes, de narrativa feita de várias partes distintas que se complementam, Lilian M faz um movimento em favor de uma relação diretamente estética, cinematográfica com sua
narrativa – que, justamente por esse movimento, ganha mais força nos seus aspectos mais verdadeiros, ou seja, mais próximos de universos reais não-percebidos. O uso de clichês e referências em Lilian M já marca claramente a estratégia de Reichenbach dali em diante: estes clichês e referências delimitam um universo próprio, ancorado no seu contexto. O que já podia então ser percebido (embora a alguns isso ainda não fosse evidente) é que, na expressão “Godard da Boca do Lixo”, a parte fundamental era a Boca.
Jairo Ferreira e a margem crítica A história da relação da crítica com a produção de cinema no Brasil é sinuosa e problemática, conforme vários dos exemplos já mencionados deixam evidente. No princípio essa relação se pautou por desconfiança e agressividade, que em certa medida permanecem recalcadas. Por outro lado, as relações de compadrio caracterizam a sociedade brasileira – e a crítica a estas relações (evidente, por exemplo, numa frase de Rosenfeld já citada na introdução deste estudo, a que mencionava “o aplauso de “igrejinhas””) sempre se fez necessária desde o momento em que juízos críticos se misturaram a interesses promocionais. No entanto, é preciso notar que esta crítica ao compadrio traz à tona uma nova carga da herança recalcada de desconfiança entre crítica e filmes. Boa parte da melhor crítica feita no Brasil – sobretudo a de cinema, mas certamente não apenas ela (veja-se o caso dos concretistas, por exemplo) – foi feita com envolvimento profundo de quem escrevia com o contexto da produção de filmes. Jean-Claude Bernardet - que participou de inúmeros filmes de cinemanovistas, marginais e de muitos mais nas últimas décadas – tornou-se um exemplo evidente; nem tanto por defender posições corretas, mas sobretudo por apontar questões instigantes. Enquanto algumas posições críticas foram afirmadas de forma incisiva nas primeiras décadas do século XX (no período da Cinearte e da constituição da Cinédia por Adhemar Gonzaga), baseadas na esperança de implantar uma indústria de cinema no Brasil equivalente à de Hollywood, a partir do período cinemanovista passou a predominar na crítica envolvida a defesa dos modelos alternativos ao padrão de cinema dos grandes estúdios.
Como foi observado em diversas ocasiões, a geração cinemanovista era composta majoritariamente por jovens intelectuais de classe média, com acesso a estudos e boas condições sociais. Naquele momento, vários dos jovens cineastas também exercitaram a veia crítica, como já vinha acontecendo em outros países (sendo o caso mais conhecido a geração da Nouvelle Vague francesa, que teve entre seus componentes centrais os críticos “jovens turcos” da revista Cahiers du Cinéma). Glauber Rocha, além de ter se tornado o cineasta mais célebre do cinemanovismo, foi também seu mais destacado ideólogo desde 1961, com colaborações constantes para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Além de Glauber Rocha, também mantiveram uma atuação crítica destacada naqueles anos outros cinemanovistas como Gustavo Dahl (que publicou textos no Suplemento Literário do Estado de São Paulo), Carlos Diegues (que editou o jornal universitário O Metropolitano) e David Neves (que foi crítico do jornal Tribuna da Imprensa e publicou em 1966 o livro Cinema Novo no Brasil). Na geração marginal que se seguiu a eles, é certo que também nisso Rogério Sganzerla cumpriu papel análogo ao de Glauber Rocha anos antes, sendo de todo o grupo aquele que obteve mais espaço para expor suas idéias. Sganzerla começou a fazer crítica de cinema desde muito jovem, publicando textos desde 1964 no Jornal da Tarde e, em seguida, no Estado de São Paulo – tendo sido entusiasta dos filmes cinemanovistas no primeiro momento, como já mencionei. Ele talvez não tenha sido o primeiro do grupo a falar em “cinema cafajeste” e em “filmes péssimos”, mas ganhou mais destaque e atenção ao apresentar as questões da nova geração que surgiu. Depois que a recepção a O bandido da luz vermelha dividiu os grupos, o discurso de Sganzerla se radicalizou - num texto que o cineasta publicou no Jornal do Brasil em fevereiro de 1970, quando o jornal dedicou ao seu A mulher de todos a sua sessão O filme em questão, ele já afirmava a agenda péssima e agressiva da geração marginal: Jamais transmitirei idéias limpas, discursos eloquentes ou imagens plásticas diante do lixo — apenas revelarei, através do som livre e do ritmo fúnebre, nossa condição de colonizados mal comportados. Dentro do lixo, é preciso ser radical. Daí o amor pelo cinema brasileiro tal como ele é: mal feito, pretensioso e sem pretensões e ilusões estéticas. Esmagado e explorado, o colonizado só pode inventar seu próprio sufocamento: o grito do protesto vem da mise en scène abortada. Ninguém pensa de forma limpa e estética de barriga vazia. Continuo realizando um cinema subdesenvolvido por condição e vocação, bárbaro e nosso, anticulturalista, buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde o tempo da chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior cinema do mundo! Ah, como isso seria maravilhoso e sensato!
