Entre assombros e sonhos lampejos de primavera

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ANAISDASCAP ENTRE ASSOMBROS E SONHOS LAMPEJOS DE PRIMAVERA





Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)

XII SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL

ANAIS DA SCAP Entre assombros e sonhos lampejos de primavera

PUC-MG Belo Horizonte 2020


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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

S471a

Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel (12. : 2020 : Belo Horizonte, MG) Anais da SCAP [recurso eletrônico] : entre assombros e sonhos lampejos de primavera / XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel ; organizadora: Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2020. E-book (103 p. : il.) ISBN: 978-65-88583-01-2

1. Pandemia. 2. Direitos humanos. 3. Direitos fundamentais. 4. Democracia. 5. Meio ambiente. 6. Racismo. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Campus São Gabriel). III. Título. CDU: 342.7(100) Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086


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EXPEDIENTE

Organização e Edição:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:

Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez

Revisão:

Mário Francisco Ianni Viggiano

Fotografias:

Rodrigo Pinheiro Fernandes


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Grão-chanceler:

Reitor:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Prof. José Tarcísio Amorim

Assessor Especial: Pró-reitores:

Prof.ª Maria Inês Martins (Graduação)

Prof. Wanderley Chieppe Felippe (Extensão)

Prof. Sérgio de Morais Hanriot (Pesquisa e de Pós-graduação)

Prof. Paulo Sérgio Gontijo do Carmo (Gestão Financeira)

Prof. Rômulo Albertini Rigueira (Logística e de Infraestrutura)

Prof. Sérgio Silveira Martins (Recursos Humanos)

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Secretário de Comunicação:

Secretária de Cultura

e Assuntos Comunitários:

Secretário Geral:

Secretário de Planejamento

e Desenvolvimento Institucional:

Prof.ª Maria Beatriz Rocha Cardoso Prof. Ronaldo Rajão Santiago

Prof. Carlos Barreto Ribas

Pró-reitor Adjunto

da PUC Minas São Gabriel:

Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão:

Coordenador de Pesquisa:

Coordenadora da

Pastoral Universitária:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva

Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues


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SUMÁRIO

EDITORIAL

Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12

A TERRA É UM ORGANISMO VIVO

Aílton Krenak 17

ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O DESAFIO DE IDENTIFICAR E ENFRENTAR O RACISMO À BRASILEIRA

Rodrigo Ednilson de Jesus 54

A DEMOCRACIA E A LIMITAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA

ASSOMBROS E SONHOS: PANDEMIA, OLIGOPÓLIOS INTERNACIONAIS E NOVOS ARRANJOS COMUNICACIONAIS

Bruno Wanderley Júnior

Roseli Figaro

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EDITORIAL O ano de 2020, provavelmente,

herdamos e intensificamos em relação

será lembrado como o ano em que

à destruição do planeta e às injustiças

a Terra parou, devido à pandemia

sociais, questões que estão muito mais

de Covid-19 que precipitou uma

interligadas do que pode parecer.

ruptura no funcionamento da vida em sociedade, de tal forma que, além de somar-se a outras crises, evidenciou os problemas enfrentados resultantes da emergência climática, do aumento das desigualdades, das ameaças à democracia e da destruição dos biomas da Amazônia e do Cerrado brasileiro, que por sua vez, abre caminho para o surgimento de novas pandemias. Esta ameaça invisível nos faz indagar sobre os humores da Terra e sobre a correlação de nossas vidas com os demais seres vivos. A pausa involuntária nos faz pensar sobre nossos modos de vida regidos por uma cruel aceleração da lógica de superprodução e de consumismo. As mazelas ambientais, sociais e políticas presentes nas sociedades emergem na pandemia, apontando para a urgência de buscarmos novos rumos. A pandemia está a nos dizer

