Candeias e mojica

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CANDEIAS E MOJICA Luís Rocha Melo

1. Ozualdo Ribeiro Candeias e José Mojica Marins surgiram no cinema brasileiro apesar do próprio meio cinematográfico: são duas forças imprevisíveis, talentos independentes, criadores incontroláveis e incontornáveis. Mas mesmo artistas fenomenais como esses não nascem do nada, desvinculados de redes associativas, trocas intelectuais ou relações de trabalho. No caso de Candeias e de Mojica, é necessário atentar para o contexto cinematográfico paulista no momento em que ambos começaram a rodar seus primeiros trabalhos, isto é, na virada dos anos 1950-60. Após a derrocada traumática dos grandes estúdios paulistas (Vera Cruz, Maristela, Multifilmes), o discurso da produção independente ganhou peso renovado. Os cineastas sediados em São Paulo passaram a contar com financiamentos oficiais através de premiações garantidas pela Lei do Adicional de Renda da Prefeitura (1955) e de empréstimos da Carteira de Cinema do Banco do Estado de São Paulo (1956). Isso possibilitou o incremento das associações entre produtores e o aluguel dos equipamentos e palcos de filmagens dos estúdios que então se encontravam paralisados. Filmes como Rio, zona norte (Nelson Pareira dos Santos, 1957), O grande momento (Roberto Santos, 1958), Estranho encontro (Walter Hugo Khouri, 1958) e Cidade ameaçada (Roberto Farias, 1960), por exemplo, foram realizados dentro desse esquema. É também nesse momento que começa a ser difundida e popularizada a noção de cinema de autor, que ganhará relevância a partir da atuação no Rio de Janeiro dos jovens críticos e cineastas ligados ao Cinema Novo (Glauber Rocha, David Neves, Paulo César Saraceni, Carlos Diegues etc.). Como inserir Ozualdo Candeias e Mojica Marins nesse panorama? As carreiras desses dois cineastas foram marcadas em seu início por uma certa marginalidade em relação aos cânones artísticos do cinema brasileiro dos anos 1950. Os primeiros filmes de Candeias são reportagens cinematográficas e institucionais de curta e média-metragem (Tambaú, cidade dos milagres, 1955; Polícia feminina, 1960; Ensino industrial, 1962; Rodovias, 1962). Mojica, por sua vez, fará como longa de estreia um bangue-bangue, A sina do aventureiro (1955-57). 2


Reportagens, institucionais e faroestes nunca gozaram de prestígio no circuito de legitimação cultural do cinema brasileiro. O segundo longa-metragem dirigido por Mojica, Meu destino em suas mãos (1962), cujo roteiro aliás foi escrito por Candeias, pertence a um filão ainda menos apreciado por críticos e historiadores: o melodrama musical. Mojica só se tornará famoso mesmo nos anos 1960, com Zé do Caixão e À meia-noite levarei sua alma (1964). Já Candeias será reconhecido pela crítica somente após lançar A margem, em 1967. Mas não foi o meio “culto” do cinema que possibilitou a continuidade de suas realizações. O que salvou Mojica e Candeias foi a Boca do Lixo. A Boca do Lixo (ou Boca de Cinema) era um núcleo de distribuição e de produção em atividade desde os anos 1940-50, na região central de São Paulo, próxima à Estação da Luz. Na Rua do Triumpho e adjacências se concentravam escritórios de distribuidoras nacionais e estrangeiras. A proximidade com a estação de trem facilitava o transporte das cópias para o interior do estado e para outras regiões do país. Durante os anos 1940-50, Oswaldo Massaini foi um dos pioneiros distribuidores e produtores da Boca, valendo-se dos empréstimos da já citada Carteira de Cinema do Banespa e produzindo diversas comédias musicais, muitas vezes em associação com diretores, produtores e distribuidores cariocas. Em 1962, a Cinedistri – empresa de Massaini – consegue um verdadeiro êxito: a Palma de Ouro em Cannes, com O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), prêmio que transforma Massaini no mais prestigiado produtor da região. A partir de 1966, quando o INC (Instituto Nacional do Cinema) centralizou o fomento e a legislação das atividades cinematográficas no país, a produção da Boca ganhou novo impulso. Além de aumentar a quantidade de dias para exibição obrigatória do longametragem brasileiro, o INC federalizou o Prêmio Adicional de Bilheteria e reformulou a chamad a “Lei de Remessa”, que estimulava as majors a investirem o imposto sobre o lucro a ser remetido às matrizes, na produção de filmes nacionais. Isso possibilitou a entrada na produção de pequenas e médias distribuidoras que já estavam instaladas na Boca. Que tipos de filmes se faziam por lá? De tudo um pouco: filmes de cangaço, melodramas, suspenses, faroestes, policiais, kung-fu, terror, experimentais, e – sobretudo nos anos 1970-80 – muitas comédias eróticas, pejorativamente chamadas de pornochanchadas.