Sganzerla não foi o único da geração marginalista a se dedicar ao exercício da crítica e, embora tenha sido o mais destacado, não é justo considerá-lo o melhor crítico daquela geração. A geração marginal não teve tantos talentos críticos quanto o cinemanovismo (Reichenbach produziu textos críticos eventualmente, mas só nos anos 2000 passou a fazer isso com regularidade no seu blog), mas seu principal crítico envolvido e memorialista foi Jairo Ferreira. Jairo Ferreira nasceu em 1945 e suicidou-se em 2003. Dirigiu uns poucos filmes, cumpriu diversas funções técnicas em outros tantos, escreveu críticas e publicou Cinema de Invenção, o mais rico dos livros a tratar deste cinema “marginal” ou “udigrudi”. Ao longo das décadas, nos seus textos e seus filmes, Ferreira sempre foi coerente na defesa de um cinema inventivo, livre de convenções. Romântico: quis ser capaz de unir a vida e a criação de forma plena. Num depoimento sobre ele, Juliano Tosi lembrou que “o Jairo gostava de falar em cinevida, de um "mimetismo total entre criação & vivência". De fato, o cinema era a vida dele. Dito assim, pode parecer um clichê. Não é: basta ler seus textos.” Não apenas seus textos, como seus filmes também: o exemplo mais óbvio seria o seu longa em super-8 O vampiro da cinemateca, em que deu vida a alguns dos seus heterônimos críticos. Outro caso foi o do documentário Horror Palace Hotel. Apresentado pelo diretor como um cine-diário, que não apenas uniu arte e vida como a elas somou a crítica, este filme rodado em Super-8 registrou bastante particular e um tanto desordenado do Festival de Brasília de 1978 - ano em que foi feita uma mostra paralela de “filmes de horror”, que juntava obras de Rogério Sganzerla, Ivan Cardoso, Julio Bressane, Eliseu Visconti e, é claro, José Mojica Marins. O criador do personagem Zé do Caixão se tornou o grande homenageado do filme de Jairo Ferreira, cujo subtítulo é O gênio total. Jairo movimentou sua câmera para nos mostrar seus amigos e também toda a fauna de Brasília (inclusive os “adversários” cinemanovistas) enquanto fazia relatos em off, entrevistava Sganzerla, Francisco de Almeida Salles e Mojica. Em certos pontos, Jairo permitiu que Sganzerla começasse a agir como condutor do filme, primeiro guiando as entrevistas e finalmente cuidando ele mesmo da câmera, durante uma conversaentrevista com um Mojica bem-humorado e um tanto alcoolizado. Em O Insigne Ficante, Jairo voltou a documentar sua viagem a um festival, no qual entrevistou o realizador baiano Edgard Navarro, além de registrar Inácio Araújo tecendo uma longa crítica à postura de determinados teóricos brasileiros que macaqueiam procedimentos acadêmicos de outros países, citando especificamente Jean-Claude Bernardet; mais tarde, no mesmo filme, registrou Inácio se recuperando de um infarto,
lendo em off uma carta que o amigo lhe enviou quando o incidente aconteceu. Além desta carta, o filme tem uma narração em off, feita pelo próprio Jairo Ferreira, para apresentar os personagens que registrava, falar da situação do cinema brasileiro daquele momento, contar sobre sua própria vida e seu trabalho em cinema, mencionar outros tantos amigos e influências, citar Hendrix e Oswald de Andrade etc. Ficção, delírio, apreensão, reflexão e tomada de posição: tudo isso constituiu a obra de Jairo Ferreira de forma una. Em uma entrevista do início da década de 1990 ele afirmou: “Fazer cinema e respirar é uma coisa só. Respiro cinema dia e noite por todos os poros. Filmo para perscrutar, captar o aparentemente incaptável, definir o indefinível, ouvir o invisível e ver o inaudível colorido.”9 Através de uma produção de fragmentos ficcionais, autobiográficos e críticos, Jairo Ferreira fez sua profissão de fé na invenção artística. Sua escrita era hiperbólica e recheada de referências lembradas com paixão – Jairo, mais do que argumentar, tomava posição: fazia suas escolhas. A partir de 1966, Jairo Ferreira passou a publicar críticas numa coluna num jornal da comunidade japonesa de São Paulo, o São Paulo Shimbum. Ali, num pequeno jornal de circulação bastante restrita, ele teve liberdade total para exercer uma crítica de guerrilha. Talvez possamos dizer que seu número de leitores era inversamente proporcional à qualidade e à força da sua retórica. Naquela pequena trincheira, Jairo Ferreira metralhou conceitos fundamentais para a parte mais expressiva daqueles cineastas ditos marginais. Esta demarcação dos territórios do udigrudi aparece com clareza, por exemplo, na sua defesa enfática de Audácia!, o filme de Reichenbach e Antonio Lima lançado em 1969: O negócio é fazer filmes péssimos. Um apanhado crítico da face oculta do cinema nacional, filmes péssimos, mas necessários. Chegou a hora de massacrar a visão europeizante que impede o cinema nacional de ser ele mesmo. Quando um cara não pode fazer nada, ele avacalha, anarquiza, e não podendo fazer filme de cinema faz um filme sobre cinema. Trata-se de filmar a partir da impossibilidade de filmar.