Por já terem vivido vários fins de mundo, as lideranças indígenas têm sido muito convocadas nestes tempos, e assim, nos aproximamos de Aílton Krenak, com quem conspiramos pela chegada da primavera. São suas palavras que abrem estes Anais com o texto A Terra é um organismo vivo. Krenak alerta para a necessidade de que a primavera seja produzida em nossas subjetividades, que sejamos capazes de expandir nossa percepção sem os condicionamentos a que estamos acostumados, e que devemos observar ao nosso redor, como os jovens do Xingu, que perceberam que as andorinhas não estavam voando na mesma ocasião, que as bananas estavam apodrecendo ainda de vez e que os cajus caíam antes de amadurecer, e de que tudo isso são sinais de que estamos indo além do que a Terra nos autoriza.

que o futuro pode vir a ser muito hostil

Assumir um tratamento mais

para os humanos. Entre assombros e

respeitoso com a Terra, compreende

sonhos, estamos experimentando uma

também estabelecer um outro

necessidade inadiável de reflexão e

pacto entre nós humanos que

transformação.

compartilhamos a vida no planeta,

Não podemos mais delegar para

o que implica reconhecer e nomear

gerações futuras o desastre que

todas as injustiças para que possamos


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contestá-las. Rodrigo Ednilson de Jesus

“iremos ensinar o que elas precisam

nos apresenta Alguns apontamentos

saber, que é a filosofia, a sociologia,

sobre o desafio de identificar e

o saber pensar e analisar a realidade

enfrentar o Racismo à brasileira para

para poder se movimentar nesse

combatermos as desigualdades que

mundo, se defender, se preparar

são históricas no nosso país.

e ter sonhos realizados? ”

Assim como nos aponta Aílton Krenak

Vislumbrar outros futuros exige um

e Rodrigo Ednilson, as injustiças estão naturalizadas em narrativas que predominam na nossa cultura, e Bruno Wanderley vai salientar em A democracia e a limitação dos direitos fundamentais em tempos de pandemia como a promoção dos direitos garantidos na Constituição de 1988 foi substituída por uma lógica

alargamento do pensamento e um exame das estratégias de sobrevivência periféricas. Em março de 2020, Barbara Duriau lançou um grupo público no Facebook com o objetivo de conectar pessoas ao redor do mundo no período de isolamento social: o View From My Window. Apesar de não ser um critério do grupo, as imagens

de mercado.

compartilhadas são, em sua maioria,

A partir desta questão colocada por

paisagens espetaculares. Inspirado

Bruno Wanderley, Roseli Figaro vai

na ideia do grupo, Rodrigo Pinheiro

examinar a narrativa

Fernandes, artista e grafiteiro, produziu

tecnomercadológica potencializada

o ensaio fotográfico De Quebra, um

pela algoritmização da vida em

olhar do cotidiano de sua comunidade,

Assombros e sonhos: pandemia,

Vila Maria, na região nordeste de Belo

oligopólios internacionais e novos

Horizonte. Formada majoritariamente

arranjos comunicacionais.

por trabalhadores, cujas funções não

A preocupação com os rumos da

permitiram o isolamento em casa,

educação, entendendo o seu papel

mas acostumada a criar redes de

primordial para produzir futuros,

solidariedade, a quebrada não perde

está presente em todas as falas e

de vista o horizonte.

Roseli Figaro alerta para a necessidade de refletirmos criticamente sobre o que está sendo ensinado a nossas crianças, questionando se continuaremos a

vistas de lugares privilegiados, de

Estes são os Anais da SCAP: Entre assombros e sonhos, lampejos de primavera.

ofertar uma formação utilitarista ou

Leiam e reflitam.

