ANAISDASCAP ENTRE ASSOMBROS E SONHOS LAMPEJOS DE PRIMAVERA
Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)
XII SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL
ANAIS DA SCAP Entre assombros e sonhos lampejos de primavera
PUC-MG Belo Horizonte 2020
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
S471a
Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel (12. : 2020 : Belo Horizonte, MG) Anais da SCAP [recurso eletrônico] : entre assombros e sonhos lampejos de primavera / XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel ; organizadora: Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2020. E-book (103 p. : il.) ISBN: 978-65-88583-01-2
1. Pandemia. 2. Direitos humanos. 3. Direitos fundamentais. 4. Democracia. 5. Meio ambiente. 6. Racismo. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Campus São Gabriel). III. Título. CDU: 342.7(100) Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086
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EXPEDIENTE
Organização e Edição:
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:
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Coordenador de Pesquisa:
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Pastoral Universitária:
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva
Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues
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SUMÁRIO
EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12
A TERRA É UM ORGANISMO VIVO
Aílton Krenak 17
ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O DESAFIO DE IDENTIFICAR E ENFRENTAR O RACISMO À BRASILEIRA
Rodrigo Ednilson de Jesus 54
A DEMOCRACIA E A LIMITAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA
ASSOMBROS E SONHOS: PANDEMIA, OLIGOPÓLIOS INTERNACIONAIS E NOVOS ARRANJOS COMUNICACIONAIS
Bruno Wanderley Júnior
Roseli Figaro
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EDITORIAL O ano de 2020, provavelmente,
herdamos e intensificamos em relação
será lembrado como o ano em que
à destruição do planeta e às injustiças
a Terra parou, devido à pandemia
sociais, questões que estão muito mais
de Covid-19 que precipitou uma
interligadas do que pode parecer.
ruptura no funcionamento da vida em sociedade, de tal forma que, além de somar-se a outras crises, evidenciou os problemas enfrentados resultantes da emergência climática, do aumento das desigualdades, das ameaças à democracia e da destruição dos biomas da Amazônia e do Cerrado brasileiro, que por sua vez, abre caminho para o surgimento de novas pandemias. Esta ameaça invisível nos faz indagar sobre os humores da Terra e sobre a correlação de nossas vidas com os demais seres vivos. A pausa involuntária nos faz pensar sobre nossos modos de vida regidos por uma cruel aceleração da lógica de superprodução e de consumismo. As mazelas ambientais, sociais e políticas presentes nas sociedades emergem na pandemia, apontando para a urgência de buscarmos novos rumos. A pandemia está a nos dizer
Por já terem vivido vários fins de mundo, as lideranças indígenas têm sido muito convocadas nestes tempos, e assim, nos aproximamos de Aílton Krenak, com quem conspiramos pela chegada da primavera. São suas palavras que abrem estes Anais com o texto A Terra é um organismo vivo. Krenak alerta para a necessidade de que a primavera seja produzida em nossas subjetividades, que sejamos capazes de expandir nossa percepção sem os condicionamentos a que estamos acostumados, e que devemos observar ao nosso redor, como os jovens do Xingu, que perceberam que as andorinhas não estavam voando na mesma ocasião, que as bananas estavam apodrecendo ainda de vez e que os cajus caíam antes de amadurecer, e de que tudo isso são sinais de que estamos indo além do que a Terra nos autoriza.
que o futuro pode vir a ser muito hostil
Assumir um tratamento mais
para os humanos. Entre assombros e
respeitoso com a Terra, compreende
sonhos, estamos experimentando uma
também estabelecer um outro
necessidade inadiável de reflexão e
pacto entre nós humanos que
transformação.
compartilhamos a vida no planeta,
Não podemos mais delegar para
o que implica reconhecer e nomear
gerações futuras o desastre que
todas as injustiças para que possamos
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contestá-las. Rodrigo Ednilson de Jesus
“iremos ensinar o que elas precisam
nos apresenta Alguns apontamentos
saber, que é a filosofia, a sociologia,
sobre o desafio de identificar e
o saber pensar e analisar a realidade
enfrentar o Racismo à brasileira para
para poder se movimentar nesse
combatermos as desigualdades que
mundo, se defender, se preparar
são históricas no nosso país.
e ter sonhos realizados? ”
Assim como nos aponta Aílton Krenak
Vislumbrar outros futuros exige um
e Rodrigo Ednilson, as injustiças estão naturalizadas em narrativas que predominam na nossa cultura, e Bruno Wanderley vai salientar em A democracia e a limitação dos direitos fundamentais em tempos de pandemia como a promoção dos direitos garantidos na Constituição de 1988 foi substituída por uma lógica
alargamento do pensamento e um exame das estratégias de sobrevivência periféricas. Em março de 2020, Barbara Duriau lançou um grupo público no Facebook com o objetivo de conectar pessoas ao redor do mundo no período de isolamento social: o View From My Window. Apesar de não ser um critério do grupo, as imagens
de mercado.
compartilhadas são, em sua maioria,
A partir desta questão colocada por
paisagens espetaculares. Inspirado
Bruno Wanderley, Roseli Figaro vai
na ideia do grupo, Rodrigo Pinheiro
examinar a narrativa
Fernandes, artista e grafiteiro, produziu
tecnomercadológica potencializada
o ensaio fotográfico De Quebra, um
pela algoritmização da vida em
olhar do cotidiano de sua comunidade,
Assombros e sonhos: pandemia,
Vila Maria, na região nordeste de Belo
oligopólios internacionais e novos
Horizonte. Formada majoritariamente
arranjos comunicacionais.
por trabalhadores, cujas funções não
A preocupação com os rumos da
permitiram o isolamento em casa,
educação, entendendo o seu papel
mas acostumada a criar redes de
primordial para produzir futuros,
solidariedade, a quebrada não perde
está presente em todas as falas e
de vista o horizonte.
Roseli Figaro alerta para a necessidade de refletirmos criticamente sobre o que está sendo ensinado a nossas crianças, questionando se continuaremos a
vistas de lugares privilegiados, de
Estes são os Anais da SCAP: Entre assombros e sonhos, lampejos de primavera.
ofertar uma formação utilitarista ou
Leiam e reflitam.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel
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A TERRA
É UM ORGANISMO VIVO1 Ailton Krenak2
Eu gostaria de me dirigir a essa
vamos enfrentar do ponto de vista
possível audiência que nós temos
dessa sociedade global que nos
pela internet, porque, se nós
constitui e que nós aprendemos
estivéssemos fazendo um encontro
no século XX a pensar como uma
presencial, a gente estaria vendo o
humanidade, vivendo em todos os
rosto uns dos outros, estaríamos
continentes da Terra.
nos afetando com a presença uns dos outros, nos auditórios,
E fechamos o século XX com essa
nos espaços onde a universidade
ideia de uma humanidade sendo
acolhe esses eventos celebrativos.
abalada pelo anúncio de que essa
Agora nós estamos aqui imaginando
casa comum que nós habitamos,
que tem gente atrás dessa telinha e
a Terra, ela tem limites.
que possa ter mesmo uma audiência
Então, pensando nesse programa,
interessada nesses encontros.
eu achei que seria oportuno falar para a juventude que provavelmente
Eu considerei que seria uma
nos assiste e que é a maior parte da
oportunidade de falar com jovens.
comunidade acadêmica,
Estou imaginando que estou
a grande população que frequenta
falando com aquela geração que vai
os corredores, as salas e os
enfrentar o desafio de dar conta das
auditórios das nossas universidades
mudanças climáticas, das migrações
e laboratórios, essa turma que está
e das grandes incógnitas que nós
na idade de nossos filhos de 15, 17
1
Conferência proferida por Aílton Krenak na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 08 de setembro de 2020.
2 Filósofo, Poeta, Escritor, Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, organizou a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia. Comendador da Ordem de Mérito Cultural da Presidência da República e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
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e 20 poucos anos de idade, e que
velocidade do tempo. Aqui em casa
tem um desafio enorme pela frente.
tem gente com 9, 10 anos de idade, tem uma menina com 17 anos e os
Vamos imaginar que todo mundo
meninos adolescentes aqui da aldeia.
que está entre 15 e 30 anos de idade
Todos eles apontam no cotidiano
recebeu no começo desse milênio o
essa observação de como o tempo
mundo projetado há 50 anos atrás.
está passando rápido.
Essa geração não teve escolha. Ela recebeu o mundo a delivery.
Essa ideia de um tempo passando
No livro Ideias para adiar o fim do
rápido, uma ideia que pode ser
mundo, eu convoquei essa imagem
percebida no comum, no cotidiano,
de uma geração produzindo efeitos
é muito mais aguda e tem muito
que vão configurar um mundo que
mais consequências quando nós
só vai ser recepcionado pela geração
pensamos no tempo em relação a
futura. Eu chamei isso de um
essa casa comum que nós vivemos
mundo a delivery. Seria como estão
que é o planeta Terra. O nosso
vivendo hoje essas pessoas em
magnifico reitor Dom Mol se referiu
seus apartamentos, ligando para a
ao Papa Francisco, dizendo que
farmácia ou para o açougue ou para
esse mundo que nós habitamos
a padaria e pedindo sua refeição,
e compartilhamos é a nossa casa
fazendo suas compras, fazendo
comum. Essa percepção de que
suas encomendas, nesse tempo
tudo que acontecer a essa casa vai
virtual, em que uma parte da nossa
afetar cada um de nós é o sentido
subsistência, da nossa organização
de comum que essa casa tem.
cotidiana, é feita a delivery. E a consciência sobre essa casa Eu não imaginava que fosse
comum, ela foi também a motivação
compartilhar aqui, nessa região do
do último presidente da União das
mundo onde nós vivemos, uma
Repúblicas Soviéticas, Sr. Mikhail
virtualidade do cotidiano e um
Gorbatchov, que fez uma grande
afastamento tão radical dos sentidos
mudança interna em seu país,
da vida que minha geração que está
naquelas nações que constituíram
agora com 60 e poucos anos,
o bloco União Soviética, quando
70 anos, projetou para si mesmo e
ele iniciou uma grande campanha
para a futura geração.
mundial para fazer a perestroika.
Nós estamos sendo surpreendidos com a velocidade com que as
A perestroika constituía exatamente
mudanças acontecem. Não são só
em fazer uma mudança radical dentro
as pessoas com mais de 40, 50 anos
da experiência de desenvolvimento
que experimentam esse sentido de
político, econômico e social daquelas
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repúblicas que estavam denunciando
século XX anunciavam a promessa
a gravidade das mudanças climáticas
de um mundo melhor. Um mundo
no final da década de 1970 e 1980,
melhor onde coubessem as nossas
quando já se apontava para uma crise
diferenças, onde coubessem
do clima, em que o tipo de consumo
as diferentes escolhas que nós
e o tipo de disputa que estava
tínhamos que fazer. Mas nós
havendo entre os blocos socialista
fomos todos engolfados por uma
e capitalista podia levar-nos a um
perspectiva de mercado e de
rápido fim de mundo.
consumo que nos transformou numa humanidade desigual e que
Digamos que era um fim de mundo
consegue consumir um planeta Terra
anunciado no fim do século XX.
até maio, junho de cada ano.
Nós conseguimos conviver com narrativas sobre fins de mundo
É o que nós vínhamos fazendo
em quase toda a segunda metade
desde 2010, 2012. Nós começamos
do século XX devido às relações
a consumir dois planetas ao longo
conflitantes que os blocos e países
de um ano. A capacidade de
alimentavam entre si. O anúncio
suprimentos que o planeta Terra tem
da globalização no fim da década
para essa nossa humanidade global
de 1980 e 1990 animou muita
tem fim. Ela não pode ser consumida
gente a pensar que nós íamos
no ritmo que nós treinamos fazer
finalmente alcançar aquela ideia
no século XX. O século XX foi muito
de uma humanidade capaz de ter
enganoso ao introduzir o consumo
responsabilidade comum sobre a
em todas as regiões do planeta.
nossa Casa Comum.
Mesmo nas regiões mais remotas do Pacífico Sul, na África, na Ásia,
Entre o Papa Francisco e o Mikhail
o padrão de consumo se tornou
Gorbatchov, nós temos quase
o mesmo. Todo mundo comendo
30 anos de anúncio sobre a
comida empacotada, processada,
necessidade de olharmos uns para
superprocessada, perdendo a
os outros e avistar uma perspectiva
perspectiva de onde vem aquilo que
comum que nos dê sentido
nós bebemos e comemos.
como humanidade, mas nós não conseguimos ainda configurar essa
A água passou a ser uma commodity
humanidade prometida.
em muitas regiões do planeta e vem
Prometida no cinema, na literatura,
sendo disputada de uma maneira
nas artes, na política.
tão brutal que nós chegamos no caso do Brasil a pôr em risco a
A maior parte das mudanças
nossa soberania com relação ao
políticas que aconteceram no
suprimento de água potável para as
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comunidades ribeirinhas. Foi o caso,
fricção com a nossa natureza,
por exemplo, da bacia do Rio Doce,
verbalizando e traduzindo a
calcinada pela lama da mineração
natureza que nos envolve, que
e que deixou milhares de famílias
nos protege, que nos dá remédio,
à margem desse maravilhoso Rio
comida. Tudo nós tiramos da terra.
Doce, que os Krenak chamam de
Essa observação do meio ambiente
Uatú, esse nosso avô, ele está em
surgiu de uma sociedade que já
coma pela lama da mineração.
estava achando que podia produzir a vida, podia manipular a vida
O Paraopeba e muitas outras bacias
de uma maneira soberana e que
hidrográficas estão sujeitas a esses
não precisava respeitar os limites
danos, os nossos aquíferos.
naturais da biosfera do planeta Terra.
