Dos encontros: entre a melancolia e a inconformidade Camila Vieira da Silva1
Talvez seja possível pensar um vetor de atravessamento entre O Guru e os Guris (1973), Alma Corsária (1993) e Dias de Greve (2009), ainda que tais filmes tenham sido realizados em contextos históricos distintos, por diretores de filmografias singulares. Uma força em comum pulsa entre os três filmes: a aposta na necessidade de encontro com o outro nos modos de engajamento com o mundo. São filmes em que os personagens encontram-se à margem de seus espaços urbanos, amputados de um sonho de utopia, tragados pela urgência de um presente matizado pelo passado e tocados pela tensão entre a melancolia e a inconformidade com o estado de coisas. E, no meio disso tudo, o encontro como propulsor de vida. Visceral e incendiário O Guru e os Guris (1973), de Jairo Ferreira, é um ensaio documental centrado na figura intempestiva de um motivador de encontros por excelência: o francês radicado no Brasil, Maurice Legeard, então coordenador do Clube de Cinema de Santos, fundado em 1948, e mais tarde responsável pela Cinemateca de Santos. Com sua presença emblemática, de barba e óculos, circulando inquieto pelas ruas, em casa ou no cineclube, Legeard vocifera sua defesa pela atividade cineclubista no Brasil como estratégia de vanguarda, tal como já apresenta a frase do crítico Paulo Emílio Salles Gomes que aparece em uma das cartelas do filme: “Cineclubismo hoje no Brasil é vanguarda e vanguarda é cinema brasileiro”. A postura visceral do guru Legeard é marca presente de seu discurso, reforçado e amplificado pela fragmentação experimental do curta-metragem de Jairo Ferreira. Cineclubista com formação em sindicatos e centros estudantis, Legeard agita discussões calorosas em torno do cinema brasileiro: aponta para a “piada” que é produzir 100 filmes no Brasil enquanto só 10 ou 15 conseguem chegar ao público e critica as modas e as novidades de produções estrangeiras que entram em nosso circuito. No momento em que Legeard faz duras críticas à predominância dos filmes de Walt Disney nas salas comerciais de cinema, a montagem modula interferências na voz do cineclubista, com ecos e repetições, que reforçam um tom irônico e ao mesmo tempo agressivo, aliado à cena em que ele discute com crianças em uma sala de projeção. A fala de Legeard dimensiona o compromisso primordial de quem organiza o cineclube com a formação do público: apresentar filmografias pouco ou nada conhecidas, desencadear novos circuitos de visibilidades ainda não estabelecidos. No lugar de enaltecer os tais “gênios da ignorância” como Buñuel, Fellini ou Bergman, Legeard prefere diretores brasileiros pouco exibidos. “Tem que pegar coisas que ninguém 1
Doutoranda em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
conhece, ninguém sabe. É totalmente diferente do dia a dia”, afirma o guru, durante a icônica sequência em que sobe o bondinho até a igreja de Nossa Senhora de Monte Serrat, carregando um projetor de película que é incendiado ao final do percurso. O caráter incendiário do discurso de Legeard contamina a própria montagem (realizada por Inácio Araújo) do curta. Por vezes, a estrutura intercala cenas cotidianas do cineclubista, com recortes das críticas dos filmes nos jornais e chamadas públicas das sessões no clube de cinema. Em outros momentos, ela ganha maior liberdade ao misturar trechos da fala de Legeard, com música, ruídos estranhos e até silêncios para demarcar pontuações importantes. Na cena em que Legeard está reunido com seus guris cineclubistas em uma mesa repleta de garrafas de cerveja, sua voz é distorcida ou sobreposta com várias de suas falas. Ao mesmo tempo em que a agressividade está presente na fala e no gestual do personagem, ela não inviabiliza o encontro coletivo em torno de uma mesa em que se bebe e se troca ideias. Se a compreensão de cinema no Brasil deve passar por uma sensação de inconformidade com o modo como as coisas procedem, a realização de O Guru e os Guris também é contagiada por esta chama acesa, que instigou a concretização deste primeiro curta-metragem de Jairo Ferreira, filmado em 35mm e realizado com a colaboração de seus amigos “chapinhas”, devidamente creditados na abertura do filme. Beleza e desencanto Da tosse seca inicial de um cineclubista que não se furta em dizer o que pensa em O Guru e os Guris, partimos para a tosse persistente de Teodoro (Jandir Ferrari) em Alma Corsária (1993). O protagonista do longa-metragem de Carlos Reichenbach traz em seu próprio corpo o sintoma do cansaço, do esgotamento de uma vida que conduziu intensamente, mas que perdeu seu encanto. Será preciso então “resistir, durar, resistir à morte”, tal como diz Rivaldo Torres (Bertrand Duarte), seu amigo desde a infância. Na noite de lançamento do livro escrito pelos dois amigos, a Pastelaria Espiritual é o lugar de encontro com outras figuras pitorescas: um sujeito que tenta se suicidar, o dono coreano do estabelecimento, o colega canalha e sua amante. Todos estão ali reunidos para fazer parte deste evento único, em que se celebram as memórias e se partilham recordações sentimentais. Como a sequência inicial já explica, Alma Corsária é inspirado em histórias de amigos de Reichenbach, que foram importantes para sua experiência de juventude, em São Paulo. Uma geração que, segundo o realizador, “privilegiava as sensações absolutas, a amizade e a fé na utopia”. Mas o filme não é apenas uma ode à amizade, mas a todos os pequenos encontros que marcam a trajetória de alguém. A reunião na Pastelaria Espiritual desencadeia a mistura de tempos: os eventos do presente são intercalados aos acontecimentos do passado. Teodoro e Rivaldo firmam amizade na rua: encontram-se em ponto de ônibus, divertemse em uma partida de futebol, frequentam o cinema do bairro, caminham juntos de