A ironia agressiva diante da expectativa de público e crítica por produções malacabadas, “péssimas”, se faz presente em inúmeros dos seus textos publicados na época, ressoando as produções que estavam sendo lançadas pela movimentação marginal. Ainda em 1969 (justamente quando o cinemanovismo começou a criar seus laços institucionais junto ao Estado e fez seus filmes de maior apelo popular - e quando Sganzerla detonou o conflito na entrevista do Pasquim), Jairo previu que: “Será muito bom se entrarmos na década 9 Trechos desta entrevista fazem parte do livro Cinema de Invenção, no capítulo dedicado ao próprio Jairo, e ela atualmente pode ser lida na íntegra na internet em http://cinema-deinvencao.blogspot.com/2007/02/entrevista-com-jairo-ferreira.html.
de 70 produzindo muitos filmes, todos péssimos, mas todos comerciais, todos não-ideológicos, ilógicos, caóticos e populares”. Já em meados do ano seguinte, num texto intitulado “Erotismo & Curtição”, Jairo Ferreira afirmou a principal característica do distópico cinema udigrudi: a falta de união em torno de propostas comuns. O cinema da Boca do Lixo não é um movimento gregário, razão pela qual não tolera demagogias e/ou teorizações de porta de boteco. O Lixão é apenas um background, onde se reúnem os jovens cineastas de São Paulo, independentes e marginais. Não começa coisa nenhuma onde terminou o Cinema Novo. É anti-ideológico, renega as éticas e estéticas até então conhecidas e está explodindo como um fato jamais visto.10
A percepção do que era o chamado Cinema Marginal pelos seus próprios componentes, já naquele momento, partia da consciência de uma limitação muito clara. Tratou-se de um conjunto de filmes que, de certa maneira, exprimiram o mal-estar, o dilaceramento e a disposição para a inventividade daqueles realizadores, mas não foi em momento algum uma proposta ética-estética absolutista, que pretendesse reinventar a relação entre espectadores, cinema e mundo. No seu clássico Uma situação colonial, Paulo Emilio afirmou que “o subdesenvolvimento não é um estágio, mas um estado”. Podemos dizer que o cinema udigrudi se fez a partir da consciência dessa noção não-progressista do conceito: à sua maneira, eram filmes sobre o estado das coisas e dos espíritos, que não pretendiam apresentar discursivamente qualquer solução idealista para aqueles problemas. Não eram manifestos, mas manifestações. Se naquele momento Jairo Ferreira foi o melhor crítico (praticamente não lido) sobre aquele cinema (praticamente não exibido), nos anos seguintes ele se tornaria seu mais envolvido historiador, sobretudo a partir da publicação do livro Cinema de Invenção, em que catalogou as mais relevantes observações sobre as características dos filmes marginais. Para isso, ele chegou a mencionar algumas sintonias com as produções de cinema de outros países, mas seus movimentos mais expressivos foram dois: um foi o de apontar os parentescos daquele grupo de filmes (e do seu grupo de amigos) com uma tradição intelectual brasileira, que passa pelo modernismo antropofágico e pelos poetas concretistas; o outro movimento procurou demarcar uma tradição experimental na produção brasileira de filmes que antecedeu os marginais, a partir de Mário Peixoto, Glauber Rocha e José Mojica Marins. Para delinear essa história, o texto de Jairo Ferreira se apropriou das idéias como se não tivessem dono, usando a estrutura de colagens para
10 “Erotismo & Curtição”, texto publicado no São Paulo Shimbum em 03/09/70, posteriormente republicado em Crítica de Invenção.
fazer crítica. Sobre a inventividade formal do estilo crítico posto em prática por Jairo Ferreira, Inácio Araújo observou o seguinte: De seu estilo-estilhaço, em que a conceituação rigorosa convive ora com rasgos poéticos, ora com uma retórica de manifesto, pode-se dizer (o próprio autor diz, aliás) que se trata de uma didática sem didática – em que a luz nasce da obscuridade. É um estilo desequilibrado e cintilante, na medida dos filmes de que se trata.