Então temos a vantagem
É aqui na biosfera do planeta Terra
circunstancial de habitar um país
que nós vamos ter que resolver
continental, mas nós temos as
todas as nossas perspectivas de
desvantagens de não conhecermos
existência, tanto no campo da
o que nós temos e de tratar de uma
ciência, do desenvolvimento,
maneira indiferente o futuro desses
no campo da política, nas demandas
rios, mananciais e nossas florestas.
que nossas diferentes comunidades apresentam para viver, como ter
Talvez seja em razão do meu
um território para viver, para comer,
envolvimento com a sobrevivência e
para descansar.
com o direito dos povos que vivem
Todas essas demandas que são
dentro da floresta que precisam dos
comuns à comunidade seja indígena,
rios, que precisam de uma natureza,
seja comunidade urbana, que é ter
como ficou pensado essa separação
o ar puro, água para beber, ter um
entre a cultura e a natureza,
lugar para repousar com segurança,
o homem e a cultura e a natureza,
viver numa comunidade que se
esse dilema que me faz pôr em
implica uns com os outros, que
questão o porquê de eu carregar
se afeta uns com os outros e que
comigo o atributo ou a designação
constrói perspectiva de futuro.
de ambientalista, quando, na verdade, eu sempre percebi
Construir perspectiva de futuro não
a vida, a terra e tudo que existe
é só prometer o futuro, não é só
como natureza, eu mesmo como a
desejar um bom futuro. É construir
natureza, e tudo ao meu redor
a cada dia as possibilidades de
como natureza.
nós continuarmos convivendo, estabelecendo cooperação entre
Aquilo que nós produzimos como
essas diferentes comunidades,
cultura é a expressão da nossa
diminuindo as divergências e os
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24
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preconceitos que ainda são grandes
negando a ciência. Quando é que
e que implicam em práticas de
nós negamos a ciência? Negamos
discriminação, racismo, segregação,
a ciência quando dizemos que não
entre nós mesmos, essa mesma
tem uma pandemia e que é só uma
comunidade de diferentes grupos
gripezinha. Negamos a ciência
sociais que constitui a nossa
quando nós dizemos que a Terra é
sociedade, nossa comunidade
plana. Negamos a ciência quando
brasileira.
dizemos que não tem mudança climática, que sempre foi assim.
Nós temos tanta ruptura entre os
Nós sabemos que as mudanças
nossos campos de imaginar mundo
climáticas são fatos objetivos.
e desejar mundo que hoje nós compartilhamos a experiência de
Em 1976, um relatório com o nome
confrontar uma pandemia que mata
de Nosso Futuro Comum, assinado
e apavora muitas famílias, muitas
pela primeira ministra da Finlândia,
pessoas. E, ao mesmo tempo, temos
teve como coordenadora a senhora
autoridades e instituições públicas
que deu o nome ao relatório
que deveriam estar solidárias e
Brundtland, senhora Brundtland.
próximas a essas famílias que estão
Ele já dizia que se nós
sofrendo, e que, no entanto, estão
continuássemos acelerando
minimizando a crise e, às vezes,
o consumo e a predação dos
negando mesmo que a gente
ecossistemas sensíveis da Terra,
esteja passando por uma tragédia
daquilo que nós chamamos de
humanitária que é o que representa
biodiversidade do planeta, em 35
essa pandemia.
anos nós não teríamos mais como parar esse dano, essa erosão.
Eu não vou insistir no tema da pandemia, porque é amplamente
Ora, de 1976 até agora, já se
divulgado e só não presta atenção
passaram muito mais de trinta anos
e não tem consciência da gravidade
e nós já ultrapassamos o limite.
quem quer negar a realidade.
É por isso que eu digo que nós
Essa experiência social que agrava
estamos consumindo dois planetas
a situação de desigualdade entre
por ano. A Terra não suporta mais
as nossas várias comunidades que
essa pegada dos humanos que
constitui o povo brasileiro, que é
imprimiram no planeta uma marca e
a atitude negacionista, em que
que vem sendo identificada como o
quem deveria estar estimulando o
antropoceno, uma era. Nós estamos
respeito às orientações científicas,
imprimindo uma pegada tão pesada
a divulgação da ciência, apoiando
sobre a diversidade do planeta que
e estimulando a pesquisa está
está causando o desaparecimento
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de espécies e a degradação da vida
gente jogar mercúrio, veneno e
no sentido vasto.
poluição.
Mesmo que uma pessoa tenha
Inclusive o nosso lixo urbano
todo o dinheiro do mundo, ela não
tem como destino as nossas
vai conseguir ter uma vida melhor
bacias hidrográficas. Quem vive
num planeta pesado, num planeta
nas grandes cidades sabe disso.
ameaçado. Ora, se nós chegamos
Na época das chuvas, as suas
a extinguir algumas espécies até
cidades ficam inviáveis. Elas ficam
aqui, ameaçando a nós mesmos de
inviáveis porque a água não tem
ficarmos sem casa, sem essa casa
seu caminho próprio. Então, nós
comum, nós precisamos prestar
temos um conjunto de questões
atenção naquilo que a ciência afirma,
que essa juventude pode enfrentar
naquilo que os estudos da ecologia,
para ajudar que o mundo que eles
da agrofloresta e da própria prática
estão herdando, esse delivery que
mesmo da produção de alimentos,
a geração que antecedeu a vocês
que é apoiada na atividade dos
produziu, que ele possa ser melhor,
agrônomos, nos cientistas que
que ele não seja tão difícil de obter
pensam o solo, dos especialistas
água, comida e abrigo para essa
do solo que vêm denunciando o
humanidade que nós pensamos ser.
crescente dano da agricultura, o dano que a monocultura causa ao solo.
Eu digo humanidade que nós pensamos ser, porque, se nós fomos
O solo é alguma coisa que acaba
animados a pensar que estávamos
também, assim como a água.
constituindo uma humanidade
Nós acostumávamos dizer
planetária, global, que a ciência
antigamente que no nosso planeta,
e o conhecimento iam nos dar as
que tem dois terços de água
condições para nós fazermos a
ocupando todo o planeta,
gestão da vida nesse planeta,
não precisaríamos de nos preocupar
há muito tempo a gente perdeu
porque teríamos muita água
essa expectativa.
sempre. Nós vamos ter muita água sempre, vamos ter sempre a mesma
Nós estamos diante de um dilema,
quantidade de água que deu origem
dos refugiados na Europa, dos
a nossa experiência nesse planeta
refugiados aqui também na América
maravilhoso que é a Terra, esse
Latina. Se você for para Belém, para
planeta azul. Só que a água está
Manaus, ou mesmo Boa Vista, lá em
ficando doente. A água está ficando
Roraima, você vai ver um tanto de
indisponível para o uso adequado
gente do Caribe que está imigrando,
que nós podíamos fazer antes da
ou mesmo da Venezuela, dos países
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vizinhos da bacia Amazônica,
Vocês estão vendo o que está
imigrando para além das fronteiras
acontecendo nos Estados Unidos
e entrando no Brasil, demandando
nas últimas semanas. Um abalo
necessidades econômicas,
em uma sociedade que se achava
necessidades de várias ordens.
estabilizada e com governança. Eles estão enfrentando o desafio
Então o Brasil, assim como outros
que eles não foram capazes de
países, vai ter que se preparar para
superar no século XX, que é o dilema
lidar nos próximos 20 anos com o
do racismo estrutural. Esse mesmo
grave dilema dos refugiados.
racismo estrutural que afeta a vida
Temos que ser capazes de pensar
de milhares de pessoas no resto da
como criar infraestrutura e condições
América Latina e que no Brasil tem
de acesso a todos aqueles que
emergido com marca de racismo
constituem a nossa comunidade.
contra os indígenas também.
Aquilo que é essencial à vida, considerando, por exemplo,
Um ministro da Educação, antes de
os objetivos do milênio que deveriam
sair do Brasil para ocupar um cargo
estar na agenda de qualquer
na diretoria do Banco Mundial, em
governo, municipal, estadual, governo
Washington, foi gravado dizendo:
federal. Ninguém vê onde foram
“eu odeio essa expressão povos
parar essas recomendações, esses
indígenas”. Ora, isso é racismo.
compromissos para que a gente
E proferido pelo ministro da
pudesse constituir ao longo de duas,
Educação é racismo e é uma ofensa
três décadas, uma plataforma em
à formação desse país que, como
que os direitos humanos, a igualdade,
todos sabem, foi constituído,
os objetivos de cooperação e o
assim como toda a narrativa do
cuidado com a nossa vida comum
mito de origem do Brasil, por índios,
aqui no planeta tivessem constituído
negros e brancos.
um programa comum, de todos os povos, para além de nossas
É uma ofensa para os povos
fronteiras.
indígenas que um ministro da Educação fale, mesmo que no
Então, a minha oportunidade de
privado, que odeia a palavra povos
me dirigir a vocês, ela vai ocupar
indígenas. Os povos indígenas são
muito mais o campo do pensamento
uma parte indispensável de qualquer
político e a relevância da ciência do
narrativa sobre o Brasil, anterior ao
que trazer para vocês visões sobre
Brasil, e deveriam ser respeitados na
a arte. Mas eu creio que a geração
sua originalidade de serem os povos
de vocês tem o desafio de pensar
que estavam aqui quando Portugal
o mundo onde caiba a diferença.
aportou na nossa praia.
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Eu queria sugerir a vocês que vissem
a todas as senhoras, senhores,
um documentário que passa na
a essa juventude que, quem sabe,
Netflix com o título de Guerras do
tenha ficado diante da tela para
Brasil. Vocês vão ter a oportunidade
ouvir um homem do povo Krenak
de entrar em contato com diferentes
falar sobre esse tempo que nós
narrativas sobre a constituição dessa
vivemos, sobre a contemporaneidade.
nação brasileira, a sua complexa
No livro Ideias para Adiar o Fim do
formação e a razão pela qual os
Mundo vocês vão poder encontrar
povos indígenas deveriam ter um
um pouco mais das questões que eu
lugar de honra na constituição dessa
levanto acerca de pensarmos que
nação brasileira e nunca serem
somos uma humanidade,
ofendidos por uma autoridade do
mas insistimos nas nossas
ministério da Educação.
desigualdades e em privilégios intoleráveis que nós temos que
Nós estamos falando em um
superar para podermos ao menos
ambiente da universidade
legar às novas gerações as
e a universidade tem sido
perspectivas de um mundo possível.
insistentemente atacada também
Um mundo de onde nós vamos ter
por pessoas que ocupam um lugar
que mitigar os danos já causados
de destaque na vida política do
pelas gerações anteriores.
nosso país, principalmente aqueles que estão com mandato executivo.
Eu achei muito interessante
Mas, também, você ouve gente que
que o Papa Francisco tenha se
está no Congresso falando coisas
referido à ancestralidade como
sobre a nossa formação como país,
um valor a ser resgatado. Eu fiquei
sobre a nossa constituição e sobre a
muito feliz porque, de alguma
própria ideia do nosso futuro como
maneira, a narrativa do século
se fosse um desprezo pela história
XX, principalmente a narrativa do
do nosso povo, pela diversidade
Ocidente, ela fez uma escolha tão
cultural e pela ainda possibilidade
individualista que as gerações foram
de nos constituir de verdade numa
se descolando uma das outras e
nação solidária. Solidária entre
a própria ideia de ancestralidade
nós que nos reconhecemos como
ficou como legado de povos
brasileiros e solidária com os outros
remanescentes, como se quem tem
povos, para que a gente possa ir
a ancestralidade fossem somente os
no sentido de construir essa casa
afrodescentes, os povos ameríndios,
comum, essa nossa casa comum.
os indígenas. E ancestralidade é o que nos torna todos humanos.
Eu agradeço muito a oportunidade
Não é uma perspectiva para além
de dirigir a minha fala a todos vocês,
do dia que nós vivemos hoje,
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mas é tudo o que nós somos de
eles têm uma convivência próxima
memória, tudo o que nós somos de
dentro do território do Xingu e
perspectiva, de subjetividade
observaram que a ecologia que eles
e de sonhos.
acompanhavam ao longo do ano, os ciclos da vida que eles observavam
Então, se nós estamos vislumbrando
estavam mudando, porque muitas
primaveras, que a primavera seja
das coisas que eles coletavam ao
também produzida para além de
longo do ano estavam se perdendo.
buscar a primavera na paisagem,
A banana antes de ficar de vez,
primavera de paisagens, que ela seja
pretejava.
produzida em nós, na subjetividade
O caju caía antes de madurar.
que nós somos capazes de expandir.
E observavam que as andorinhas não
Aquela subjetividade que é capaz de
voavam mais na mesma ocasião.
produzir os paraquedas coloridos,
Elas não faziam o mesmo trajeto e
que não são artefatos, mas são
não indicavam a época da chuva,
dispositivos de pensar, pensar
a época da colheita, a época
sem corrimão, como dizia Hannah
de queimar. Então eles foram
Arendt, pensar por si próprio.
observando nos sinais da cultura, do conhecimento sobre a ecologia
O livro Ideias para Adiar o Fim do
daquele território. Eles observaram
Mundo, assim como O Amanhã não
as mudanças climáticas que os
está à Venda que antecederam um
cientistas estavam monitorando
que saiu agora em agosto com o
pelo painel do clima e produziram
título A Vida não é Útil são uma
pequenos filmes com o título
expressão clara de pensar sem
Para Onde foram as Andorinhas.
corrimão. É quando você consegue
Observação de que as andorinhas,
observar o mundo ao seu redor e
assim como todos os pássaros,
perceber uma disrupção da linha de
os peixes, a vida é capaz de nos
entendimento dos eventos que estão
sinalizar quando nós estamos
acontecendo, sejam eles sociais,
exagerando, quando nós estamos
políticos ou ambientais, é você ser
indo além do que a Terra nos
capaz de fazer como os pássaros,
autoriza.
como as abelhas, como as borboletas.