bicicleta. Os dois são oriundos de classes sociais distintas – um dado que nunca os distanciou, mas os aproximou. De uma rotina mais contida e inocente em preto e branco na Jabaquara para uma livre e colorida no Iguape, os amigos passam por diversas experiências: as primeiras garotas, as diferenças políticas durante a ditadura. São personagens inspirados nos poetas Augusto dos Anjos e Cesário Verde – não é a toa que muitas poesias destes autores são citadas pelos próprios personagens. Mas esta visão de mundo poética não se sedimenta apenas por meio das palavras. Ela seduz a própria forma do filme, que cria belas rimas poéticas capazes de brincar com o espaço e o tempo da narrativa: como a dança solitária de uma anã, que começa na rua e continua no salão interno da pastelaria; ou mesmo as cenas de sexo, que intercalam detalhes dos corpos das mulheres com planos de mar, rios, córregos. Há uma liberdade na condução dramatúrgica que faz emergir momentos de beleza capazes de amenizar a melancolia dos personagens, envoltos por relações cotidianas em que o encanto se perdeu. É o caso da relação de Teodoro com a prostituta Anésia (Andrea Richa). Agredida constantemente pelo seu cafetão, Anésia precisa voltar ao interior para visitar sua família e fingir ser noiva de Teodoro. Naquele lugar em que o conservadorismo fala mais alto, é necessário manter um jogo de aparências. Diante desta frieza familiar de relações, há algo que faz desabrochar o encantamento entre os dois: a conversa do pai com o “noivo” na varanda da casa desperta em Anésia a vontade de dançar junto com Teodoro, em uma das mais belas cenas do filme, que logo é seguida pelo encontro duro e agressivo com o padrinho em um hospício. A delicadeza e a brutalidade fazem parte da trajetória dos personagens nos encontros que marcam suas vidas. A oscilação entre o desencantamento e a resistência diz muito também do próprio modo de produção de Alma Corsária. O longa-metragem foi realizado em 1993, três anos após o fim da Embrafilme com o governo Collor e seis anos após Anjos do Arrabalde, o longa anterior de Reichenbach. O filme assume uma estrutura artesanal de produção, em que o próprio diretor e roteirista faz a fotografia. Alma Corsária é um cinema que se inventa precário, que enxerga beleza onde poucos conseguem. Ócio e trabalho A invenção a partir da precariedade é central também para Dias de Greve (2009), curtametragem de Adirley Queirós. Um grupo de operários metalúrgicos encontra-se em um sindicato para decidir sobre a continuação da greve, em uma Ceilândia em contexto específico de especulação imobiliária. O dissenso com o líder sindical acaba sendo a tônica da reunião, mas sem embates virulentos de contestação. No lugar de aprofundar as tensões e os conflitos, o filme opta por se aproximar do espaço urbano da periferia como lugar onde outros modos de vida se forjam, distantes das opressões de trabalho: é o tempo de brincar de pipa com o filho, de passear de bicicleta, de consertar o carro para jogar futebol com os amigos, de dançar em uma casa de show. Os laços de amizade entre os operários são reforçados, apesar das situações de crise.
Mesmo que os breves momentos de ócio conduzam a uma espécie de fuga alegre nos dias de paralização, o cotidiano mostra sua face opressora: a geladeira vazia, a perna machucada, as reclamações do patrão. É necessário voltar a trabalhar por necessidade. Da fruição passageira nos dias de greve ao marasmo da obrigação do trabalho, não há muito o que dizer. Com poucos diálogos, o filme não tem a preocupação de psicologizar ou dramatizar seus personagens em excesso. Basta que o gestual deles, aliado à presença constante da música popular na diegese do filme, sejam suficientes para compor e dimensionar uma experiência com o mundo, em que existe uma certa perda de utopia. Ainda há a certeza do encontro festivo e coletivo, na sequência final do desfile de Carnaval. Neste intervalo celebratório, todos estão presentes: os operários, a família, o patrão. Uma provável igualdade entre desiguais – gesto raro de se ver em um filme que tem como ponto de partida uma insatisfação de diferença de classes. No entanto, a possibilidade de igualdade ainda que pontual não é tratada de forma apaziguadora. Pelo contrário, há uma amargura, um mal estar, um silêncio perturbador.