Fabulario geral do cotidiano das bocas

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Fabulário Geral do Cotidiano das “Bocas” “-­‐Oh, escuta... esse teu amigo ai da viola é de compor também? -­‐É...mas não é lá das minhas preferências não, sabe... -­‐Enfia no cu a tua opinião! Eu só quero saber se ele é bom. -­‐Lá nas bocas tão botando fé nele”. No diálogo dos personagens de Mario Benvenutti e Carlos Ribeiro em As Belas da Billings, filme de 1986-­‐1987 de Ozualdo Candeias, três coisas chamam a atenção: a linguagem, o termo “bocas”, assim no coletivo, para se referir à Boca do Lixo e a referência a este lugar como determinante na legitimação de um artista. A partir dessas questões, há muito a se dizer. É possível – ao menos tentaremos – fazer uma espécie de inventário breve sobre a Boca do Lixo a partir do que esse diálogo simples irradia nele e para além dele. Vamos por partes. PRIMEIRA A primeira coisa é a linguagem simples e desbocada, traço característico de filmes de um período específico do cinema brasileiro (anos 70 e 80) e de uma produção que ficou marcada equivocadamente como pornochanchada, ou, de modo generalizado, como “cinema da boca”. Os filmes de Ozualdo Candeias desde Meu Nome é Tonho (1969) sempre se aplicaram, de maneira muito consciente, a trabalhar o modo de fala dos personagens. Se em muitos outros filmes da boca do lixo a fala popular –com seus tons característicos, léxico rico e particular, gírias e palavrões -­‐ se tornou anos mais tarde uma referência anedótica do cinema brasileiro, em Candeias a fala simples é de uma complexidade rudimentar, enérgica e ao mesmo tempo discreta, que talvez seja – ao lado de Rogério Sganzerla – uma reflexão ativa sobre a fala brasileira, paulista e popular. Mesmo nos filmes ruins da Boca do Lixo, com diálogos mal escritos, mal interpretados, mal encenados havia elementos que destoavam da fala do cinema mais intelectualizado ou de um industrialismo padrão. Em muitos dos filmes da Boca do Lixo falava-­‐se como se fala (ou se falava) nas ruas. Suas construções semânticas peculiares e suas particularidades em um estilo pejorativamente chamado de “inculto”. Esse estilo de fala popular e corriqueira está presente nas letras modernas brasileiras (Guimarães Rosa, Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues), mas no cinema encontrou sua melhor expressão em filmes da Boca do Lixo, sejam os de Chico Cavalcanti, os de José Mojica Marins, de Ozualdo Candeias ou de maneira mais pontual em Carlos Reichenbach e Ody Fraga.


Rogério Sganzerla e Ozualdo Candeias realizaram filmes que trabalharam com consciência, amor e fina sensibilidade o modo de falar da vida brasileira presente no rádio, nos bares, nas feiras livres, do cotidiano do lumpesinato, nos subúrbios dos trabalhadores paulistanos ou migrantes, assim como lançavam atenção também às falas da burguesia boçal e dos políticos populistas. Essa filmografia radicalizou a informalidade presente já nas chanchadas da Atlântida. Isso espanta. Não estávamos acostumados a ouvir no cinema de maneira tão direta e radical modos, expressões, criatividade, ironias e cretinices das falas que ouvíamos todos os dias. Sganzerla em especial, extraía da conversa e das expressões “incultas” e subdesenvolvidas uma riqueza léxica e de sentidos tortuosos como nenhum outro artista realizou no País. Para ele, se o subdesenvolvimento era (e é) cruel e massacrava mulheres e homens, se fazia necessário, apesar de tudo, entender como operava a criatividade e a inteligência popular nos vetores do subdesenvolvimento. As repetições e ideias fixas nas falas de ZéZero (1974) e Meu Nome é Tonho (1969), de Ozualdo Candeias, ou no mosaico de ditos populares e frases de ironia cortante em O Bandido da Luz Vermelha (1968) e A Mulher de Todos (1969), de Rogério Sganzerla, são exemplos da autenticidade mundana dos melhores filmes realizados na Boca do Lixo. Mas não foi só de Sganzerla (em seus dois primeiros longas), Candeias, Mojica e Reichenbach de que foi feita a produção mais vigorosa da Boca do Lixo. Mesmo os piores filmes – alguns são francamente horrorosos – tinham uma sujeira da realidade, energia da rua e uma série de contradições (políticas e sociais) que nos colocavam de frente a um Brasil paradoxal, real e não idealizado, entre a beleza e o horror, o subproduto colonizado e o experimental radical, a generosidade e cafajestagem, o trabalhador precarizado e o aristocrata decadente, o sexo e o moralismo reacionário (que muitas vezes conviviam dentro dos mesmos filmes), machismo e feminismo, entre Carlos Mariguella e Paulo Maluf. Não se trata aqui acatar todos os filmes de maneira positiva e fetichizar os seus modelos e a sua parcimônia, porque muitos deles são de uma precariedade que fracassa na tentativa de expressar uma ideia, e também, em chave perversa, muitos desses filmes usavam elementos de fala e representação para fazer caricaturas preconceituosas de gays, migrantes, mulheres, pobres e negros. Ou seja: é preciso fazer as distinções, pois a Boca do Lixo é também o Brasil e suas contradições violentas. SEGUNDA A segunda coisa que chama a atenção na fala de As Belas da Billings que abre o texto é o coletivo “bocas”. O personagem Jaime fala “nas bocas” se referindo ao quadrilátero da Boca do Lixo em São Paulo que inclui a Rua do Triunfo, a rua Vitória e suas adjacências, no bairro da