A Terra é um organismo vivo. Eu tenho repetido em várias
Os nossos parentes lá do Xingu,
oportunidades, a Terra é um
há dois anos atrás, observando a
organismo vivo. Os povos indígenas
mudança climática, os jovens daquela
das Américas sempre disseram que
comunidade, do povo Kamaiurá,
a Terra é a nossa mãe. Os nossos
do povo Mehinako, do povo Aweti,
parentes da América Latina dizem
31
pachamama. E os cientistas agora
desprovidos de qualquer coisa
concordam que esse organismo vivo
material e, podem ter certeza, a vida
é Gaia, tem uma hipótese de Gaia
é um dom que a gente pode fruir,
e tem uma ciência sobre Gaia que
experimentar a cada dia. A vida
indica que o organismo é vivo,
deveria ser experimentada como
tem humor, reage e, como se referiu
uma dança cósmica e não como
ao me receber aqui nesse encontro
alguma coisa útil. Vocês, jovens,
o nosso magnifico reitor Dom Mol,
aprendam com seus pais, com seus
ele disse: “a Terra responde. Se nós a
avós, com seus tios, para além de
atacarmos ela vai responder, ela vai
aprender na universidade, aprendam
responder se a gente estiver sendo
com seus ancestrais. E, nesse
abusado com a vida na Terra”.
sentido, eu faço coro com o Papa Francisco, resgate seus sentidos de
E, de fato, o organismo vivo da Terra,
ancestralidade, não ande sozinho
observado pelos povos indígenas,
pelo mundo. O mundo é um lugar
observado pelos cientistas pelo
para ser sempre compartilhado e a
painel do clima, ele tem a potência
vida aqui na Terra pode ser boa,
de nos corrigir quando nós formos
mas vai depender do tipo de
abusados com a vida aqui na Terra.
pessoas que nós nos constituirmos.
A vida é um dom maravilhoso. A gente não pode imaginar a vida
Muito obrigado pela audiência de
como uma coisa útil, ou utilitária.
vocês.
O título do livro A Vida não é Útil põe em questão essa máquina de que tempo é dinheiro. Pergunta - Mesmo após tantas Ora, a maior parte dos jovens é
décadas de luta, você ainda tem
assolada por esta propaganda de
esperança, vê esperança para o
que o tempo é dinheiro, de que eles
Brasil?
têm que aproveitar sua juventude, porque quando estiverem velhos
Aílton Krenak - A esperança ela me
estarão aposentados e não vão
move no sentido de construir as
ter tanta vantagem nesse mundo
bases materiais, as bases objetivas
materialista, nesse mundo que
para que a gente possa fazer votos
mede a relevância da vida pelo
de um mundo melhor e ter
quanto a pessoa pode ter, e não pela
esperança apoiada no conhecimento.
experiência de ser.
É diferente da esperança que eu chamaria de esperança placebo.
Alguns dos seres humanos mais
Nós estamos vivendo num tempo
interessantes que conheci eram
de pandemia e tem alguns remédios
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33
34
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que você toma uma bolinha de
articulam. Estes são os campos do
açúcar para pensar que aquilo é
conhecimento que são capazes
remédio, que melhora, isso aí se
de dar conta dos desafios que nós
chama placebo. Quando você bate
vivemos: a ciência, a arte e a política.
no ombro de alguém e fala assim:
Se nós formos capazes de exercitar
vai dar tudo certo fique bem, fique
esses campos do saber, nós vamos
tranquilo. Eu chamo esse tipo de
ser capazes de produzir mundos.
esperança, de esperança placebo.
Tem um livro muito bom do nosso
Ela não está apoiada em nada, ela
querido Davi Kopenawa Yanomami
é só uma esperança. E eu acredito
que tem o título de A Queda do Céu,
que nós podemos experimentar uma
uma cosmovisão Yanomami. Esse
esperança com relação à vida, mas
livro é coisa fundamental. Espero
essa esperança deve ser o resultado
que as universidades brasileiras
do conhecimento.
adotem ele, porque ele já está sendo
É por isso que eu associo a ideia de
adotado por universidades na
esperança também com a ciência.
Europa como uma grande novidade,
A ciência tem essa importância.
digamos assim, por introduzir uma
O conhecimento, o saber tem a
outra epistemologia, por
importância de dar a base para a
introduzir uma outra cosmovisão
nossa perspectiva, para a nossa
de humanidade, de sociedade
subjetividade, porque se a esperança
e de mundo. Na narrativa de
é do campo da subjetividade,
Yanomami, esse mundo que nós
ela também deve estar apoiada no
compartilhamos hoje, este planeta
conhecimento. Eu tenho esperança,
onde a gente vive, está na terceira
porque eu conheço as bases
edição. Porque na história antiga dos
objetivas desse mundo que nós
Yanomami, esse mundo já se
compartilhamos.
acabou algumas vezes. E é muito
Sei da complexidade dele.
interessante também que na
A minha esperança não é vã,
história do Ocidente também já
a minha esperança é fundada no
teve um dilúvio. E essa ideia de
conhecimento.
acabar mundos, de fins de mundo, tem muito mais a ver com a nossa
P - Ainda há algo que pode ser feito
percepção de mundo, do que com
para melhorar essa situação em que
a realidade material do planeta
nos encontramos?
Terra onde nós vivemos. Então nós temos um mundo que a gente pode
AK - Há tudo por fazer.
entender que é a nossa criação e nós
E, principalmente, pensando que
temos um mundo que é o planeta
nós estamos tendo um encontro
que nós habitamos.
em que ciência, arte e política se
E, às vezes, a gente confunde essas
36
duas coisas. O planeta que nós
E se nós legamos um passado
habitamos ele é finito, não tem duas,
colonial, racista e preconceituoso,
nem três edições.
nós precisamos cuidar disso.
Mas um mundo que nós imaginamos
Não podemos simplesmente
habitar, ele pode ser criado quantas
embalar esse mundo e passar para
vezes a gente for capaz de imaginar
frente, para a próxima geração sem
mundos. Nós somos capazes de
resolver. Isso significa ter esperança
criar mundo. E esse mundo onde
no mundo.
estamos vivendo agora, se ele não está bom, é porque a gente
P - Como poderemos contribuir
não criou um bom mundo para
efetivamente para a preservação
compartilhar uns com os outros.
dos direitos dos índios na atual
É daí que a gente incentiva que os
conjuntura nacional e estadual?
jovens pensem em mundos melhores
Krenak, você poderia nos contar
do que aquele que estão recebendo
como está a realidade e a situação
a delivery das gerações anteriores.
atual da sua tribo com a pandemia,
E pensar nas nossas relações com
se houve impactos e mudanças
os ancestrais, criticamente também.
necessárias não enfrentadas antes?
Não é porque são nossos ancestrais que tudo que eles fizeram estava
AK - Eu vou responder primeiro a
certo. E nós podemos reverenciar
questão do povo Krenak, porque
os nossos ancestrais e observar
me alegra o espírito saber que o
de maneira crítica o que eles
povo Krenak passou por todas as
configuraram de mundo para nos
difíceis situações do fim do século
legar agora nesse começo de século
20, virou o século 21 consolidando
XXI e que a gente vai legar para
um território, pacificando as relações
as gerações da década de 2030 e
com os nossos vizinhos que no
2040. E, quem sabe, eles vão olhar
século 20 foram muito trágicas e
para trás e dizer: mas que pessoal
resultaram em experiências muito
preguiçoso passou atrás da gente
traumáticas. Vocês sabem que
por aqui, ou que pessoal devasso
houve experiência de militarização
passou atrás da gente por aqui.
da política indigenista dessa região
Então, tem uma responsabilidade
do Brasil e o território Krenak foi
geracional, e isso tem a ver com a
uma espécie de laboratório, onde
ideia da ancestralidade também.
inclusive foi instituído um presídio,
Ancestralidade não é só algo
um reformatório. Então, se você
do campo, digamos, espiritual,
olhar a história de 50 anos atrás,
transcendente. Ele é da ordem
era para o povo Krenak ter
também das nossas relações sociais,
desaparecido ou ter se diluído nessa
das nossas relações humanas.
massa de migrantes e refugiados
37
internos do Brasil, e não teria mais
estávamos prevenidos. Quando
memória da sua ancestralidade, não
chegou a pandemia, a gente apenas
teria mais a capacidade de ensinar
acionou as nossas práticas de
para as suas novas gerações quem é
cuidados. Fechamos as entradas e
esse povo, que foi um dia chamado
territórios e passamos a orientar as
de botocudos da floresta do Rio
pessoas a não ficar andando por aí
Doce. Nós temos uma memória
e obedecer aquelas orientações das
viva sobre essa floresta do Rio
organizações mundiais da saúde
Doce, assim como nossos parentes
como usar máscaras, manter o
Maxacalis, que conseguem dar
distanciamento, as mãos lavadas,
nome a espécies de plantas e de
os cuidados de higiene, lavar as
animais que estão extintos na Zona
mãos e evitar aglomeração. Uma
da Mata, que estão extintos nesse
coisa óbvia que, se todo mundo
encontro de cerrado com campos
tivesse feito, a gente não estava com
rupestres. Estas espécies de animais
130 mil óbitos. Nós chegamos a esse
e de plantas que estão extintos
escândalo, porque a gente ignorou
eles conseguem desenhar, nomear
as recomendações.
e convocar esses seres nos seus cantos na língua Maxacali. Porque,
P - Como podemos inserir uma
para os Krenaks e para os Maxacalis,
educação ambiental e social na
as montanhas, os rios,
educação básica que temos hoje no
os animais, as plantas são seres.
país. É possível interagir as crianças
São seres que têm a mesma
com esse tipo de conhecimento?
importância que nós os humanos e que deveriam ter o mesmo cuidado
AK - Pensando o primeiro setênio,
que nós demandamos, que nós
naquilo que o Rudolf Steiner
queremos que os humanos tenham.
considera como esse período de
Eles também deveriam ter esses
pousar a alma do ser. Esse contato
mesmos cuidados com as florestas,
da primeira infância com a prática da
com os rios e com as montanhas.
agrofloresta, como contato com a
O povo Krenak está aqui numa
terra, que eu chamo de fricção com a
reserva do Rio Doce, numa floresta
natureza, isso deveria ser a prioridade
de 4 mil hectares e nós estamos
quando a gente pensa em Educação.
refugiados aqui desde que a lama
Quando o serviço da Educação se
de Mariana invadiu nosso território,
organiza, ele não deveria ter como
passou por aqui no fundo das
objetivo de alfabetizar a criança e
nossas casas. Vai completar cinco
nem de despertar na criança sobre
anos. Nós somos abastecidos por
qualquer outra técnica. Ele deveria só
caminhão pipa e já estávamos
possibilitar a segurança para que a
confinados e, de certa maneira,
criança pudesse ter uma experiência
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até os 6, 7 anos de intensa comunhão
Como você se sente espiritualmente
com a vida na Terra, com os outros
falando nesse momento da chegada
seres além dos humanos e,
do Covid-19 e a morte de tantas
obviamente, essa Educação deveria
pessoas?
ser feita no seio da família. Mas como você vive num lugar, na região do
AK - Eu me sinto como um cuidador.
mundo onde a própria ideia da
Pode parecer pretensioso, mas
família está sendo posta em questão,
eu me sinto como alguém que
ela está se desestruturando por
está engajado num momento de
razões que se sobrepõem e vai
crise, para pelo menos diminuir o
desde a pobreza até a violência,
sofrimento e a depressão que atinge
a discriminação, tudo isso põe esse
muita gente. Outro dia falando
lugar que a criança deveria ter como
com uma senhora, uma jornalista
privilégio, como um lugar de risco e
que estava em Portugal, ela me
o endereço da criança fica sendo a
disse que já tinham três meses que
escola. As crianças vão muito cedo
ela estava com as crianças dela
para a escola e já que vão muito cedo
no apartamento e que ela estava
para escola, que pelo menos tivessem
enlouquecendo. Eu disse para ela,
a orientação de que um terço do
então, agora nesse tempo nós
período escolar fosse dedicado a
temos que ser capazes de contar
atividades com a natureza, produção
histórias para as crianças que sejam
de alimentos, confecção de coisas
menos apavorantes do que o lado
com as mãos. Ou seja, experimentar
de fora da casa. Ela disse: o que
um contato mais direto com a vida,
nós vamos ensinar para as nossas
ao invés desse isolamento dentro
crianças presas no apartamento?
de uma sala de aula estudando,
Eu falei, busque ensinar a eles
pensando. É claro que não vou
primeiro a ter paciência e depois
abrir um debate agora sobre
coragem. Paciência e coragem.
Educação, mas já que a pergunta
Não é para ficar doente, não é para
é sobre educação ambiental, sobre
ficar deprimido e nem com raiva,
sensibilizar as crianças para uma vida
é para ter paciência e coragem.
mais ligada com a ecologia de cada
Nesse momento, eu acho que o
ambiente em que eles vivem,
exercício é paciência. Mas alguém
eu acho que isso vale a pena.
vai falar que paciência não faz nada. Faz sim. Paciência evita os danos.
P - Como você percebe as
Imagina o tanto de gente que
iniciativas para mudar essa
fica se contagiando na praia. Esse
realidade atualmente?
feriado agora a praia ficou entupida
Eu li que você é muito empático e
de gente. Você não tenha dúvida,
ligado espiritualmente à natureza.
daqui a 15 dias nós vamos ter uma
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notificação daquela marca do mapa.
vai dar conta de toda essa tragédia,
Ela vai subir. Eu digo para vocês,
mas nem de tudo. É por isso que o
agora é hora de ficar quieto. E essa
antropoceno significa uma realidade.
fissura de mandar as crianças para
Ele não é só uma especulação.
escola antes de acabar o ano é uma
Os cientistas que trabalham com
insistência de vender o amanhã.
essa temática do antropoceno
O amanhã não está à venda e
mostram as evidências de que nós
você sabe da estreita analogia que
estamos erodindo a base da vida na
existe entre a infância e o amanhã.
