O cinema como atividade humana sensível por Dalila Martins
Se Andrea Tonacci e Luiz Rosemberg Filho continuam a incendiar o imaginário do cinema brasileiro contemporâneo, fazem-no por três incontornáveis motivos: seu embate irredutível com a indústria, sua invenção de formas de resistência e seu apreço pela contradição. Tenho o privilégio e a alegria de contar que já presenciei intervenções de ambos em contextos de festivais, cineclubes, seminários e mesmo em encontros cotidianos. Invariavelmente, o que percebi foi uma coalescência entre trabalho e vida, um movimento que poderia ser descrito como “atividade humana sensível”, no sentido que Marx dá ao materialismo. E isto, não sem impacto, pois o ensino especializado da academia acaba por viciar a concepção do audiovisual, incutindo um modo de produção extrínseco ao terreno das experiências. Até hoje, encanta-me a cadência de Tonacci, seus gestos sorvidos de extrema elegância, pontilhados, com precisão, por duras visões de “ser Homem no mundo”, como ele mesmo define, seguindo a trilha rosselliniana. Comove-me, também, o hábito que Rosemberg cultiva, dia após dia, não importam as dores, de ir até a Cobal do Humaitá, sentar no mesmo café, ler, reler e receber alguém que passa. Ora, tais posturas não equivalem ao engendramento do ritmo pela montagem e ao posicionamento da câmera num espaço contingente? Mas, há, sobretudo, as obras. E, dentre tantos projetos abortados, por causas diversas, falta de dinheiro, desânimo, boicotes e censura, nunca é suficiente voltar a elas. Ou seja, existe ali algo que transborda em nossa direção. Proponho, então, assinalar alguns de seus temas que persistem como refugo. Quem sabe, assim, sua atualidade transpareça.
Os afetos da indústria cultural
Os filmes de Rosemberg são tortuosos. Seus vídeos, árduos. Não obstante, há um desígnio em prol da manifestação do pensamento. Decide-se evidenciar o ato reflexivo desde o princípio. O objetivo permanece o mesmo, sistematicamente: desmascarar o controle exercido pelas imagens,
pela “sociedade do espetáculo”, conceito de Debord que lhe é tão caro. O assunto, portanto, resume-se à pornografia. Isto é, à violência da exposição, da forma-mercadoria.
Lembremos, por exemplo, da sensual cena de sexo ao som de Bach, em Crônica de um Industrial (1978), que aos poucos se torna um estupro. Ou, então, da protagonista de A$$untina
das Amérikas (1975), a prostituta que acredita ser atriz, idealizando o estrelato hollywoodiano. Rosemberg perscruta o limiar entre erotismo e consumo. A partir do estímulo libidinal levado às últimas consequências, tenta colapsar a pulsão escopofílica. Sob este prisma, Dois Casamentos (2015) mergulha no universo feminino, obscuro e misterioso, procurando por algo da ordem do desejo que escape à vulgaridade da apreensão.
Outra questão recorrente em sua obra é a carnavalização. Rosemberg faz dela a alegoria do processo tacanho de constituição da identidade nacional. A histeria festiva se arma pela obsessão com a cultura importada, com a fantasia desenvolvimentista. Almeja-se, a todo custo, o gozo absoluto travestido de pertencimento. Não se nota, entretanto, que a satisfação da demanda do “ser como um outro” implica no esgotamento de si. Quanto maior a entrega a esta exótica miragem, maior a abertura à colonização.
O transe, elaborado também por Glauber Rocha, desponta, assim, como fenômeno de maior interesse. Seu arco abrange desde ímpetos passionais até mesmo pautas ultra esclarecidas. De fato, parece que toda reflexão posta em filme termina por se perder na vertigem de sua premência. Em O Jardim das Espumas (1970), uma espécie de buraco negro se apodera dos terroristas que sequestram o emissário dos países ricos, como protesto contra a opressão que os abate. Seus corpos cativos são submetidos a síncopes, contorcem-se e sangram em extensas sessões de tortura. Desesperados, comportam-se como bestas ferozes. No olho do furacão, sua práxis sai pela culatra.
Em A$$untina das Amérikas, jovens desfalecidos, amontoados num jipe no centro do Rio de Janeiro, levantam-se e marcham como zumbis. No fim da sequência, uma panorâmica exibe uma pequena aglomeração de transeuntes que observam a cena em via pública. Eles permanecem estáticos, um tanto confusos, muito vidrados. Apenas um encara a câmera. Em suas colagens em vídeo, Rosemberg explora esta disposição de figuras inertes, presas num fluxo de informações. Não obstante, por vezes, inserem-se rostos de crianças que desestabilizam o mecanismo com suave vivacidade.