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel


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A TERRA

É UM ORGANISMO VIVO1 Ailton Krenak2

Eu gostaria de me dirigir a essa

vamos enfrentar do ponto de vista

possível audiência que nós temos

dessa sociedade global que nos

pela internet, porque, se nós

constitui e que nós aprendemos

estivéssemos fazendo um encontro

no século XX a pensar como uma

presencial, a gente estaria vendo o

humanidade, vivendo em todos os

rosto uns dos outros, estaríamos

continentes da Terra.

nos afetando com a presença uns dos outros, nos auditórios,

E fechamos o século XX com essa

nos espaços onde a universidade

ideia de uma humanidade sendo

acolhe esses eventos celebrativos.

abalada pelo anúncio de que essa

Agora nós estamos aqui imaginando

casa comum que nós habitamos,

que tem gente atrás dessa telinha e

a Terra, ela tem limites.

que possa ter mesmo uma audiência

Então, pensando nesse programa,

interessada nesses encontros.

eu achei que seria oportuno falar para a juventude que provavelmente

Eu considerei que seria uma

nos assiste e que é a maior parte da

oportunidade de falar com jovens.

comunidade acadêmica,

Estou imaginando que estou

a grande população que frequenta

falando com aquela geração que vai

os corredores, as salas e os

enfrentar o desafio de dar conta das

auditórios das nossas universidades

mudanças climáticas, das migrações

e laboratórios, essa turma que está

e das grandes incógnitas que nós

na idade de nossos filhos de 15, 17

1

Conferência proferida por Aílton Krenak na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 08 de setembro de 2020.

2 Filósofo, Poeta, Escritor, Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, organizou a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia. Comendador da Ordem de Mérito Cultural da Presidência da República e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.


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e 20 poucos anos de idade, e que

velocidade do tempo. Aqui em casa

tem um desafio enorme pela frente.

tem gente com 9, 10 anos de idade, tem uma menina com 17 anos e os

Vamos imaginar que todo mundo

meninos adolescentes aqui da aldeia.

que está entre 15 e 30 anos de idade

Todos eles apontam no cotidiano

recebeu no começo desse milênio o

essa observação de como o tempo

mundo projetado há 50 anos atrás.

está passando rápido.

Essa geração não teve escolha. Ela recebeu o mundo a delivery.

Essa ideia de um tempo passando

No livro Ideias para adiar o fim do

rápido, uma ideia que pode ser

mundo, eu convoquei essa imagem

percebida no comum, no cotidiano,

de uma geração produzindo efeitos

é muito mais aguda e tem muito

que vão configurar um mundo que

mais consequências quando nós

só vai ser recepcionado pela geração

pensamos no tempo em relação a

futura. Eu chamei isso de um

essa casa comum que nós vivemos

mundo a delivery. Seria como estão

que é o planeta Terra. O nosso

vivendo hoje essas pessoas em

magnifico reitor Dom Mol se referiu

seus apartamentos, ligando para a

ao Papa Francisco, dizendo que

farmácia ou para o açougue ou para

esse mundo que nós habitamos

a padaria e pedindo sua refeição,

e compartilhamos é a nossa casa

fazendo suas compras, fazendo

comum. Essa percepção de que

suas encomendas, nesse tempo

tudo que acontecer a essa casa vai

virtual, em que uma parte da nossa

afetar cada um de nós é o sentido

subsistência, da nossa organização

de comum que essa casa tem.

cotidiana, é feita a delivery. E a consciência sobre essa casa Eu não imaginava que fosse

comum, ela foi também a motivação

compartilhar aqui, nessa região do

do último presidente da União das

mundo onde nós vivemos, uma

Repúblicas Soviéticas, Sr. Mikhail

virtualidade do cotidiano e um

Gorbatchov, que fez uma grande

afastamento tão radical dos sentidos

mudança interna em seu país,

da vida que minha geração que está

naquelas nações que constituíram

agora com 60 e poucos anos,

o bloco União Soviética, quando

70 anos, projetou para si mesmo e

ele iniciou uma grande campanha

para a futura geração.

mundial para fazer a perestroika.