Terra para os humanos. E o grande
Quanta gente diz que as crianças
Lévi-Strauss disse que a Terra
são o amanhã! Então, nós estamos
existiu muito antes dos humanos e,
vendendo o amanhã quando a gente
muito provavelmente, vai continuar
bota essas crianças para sair de
existindo depois. Nós não fazemos
casa por intolerância, por falta de
falta aqui.
paciência com eles, afinal de contas, será que as famílias se esqueceram
P - Como podemos contribuir
de que o lugar delas é em casa?
efetivamente com a preservação
Agora, quando tem que ficar com as
dos direitos dos índios na atual
crianças em casa, fica todo mundo
conjuntura nacional e estadual?
arrancando os cabelos, tem que
Qual o maior desafio que você já
mandar as crianças para algum lugar,
enfrentou nessa sua luta em defesa
ou a escola ou o shopping,
dos direitos indígenas?
ou alguma coisa. Sobre o reclame da juventude consumista, eles foram
AK – Há 30 anos atrás, na
criados para isso.
constituinte, havia otimismo, uma
Não tem como exigir que essa
perspectiva que os brasileiros
juventude, que está com 17, 20 anos
finalmente iriam construir uma
hoje, ter uma crítica sobre o
experiência de democracia e que
consumo. Eles são estimulados ao
nós iríamos, assim, iluminar todos
máximo a dar uma resposta de
os campos do nosso país com
consumidores fanáticos.
uma experiência social avançada.
Essa juventude foi treinada para
É claro que essa esperança não
consumir e agora eles vão ter
foi alcançada no curto prazo e ela
que ser educados para diminuir o
sofreu muito revés, inclusive com
consumo. E quem sabe eles vão
gente negando o fundamento da
conseguir ensinar seus filhos a ter
democracia como uma condição
um pouco mais de cerimônia com
para constituir uma nação.
aquilo que eles comem e consomem,
Mas nós vamos continuar e a luta
porque a vida é uma maravilha, é um
por direitos. Não é alguma coisa
dom, mas ela tem limites. A gente
que você conclui na vida. Diferente
45
de uma biografia, que você chega
um status que a gente obteve e não
um tempo que você para e escreve
deixar recuar mais, não deixar recuar.
a história, a luta por direitos é para
É por isso que a gente tem que
sempre. O grande Nélson Mandela
impor respeito à Constituição que o
é para mim muito além de alguém
Brasil tem. O respeito à Constituição.
que fez a experiência de organizar
Quando você vir um ministro, uma
a vida política na África do Sul,
autoridade pública desfazendo do
seu país de origem. Ele é para mim
princípio que está na Constituição,
um grande pensador do nosso
negue seu apoio a esse sujeito.
tempo que conseguiu dar conta de
A questão não é de como participar
questões muito importantes que era
socialmente. Preste atenção em
o próprio horizonte da democracia
quem você vota. Por enquanto,
na África do Sul. Eles viviam dentro
o sujeito só tem um mandato se
de um apartheid. Eles viviam no pior
alguém eleger ele. Apesar de todas
mundo que você pode imaginar de
as ameaças, ainda é pela eleição
segregação e terrorismo contra o
que se consegue mandatos.
povo de origem africana, os negros.
Então preste atenção. Vai ter
Eles eram segregados pelos colonos
eleições daqui a pouco para
brancos que foram tomar conta de
vereador. Olhe se você não vai botar
seu território. Mas o Mandela teve
uma corja de irresponsáveis para
a genialidade e a generosidade
depois você reclamar. No mandato
de construir uma experiência
principal da República, as pessoas
democrática, em que eles não
fizeram a escolha que quiseram e
tinham que escorraçar os colonos.
agora estão pagando o pato, não é?
Ele abriu um lugar, um caminho de convivência entre o povo africano e
P - Como você vê a situação e
vários povos, porque eles têm muitas
as perspectivas dos povos da
etnias. Ele mesmo tem uma etnia
Amazônia?
que é Xhosa. Depois tem o Zulu e têm muitas etnias que constituem o
AK - Nós podemos olhar a
povo da África do Sul, para além do
perspectiva dos povos da Amazônia
africâner, que são aqueles colonos
em mais de uma direção. A gente
brancos. Ele arrumou uma maneira
podia pensar o seguinte, a despeito
daquela gente se acomodar e olhar
de todo o bate-boca sobre a
um horizonte, um futuro possível.
Amazônia. Ela ainda se constitui
O Brasil não é mais miserável do
num dos maiores acervos de
que aquela situação racista e nós
biodiversidade do planeta.
havemos de vencer isso também.
Os povos que vivem na Amazônia
E essa questão dos direitos, deixar
estão inseridos nesse universo
de ser uma mitigação e passar a ser
fantástico de riqueza biológica e
46
quando ele é pensado positivamente
O Brasil festeja o recorde de
como o lugar onde a economia do
exportação de grãos e ele deveria
futuro vai se desenvolver,
prestar atenção no que está
que ela vai juntar biotecnologia com
largando para trás quando ele
o conhecimento ancestral.
exporta grãos. O Brasil bate recorde
Se nós formos capazes de respeitar
de exportação de minério.
o direito à vida daquelas populações,
Ele deveria olhar para trás e ver
não estou falando só dos indígenas
como fica a Serra da Piedade,
não, os seringueiros, os ribeirinhos,
o Pico do Cauê, o Rio Doce,
o povo do Chico Mendes e todas as
as montanhas que Carlos
outras comunidades extrativistas
Drummond Andrade falou que
que vivem dentro da floresta e que
estavam indo embora de trem.
sabem viver da floresta, quando essa gente puder aportar outras
P - O Brasil possui a sexta
tecnologias a seu tempo,
população mundial e ao mesmo
vão poder criar a possibilidade
tempo o nosso país desponta no
de vida ideal sem destruir aquela
ranking global de países com o
floresta. Pensando por outro lado,
maior desmatamento, ao seu ver,
nós teríamos que nos levantar agora
por que a população brasileira
para impedir essa destruição dessa
adotou uma postura tão passiva
rica biodiversidade da Amazônia,
e inerte frente aos absurdos
porque ela está sendo invadida
praticados contra o meio ambiente?
nesse momento e as queimadas
Por que não há uma cobrança
estão crescendo. E quando parar
mais ostensiva no que concerne
e passar esse período agora de
ao combate ao desmatamento,
agosto e setembro, nós vamos ter
preservação e revitalização das
uma breve parada das derrubadas
nossas florestas?
e queimadas, mas nós vamos ter a ocupação desses lugares que
AK - Seria o caso de nós evocarmos
foram derrubados e queimados por
aqui o tanto de lideranças da
pastagem. É o ciclo de invasão de
floresta, de povos da floresta que
expansão de fronteiras agrícolas
foram assassinados enfrentando essa
para dentro da floresta. Essas áreas
questão do desmatamento. Inclusive
que foram queimadas agora que
a irmã Dorothy que foi assassinada
esfumaçaram o céu do Acre e de
no Pará, que era inglesa e trabalhava
Rondônia estão abrindo espaços
com comunidades na floresta. Os
e vai entrar gado para lá. Então a
empresários da madeira contrataram
gente tem que ter uma visão crítica
os jagunços para matar uma
sobre o tipo de economia que nós
missionária, porque ela estava do
estamos disponibilizando.
lado das comunidades que estavam
47
defendendo a floresta. O Chico
É uma mentalidade que precisa ser
Mendes foi assassinado por proteger
reeducada para conviver com os
a floresta contra o desmatamento.
igarapés, com as nascentes, com os
Tem uma lista grande que é
rios e com as florestas.
divulgada a cada ano de ativistas de
Eu soube que aqui dentro de Belo
movimentos sociais, de lideranças
Horizonte já houve disputa entre
de associações comunitárias que são
os empreendimentos imobiliários
perseguidos e assassinados porque
e nascentes. As nascentes que
protegem a floresta. Então, não seria
tinham dentro da cidade, dentro do
correto dizer que os brasileiros são
anel rodoviário e os especuladores
indiferentes a isso. A violência que
imobiliários queriam tomar aqueles
é feita contra a paisagem, a Mata
lugares. A comunidade lutou para
Atlântica, a floresta, o cerrado é
proteger aquela nascente, vocês
movida pelo capital. Tem uma grana
sabem disso. Semana passada
atrás disso. O agronegócio, o agro
estava pegando fogo na Mata da
é pop e mata. Quando a ministra
Baleia e tudo indica que quem
Kátia Abreu estava à frente do
estava botando fogo na Mata da
Ministério da Agricultura, ela ganhou
Baleia queria despistar aquele lugar,
a motosserra de ouro.
como um lugar de recarga, no ciclo
A motosserra de ouro é um troféu
das águas. Queria despistar aquele
que os povos da floresta dão aos
lugar para poder invadir aquilo com
grandes desmatadores. A Kátia
a especulação imobiliária. Então,
Abreu, que foi uma ministra muito
a ganância, o capital e o consumo
laureada pelos governos nos últimos
são coisas que andam juntos.
anos, ganhou a motosserra de ouro que era um troféu que deveria ser
Um abraço a todos e ererré .
uma vergonha para uma autoridade. Foi entregue pela Sônia Guajajara no aeroporto quando as duas se encontraram sem nenhuma intenção e teve cobertura de imprensa e tudo. Ora, o povo no sentido geral vive na cidade, 70% da população do nosso país é urbana, aprendeu a botar calçada para todo lado. Ele derruba a árvore que está no quintal do vizinho, porque a folha cai na varanda dele. 3
Palavra na língua Krenak que significa “força sempre”.
48
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ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O DESAFIO DE IDENTIFICAR E ENFRENTAR O RACISMO À BRASILEIRA1 Rodrigo Ednilson de Jesus2
Eu queria iniciar dizendo da
Foi uma felicidade muito grande
importância da adesão da PUC
receber um texto deste grupo,
Minas a esse tema do campo das
formado por graduandos da
relações raciais no Brasil.
Psicologia da PUC Minas do Coração
Mais importante ainda é destinar
Eucarístico e liderado pelo professor
este espaço de debate neste
Rubens Nascimento.
momento em que a gente vive dimensões tão intensas de violência
Nesse texto, o grupo faz um
perpetrada pelo Estado contra as
importante debate sobre dois
populações negras e indígenas.
conceitos que nesse momento
E, ambiguamente, vivemos um
são muito importantes: o racismo
período de um silenciamento
estrutural e o racismo institucional.
muito brutal sobre essas mesmas
Importante dizer que o racismo
violências.
estrutural e o racismo institucional não são algo novo no Brasil,
Por isso, eu gostaria de iniciar
um fenômeno inventado pelos
comentando a própria produção
conceitos. Isso quer dizer o racismo
do Grupo de Estudos Pretos da
como estruturador das relações
PUC Minas sobre as dimensões das
sociais e do modo de produção
relações raciais.
da nossa vida cotidiana está
1
Conferência proferida na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 11 de setembro de 2020.
2
Pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, doutor em Educação pela UFMG e mestre em Sociologia pela UFMG.
51
52
53
presente desde o momento do
queria chamar a atenção que esses
início do tráfico negreiro do Brasil,
dois conceitos trazidos à tona,
possibilitando que pessoas tenham
mais contemporaneamente, pelo
sido transformadas em objetos e
autor Sílvio Almeida, passaram
justificando o fato de que suas vidas
rapidamente a se incorporar na
pudessem ser transformadas em
nossa literatura sobre relações
objetos de compra e venda.
raciais no Brasil. Tem muita gente
Essa lógica que estrutura o sistema
fazendo o uso desses conceitos
social no Brasil é chamada, portanto,
e isso mostra também um vigor
de racismo estrutural.
dessa chave conceitual de relações raciais para entender o Brasil atual.
Como eu gosto muito do campo das
Ao mesmo tempo que a gente
palavras, da força das palavras,
nota um crescimento do debate
eu costumo dizer que aquilo que não
sobre relações raciais, a gente vive
tem nome não existe.
uma situação ambígua, notando o
Então, na medida que a gente
reaparecimento daqueles que se
não cria nome para determinados
recusam a admitir a existência do
fenômenos, é como se esses
racismo no Brasil.
fenômenos não existissem. Desse modo, o racismo estrutural
Ao pensarmos no imaginário
ganha significado na medida em que
coletivo nacional, é muito comum
é nomeado. No texto,
observar que o fenômeno do
os componentes do Grupo Preto
racismo seja definido de formas
vão dizer que o racismo estrutural
distintas. Apesar das diferentes
é social e historicamente fundante,
abordagens propostas por autores
ao passo que o racismo institucional
e autoras contemporâneas,
presentificou o racismo estrutural
tematizando o racismo estrutural,
por meio de legislações, sendo
o racismo institucional, o racismo
apenas uma forma de corporificar
recreativo, a interseccionalidade
o racismo estrutural. Então, se o
e outros, é muito comum que as
racismo estrutural está na base da
pessoas façam referência mental a
estrutura social brasileira, o racismo
um racismo que se materializa nas
institucional vai dar dinâmica para
relações entre pessoas e que se
o racismo estrutural, incorporando
expressa por meio de xingamentos,
as lógicas racistas no sistema de
ofensas e piadas.
legislação, no sistema de regulação social.
Esta modalidade de racismo, que nomeamos como racismo
Ao longo da conversa, eu quero
intersubjetivo, é, inclusive, aquele
trazer exemplos sobre isso, mas
regulado e penalizado pela
54
legislação brasileira. Ao criminalizar
O primeiro episódio envolvia a filha
o racismo intersubjetivo, a legislação
do ator Bruno Gagliasso e da atriz
brasileira acaba por dar destaque,
Giovanna Ewbank, uma menina
criminalizando, aos xingamentos e
negra que havia sofrido xingamentos
as ofensas raciais, mas deixando de
racistas por meio das redes sociais.
fora de sua definição todo o conjunto
O outro episódio envolveu o filho da
de práticas institucionalizadas
atriz Thaís Araújo e do ator Lázaro
de racismo e o próprio racismo
Ramos, que também pelas redes
estrutural que organiza e reproduz
sociais havia sofrido xingamentos
as dinâmicas de desigualdades
racistas. Importante destacar que
raciais no Brasil. Isso acaba tendo
o título completo da matéria é:
um impacto muito considerável em
Racismo Raivoso: por que esse
nossas relações cotidianas, como
mal ainda persiste na sociedade
tentarei mostrar na fala de hoje.
brasileira?