Luz em São Paulo, trecho que anos depois do fechamento de comércios, hotéis e produtoras ficaria conhecido como cracolândia. Quando Jaime diz “bocas”, revela de que o universo da Boca do lixo foi mais amplo do que imaginamos, ainda que o modo de se referir à boca no plural não almeja falar em quantidade, trata-­‐se mais de um estilo de linguagem. Mas de qualquer modo, “nas bocas” parece adequado e o texto vai se apropriar desse sentido de variedade e quantidade. Candeias foi, além de cineasta enorme, um documentarista dedicado a registrar com filme e foto a vida na(s) Boca(s), o que inclui os moradores da região, os profissionais técnicos e artísticos nos bares (em especial o Bar Soberano), as festas, o trabalho cotidiano, com apreço e apuro inéditos. Por mais que ele em sua obra ele tenha realizado ficções, as próprias ficções faziam esse documentário da região. Travestis, operários moradores de pensões, prostitutas, botequeiros, donos de espeluncas, atrizes, críticos de cinema, diretores e produtores são a fauna de seus filmes e fotografias. Vemos que a Boca são muitas bocas, o cinema era uma das dimensões da Boca do Lixo que convivia (e se deixava afetar em muitos casos) com a marginalidade, moradores de cortiços e operários. Essa imagem que apreendemos nos filmes de Ozualdo Candeias não era a imagem do Brasil e do cinema brasileiro que muitos desejavam. Ela inclusive se tornou um “trauma” em uma fatia do público de cinema brasileiro que se acostumou a dizer que não gostava de filmes brasileiros porque neles só tinha palavrão, miséria, favela, macumba, sexo, mulher pelada em filmes toscos, mal feitos e, segundo o gosto duvidoso dos detratores, de franco mau gosto. Deu-­‐se então, nos anos 90, o cinema patrocinado da Retomada e hoje o padrão Projac parece não incomodar esse mesmo público. Não avancemos no tempo e continuemos “nas bocas”. Como são muitas bocas em uma só, tínhamos lá também filmes que eram resultado dos gostos, modos e cultura de uma classe paulistana mais alta e cosmopolita. O cinema de Walter Hugo Khouri é um exemplo emblemático. Em filmes como O Palácio dos Anjos (1970), O Último Êxtase (1973), Convite ao Prazer (1980), Eros – O Deus do Amor (1981) e Amor Estranho Amor (1982), o diretor demonstra um rigor estilístico raro, com referências à pintores e à arquitetura moderna, filosofia e cineastas como Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, William Wyler, e cinematografias como a do cinema japonês, italiano e etc. Khouri começou antes, é verdade, e nos anos 50 fez filmes que absorveram lições de luz, sombra e moral dos filmes noir americanos. Nos anos 60, se aplicou a filmes mais existencialistas, que eram o horror para a turma politizada do Cinema Novo que o acusavam de colonizado e decadente, para ficarmos nos termos mais gentis. Nos anos 70 Khouri continua com preocupações intelectuais, estéticas e espirituais, mas dentro das demandas do cinema das produtoras da rua do Triunfo: mulheres nuas, sexo, estrelas do céu da boca (Sandra Bréa, Aldine Muller, Helena Ramos, Patrícia Scalvi,