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No meio desse caldo, José Mojica Marins e Ozualdo Candeias. Mas até no cinema da Boca, ambos terão trajetórias relativamente independentes e marginais. Mojica, por exemplo, nunca teve escritório na região: começou com um pequeno estúdio no bairro de Santa Cecília e em 1966 mudou-se para o Brás, onde organizou seu estúdio em uma ex-sinagoga. Lá funcionava também a famosa “escolinha” de atores e técnicos administrada por Mojica. Ozualdo Candeias não tinha estúdio ou escritório próprios. Embora pertencente à geração dos que viram nascer a Atlântida, a Vera Cruz e a Maristela, jamais alimentou o mito industrialista das “fábricas” cinematográficas. Dizia: “Eu achava que não precisava de estúdio, o sujeito pega um dinheirinho, contrata uma equipe e toca o pau.” (Depoimento de Candeias a Hernani Heffner, Arthur Autran e Ruy Gardnier, 2007). A Boca era estratégica justamente por isso: equipes e elencos inteiros podiam ser recrutados na região, sobretudo no escritório central – o Bar e Restaurante Soberano, onde, de acordo com um célebre depoimento de Carlos Reichenbach à revista Filme Cultura (nº 28, fev. 1978, p. 76), bebiam no mesmo copo e da mesma cachaça o “expolicial, o ex-dedo-duro, o ex-burguês, o reacionário, o ex-rufião, os loucos, o crítico de ideias revolucionárias, o ex-líder estudantil, o comerciante, o liberal, o progressista, o cinéfilo apolítico, o colecionador do Cahiers, o caipira, os técnicos da pesada, e os futuros gênios”. Era nesse meio que Mojica e Candeias transitavam. Completando esse quadro, haviam os “homens do dinheiro”, isto é, produtores, distribuidores e exibidores sediados na Boca, que também entravam como sócios na produção e/ou finalização dos longas. Dentre os produtores, além de Oswaldo Massaini destacavam-se Alfredo Palácios e Antônio Polo Galante, Renato Grecchi e o espanhol Manoel Augusto Sobrado Pereira – ou, como também era conhecido, o “Cervantes”, amigo de longa data de Mojica. Cervantes foi produtor de A sina do aventureiro, de Meu destino em suas mãos (em que também foi ator) e Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967). Para Candeias, produziu o faroeste Meu nome é Tonho (1969), filme que deu um bom resultado de bilheteria. Embora constantemente criticados pela usura, oportunismo e visão imediatista do mercado, os produtores foram figuras muito importantes na Boca. Planejavam estratégias, capitalizavam projetos, mantinham equipes técnicas em atividade, davam 4


emprego e chance para novos ou veteranos diretores, sedimentavam gêneros e filões populares. Graças, por exemplo, a um consórcio entre Antônio Polo Galante, Renato Grecchi e os irmãos Valansi (exibidores), foi possível realizar Trilogia do terror (1968), com episódios de Luís Sérgio Person (“Procissão dos mortos”), Ozualdo Candeias (“O acordo”) e José Mojica Marins (“Pesadelo macabro”). Mojica e Candeias estiveram juntos em outros projetos. Além de roteirizar Meu destino em suas mãos e dirigir um episódio de Trilogia do terror, Candeias aparece como ator em O despertar da besta (1969). Mojica também foi homenageado por Candeias, fazendo uma participação em As belas da Billings (1987). Ambos eram amigos e no fundo se admiravam, embora o elogio mútuo não fizesse parte dos hábitos de quem frequentava a Boca. De tudo o que foi dito acima, poderíamos concluir que o que teria possibilitado o aparecimento de cineastas como José Mojica Marins e Ozualdo Candeias foi a existência de um certo “cinema popular”, isto é, o cinema que se fez na Boca entre os anos 1960-80. Cinema popular, termo vago... Como traduzi-lo? Seriam os filmes de bilheteria? Gêneros do agrado do grande público? Filmes com temáticas sobre o povo? Ou produções realizadas por cineastas de extração popular? Dependendo do que se queira defender, cinema popular pode ser qualquer uma dessas coisas, ou todas ao mesmo tempo, ou nenhuma delas. Mais uma vez, Candeias e Mojica chegam para confundir, não para explicar. Embora famosíssimo junto aos públicos das salas populares de cinema, seria simplório e equivocado considerar Mojica Marins como um cineasta preocupado em produzir apenas aquilo que o público “gosta” ou “aceita”. A ousadia narrativa e formal está em primeiro plano no cinema de Mojica, e para tanto basta citar filmes como O despertar da besta, Finis Hominis (1972) ou Delírios de um anormal (1978). Afinal, por quê falar em “cinema popular” implicaria necessariamente em excluir a experimentação de linguagem? Quanto a Ozualdo Candeias, o que sempre o preocupou foi a necessidade de realizar uma obra pessoal, radical, sem concessões às facilidades de linguagem ou ao drama água-com-açúcar. Como ele mesmo dizia, uma obra de vanguarda, socialmente engajada. Toda a filmografia de Candeias atesta esse propósito. Apesar disso, 5