No ano de 2017, a revista Isto é
Além de reforçar que o racismo é
lançou uma edição comemorativa
algo moral, que pode ser raivoso
de fim de ano, intitulada
ou não raivoso, o título da matéria
Brasileiros do Ano. Nessa edição
vincula o racismo a uma dimensão
havia um conjunto de pessoas
puramente intersubjetiva, como
(apresentadores, políticos, juristas,
tentei argumentar há pouco. Nesse
empresários, atrizes, etc.), mas
sentido, creio que, se relacionarmos
quando eu batia o olho nessa capa,
a matéria sobre o racismo raivoso
coincidentemente, só conseguia
com a foto principal da edição
identificar brasileiros brancos, sem
analisada, poderíamos encontrar
exceção.
uma resposta plausível para a pergunta contida na própria revista:
Esse aspecto me chamou a atenção
por que o racismo ainda persiste
e por isso eu comecei a fazer uma
na sociedade brasileira? Porque a
análise semiótica dessa capa e do
existência e efetividade do racismo
próprio título. Nesse processo de
estrutural segue inquestionável,
análise notei que, curiosamente,
mesmo em uma reportagem que
havia um título secundário na parte
se propõe a abordar o tema do
superior da revista que também
racismo. Ao negligenciar o fato
despertou minha atenção. O título
de que todos os personagens
Racismo Raivoso dava nome a uma
apresentados na imagem de capa da
matéria secundária que relatava
revista são pessoas brancas, a revista
episódios de racismos sofridos por
Isto é, a um só tempo, desracializa as
filhos de dois atores famosos.
pessoas brancas (referindo-as como brasileiros do ano) e as transforma
55
no símbolo perfeito de sucesso
distribuição racial nesses cargos
individual.
é equivalente com a população brasileira?
Por que, em geral, não evidenciamos a dimensão racializada das pessoas
Estou chamando atenção para
brancas no Brasil? Por que,
este aspecto porque, a despeito da
em geral, tendemos a associar um
imagem exibida pela revista, o título
caráter de universalidade para essas
principal exibido na capa, ao mesmo
pessoas, permitindo nomeá-los
tempo que ignora o pertencimento
genericamente como brasileiros?
racial dos indicados a brasileiros
Imaginemos se essa mesma imagem
do ano, acaba por reforçar padrões
de capa estivesse composta
de normalidade, contribuindo para
apenas por empresários, médicos,
naturalizar a ideia de que raça não
apresentadores negros e negras.
faz diferença na ocupação dos
Tendo a afirmar que, provavelmente,
lugares de poder e prestígio em
a chamada principal da revista seria
nossa sociedade.
“Brasileiros Negros do Ano”. Creio, portanto, que para sermos
Entretanto, ao analisarmos a matéria
justos com a imagem exposta na
secundária, vemos como se constrói
capa, o correto seria alterar o título
uma narrativa que reforça a ideia de
da revista para “Os Brasileiros
que o racismo raivoso seria aquele
Brancos do Ano”.
que se expressaria em xingamentos pejorativos que fariam mal à psique
Voltando à perspectiva apresentada
e à autoimagem dos sujeitos.
por Sílvio Almeida, é preciso
Agindo assim, acabam por construir
dizer que as representações
uma narrativa que é moralmente
hegemonicamente brancas em
inaceitável, na medida em que
lugares de poder e de destaque
nomeia um racismo como raivoso
de nossa sociedade é também o
e acaba por insinuar a existência
resultado do racismo estrutural
de um racismo não-raivoso. Sendo
que acaba distribuindo,
moralmente inaceitável, esse racismo
de modos desiguais, privilégios
raivoso deve ser repelido por nós
e desvantagens. Se formos
e, por conseguinte, esses racistas
pensar, por exemplo, no âmbito
raivosos devem ser identificados e
da PUC Minas ou no âmbito da
punidos exemplarmente.
Universidade Federal de Minas Gerais, quantos professores negros
Após identificar e prender os racistas
e negras, quantos coordenadores
raivosos poderemos tranquilamente
de cursos negros e negras, seríamos
voltar à normalidade de um país
capazes de encontrar? Será que a
marcado pela democracia racial,
56
57
58
em que os brasileiros de todas as
um pesquisador estadunidense,
cores teriam as mesmas chances na
em seu livro Racismo à Brasileira,
vida; até de serem eleitos como
vai chamar a atenção para a
brasileiros do ano, portanto. Este é,
ambiguidade presente entre a
justamente, um dos eficazes
inexistência de leis que restringem
mecanismos que Kabengele Munanga
o acesso a determinados espaços
nomeia como racismo perfeito da
para a população negra no Brasil
sociedade brasileira: um racismo que
e a existência de engrenagens
identifica vítimas, mas não é capaz
eficientes que cerceiam a presença
de identificar os perpetradores do
em determinados espaços.
racismo. Assim, ao mesmo tempo
Na esteira dessa constatação,
que a revista procura se vincular a
é importante pensar nas engrenagens
uma posição antirracista, se opondo
que permitem que a maioria de
ao que nomeia como racismo raivoso,
empresários e grandes executivos
ela acaba por perpetuar e naturalizar
brasileiros, apresentadores, modelos,
o racismo estrutural.
apresentadoras de programas infantis sejam brancos e brancas.
Ao pensarmos no fenômeno do racismo no mundo, é muito comum
No ano de 2010 um curta-metragem
trazermos à tona a experiência
intitulado Cores e Botas foi lançado
dos Estados Unidos da América,
no Brasil, com a proposta de
geralmente utilizado como forma de
apresentar a história de Joana, uma
enfatizar a agressividade do racismo
menina negra de classe média, que
de lá, em oposição à cordialidade e a
estudava em uma escola de classe
ausência de raivosidade do racismo
média e que ao longo da infância
de cá.
alimenta um sonho de ser paquita, uma das ajudantes de palco de um
Em geral, comparações como essas
programa infantil dos mais famosos
cumprem o papel de reforçar o
na década de 1990: o Show da Xuxa.
nosso mito fundacional (Mito da
Embora não sofresse com restrições
Democracia Racial). Aquele que
materiais e com desigualdade que
inaugura nossa ideia de nação
atinge boa parte da população negra
moderna e que se sustenta na
no Brasil, Joana vai se descobrir
narrativa de que o nascimento da
negra ao perceber a impossibilidade
nação brasileira é resultado de
de ser uma paquita e de ocupar
uma mistura de negros, brancos e
aquele espaço.
indígenas, que teria dado origem ao povo brasileiro, um povo
Embora não tenha ouvido de
originalmente mestiço e indistinto
ninguém, Joana aos poucos
racialmente. Todavia, Edward Telles,
descobre que aquele espaço era
59
racializado, ocupado apenas por
Sim, somos todos humanos!
meninas brancas e loiras. É nesse
Mas somos humanos diferentes.
contexto que se apresenta o racismo
Neste caso em particular, somos
ambíguo à brasileira, já que ele não
todos humanos marcados por
se afirma, mas está presente nas
diferenças fenotípicas (corpo, cabelo,
relações de modo eficaz.
tom de pele, formato de nariz, etc.), que impactam, de maneira
Ao me propor realizar uma reflexão
significativa, os modos como
sobre o racismo ambíguo em uma
vivenciamos nossa humanidade.
mesa como esta, estou sujeito a
Admitir essas dimensões é
ouvir frases resistentes como as
importante para que no campo
seguintes: “não, no Brasil não há
político a gente consiga avançar no
racismo porque no Brasil todos
reconhecimento da diferença e na
somos iguais”. “Para Deus todos
produção de políticas públicas que
somos a mesma coisa. Deus ama
produzam oportunidades igualitárias.
todos da mesma forma”. Eu costumo chamar a atenção
Neste tocante, penso que um dos
para a ambiguidade dessa própria
grandes desafios da sociedade
afirmação que é, ao mesmo tempo,
brasileira é superar o tabu na
a afirmação de que somos todos
nomeação, e da reflexão em torno
iguais e a afirmação, numa
da ideia de raças, já que é muito
perspectiva cristã, de que Deus
comum que as pessoas reconheçam
ama todos da mesma forma.
a existência do racismo, reconheçam o fato de que o Brasil é racista e de
E eu pergunto: mas se nós somos
que os brasileiros, por conseguinte,
todos iguais, por que Deus se daria
são racistas. Apesar dessas
o trabalho de amar todos
constatações, muitos vão afirmar:
(os diferentes) da mesma forma?
“não existem raças, porque somos
Esta me parece uma dupla de frases
todos humanos’’. A pergunta que
que evidencia nosso esforço para
deveríamos fazer a partir daí é: como
equilibrar o reconhecimento da
é possível haver racismo sem raça?
diferença que nos marca, que salta aos olhos quando olhamos para os
Para entendermos estas resistências
corpos, cabelos e tons de pele das
à ideia de raça, é preciso fazer uma
pessoas que circulam as ruas,
pequena digressão histórica, mais
as escolas e as casas, com a
especificamente para a década de
afirmação retórica de nossa
1940, período em que um conjunto
igualdade ontológica, ou seja,
de cientistas, patrocinados pela
a afirmação que somos todos
UNESCO, desenvolveram uma
humanos.
investigação sobre relações raciais
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no Brasil. A escolha do Brasil como
expectativas projetadas iniciais do
laboratório de experiências bem-
Projeto Unesco, já que o conjunto
sucedidas de contatos interétnicos
de pesquisadores identificaram
visava “apresentar ao mundo
as continuidades das estruturas
os detalhes de uma experiência
assimétricas de negros(as) e
no campo das interações raciais
brancos(as), herdadas do período
julgadas, na época, singular e bem-
escravista e atualizadas no
sucedida, tanto interna quanto
período republicano. De acordo
externamente”.
com Florestan Fernandes e Roger Bastide, dois pesquisadores de peso
De acordo com Marcos Chor
no âmbito do projeto, a passagem
Maio, as imagens sobre o Brasil
do sistema de trabalho servil para
e sobre o Mito da Democracia
um modelo de trabalho livre e
Racial projetadas pelas narrativas
assalariado não havia proporcionado
de Gilberto Freyre (1993) foram
à população negra recém-liberta o
fundamentais para a escolha do
usufruto real das vantagens do
país como “caso exemplar” de
sistema capitalista, pois estes
convivência harmoniosa de grupos
passaram dos postos mais
étnicos distintos. Assim, além
subordinados da hierarquia servil
dos esforços empreendidos pela
aos postos mais precários
ONU, no fim da Segunda Guerra
da hierarquia capitalista.
Mundial, no intuito de desacreditar cientificamente o conceito de
Assim, embora a UNESCO tenha
raça, que havia sustentado
chegado a um consenso sobre a
ideologicamente o genocídio de
inexistência biológica de raça como
mais de seis milhões de judeus e
diferenciador dos sujeitos e dos
de dezenas de milhares de outros
coletivos, pesquisas produzidas
membros de grupos considerados
no contexto do Projeto Unesco
“racialmente inferiores” (ciganos,
mostraram como a ideia de raça
deficientes físicos e mentais, eslavos,
estava presente no imaginário
poloneses, russos e membros de
coletivo e exercia um papel relevante
outros países do leste europeu), a
na continuidade das assimetrias.
apresentação, em âmbito mundial, de um exemplo concreto de
Importante dizer então que raça
convivência das diferenças, de
não era um conceito presente no
“equilíbrios de antagonismos”, era
imaginário coletivo, já que continua
providencial.
sendo um conceito operacional para as relações sociais. Então, por
Os resultados das investigações
exemplo, quando as pessoas falam
empíricas acabaram contrariando as
sobre o racismo raivoso,
63
elas estão denunciando que algumas
pública, na medida em que afirmar
pessoas, baseadas numa crença
que raça não existia era equivalente
que associa características físicas a
a afirmar a impossibilidade de
comportamentos sociais, agem de
implementar uma política baseada
maneira negativas em relação a um
em um conceito inexistente.
determinado grupo. Entretanto, ao ler a reportagem, Quando as forças policiais associam
observamos que o trecho de início
determinadas características
diz o seguinte: “Alan e Alex gêmeos
fenotípicas a um tipo visto como
univitelinos, nascidos de mãe negra e
perigoso, como suspeito, há ali uma
pai branco foram tratados de forma
associação entre a ideia de raça e
diferente na banca”. A reflexão que
comportamentos racistas.
deveria emergir da leitura desta
No ano de 2004, ao repercutir a
frase em contraste com o título da
experiência de dois gêmeos, Alan
chamada é: se raça não existe, por
e Alex, que passaram por bancas
que as autoras usam categorias
de heteroidentificação racial na
raciais (mãe negra e pai branco)
Universidade de Brasília, a revista
para orientar o entendimento do
Veja construiu uma capa muito
leitor? Assim, ao mesmo tempo em
icônica, intitulada “Raça não existe”.
que procura sustentar que raça não
Alan e Alex, gêmeos univitelinos,
exista, ou que seja geneticamente
foram avaliados de modos distintos
inválida, as categorias raciais são
nas bancas de heteroidentificação,
cotidianamente relevantes para o
sendo que um dos gêmeos foi
nosso entendimento social, já que
considerado apto, lido socialmente
é, justamente, essa leitura sobre
como pessoa negra, e o outro
negros e brancos que estrutura o
não foi considerado apto, lido
racismo e que foi utilizada ao longo
socialmente como pessoa não negra.
dos últimos 300 anos como forma de desqualificar a população negra,
Ao noticiar o episódio, a revista Veja
vista como não inteligente, como
fotografou os dois vestindo um com
não bonita, como não capaz,
uma camisa preta e o outro com
não honesta.
uma camisa branca, acompanhados do título: “Raça não existe”.