Kate Lyra , Nicole Puzzi) e títulos sugestivos que misturavam classe e safadeza. Nessa linha também tivemos Alfredo Sternhein, o Alfredinho, e, em uma chave diferente, Jean Garret, que era sofisticado menos por causa de seus temas e mais pelo seu trabalho plástico, na lida com as cores e construção de mise en scène, quase sempre impressionante. Ody Fraga era muito pouco preocupado em fazer cinema de burguês, ainda que gostasse de colocar referências e citações eruditas em meio às sacanagens e depravações. Nas bocas também haviam os produtores: Oswaldo Massaini e seu filho Anibal, Antonio Polo Galante e seu sócio Alfredo Palácios e os atores-­‐produtores David Cardoso (um campeão de bilheteria) e Claudio Cunha, que também era diretor de talento, responsável pelo grande Amada Amante, emblema maior do que foi apelidado de pornochanchada. Esses produtores, muitos deles de bom faro comercial e formação cultural simples, muitas vezes eram parceiros ou financiadores (voluntária ou involuntariamente) de obras transgressoras como O Pornógrafo (1970), de João Callegaro; A Mulher que Inventou o Amor (1979), de Jean Garret; A Ilha dos Prazeres Proibidos (1978) e Império do Desejo (1981), de Carlos Reichenbach. “As bocas” são muitas. Carlos Reichenbach mereceria um capítulo especial. Foi técnico (fotógrafo), diretor e ator nas bocas. E mais do que a vivência e o trabalho lá, foi o cineasta que, se utilizando do repertório e dos códigos do cinema da Boca do Lixo, impôs uma marca pessoal que não rejeitava os elementos mais populares daquele cinema. Diferente de outros cineastas com desejo de autoria, como Khouri ou Sternheim, nos seus filmes convivia com graus igualmente fortes características da cultura e do cinema popular e referências eruditas. O pensamento anarquista, o comentário político e os gestos poéticos transgressores delineavam uma síntese preconizada pelos modernistas brasileiros. A chamada “alta cultura” perdia a solenidade extramundana e a chamada “baixa cultura” era reconhecida na sua força que nada tinha de pequena (baixa) ou simplória. Diferente de seus colegas com ambições artísticas mais declaradas e evidentes, ele não recusava a chanchada e não usava os códigos da boca (sexo e nudez) como um incômodo necessário. Ele extraía criatividade e pensamento político desses códigos corriqueiros, transfigurando-­‐os sem, no entanto, menosprezá-­‐los. A Ilha dos Prazeres Proibidos, O Império do Desejo e Extremos do Prazer (1983) eram filmes sobre a perseguição política, a clandestinidade e a contracultura. Amor Palavra Prostituta é, provavelmente, a maior pedrada na mentalidade desenvolvimentista criada pelo governo militar nos anos 70 somada à boçalidade do arrivismo social. É também um filme sobre o machismo e o reacionarismo de um certo lumpesinato branco paulistano. É o maior melodrama já feito no Brasil e um dos maiores filmes do cinema brasileiro. A obra de Carlão Reichenbach é quintessência do que o cinema moderno brasileiro sonhou: cinema popular, político e