A farsa humanista
Tanto em sua fase marginal quanto em sua fase indianista, tendências que convergem com força em seu período recente, a obra de Tonacci expressa uma crítica assaz ao humanismo. Delineiam-se percursos que remetem à estrutura dos romances de formação, mas se estilhaçam
por completo por meio da exacerbação do arbítrio. Ou seja, expõe-se a rede de normatividade que organiza e significa a trama, de modo a revelar seu grau de aleatoriedade diante de um mundo vasto às beiras do absurdo. Bang Bang (1970), por exemplo, é um filme sobre a perseguição a um personagem boçal em errância. Como se a equipe de filmagem vasculhasse a realidade caótica em busca da ficção cinematográfica, mas fracassasse. Já na primeira sequência, dentro de um táxi, há uma discussão atrapalhada acerca do rumo a ser tomado. Enquanto passageiro, ao protagonista caberia ditar as diretrizes. No entanto, nada faz além de reclamar do condutor, outro desavisado. Estabelece-se, assim, a fina ironia que reinará até o final. Tal recurso humorístico, ainda, fundamenta a cena do mágico que alude à trucagem do primeiro cinema: fazer surgir e desaparecer. Tonacci promove um jogo truncado entre recusa das convenções e exímia manipulação, o que gera a impressão de um automatismo em descontrole.
Blablablá (1968) põe a nu a construção de um discurso político. De uma emissora de rádio, um ditador ensaia o anúncio que proferirá à sua nação em tempo de crise institucional. Para garantir sua agenda ideológica, constrange frases e orações sem pudor, dotando-as, com
frequência, de intenções contrárias. Conforme arquivos de luta emergem na tela, no entanto, suas palavras se desvelam falsas. O choque do real acaba por estrangular sua empreitada. Como uma máquina tagarela, intensifica o falatório, esbravejando. Mas seu dorso não esconde reações adversas: transpira, tosse, treme. Por fim, sussurra confissões que lhe servem como seu próprio julgamento.
No documentário Serras de Desordem (2006), a história de Carapirú é representada como uma epopeia. Após testemunhar o massacre de sua aldeia por jagunços de madeireiros, o índio Awá-Guajá foge e passa a vagar pelo sertão do Centro-Norte do Brasil, sobrevivendo de sua eminente habilidade de caçador. Uma década depois, fixa-se numa cidadela baiana como agregado de uma família. Até que um oficial da FUNAI o leva de volta a Brasília para ser, então, restituído à reserva de sua etnia. Na capital, por coincidência, reencontra seu filho, Bemvindo, recrutado como seu intérprete. Tal heroísmo, porém, é imposto. O plano ao final, em que Carapirú senta e discorre para a câmera em seu dialeto, exprime a clivagem existente entre ele e a narrativa que o transforma em protagonista com quem o espectador deveria se identificar. Tonacci não deixa de acentuar a ingerência do filme em relação à tragicidade da vida do indígena, ao se mostrar
dirigindo-o na reconstituição dos fatos.
Algo da mesma ordem ocorre em Os Arara (1980-83), trilogia interrompida para TV, que acompanha os preparativos e as expedições da Frente de Atração Arara da FUNAI, na tentativa de contato com a tribo isolada no Pará, para contabilização, proteção e demarcação de suas novas fronteiras. Este programa seria um meio de apaziguar prováveis conflitos pelo estabelecimento de um elo de dependência, coordenado por profissionais. Mas, apesar das estratégias rebuscadas, os índios não se deixam alcançar. E as intempéries da Floresta Amazônica danificam o equipamento audiovisual. Ainda que, no único episódio terminado, Tonacci apresente o revés civilizatório, há uma série do material bruto que registra a aproximação. E ela se dá de um modo háptico, curioso e mesmo terno. Como se a ausência de elaboração linguística mantivesse certa neutralidade receptiva, ao menos por um átimo.
Em Já Visto, Jamais Visto (2014), um revisitação a antigos fragmentos, Tonacci flexiona o
problema da formação para sua própria história. O mote do reencontro com o filho, como meio de se religar a si, retorna em seu seio familiar. Desenvolve-se um tipo de rito de passagem à maioridade, em que a inocência infantil é contraposta a um regime disciplinar e policialesco. Através de livre associações de fundo onírico, mítico, a instância da autoridade se converte em poder imaginativo, emancipador. É assim que se processa a transgressão dos limites da fatalidade. Tonacci se reconhece na condição de marginal e de selvagem enquanto chance de abertura ao inestimável.