Em uma sociedade que, após
Considerando o momento político
um século do fim do regime
de debate público em torno das
escravocrata, ainda se estrutura em
cotas raciais para a população negra
padrões exclusivistas e hierárquicos
no ensino superior, a afirmação
de acesso a bens e serviços,
feita pela revista era uma forma
não é de se estranhar a resistência
de desqualificar a própria política
expressa por muitos setores em
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aderir a ações de reparação e de
diferencialista e o antirracismo
ações afirmativas.
universalista. Em suas obras, eles vão chamar a atenção para o fato de que
Como procurei mostrar ao longo
o racismo diferencialista é o racismo
dos últimos minutos, basear esta
que sempre marcou a sociedade
oposição na afirmação de que é
brasileira e, sobretudo, o período
impossível saber quem é negro
anterior a 1930.
e quem é branco no Brasil é uma mentira mal contada, já que até
Ao observarmos o período final
pouco tempo atrás, até este fim de
da escravidão no Brasil, no século
semana, até ontem, era plenamente
XIX, verificamos que a existência de
possível saber e fazer uma distinção
raça, entendida do ponto de vista
com vistas a prejudicar um
biológico, era um consenso científico
determinado grupo e privilegiar
e servia para localizar determinados
outro.
grupos em posições superiores e outros em posições inferiores.
Por isso, se nós, como sociedade
Esse período pode ser definido
e Estado brasileiro, assumimos
como o racismo diferencialista,
que, ao longo dos últimos séculos,
porque, ao mesmo tempo em que
construímos ações negativas
se reconhecia as diferenças, ela era
dirigidas à população negra
usada para hierarquizar a diferença.
baseadas na ideia de raça, qual a dificuldade de usar a ideia de raça
Os referidos autores vão dizer que
para construir ações afirmativas
esse tipo de racismo diferencialista,
dirigidas a esta mesma população?
que também é marca do racismo nos Estados Unidos, vai ter como seu
Caminhando para a conclusão desta
oposto o antirracismo diferencialista.
conversa, eu queria mencionar
Eles vão chamar atenção para o
os autores Kabengele Munanga e
fato de que a legislação Jim Crow
Jacques d’Adesky, que vão utilizar
nos Estados Unidos, pode ser vista
duas características que, para mim,
como uma espécie de antirracismo
são conceitos muito interessantes.
diferencialista pelo fato de sustentar
São pares de conceitos. Um conceito
a existência de direitos, mas
é o que eles chamam de racismo
mantendo as diferenças: “ok, nós
diferencialista e um outro que eles
reconhecemos que somos diferentes
chamam de racismo universalista.
e vamos criar direitos, mas partindo dessas diferenças”. Assim, surgem
Por outro lado, eles vão dizer
nos Estados Unidos as universidades
sobre a existência de dois tipos
historicamente negras, a emergência
de antirracismo: o antirracismo
de uma classe média negra,
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que deriva desse reconhecimento
diferença, faz emergir como par de
da diferença e de uma luta a partir
oposto o antirracismo universalista.
desse reconhecimento. Esse antirracismo universalista Referindo-se, de modo específico,
pode ser bem observado nos meses
ao Brasil, os autores vão chamar a
de novembro, quando algumas
atenção para o fato de que,
pessoas mobilizam uma fake news
a partir de 1930, no Brasil, um forte
atribuída ao ator estadunidense,
sentimento de renovação da ideia de
Morgan Freeman, para sustentar
nação emerge. O livro Casa Grande
que: ”quando as pessoas deixarem
Senzala, de Gilberto Freyre, vai
de pensar em consciência negra,
cumprir um papel muito importante
amarela, verde (como se existisse
nessa missão de renovação da
consciência verde) e pensar em
nação. É neste contexto que vai
consciência humana, o racismo
surgir aquilo que Mundanga e
desaparece”. Nesta frase a ideia
D’Adesky vão nomear como racismo
que emerge é a de que a forma
universalista, entendendo-o como
mais apropriada de combate ao
aquele fenômeno que, embora não
racismo seria o silenciamento sobre
evidencie a diferença, possibilita que
ele. Isso define bem o antirracismo
a diferença desapareça por meio de
universalista. Entretanto, ao fingir
uma ideia universalista.
que raça e racismo não existem, inviabilizamos a possibilidade
A emergência do povo brasileiro,
de criar políticas de combate ao
resultado da união de negros,
racismo já que ele não existe.
brancos e indígenas faz com que desapareçam negros, brancos e
Por fim, penso eu que o desafio
indígenas. Este é o movimento
colocado hoje no Brasil, para
observado na matéria Brasileiros do
que não nos mobilizemos só por
Ano, em que os brasileiros festejados
Black Lives Matter (só em razão
não são diversos, pois tem uma cor
de episódios ocorridos fora do
única, que, coincidentemente, é a
Brasil), mas também por Vidas
cor branca. Assim, nesse racismo
Negras Importam, a primeira coisa é
universalista, o que se comemora é
reconhecer que vidas negras existem
a igualdade, mas é uma igualdade
e que na nossa sociedade boa parte
universal, uma igualdade sem cor, e,
delas experimentam situações de
coincidentemente, uma igualdade
desigualdade e, como evidencia uma
branca. Então, esse racismo
análise semiótica da capa da revista
universalista que distribui de forma
Isto é, de invisibilidade.
desigual as oportunidades, porque não reconhece a existência da
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Isso implica em tirar da invisibilidade essas vidas que experimentam desigualdades históricas e construir políticas de visibilidade positiva, para que não tenhamos visibilidade apenas nos presídios, nas mortes por Covid-19, e nos índices de subemprego. Construir visibilidade positiva poderia nos permitir ser, ao mesmo tempo, diferentes e portadores de direitos iguais. Iguais nos direitos, mas diferentes nas dimensões de gênero, de raça, de sexualidade. É um desafio que já deveríamos ter começado a construir desde o século XVIII, mas creio que é um compromisso urgente para o século XXI.
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A DEMOCRACIA E A LIMITAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA1 Bruno Wanderley Júnior2
O que a pandemia revelou é que
E ela nasceu muito pronta para isso.
os direitos sociais são os mais
Com todas as críticas que se pode
fragilizados do sistema constitucio-
fazer à nossa Constituição,
nal brasileiro, do sistema jurídico
foi uma Constituição muito moderna
brasileiro como um todo. Então,
para a época. Foi uma Constituição
se estamos vivendo em um Estado
que criou vários mecanismos de
democrático e social, deveríamos
participação direta da sociedade,
imaginar que os direitos sociais
a democracia participativa.
e a democracia seriam os mais importantes, os mais protegidos e
A Constituição vai propugnar
com pleno acesso da sociedade.
também, nos seus objetivos fundamentais, a erradicação
A nossa Constituição, de 1988,
da miséria, a erradicação da
nasce junto com o fim da Guerra
discriminação, seja racial, seja de
Fria. Nasce para um novo mundo,
qualquer natureza. Mas o que nós
em um mundo que acreditávamos
percebemos é que a prática que se
ser da liberdade, da ausência de
estabeleceu, a partir da década de
conflitos, um mundo globalizado.
1990, foi na contramão dessa ideia.
1
Conferência proferida na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2020.
2
Doutor em Direito pela UFMG. Coordenador do Laboratório de Direito e Inovação Tecnológica da UFMG.
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O que na verdade vai acontecer,
por quase todos os títulos
denunciado pelo geógrafo Milton
constitucionais, é o valor social
Santos na sua obra e pelo professor
do trabalho da livre iniciativa.
Mario Lúcio Quintão Soares,
A Constituição tenta conciliar
da PUC Minas, é a desconstrução
o capitalismo, tenta conciliar o
daquela razão política do Estado
mercado com o trabalhador.
Constitucional que é baseada nos
Ela coloca no mesmo patamar a
direitos fundamentais, baseada em
iniciativa privada e o direito do
uma sociedade engajada na defesa
trabalhador, e, principalmente,
dos seus direitos, na construção da
a iniciativa privada do pequeno e do
democracia.
médio empresário, do empreendedor individual, daquela pessoa que não
E nós fomos basicamente
vai trabalhar para uma empresa ou
atropelados por uma lógica inversa,
para alguém, mas ela vai transformar
a lógica do mercado, a razão
o seu empreendedorismo,
instrumental da globalização.
por menor que seja, em uma
Durante a década de 1990 e no
atividade econômica, gerando
início dos anos 2000, houve uma
renda, gerando impostos, criando
tentativa de criar uma chamada
empregos.
crise do Estado Nacional e depois a crise do Estado Social. Fomos
Então, esse era o arcabouço
paulatinamente convencidos de
constitucional direcionado por um
que se tratava de excesso dos
Estado Social, onde o trabalho e a
direitos trabalhistas, de excesso dos
busca do pleno emprego eram a
direitos sociais e que seriam eles
linha mestra do direcionamento da
os culpados da crise econômica,
sociedade e do Estado.
os culpados da incapacidade do
Esse arcabouço vai ser substituído
Estado de cumprir suas obrigações
por uma lógica da desconstrução
constitucionais.
do trabalhador, da “uberização” das relações do trabalho. Quer
E sendo convencidos disso ao
dizer, pessoas que foram perdendo
longo dos anos, permitimos a
seus empregos, pessoas que foram
desregulamentação dos direitos
sendo jogadas na informalidade e
sociais, principalmente,
passaram a ser esses trabalhadores
dos direitos dos trabalhadores,
eventuais, trabalhadores informais,
o que provocou, na verdade, uma
que dedicam todo o seu esforço
crise institucional para nossa
para um tipo de relação que não
Constituição. Porque a coluna
gera direitos, não gera previdência.
vertebral da nossa Constituição, desde o artigo primeiro, passando
Enfim, essa desconstrução ficou
77
meio que apagada até antes da
metodologia, de se manifestar em
pandemia, porque a gente não estava
prol de uma pessoa e não de um
percebendo que a sociedade foi
país e de direitos.
perdendo esses direitos ao longo do tempo. Como o mundo também
Nós estamos perdendo aquela
se tornou um mundo virtual, nós
conexão das famosas manifestações
acabamos sendo as principais vítimas
de conjunto que Dalmo Dallari
desse novo paradigma do mercado.
propugnou no seu livro Elementos da Teoria Geral do Estado.
Imagine, por exemplo, quando
Nós estamos perdendo a nossa
se fala de democracia, que a
capacidade de empatia com a
democracia não é apenas o voto.
sociedade, a nossa capacidade de
É muito interessante que nós
entender que os direitos não são
estamos vivendo um momento,
meros instrumentos formais para a
que já tem mais ou menos uns 15
economia ou para a sociologia.
anos, de polarização da sociedade
O direito, na verdade, é uma
brasileira em torno de ideias do
conquista civilizatória da sociedade.
que sejam ideologias políticas.
Quando a gente fala de direito
Boa parte das pessoas não
fundamental, a gente não pode
tem consciência das ideologias
reduzir a importância desse direito,
presentes nos projetos políticos
como o autor Konrad Hesse vai
dos seus candidatos. É uma paixão
pontuar em seu livro A Força
ao personalismo, que começou
Normativa da Constituição para
no governo Lula, e também está
aquela Constituição do século
presente no governo Bolsonaro.
XIX, do Ferdinand Lassalle, meros
Isso faz com que as pessoas hoje
rabiscos em uma folha de papel.
debatam política como uma torcida de futebol.
Ou seja, não adianta ter uma constituição bonita com direitos
Quer dizer, os defensores de um
que foram conquistados duramente
lado vão ignorar toda e qualquer
se na realidade social esses
prova de participação daquele
direitos estão sendo negados e
seu eleito, daquele seu candidato,
desconstruídos. Porque durante
daquele seu herói, em qualquer tipo
muito tempo, em nome dessa nova
de corrupção, em qualquer tipo de
ética econômica, propuseram a
ação ilegal. Vão defendê-lo como se
flexibilização do direito do trabalho.
fosse defesa pessoal e, ao mesmo
Como se o direito do trabalho
tempo, o outro lado que vai atacar
estivesse criando muito custo social,
indiscriminadamente aquele que
como se ele fosse na contramão
considera seu inimigo tem a mesma
do que a sociedade precisa para o
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equilíbrio econômico, então vamos
Com o sistema de saúde sucateado
flexibilizar. Mas, na verdade, o que
e, agora, no momento da pandemia,
houve foi uma desregulamentação.
exaurido, essas pessoas não têm como garantir nem sequer a
Quando o trabalhador perde seu
prevenção para essa doença.
poder econômico, do seu ganho,
Além do mais, do ponto de vista
ele está mais fragilizado ainda, porque
econômico, são elas que não podem
ele depende quase exclusivamente
ficar em casa. São elas que não
da ação do Estado ou de grupos não
têm como fazer home office. Home
governamentais, de caridade, por
office é para nós. Nós fazemos home
exemplo. Então, a gente vê muito isso
office. Nós somos privilegiados,
hoje. As pessoas estão cada vez mais
inclusive os advogados. Todas as
dizendo: porque eu ajudo
audiências são virtuais, tudo agora,
muito fulano de tal, na ONG tal.
nós vamos entrar nesse mundo,
Nós estamos quase que convencidos
nesse novo comportamento. Ouço
de que o Estado não tem mais um
muito dizer que até mesmo as
papel social na sociedade. Quando,
universidades e escolas que estão
na verdade, é essencial a retomada
com esse modelo de aulas virtuais,
do papel social do Estado para que
provavelmente, vão manter esse
nós possamos equilibrar de novo essa
modelo, pelo menos em parte,
relação entre os grupos da sociedade.
a partir do próximo ano, mesmo
E olha o que a pandemia fez. Ela escancarou essas diferenças
depois da pandemia. Mas quem pode ter acesso a isso?
sociais. Ouço muitas pessoas
Na Universidade Federal, eu tenho
dizerem que a pandemia é
alunos que acompanham as aulas por
democrática, porque ela pega ricos
celular e é o único celular da família
e pobres, negros e brancos, que
para todos acompanharem todas as
ela é igual para todo mundo, e em
aulas, do irmão mais novo até o pai.
todo mundo, e isso não é verdade.
Então nós temos um déficit também
O que a gente vê é que a maioria
da exclusão digital. A exclusão
das pessoas que está morrendo,
social leva à exclusão digital. Então,
essas milhares de pessoas que estão
não é verdade que a pandemia
morrendo, são as mais pobres. São
é democrática, que a pandemia
aquelas que chegam no hospital e
acertou todos do mesmo jeito.
não são atendidas, são aquelas que não têm acesso a remédios.