autêntico. Menosprezado por muitos de seus contemporâneos que não conseguiam digerir seu solar, insinuante e complexo estilo, cada vez mais ele ganha lugar de destaque na história do cinema brasileiro. O experimental de aspecto mais vanguardista teve uma incursão na Boca do Lixo via O Bandido da Luz Vermelha, seguido de Audácia! (1969), de Antonio Lima e Carlos Reichenbach, passando por Orgia O Homem que Deu Cria (1971), de João Silvério Trevisan e os filmes de Jairo Ferreira, O Vampiro da Cinemateca (1977) e O Insigne Ficante (1980). Os filmes de Jairo Ferreira e João Silvério Trevisan não são expoentes típicos da produção das bocas, sequer foram produzidos por algumas das produtoras lá estabelecidas. Mas os dois realizadores possuíam vínculos estreitos como parte dos diretores e dos filmes lá realizados. Tanto Orgia quando O Vampiro da Cinemateca, trabalham sob o emblema do lixo. Jairo Ferreira em seus filmes super-­‐8 herdam de Sganzerla a Boca do Lixo como imaginário amplo da cultura moderna e subdesenvolvida e de seu imaginário em seus dois longas, além e ter escrito “Cinema de Invenção”, livro-­‐inventário sobre cinema de invenção (udigrudi, marginal) que trata, inclusive, de parte da produção experimental realizada na Boca do Lixo por seus amigos. Horror, melodrama, policial, comédia erótica, religioso, filme patriota-­‐fascista, experimental radical, filme de cangaço e western. Muitas “bocas”. TERCEIRA Terceiro e último ponto, retomando o diálogo de As Belas da Billings. A resposta de Jaime ao personagem cafajeste de Mario Benvenutti se refere à boca com um lugar que fornece um certo tipo de parâmetro cultural legitimador. “Lá nas bocas tão botando fé nele”, ou seja, o artista sertanejo interpretado por Almir Sater está legitimado por um espaço onde, como vimos até então, mora todo tipo de gente das classes populares e marginalizadas. Jaime circula por esses espaços com livros embaixo do braço que segundo seu interlocutor nesse diálogo, não é lido por ele, pois Jaime seria um ignorante mentiroso que “suvaqueia livros pra enganar os trouxas”. Quando perguntam a ele o que carrega, Jaime diz com desfaçatez quase mudando de assunto, “ah...isso é cultura...”. Ele carrega livros “Fabulário Geral do Cotidiano”, de Charles Bukowski, e “Crítica do Suplemento Literário”, de Paulo Emilio Salles Gomes. Esses dois livros são jogadas de gênio de Candeias em As Belas da Billings, pois, somados e colocados lado a lado, resumem muito bem o que tratamos aqui neste texto e o que está sendo dito e mostrado pelo filme. Bukowski como cronista do cotidiano dos pequenos e humilhados está muito próximo de Ozualdo Candeias: artistas misturados à realidade que observam, encontrando poesia no que a uma primeira vista é sujo, boçal, sórdido, defeituoso, paupérrimo e criminoso. Já Paulo Emilio, autor do outro livro que ele suvaqueia, foi quem escreveu que o


subdesenvolvimento é uma condição do cinema brasileiro. A modernidade do cinema brasileiro, via Paulo Emilio, surgiu com a consciência de seu subdesenvolvimento. As bocas de Candeias são também um lugar de cultura e subdesenvolvimento. Da Boca do Lixo – na câmera de Candeias -­‐ surgem ideias e um fabulário específico que responde de maneira frontal aos apontamentos de Paulo Emilio Salles Gomes e Glauber Rocha sobre cinema, estética, cultura e subdesenvolvimento. Os ambientes das bocas possuem artistas, intelectuais, técnicos, comerciantes, prostitutas, donos de pensão, cafetões, pequenos traficantes, moradores de rua, músicos sertanejos, migrantes, bandidos e operários. As contradições são flagrantes e é rica a diversidade de pessoas. A Boca do Lixo, essa do cinema, surge dos destroços das tentativas malogradas de industrialização burguesa do cinema paulista. Surge das ruínas do capitalismo subdesenvolvido. Nas “bocas” as produtoras e distribuidoras se instalaram nos anos 60 por causa da proximidade com a estação de trem, que transportava filmes para o interior. De lá chegavam também gente do interior de São Paulo e de outros estados. Nas bocas o crime, a prostituição, as pensões e os cortiços já existiam dos anos 50 e 60 e com a chegada do crack no fim dos anos 80 esse cenário de arruinou completamente. Ozualdo Candeias filmou as Belas da Billings na segunda metade dos anos 80 e vemos que já naquele momento as bocas do cinema não eram mais as mesmas, pois com a chegada do cinema pornográfico e as mudanças na economia, outros tipos de produção de gênero (horror, comédia, melodrama e etc) desapareciam vertiginosamente, as produtoras fechavam suas portas e muitos dos trabalhadores de cinema ficavam desempregados e mudavam de atividade. Há uma cena de As Belas da Billings no bar Soberano, ponto de encontro nos anos 70 e 80 dos trabalhadores de cinema das bocas. Ali vemos cineastas (Ody Fraga, Carlos Reichenbach, João Calegaro, o próprio Candeias), críticos com um histórico profissional nas bocas (Inácio Araújo e Jairo Ferreira), frequentadores de bar e trabalhadores em geral. A cena é bonita e triste. Os cineastas conversam ao pé do ouvido como se conspirassem algo. A imagem realizada em 1986 traz já um sentimento de evocação do passado. Candeias fez o último registro do de uma certa boca. Uma “boca” entre muitas “bocas”. Francis Vogner dos Reis


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