Nós estamos sendo surpreendidos com a velocidade com que as

A perestroika constituía exatamente

mudanças acontecem. Não são só

em fazer uma mudança radical dentro

as pessoas com mais de 40, 50 anos

da experiência de desenvolvimento

que experimentam esse sentido de

político, econômico e social daquelas


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repúblicas que estavam denunciando

século XX anunciavam a promessa

a gravidade das mudanças climáticas

de um mundo melhor. Um mundo

no final da década de 1970 e 1980,

melhor onde coubessem as nossas

quando já se apontava para uma crise

diferenças, onde coubessem

do clima, em que o tipo de consumo

as diferentes escolhas que nós

e o tipo de disputa que estava

tínhamos que fazer. Mas nós

havendo entre os blocos socialista

fomos todos engolfados por uma

e capitalista podia levar-nos a um

perspectiva de mercado e de

rápido fim de mundo.

consumo que nos transformou numa humanidade desigual e que

Digamos que era um fim de mundo

consegue consumir um planeta Terra

anunciado no fim do século XX.

até maio, junho de cada ano.

Nós conseguimos conviver com narrativas sobre fins de mundo

É o que nós vínhamos fazendo

em quase toda a segunda metade

desde 2010, 2012. Nós começamos

do século XX devido às relações

a consumir dois planetas ao longo

conflitantes que os blocos e países

de um ano. A capacidade de

alimentavam entre si. O anúncio

suprimentos que o planeta Terra tem

da globalização no fim da década

para essa nossa humanidade global

de 1980 e 1990 animou muita

tem fim. Ela não pode ser consumida

gente a pensar que nós íamos

no ritmo que nós treinamos fazer

finalmente alcançar aquela ideia

no século XX. O século XX foi muito

de uma humanidade capaz de ter

enganoso ao introduzir o consumo

responsabilidade comum sobre a

em todas as regiões do planeta.

nossa Casa Comum.

Mesmo nas regiões mais remotas do Pacífico Sul, na África, na Ásia,

Entre o Papa Francisco e o Mikhail

o padrão de consumo se tornou

Gorbatchov, nós temos quase

o mesmo. Todo mundo comendo

30 anos de anúncio sobre a

comida empacotada, processada,

necessidade de olharmos uns para

superprocessada, perdendo a

os outros e avistar uma perspectiva

perspectiva de onde vem aquilo que

comum que nos dê sentido

nós bebemos e comemos.

como humanidade, mas nós não conseguimos ainda configurar essa

A água passou a ser uma commodity

humanidade prometida.

em muitas regiões do planeta e vem

Prometida no cinema, na literatura,

sendo disputada de uma maneira

nas artes, na política.

tão brutal que nós chegamos no caso do Brasil a pôr em risco a

A maior parte das mudanças

nossa soberania com relação ao

políticas que aconteceram no

suprimento de água potável para as


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comunidades ribeirinhas. Foi o caso,

fricção com a nossa natureza,

por exemplo, da bacia do Rio Doce,

verbalizando e traduzindo a

calcinada pela lama da mineração

natureza que nos envolve, que

e que deixou milhares de famílias

nos protege, que nos dá remédio,

à margem desse maravilhoso Rio

comida. Tudo nós tiramos da terra.

Doce, que os Krenak chamam de

Essa observação do meio ambiente

Uatú, esse nosso avô, ele está em

surgiu de uma sociedade que já

coma pela lama da mineração.

estava achando que podia produzir a vida, podia manipular a vida

O Paraopeba e muitas outras bacias

de uma maneira soberana e que

hidrográficas estão sujeitas a esses

não precisava respeitar os limites

danos, os nossos aquíferos.

naturais da biosfera do planeta Terra.