A pandemia escancarou essa
São aquelas que não têm médico
diferença social gritante de um
para cuidar, não têm plano de saúde.
mundo que virou consumista. E é isso que nós somos, vamos ser
81
sinceros. Nós estamos aqui com o
empresa pode decidir aquilo que eu
melhor computador, com todas as
posso ou não falar? E aquele acordo
configurações, a placa é de um jeito
que foi feito em São Paulo entre o
e para poder acessar tem que ter
governo e as empresas de telefonia
também o link que está no programa
para monitorar o movimento dos
tal ou no aplicativo tal. E a gente
cidadãos em nome do combate à
acredita que, porque temos acesso
pandemia, dizendo que é importante
à internet, nós ganhamos a liberdade
saber aonde o cidadão vai para
máxima. Sabe o que o sistema global
poder mapear o caminho do vírus?
nos convenceu? De que nós somos os mais livres da história da
Eu acredito que durante a pandemia
humanidade, porque nós podemos
isso é não só constitucionalmente
conversar com nossos amigos do
possível e legalmente possível,
mundo inteiro. Temos as redes
porque temos a lei 13979/2020 que
sociais, trabalhamos pelo computador,
veio para estabelecer como o Estado
compramos pelo computador e
vai lidar com as nossas liberdades.
pagamos pelos aplicativos.
Mas e depois da pandemia? Será que esse sistema vai ser
Só que nós nos esquecemos de que
retirado? Será que tudo o que foi
todos esses aparatos, aplicativos,
gravado, tudo o que foi coletado
sites, programas, hardware e
das nossas informações vai ser
software, pertencem a grandes
deletado? Ou vai ser guardado e,
conglomerados, a grandes empresas
possivelmente, utilizado para
transnacionais de tecnologia.
outras finalidades?
Então, nós não somos livres. Nós fazemos o jogo da Apple,
Outro dia, pesquisando na internet,
nós fazemos o jogo da Microsoft,
eu cliquei em uma cidade da Espanha
nós fazemos o jogo desses novos
e recebi em todas as mídias sociais
conglomerados, desse novo
propaganda de hotel daquela cidade
metacapitalismo, porque são eles
que eu tinha acessado.
que definem os caminhos da nossa
Quer dizer, aquele meu dado de
liberdade. São eles que definem
uma pesquisa a partir de uma
o nosso acesso. São eles que
curiosidade virou um algoritmo de
promovem este acesso e controlam
mercado para me induzir à compra,
o que nós estamos dizendo.
para tentar descobrir quais são os
O Twitter derruba aqueles posts
meus gostos, aquilo que quero fazer
que alega que têm algum conteúdo
e me massacrar com propaganda,
contrário as suas normas.
com a mídia para que eu me torne cada vez mais consumidor e
Mas e a liberdade? Como é que uma
dependente desse sistema.
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83
84
E todos nós estamos aqui, com
da sociedade para não ficar só
computador de última geração,
debatendo as ideias, discutindo
celular e o ano que vem vamos ser
ideologia A com ideologia B
induzidos a comprar um modelo
e qual delas responde melhor
mais novo. Então, isso não é
aos problemas que a sociedade
liberdade. Nós estamos escravizados
apresenta. Porque tem uma coisa:
não só pelo sistema, não só por
nem os problemas sociais dos
essa mídia que estamos usando
direitos fundamentais e nem o
aqui hoje, mas também até pelo
problema da democracia começou
próprio material que nós vamos usar,
com o novo coronavírus.
que é fornecido por um grupo de empresas transnacionais.
O coronavírus é mais uma crise, de todas aquelas que nós convivemos
A razão prática do Estado
a vida inteira, a flexibilizar os direitos
Constitucional que foi abandonada,
fundamentais. Imagine você que a
que é essa de promover os direitos
própria Constituição permite que
fundamentais, deu lugar a uma razão
os direitos fundamentais sejam
de mercado que nos convenceu
flexibilizados em face de uma crise,
o que é o certo. Qual seria, então,
e nós nunca vivemos um momento
a única proposta a se fazer nesse
sequer na nossa história recente que
sentido para garantir o retorno à
não tivesse uma crise. Nós nunca
democracia? Vai parecer clichê,
vivemos um momento em que
mas não tem outro caminho que
tivéssemos plenamente os direitos
não seja a educação. Nós da
fundamentais.
universidade estamos acostumados aos debates acadêmicos que muitas
Essa discussão perpassa também
vezes são muito herméticos.
por este entendimento. Não
Nós temos a cultura dos marcos
podemos permitir que o estado
teóricos internacionais, como se
flexibilize os direitos fundamentais
quanto mais eu citar os autores
sem conversar com a sociedade,
alemães, mais inteligente eu sou.
sem debater com os representantes
Com isso, nós nos divorciamos
das classes sociais qual a intenção
daquela utilidade prática que a
daquilo.
ciência do direito tem que ter.
Para encerrar, não há nada mais
A gente deve priorizar nas
absurdo do que, no momento da
universidades a extensão
pandemia, com milhares de pessoas
universitária. Devemos nos
morrendo, você saber de corrupção
conectar mais com a sociedade,
do Estado exatamente nos materiais,
entender mais os problemas reais
naquilo que é usado para a saúde
85
pública. E isso só vai ser revertido se a sociedade voltar a se interessar pela sua participação democrática e não simplesmente ser um passageiro ou um espectador do cenário político brasileiro. Eu espero, sinceramente, que a gente possa acordar para a necessidade de o direito ir para as ruas, do direito não ser mais um monopólio de quem estuda direito, ou dos profissionais do direito, mas que possa ser ensinado na sala de aula para as crianças, no colégio, para que nós possamos entender nossos direitos. Tem alguma coisa errada nesse processo que nos excluiu da discussão democrática. Muito obrigado.
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ASSOMBROS E SONHOS: PANDEMIA, OLIGOPÓLIOS INTERNACIONAIS E NOVOS ARRANJOS COMUNICACIONAIS1
Roseli Figaro2
Dividirei a minha exposição em
se deseja realizar por força de
dois momentos: o momento dos
vontade, aquilo que se imagina,
assombros e o dos sonhos. Do que
que se luta para alcançar ou as
estamos falando quando tratamos
imagens e narrativas desconectas
de assombros? Há no dicionário dois
que realizamos durante o nosso
campos de sentido para isso: um
sono e que guardam relação com o
que é o do espanto, da admiração
inconsciente. Há ainda o sentido de
e o outro que é o do terror e da
quimera, aquele monstro mitológico
fantasmagoria.
de múltiplas cabeças, a fantasia.
O mesmo acontece com o termo
Começarei pelos assombros no
“sonhos”, que também tem vários
sentido do espanto, falta de ar frente
sentidos: o da aspiração do que
ao terror, à fantasmagoria,
1
Conferência proferida na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 10 de setembro de 2020.
2 Professora livre docente na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) e do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT).
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que é algo que não se conhece
a polivalência e a flexibilização
muito bem, que é novo e faz com
do mundo do trabalho. A razão
que percamos o fôlego, o controle
neoliberal estabelece alguns
de nós mesmos.
termos que passam a ser parte de um dogma, o qual deve ser
Estamos vivendo um momento
repetido assim como um cântico:
do assombro não só por conta da
“eu sou colaborador”, “eu sou
Covid-19, do afastamento social,
empreendedor”, “eu sou inovador
que é um assombro, uma virada.
e eu não devo me solidarizar nem
O assombro da pandemia chega
ter empatia com quem está do
em um ambiente recheado de
meu lado, que passa a ser um
problemas, de outros fantasmas,
concorrente”.
de terror. Tais termos já os encontrávamos Há mais de 30 anos no nosso país,
nos anos 1990, nos nossos estudos
vivenciamos uma lógica discursiva
sobre as empresas3. Nas grandes
ideológica, organizacional, política
companhias metalúrgicas esse era
e neoliberal chamada razão
o mantra que se consagrava para
neoliberal. Ela encuca em todos nós
a desestruturação das relações de
a necessidade da desestruturação
trabalho, sobretudo as relações
do Estado de direito, a perda das
sindicais, as negociações, os direitos.
relações contratuais, dos direitos contratados coletivamente. Prega
Esse cenário, então, é extravasado.
o individualismo, o consumismo,
Sai das grandes fábricas e entra
o estar livre para o mercado, o
em todos os ambientes, inclusive
indivíduo solto no mundo para
nas escolas. Temos disciplina de
enfrentar o mercado. Também
empreendedorismo para as crianças,
há o fantasma do preconceito,
no ensino fundamental, em que se
do negacionismo, preconceito à
ensina uma mentalidade, uma forma
diversidade e contra a cidadania.
de pensar. Isso é ideologia. Isso é fazer política.
Esse ambiente do fim dos direitos trabalhistas, da precarização, da
O assombro que vivemos nessa
fragmentação é fundamental
época se aprofunda nos anos
para a política que dá vazão à
2000, com o avanço da internet
reestruturação produtiva no Brasil
e, sobretudo, com o avanço das
dos anos 1990, que vem com
grandes empresas de plataforma,
3
Uma dessas pesquisas é a tese Estudo de recepção: o mundo do trabalho como mediação da comunicação, desenvolvida pela própria conferencista na ECA-USP.
91
a composição de novos oligopólios,
da exploração do trabalho e de um
como o chamado GAFAM4, que são
novo paradigma da circulação do
de uma outra natureza.
capital. Eis a questão de fundo.
Então, deparamo-nos, nas duas
Quando nós, comunicadores,
décadas do século XXI, com a
apontamos o problema que o
transformação da lógica dos meios
afastamento social, gerado pela
produtivos, a implementação de
pandemia da Covid-19, traz para o
uma tecnologia digital, de uma
profissional realizar o seu trabalho,
linguagem que permite digitalizar
a gestão do lar, as dificuldades,
qualquer coisa: a minha voz, a minha
sobretudo das mulheres
expressão, o meu olhar, o meu gesto,
trabalhadoras que têm de cuidar
o meu texto, a sua fotografia, tudo.
dos filhos, da casa, da família e do trabalho, parece que estamos
Tal conhecimento, na primeira
falando de coisas de outro mundo.
década dos anos 2000, foi cantado por grande parte da intelectualidade,
Mas, afinal, nós não tínhamos
dos cientistas, como expressões da
chegado aos céus, onde tudo se
economia do compartilhamento,
resolve pela tecnologia?
da inteligência coletiva, de que
Não é só ficar conectado?
nós tínhamos chegado à aldeia
Parece que não.
global, às relações horizontalizadas
Então, também esse momento
plenamente democratizadas,
proporciona uma reflexão mais
em que todos são iguais. Há milhares
profunda. Como explicar essa
de páginas escritas sobre isso.
condição do trabalhador? Cinquenta5 por cento da força
Hoje, temos condições plenas de
de trabalho brasileira está fora
olharmos para esse material e
do mercado de trabalho. Uma
entendermos que foram quimeras.
outra parte está subempregada
Estamos falando de um momento
em trabalhos fragmentados por
em que há, no início do século XXI,
tarefa, precários, sem pagamento,
a ascensão de um novo modelo de
sem condição. São milhões de
empresa, de um novo paradigma
trabalhadores que estão nessa
tecnológico, de um novo paradigma
amargura. Há uma quantidade
4 Sigla formada a partir das iniciais que reúne o conglomerado formado por Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. 5 A força de trabalho aqui é entendida como todos aqueles em idade apta para o trabalho. Segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2021, o Brasil possui 85.650 mil pessoas ocupadas; 14.805 mil desocupados; 76.483 mil fora da força de trabalho. https://www.ibge.gov.br/explica/ desemprego.php
92
93
94
enorme de jovens que estão sendo
Sem o trabalho vivo desses milhões
queimados vivos para pedalar ou
de trabalhadores, que somos todos
dirigir a sua moto para entregar
nós, inclusive do trabalho do usuário,
coisas por aí a troco de centavos.
a inteligência artificial não é nada a não ser uma sequência normativa.
Essa é a realidade do GAFAM.
Então, esse é o assombro.
Estamos falando sobretudo das plataformas mais vinculadas
A crueza do aprofundamento,
aos serviços de comunicação,
da exploração da força de trabalho
como, por exemplo, a Amazon
chega em um momento em que
Mechanical Turk . Quantos milhões
grande parte da intelectualidade
de trabalhadores com tarefas
mundial criou os seus assentos
fragmentadas, parcializadas,
teóricos na máxima de que o
trabalhadores do clique – como
trabalho não é mais a central para
nós os chamamos – há pelo mundo
se pensar o mundo e a sociedade,
afora? Qual a diferença desse
que não é importante para se pensar
trabalhador do clique, que trabalha
a arte, que não é importante para
por centavos, do trabalhador de
se pensar a comunicação, que não
entrega de comida ou mesmo dos
é importante para a cultura, que o
trabalhadores com diploma, com
conceito de trabalho não é nada
especialização, que estão alugando
mais para eles.
6
os seus serviços por hora? O dentista, o professor, o tradutor,
No entanto, tudo está centrado na
o revisor, o jornalista, o publicitário
lógica de como se criam coisas,
– que condição de trabalho é essa,
pensamentos, comunicações.
diferente daquela do início do século
Mas isso é trabalho. É atividade
XX, tão bem retratada em “Tempos
humana de trabalho. Essa é a
Modernos” por Charlie Chaplin?
faceta mais humana do humano. É a sua condição de ser capaz de
A fábrica não é mais aquele
criar algo. O trabalho é central para
ambiente coletivo, embora
se pensar a sociedade. Vejam o
absolutamente mecanizado, mas
que acontece hoje, por exemplo,
é uma fábrica global de pessoas
com os publicitários, devido à
isoladas, trabalhando para o robô,
publicidade programática, com
sendo coordenadas por algoritmos,
a lógica algorítmica de se traçar
ensinando a inteligência artificial.
perfis. Eles viraram analistas de
Que inteligência é essa?
dados, de perfis. São como mineiros
6
Shopping center virtual em que são publicadas, inclusive com valor de remuneração, as tarefas que os computadores teriam dificuldade de executar sozinhos.