Como podemos constatar em Cinema de Invenção, as falas alheias eram reapropriadas de forma ainda mais livre do que em seus primeiros anos como crítico: no único livro que publicou em vida (em duas edições que tiveram diferenças consideráveis), Jairo embaralhou os discursos explicita e intencionalmente. Ele se utilizou de textos alheios sem usar qualquer forma gráfica de sinalização para indicar ao leitor que seu texto apresentava citações – ele simplesmente as incorporou. Foi o que o livro fez, por exemplo, ao tratar de O Bandido da Luz Vermelha, no capítulo dedicado a Rogério Sganzerla. O texto se inicia com um comentário curto de Jairo Ferreira sobre o impacto do surgimento do filme em São Paulo; em seguida, sem aspas nem qualquer outro sinal gráfico além de dois pontos, inicia-se o Manifesto do Cinema Fora-da-Lei, de Sganzerla, que já mencionei anteriormente; depois, o leitor é avisado de que, em seguida, será colado o texto escrito por Reichenbach, já citado; após esse longo texto, é colada a “críticasíntese” que ele mesmo, Jairo Ferreira, escreveu quando viu O Bandido da Luz Vermelha pela primeira vez; depois da colagem destes textos produzidos na época de lançamento, o leitor se vê diante de uma reflexão, escrita por Jairo na época de publicação do livro. Neste trecho, Jairo Ferreira fala sobre o impacto que o filme de Sganzerla exerceu sobre sua própria produção – tanto de filmes quanto na forma de escrever críticas – e comenta a forte influência das idéias de Oswald de Andrade sobre o grupo do cinema marginal (Jairo escreve que Oswald era “o grande mentor cultural” do movimento). Ele termina este trecho reflexivo fazendo uma analogia entre o movimento de Mallarmé no seu poema Um Lance de Dados e uma frase de Sganzerla num texto sobre o filme (“definitivamente, queria esquecer O Bandido da Luz Vermelha de uma vez, já que foi feito para ser visto num poeira, esquecido ao fim da sessão, jogado no lixo enfim, em vez de ser conservado na memória dos cineclubes e das cinematecas”); em seguida, Jairo cola um novo texto de Sganzerla, este destinado a atacar críticos e cinemanovistas, afirmando que: “Se tivesse que definir, falaria de um cinema péssimo e livre, paleolítico e atonal, panfletário e revisionário – que o Brasil atualmente merece”; finalmente, Jairo encerra seu texto-colagem sobre O bandido da Luz Vermelha com uma crítica bastante elogiosa ao filme, escrita na semana de estréia pelo jornalista José Lino Grunewald.
Esta estrutura de colagem, exemplificada aqui apenas com o trecho dedicado a O Bandido da Luz Vermelha, se repete nos demais capítulos do livro. Em alguns deles, o autor chega ao ponto de iniciar o texto já com um testemunho alheio sobre uma determinada sessão de cinema - e somente mais à frente, e sem aspas, somos informados de que aquele trecho fora escrito por outra pessoa. Em diversos trechos do livro, tornase impossível saber se determinado parágrafo é original ou compilado. Por exemplo, na primeira edição de Cinema de Invenção, lançada em 1986, isso era feito no capítulo dedicado a José Mojica Marins. Ali, o texto começava já com a frase “o natural é tão falso como o falso”, depois seguia adiante – e, mais adiante, um parêntese um tanto enigmático informa aos leitores que todo esse início de capítulo provinha de uma crítica escrita por Sganzerla em 1967. Por conta disso, Sganzerla protestou com o autor. Na segunda edição, Jairo iniciou o capítulo abrindo aspas – seguidas por um aviso irônico: “Com aspas, como quer Sganzerla... o natural é tão falso como o falso”. A inventividade formal dos textos de Jairo Ferreira, coerente com o que ele escolhia e propunha, é um dos aspectos mais interessantes e raros naquela movimentação marginal. Certa vez, num texto intitulado “Mauro e dois outros grandes”, Paulo Emilio apontou o seguinte: “A mania de grandeza não é neles traço negativo de caráter, e sim arma para combater a frustração a que se vêem até hoje condenados todos os artistas e artesãos do cinema brasileiro. A sua megalomania é na verdade grito de protesto.” De certa maneira, o radicalismo daqueles textos de Jairo Ferreira repercutia este grito – eram textos desconhecidos sobre filmes idem, que à sua maneira mudaram tudo. Se hoje eles se tornaram conhecidos, lidos e mencionados nos grupos de estudo de cinema graças às republicações que tiveram na última década, isso não altera o fato de que, naquele momento, era preciso tentar destacar aos berros uma produção que procurou radicalizar as formas de cinema dentro de um contexto em que passou quase despercebida, obscurecida pela notoriedade de uma geração anterior.