dificilmente um público “popular” não entenderia ou não apreciaria filmes como Zézero (1974), Aopção, ou as rosas da estrada (1983) e O vigilante (1992). Mas por quê seria necessário eliminar, da ideia de “cinema popular”, a politização da experiência estética? O cinema de Mojica e de Candeias, como todo grande cinema, é irredutível a rótulos.

2. “Um filme insólito, sem dúvida. Original. Um impacto nas concepções convencionais. Marco na História do Cinema de Terror. A mais surpreendente arrumação de cretinices desde Lumière. Uma orgia de crítica social só comparável ao clássico L’âge d’or, de Luis Buñuel.” Assim termina a crítica de Salvyano Cavalcanti de Paiva no Correio da Manhã (07/06/1966), alguns dias após a estreia de À meia-noite levarei a sua alma no Rio de Janeiro. Sobre A margem, de Ozualdo Candeias, o crítico e também cineasta Rubem Biáfora não esconde seu entusiasmo: “Uma total surpresa. Uma obra difícil [...] uma obra singular, ao mesmo tempo realista, fantástica e poética [...] Lembra Aleluia, de King Vidor, Mais próximo do Céu, de William Keighley, Uma cabana no Céu, de Minelli, O pequeno rincão de Deus, de Anthony Mann, Himlaspelet, de Sjoberg [...] Uma obra absolutamente pessoal, isenta de influências ou citações à maneira de Godard ou Glauber Rocha [...]” (O Estado de S. Paulo, 17/02/1967). Ao que o temido crítico do Correio da Manhã, Moniz Vianna, complementa: “Quanto ao diretor-produtor-roteirista-montador Ozualdo Candeias, vale dizer, por enquanto, que surge como um cineasta de talento próprio, ainda que sejam discerníveis influências tão válidas como a de Jean Vigo (L’Atalante) e, em tom menor, a de Fellini (La Strada). Uma importante estreia, a de A margem, indiscutivelmente o melhor filme nacional do ano passado.” (Correio da Manhã, 18/04/1968). Essas citações nos autorizariam dizer que Mojica e Candeias foram compreendidos pela crítica? Sim e não. Antes de tudo, seria necessário esclarecer o que se quer dizer com “crítica”. Em seguida, seria preciso pensar a relação disso que chamamos de “crítica” não apenas com um ou dois filmes, mas com o conjunto da obra desses dois cineastas.