Então temos a vantagem

É aqui na biosfera do planeta Terra

circunstancial de habitar um país

que nós vamos ter que resolver

continental, mas nós temos as

todas as nossas perspectivas de

desvantagens de não conhecermos

existência, tanto no campo da

o que nós temos e de tratar de uma

ciência, do desenvolvimento,

maneira indiferente o futuro desses

no campo da política, nas demandas

rios, mananciais e nossas florestas.

que nossas diferentes comunidades apresentam para viver, como ter

Talvez seja em razão do meu

um território para viver, para comer,

envolvimento com a sobrevivência e

para descansar.

com o direito dos povos que vivem

Todas essas demandas que são

dentro da floresta que precisam dos

comuns à comunidade seja indígena,

rios, que precisam de uma natureza,

seja comunidade urbana, que é ter

como ficou pensado essa separação

o ar puro, água para beber, ter um

entre a cultura e a natureza,

lugar para repousar com segurança,

o homem e a cultura e a natureza,

viver numa comunidade que se

esse dilema que me faz pôr em

implica uns com os outros, que

questão o porquê de eu carregar

se afeta uns com os outros e que

comigo o atributo ou a designação

constrói perspectiva de futuro.

de ambientalista, quando, na verdade, eu sempre percebi

Construir perspectiva de futuro não

a vida, a terra e tudo que existe

é só prometer o futuro, não é só

como natureza, eu mesmo como a

desejar um bom futuro. É construir

natureza, e tudo ao meu redor

a cada dia as possibilidades de

como natureza.

nós continuarmos convivendo, estabelecendo cooperação entre

Aquilo que nós produzimos como

essas diferentes comunidades,

cultura é a expressão da nossa

diminuindo as divergências e os


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24


25

preconceitos que ainda são grandes

negando a ciência. Quando é que

e que implicam em práticas de

nós negamos a ciência? Negamos

discriminação, racismo, segregação,

a ciência quando dizemos que não

entre nós mesmos, essa mesma

tem uma pandemia e que é só uma

comunidade de diferentes grupos

gripezinha. Negamos a ciência

sociais que constitui a nossa

quando nós dizemos que a Terra é

sociedade, nossa comunidade

plana. Negamos a ciência quando

brasileira.

dizemos que não tem mudança climática, que sempre foi assim.

Nós temos tanta ruptura entre os

Nós sabemos que as mudanças

nossos campos de imaginar mundo

climáticas são fatos objetivos.

e desejar mundo que hoje nós compartilhamos a experiência de

Em 1976, um relatório com o nome

confrontar uma pandemia que mata

de Nosso Futuro Comum, assinado

e apavora muitas famílias, muitas

pela primeira ministra da Finlândia,

pessoas. E, ao mesmo tempo, temos

teve como coordenadora a senhora

autoridades e instituições públicas

que deu o nome ao relatório

que deveriam estar solidárias e

Brundtland, senhora Brundtland.

próximas a essas famílias que estão

Ele já dizia que se nós

sofrendo, e que, no entanto, estão

continuássemos acelerando

minimizando a crise e, às vezes,

o consumo e a predação dos

negando mesmo que a gente

ecossistemas sensíveis da Terra,

esteja passando por uma tragédia

daquilo que nós chamamos de

humanitária que é o que representa

biodiversidade do planeta, em 35

essa pandemia.

anos nós não teríamos mais como parar esse dano, essa erosão.

Eu não vou insistir no tema da pandemia, porque é amplamente

Ora, de 1976 até agora, já se

divulgado e só não presta atenção

passaram muito mais de trinta anos

e não tem consciência da gravidade

e nós já ultrapassamos o limite.

quem quer negar a realidade.

É por isso que eu digo que nós

Essa experiência social que agrava

estamos consumindo dois planetas

a situação de desigualdade entre

por ano. A Terra não suporta mais

as nossas várias comunidades que

essa pegada dos humanos que

constitui o povo brasileiro, que é

imprimiram no planeta uma marca e

a atitude negacionista, em que

que vem sendo identificada como o

quem deveria estar estimulando o

antropoceno, uma era. Nós estamos

respeito às orientações científicas,

imprimindo uma pegada tão pesada

a divulgação da ciência, apoiando

sobre a diversidade do planeta que

e estimulando a pesquisa está

está causando o desaparecimento


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de espécies e a degradação da vida

gente jogar mercúrio, veneno e

no sentido vasto.

poluição.