95
na extração da mina. É isso que os
tecnologias. Não somos contra a
trabalhadores e analistas são porque
tecnologia, as ferramentas,
a mina de dados de big data precisa
o conhecimento. Isso é fruto do
ser traçada, porque a extração de
trabalho humano. Ninguém é dono
dados, o extrativismo de dados feito
disso. Nenhuma civilização abre mão
por essas plataformas é a lógica da
daquilo que ela conquistou. Ninguém
monetização para fazer o capital
quer voltar a andar de carroça nem
circular.
vai abrir mão do seu refrigerador para passar a cuidar da carne com o
A lógica da monetização está
sal. O que queremos é nos apropriar
baseada em uma circulação rápida,
igualmente dos valores e das
constante e das mais relevantes
maravilhas que esse conhecimento
em termos dos cliques, e não da
proporciona. Queremos o fruto
qualidade. Para formar o quê?
desse conhecimento distribuído para
A minha montanha de minério,
a sociedade, e não embolsado por
de dados. E os analistas são o quê?
meia dúzia de trilionários.
São os mineiros, que vão buscar
Isso é possível. Esse é o sonho.
o ouro, a pepita de ouro, a pedra preciosa, os pacotes, os lotes de
Na parte do assombro falta dizer
dados que são leiloados para a
que essa lógica da monetização dos
publicidade programática.
dados de todos os trabalhadores é a lógica que coloca o cidadão fora da
Isso afeta o mundo do trabalho de
cidadania. Ele deixa de ser cidadão
publicitários, dos jornalistas, dos
para ser usuário. É a palavra que
relações públicas e de toda uma
nós temos ouvido hoje. Não é nem
cadeia produtiva, da educação
consumidor mais, é usuário.
inclusive. Temos de pensar muito
Você precisa usar. Por que você
bem se nós vamos continuar a
precisa usar? Para dar o clique,
ensinar nossos alunos a trabalhar
para estar conectado.
com softwares ou se iremos ensinar
Com isso, tem-se uma avalanche de
o que eles precisam saber, que é a
informações circulando de todos os
filosofia, a sociologia, o saber pensar
tipos e, sobretudo, informação que é
e analisar a realidade para poder se
aquele tipo de narrativa – imagética,
movimentar nesse mundo,
sonora ou textual – que está
se defender, se preparar
construída para chamar o clique.
e ter sonhos realizados. É quase impulsiva essa relação que É fundamental destacar que essa
nós temos com as telas.
lógica da mercadoria orienta a
É de impulso, de acerto e erro.
forma de usos e apropriações das
Você nem quer, mas já está lá.
96
97
Não é por você só. Isso é pela lógica
Cria o medo, a insegurança nesse
do conhecimento que se adquiriu
caldo de crise – crise do emprego,
do funcionamento de nossas
crise financeira e crise também da
habilidades no processo sensorial.
falta de confiabilidade, da dúvida, da insegurança no momento de
A quantidade de informação circula
pandemia.
de maneira geral e controversa, porque nos chega sempre
As pessoas dizem que não querem
como embate. O que é uma boa
tomar a vacina, porque elas
informação? Como selecionar a
desconfiam de todos, de tudo,
boa informação? Em que você vai
esqueceram-se do conhecimento.
acreditar? Aí você vai para as redes
Voltamos um século atrás. Esse é
dos amigos, para as correntes e você
o momento de assombro. E o que
é enredado. Como fez a Cambridge
retrato dessa forma não é nem um
Analytica , do senhor Steve Bannon,
quinto do que os dados mostram.
e outros pelo mundo, chamados
Se vocês abrirem os olhos, a sua
engenheiros do caos , para ludibriar
sensibilidade e olhar para o outro,
as populações, organizá-las pelo
olhar o que é um ônibus na periferia,
que elas têm de pior, pelo ódio, pelo
o que é condição de moradia, o que
confronto, pelo preconceito, pela
é uma população imensa do Brasil
incapacidade da compreensão.
sem saneamento básico no século
7
8
XXI, essa é a realidade, factível, Não se trata de uma lógica natural
que precisa ser confrontada com a
da tecnologia, e isso é preciso
assombração das fake news.
ficar muito claro, já que é a forma que monetiza mais rapidamente.
Nossa inteligência coletiva está
Eis a questão. Todas as lógicas de
sendo monetizada e fazendo parte
monetização mais expressivas do
da riqueza de poucos.
Facebook, das redes sociais são
Essa inteligência coletiva é que faz
aquelas vinculadas a algum tipo de
o capital circular, se valorizar em
informação incorreta de escárnio,
benefício de poucos. Por isso, temos
de preconceito e por aí vai. O que
de sair do assombro, respirar fundo
essa lógica cria na sociedade?
e buscar alternativas.
7
Estamos nos referindo ao escândalo, divulgado em março de 2018, sobre o vazamento e uso de dados de 50 milhões de norte-americanos usuários do Facebook, pela consultoria Cambridge Analytica, como estratégia para angariar votos à campanha de Donald Trump em 2016. Para se atualizar sobre o caso, sugerimos a leitura da série de conteúdos disponibilizados pelo El País, que podem ser consultados no link https://brasil.elpais.com/noticias/caso-cambridgeanalytica/.
8
Fazemos referência ao livro de Giuliano Da Empoli, 2019.
98
E agora, o que vamos fazer? É isso
informação de qualidade nesse
que muitos jovens comunicadores
ambiente tóxico? Temos que sair
e experientes têm buscado fazer
desse cenário altamente intoxicado
e outros trabalhadores também,
e pensar nos sonhos.
mesmo aqueles iludidos com a ideia do tal do empreendedorismo,
O que é sonhar? O sonho também
de que vai ser patrão de si
pode ser visto em duas chaves de
mesmo, o que é uma situação de
sentido. São várias chaves,
aprofundamento da precarização,
mas vamos escolher aqui não
sem dúvida, da perda total dos
aquelas narrativas desconectas do
direitos e da desregulamentação
nosso inconsciente, das fantasias,
dos direitos do trabalho.
nem das quimeras mitológicas. Vamos escolher o sonho na
Tal assombro, que se materializa na
perspectiva histórica, naquela
hashtag, no top trends,
condição maravilhosa do ser
nos youtubers beneficia, além das
humano com a sua imaginação do
empresas de plataformas, uma
realizável, a projeção do possível,
porção de outras companhias
daquilo que se projeta construir,
satélites, que são como parasitas
daquilo que vamos construir juntos.
que atuam a partir desse conjunto de dados e se beneficiam deles
É nessa perspectiva que nós vamos
sobretudo na política. Vamos pegar
tratar o sonho. O sonho desses
o caso da Cambridge Analytica.
jovens que não têm trabalho nem
Eles não são Google nem Facebook,
emprego e que vão atuar para
mas como é que atuam no Twitter,
encontrar um trabalho, que vão criar
no WhatsApp? Precisamos estudar
as suas alternativas de trabalho.
mais isso. Qual é essa lógica que
O que não quer dizer que estamos
permite o acesso a perfis específicos
idealizando essas alternativas,
e possibilita criar a discórdia, criar e
porque elas são frágeis, precárias,
aprofundar a insegurança, o medo
com muitas dificuldades de
para que aqueles sentimentos mais
sustentação. Mas elas são reguladas
daninhos emerjam do ser humano
pelo sonho de se fazer um trabalho
e se expressem na arena pública,
no qual se acredita, por se fazer um
desconstruindo o Estado de bem-
bom trabalho para a sociedade.
estar social, que nós, no Brasil, nunca tivemos, e o Estado de direito.
Nós estudamos e encontramos
Eles são um canto ao fascismo.
no Brasil centenas desses jovens,
É isso que eles afirmam.
também experientes jornalistas,
Então, trata-se de um ambiente
sobretudo, que se organizam para
tóxico. Como é que vamos produzir
juntos fundarem um veículo de
99
comunicação. É uma alternativa de
arranjo de trabalho de jornalistas
trabalho e também uma alternativa
muito competentes. Quem fez a
de produção discursiva que se
reportagem do problema sobre a
propõe fazer um outro jornalismo,
polícia na Argentina, cercando a
voltado para aqueles valores que se
moradia do presidente?
aprende, certamente, nas profissões:
Quem tinha a informação?
de que somos comunicadores
Quem está acompanhando todo dia,
responsáveis por aquilo que
toda semana, a informação sobre o
fazemos, o que produzimos e temos
mundo todo? O Opera Mundi,
um compromisso com a informação
um grupo pequeno de jornalistas
de qualidade, a cidadania,
que faz um esforço danado.
9
a apuração e uma postura ética. Temos isso pelo Brasil todo. Muitos desses jovens constroem
Essa gente sonhadora não vive nas
os seus arranjos de trabalho
narrativas desconectadas do nosso
compromissados também em
sono, não vive na fantasia. Mas essa
reportar a voz daqueles que não
gente, que se organiza nesses novos
têm espaço nos grandes meios de
arranjos de trabalho, são pessoas
comunicação. Então, são os arranjos
sonhadoras que planejam uma vida
de comunicação das periferias, dos
melhor, um jornalismo melhor,
jovens, das mulheres, dos negros,
uma assessoria de comunicação
o jornalismo de qualidade;
melhor, um marketing
de reportagem, o jornalismo
comprometido com a cidadania.
internacional. Há aí um sonho que está Não sabemos nada do que acontece
florescendo, de resistência, de que
no mundo a não ser aquilo que é
é possível construir uma alternativa.
noticiado pelas grandes agências
O problema é que todo esse
internacionais, como as guerras e
material, que é produzido por
as desgraças. Não sabemos direito,
essa gente sonhadora, ainda está
por exemplo, o que acontece na
dependente das plataformas, que
Argentina. Hoje, eu fiquei sabendo
estão ganhando dinheiro com o
o que aconteceu na Argentina
trabalho deles. É por isso que o
graças ao Opera Mundi, que é um
Google adora abrir o projeto para
10
9
A esse respeito indicamos ver o relatório da pesquisa coletiva do CPCT, intitulado As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às corporações de mídia. O material está disponível no site www.eca.usp.br/ comunicacaoetrabalho.
10 A reportagem mencionada pode ser lida no link http://twixar.me/MpBm
100
101
102
acolher novos arranjos – parece até
desses meninos que atuam com
que são muito bonzinhos, mas não.
aplicativo, dessa gente toda.
É que eles sabem onde está a mina. A mina está na criatividade do
Trata-se de uma nova regulação,
trabalho dessa gente jovem.
um novo pacto social, porque
Então, o sonho precisa galgar um
nós não podemos continuar no
outro estágio, um outro patamar.
assombro. É possível sonhar. Essas questões são relevantes
Nós já sabemos que podemos
e fundamentais, inclusive para a
nos organizar para fazer uma boa
manutenção dos Estados Nacionais,
comunicação, um bom jornalismo.
porque os termos de uso que
Agora, nós precisamos reivindicar
você clica sem ler é a lei que hoje
que esse produto do nosso trabalho
vigora no mundo. Não é mais a
não monetize apenas as plataformas.
Constituição de 1988, não é mais a lei brasileira. O que nos governa
Quando concluímos a nossa
hoje são os termos de uso dessas
pesquisa, em 2018, e publicamos
plataformas todas, e nós não
em livro nosso relatório “As relações
podemos aceitar que meia dúzia de
de comunicação e as condições
empresas mandem no mundo.
de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos
Temos de sonhar. Temos de ousar
alternativos às corporações de
no sonho, porque é possível planejar,
mídias”, já dizíamos que era preciso
organizar, trabalhar e solidarizar.
buscar políticas públicas para
Para que não só os novos arranjos
reivindicarmos a criação de fundos
de trabalho dos comunicadores
de sustentação para esses novos
tenham vida, consigam colocar o
arranjos.
seu trabalho de qualidade para as pessoas, mas que todos os outros
Esses fundos têm de ser criados
trabalhadores também possam ter
com verbas das plataformas,
esse direito.
com dinheiro que sai do nosso próprio trabalho, com os nossos
Precisamos sonhar, porque é
dados, com os dados dos usuários.
esse sonho que nos fará resistir à
É possível fazer isso. É preciso ter
lógica da segregação, à lógica da
força política. É necessário se ter
individualização e da animalização.
a regulamentação democrática
Porque o medo e a insegurança
das empresas de plataforma com
trazem a barbárie, que é a antessala
a criação de fundos públicos, não
da animalização, da perda da
estatais, para financiar o trabalho
razão total. Então, esse sonho
desses comunicadores, o trabalho
urge ser realizado, ser planejado,
103
ser mobilizado. É um sonho de
e, sobretudo, quando o sonho é
retomada do Estado de direito,
regido pelos laços de empatia e
de retomada da qualidade da
solidariedade, podendo organizar
informação, da solidariedade
e dirigir a ação. Nós precisamos
e da empatia com a coletividade.
sair do assombro. O assombro nos imobiliza. O sonho nos mobiliza.
Acredito muito na juventude,
É o sonho que vem dar uma
na força da juventude, na esperança
resposta ao assombro.
REFERÊNCIAS CPCT Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho. Site oficial: www.eca.usp.br/ comunicacaoetrabalho DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020. FIGARO, Roseli. Estudo de recepção: o mundo do trabalho como mediação da comunicação, desenvolvido pela própria conferencista na ECA-USP. São Paulo: Anita Garibaldi, 2001. FIGARO, Roseli et al. As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às corporações de mídia. São Paulo: ECA-USP, 2018.
FIGARO, Roseli et al. Relatório dos resultados da pesquisa: como trabalham os comunicadores em tempos de pandemia da Covid-19? São Paulo: ECAUSP, 2020. IBEGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego. Primeiro trimestre de 2021. https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php OPERA MUNDI. Diálogos do Sul. Golpe na Argentina? Entenda como fascismo fardado tenta avançar no país. 11 setembro 2020. Disponível em: http://twixar.me/MpBm
104
105
Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos, apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor, nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica da PUC Minas e da Reitoria.
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