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A crítica de cinema no Brasil não é e nunca foi uma coisa só, homogênea. Sempre houve desavenças, discordâncias e disputas entre os diversos grupos de críticos ao longo dos tempos. Nas décadas de 1950 e 1960, a polarização ideológica contribuiu muito para esses confrontos. Os críticos, tais como os partidos políticos, também eram divididos entre “esquerda” e “direita”. Por exemplo, na crítica carioca, Alex Viany era “de esquerda”; Moniz Vianna, “de direita”. É claro que estou fazendo uma caricatura, mas nem tanto. O que poderia justificar o alinhamento de um ou de outro crítico a este ou aquele pólo ideológico, eram muitas vezes a escolha de determinados cineastas ou filmografias em detrimento de outros; a defesa ou não de um certo “nacionalismo” no campo da temática e da estética; a admiração ou a recusa do modelo hollywoodiano; a ênfase em um cinema comprometido com questões sociais ou, ao contrário, em uma linguagem pretensamente “universal”, isenta de mensagens políticas. Existiam casos – como os do paulista Carlos Ortiz, do baiano Walter da Silveira e do próprio Alex Viany – em que o engajamento se dava de forma efetivamente partidária: esses três críticos haviam sido filiados ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). Mas no caso de Paulo Emilio Salles Gomes, cuja militância política sempre buscou um estratégico afastamento da linha pecebista, a identificação com um pensamento de esquerda se daria a partir de outras perspectivas – por exemplo, àquelas alinhadas ao nacional-desenvolvimentismo típico da primeira metade dos anos 1960. Voltemos. No caso da recepção crítica aos filmes de Mojica e Candeias (ou mais particularmente, aos dois primeiros filmes com o personagem de Zé do Caixão e o filme A margem) ocorre um fato curioso: em que pese o desnorteamento provocado por estilos a princípio inclassificáveis, tanto Mojica quanto Candeias foram vistos como realizadores “alternativos” ao Cinema Novo. Enquanto isso interessava aos críticos contrários aos cinemanovistas, por razões simetricamente opostas, desagradava aos que os defendiam. “Quem é José Mojica Marins, moderno êmulo de Orson Welles?”, indaga um entusiasmado Salvyano Cavalcanti de Paiva (Correio da Manhã, 07/06/1966). Ao que Maurício Gomes Leite, no Jornal do Brasil, responde: “Para o cinema, José Mojica Marins não é nada. [...] À meia-noite levarei sua alma não é só um filme pobre, é um filme ostensivamente nojento.” (07/06/1966).

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Correndo por fora dessas duas correntes, haviam os que enxergavam nos filmes de Mojica e Candeias a possibilidade de superação dos impasses de um cinema politicamente engajado no Brasil dos anos 1966-67. Mas mesmo nesse último grupo, as oscilações são evidentes. Por exemplo, antes de se tornar um de seus maiores admiradores, Jairo Ferreira vai atacar José Mojica Marins em sua coluna no São Paulo Shimbum (23/03/1967). Cito um trecho longo, mas revelador: “Não é por sadismo que Esta noite encarnarei no teu cadáver não resiste a uma crítica, muito menos análise. Sua estrutura interna assim se apresenta: filosofia (se houvesse) à maneira de um Nietzche provinciano; método de produção (inexistente); picaretagens e falcatruas; estética; mil erros de continuidade; ausência de ‘linguagem’ ou ‘narração’. Isto sem falar no pedantismo, na megalomania, no cabotinismo. Ou seja: ignorância, no entanto, tomada por ‘primitivismo’. Direção de intérpretes: não existe; montagem: idem; música: discos, o que é de menos. Calamidade: um cinema espúrio por excelência, paupérrimo por condição. Mas suficiente para alvoroçar uma cidade. Já nem se fala do tema: arcaico, bestialóide e gratuito.” Um ano depois, a revisão – desta vez a propósito de O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), com direito à exortações oswaldianas: “Repudiar Mojica é fácil, o difícil é degluti-lo. Os que com seriedade conseguirem fazêlo sentirão o fantástico sabor do homem brasileiro gangrenado, tipo classe-média-parabaixo – vítima antecipada da pseudo-revolução industrial que estamos vivendo. Devorem Mojica!” (São Paulo Shimbum, 28/11/1968) Há outro aspecto da crítica cinematográfica que vale a pena ser considerado. De uma forma ou de outra, ontem como hoje, os críticos sempre exerceram o “pequeno poder”. No caso do cinema brasileiro, isso é mais evidente. Uma crítica negativa, positiva ou, às vezes, a própria ausência da crítica, isto é, o silêncio proposital, são fatores que podem influir na carreira de um filme. O crítico que negocia sua “autoridade” (que às vezes se confunde com “erudição”) não só nos veículos de comunicação, mas também em instituições de fomento, em comissões de seleção ou de avaliação de filmes e projetos, na censura, ou em curadorias de mostras e festivais, também exerce o “pequeno poder”. Muitos críticos importantes cumpriram esses papeis com assiduidade, como Francisco Luiz de Almeida Salles, por exemplo, na Comissão Federal de Cinema (1956), no GEIC 8


(Grupo de Estudos da Indústria Cinematográfica, 1956) e na Comissão Estadual de Cinema da Secretaria de Cultura de São Paulo, nos anos 1970. Ou Moniz Vianna, diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1957-65), membro do Conselho Consultivo do Geicine (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica, 1961) e secretário-executivo do INC (Instituto Nacional do Cinema, 1966-69). Assim, não foi apenas pelos inegáveis méritos de A margem que Candeias foi premiado pelo INC como Melhor Diretor de 1967. Essa era também uma forma de evitar que esse mesmo prêmio chegasse às mãos de Glauber Rocha, realizador de Terra em transe (1967), filme que o crítico e então secretário-executivo do INC Moniz Vianna simplesmente odiava. É o próprio Candeias quem conta, em depoimento de 1980 a Tânia Savietto e Carlos Roberto de Souza (Cadernos da Cinemateca, nº04): “É que a fita [A margem] tinha condição de ser usada politicamente, porque na época era uma outra fita que devia ter ganho. Mas o presidente do INC estava brigado com o cidadão e no fim eu acabei ganhando.” Esse momento inaugural, essa espécie de “lua-de-mel” entre Candeias, Mojica e os críticos cinematográficos em disputa não durou muito tempo. Na medida em que os cineastas deram continuidade às suas carreiras, a surpresa e o entusiasmo arrefeceram. Candeias realizou alguns trabalhos subterrâneos, como Zézero (1974) e O Candinho (1976), que sequer foram para a censura, mas também dirigiu filmes comerciais como diretor contratado para o ator e produtor David Cardoso (Caçada sangrenta, 1974, e A freira e a tortura, 1983). Raros os críticos que se dedicaram a pensar essas obras, como foi o caso de Paulo Emilio Salles Gomes em relação a Zézero. Mojica Marins, que além de cinema fez de tudo um pouco (televisão, histórias em quadrinhos, shows circenses, discos), enveredou por outras searas, para certos críticos bem mais assustadoras do que os delírios de um Zé do Caixão: quem na época se aventurou a analisar, por exemplo, a trilogia composta por A 5ª dimensão do sexo (1984), 24 horas de sexo explícito (1985) ou 48 horas de sexo alucinante (1987)? O contraponto ao desprezo da crítica (ou melhor, de uma parcela da crítica cotidiana dos jornais) veio de eventuais premiações ou seleções em festivais e mostras internacionais, além do interesse crescente sobre a obra desses dois realizadores que aos poucos germinava nos meios acadêmicos e culturais.

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Ao longo dos anos 1990-2000 uma nova geração passou a conhecer o trabalho de Candeias e Mojica. Estudantes e pesquisadores juntaram-se aos fãs e aos cinéfilos, e mostras retrospectivas como “Ozualdo R. Candeias: 80 anos” (2002) e “José Mojica Marins: 50 anos de carreira” (2007) ajudaram a divulgar mais amplamente a obra desses dois realizadores. No entanto, o perigo da “academização” de Candeias e Mojica também deve ser considerado. Se em um primeiro momento a crítica de certa forma “folclorizou” o cinema de ambos, com os estudos acadêmicos o risco que se corre é o da domesticação. É preciso sempre evitá-la: ver com olhos livres, acima de tudo.

3. Para finalizar, uma palavra sobre a pertinência ou não do termo “cinema primitivo” aplicado às obras de Candeias e Mojica. Essa expressão foi de fato usada por críticos e cineastas em diversos momentos – e talvez até hoje continue a ser –, sobretudo nos começos das carreiras de Candeias e Mojica no longa-metragem. Pessoalmente, acho a expressão antipática e até mesmo ofensiva. Chamar um artista de “primitivo” – ou, como às vezes ocorre, de “intuitivo”, eufemismo igualmente pernóstico quando usado nesse sentido – denota quase sempre uma pretensa e ridícula superioridade de quem emite tal juízo. Sei que Carlos Reichenbach discordaria do que acabei de dizer – ele mesmo, em um texto sobre Mojica (“Meu encontro com Zé do Caixão”, 2007), sustentou que o adjetivo “naïf” ou “primitivo”, aplicado ao criador de Zé do Caixão, nunca teve um sentido pejorativo. É provável que para Carlão jamais tivesse, de fato. Acredito em sua boa fé. Mas me permito discordar. Se existe algo que possamos chamar de “primitivo”, esse é o esnobismo. Arte é outra história: da visão nasce a intuição, e todo artista verdadeiro é necessariamente um ser intuitivo.

Luís Rocha Melo (22/03/2016)

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