Mesmo que uma pessoa tenha

Inclusive o nosso lixo urbano

todo o dinheiro do mundo, ela não

tem como destino as nossas

vai conseguir ter uma vida melhor

bacias hidrográficas. Quem vive

num planeta pesado, num planeta

nas grandes cidades sabe disso.

ameaçado. Ora, se nós chegamos

Na época das chuvas, as suas

a extinguir algumas espécies até

cidades ficam inviáveis. Elas ficam

aqui, ameaçando a nós mesmos de

inviáveis porque a água não tem

ficarmos sem casa, sem essa casa

seu caminho próprio. Então, nós

comum, nós precisamos prestar

temos um conjunto de questões

atenção naquilo que a ciência afirma,

que essa juventude pode enfrentar

naquilo que os estudos da ecologia,

para ajudar que o mundo que eles

da agrofloresta e da própria prática

estão herdando, esse delivery que

mesmo da produção de alimentos,

a geração que antecedeu a vocês

que é apoiada na atividade dos

produziu, que ele possa ser melhor,

agrônomos, nos cientistas que

que ele não seja tão difícil de obter

pensam o solo, dos especialistas

água, comida e abrigo para essa

do solo que vêm denunciando o

humanidade que nós pensamos ser.

crescente dano da agricultura, o dano que a monocultura causa ao solo.

Eu digo humanidade que nós pensamos ser, porque, se nós fomos

O solo é alguma coisa que acaba

animados a pensar que estávamos

também, assim como a água.

constituindo uma humanidade

Nós acostumávamos dizer

planetária, global, que a ciência

antigamente que no nosso planeta,

e o conhecimento iam nos dar as

que tem dois terços de água

condições para nós fazermos a

ocupando todo o planeta,

gestão da vida nesse planeta,

não precisaríamos de nos preocupar

há muito tempo a gente perdeu

porque teríamos muita água

essa expectativa.

sempre. Nós vamos ter muita água sempre, vamos ter sempre a mesma

Nós estamos diante de um dilema,

quantidade de água que deu origem

dos refugiados na Europa, dos

a nossa experiência nesse planeta

refugiados aqui também na América

maravilhoso que é a Terra, esse

Latina. Se você for para Belém, para

planeta azul. Só que a água está

Manaus, ou mesmo Boa Vista, lá em

ficando doente. A água está ficando

Roraima, você vai ver um tanto de

indisponível para o uso adequado

gente do Caribe que está imigrando,

que nós podíamos fazer antes da

ou mesmo da Venezuela, dos países


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vizinhos da bacia Amazônica,

Vocês estão vendo o que está

imigrando para além das fronteiras

acontecendo nos Estados Unidos

e entrando no Brasil, demandando

nas últimas semanas. Um abalo

necessidades econômicas,

em uma sociedade que se achava

necessidades de várias ordens.

estabilizada e com governança. Eles estão enfrentando o desafio

Então o Brasil, assim como outros

que eles não foram capazes de

países, vai ter que se preparar para

superar no século XX, que é o dilema

lidar nos próximos 20 anos com o

do racismo estrutural. Esse mesmo

grave dilema dos refugiados.

racismo estrutural que afeta a vida

Temos que ser capazes de pensar

de milhares de pessoas no resto da

como criar infraestrutura e condições

América Latina e que no Brasil tem

de acesso a todos aqueles que

emergido com marca de racismo

constituem a nossa comunidade.

contra os indígenas também.

Aquilo que é essencial à vida, considerando, por exemplo,

Um ministro da Educação, antes de

os objetivos do milênio que deveriam

sair do Brasil para ocupar um cargo

estar na agenda de qualquer

na diretoria do Banco Mundial, em

governo, municipal, estadual, governo

Washington, foi gravado dizendo:

federal. Ninguém vê onde foram

“eu odeio essa expressão povos

parar essas recomendações, esses

indígenas”. Ora, isso é racismo.

compromissos para que a gente

E proferido pelo ministro da

pudesse constituir ao longo de duas,

Educação é racismo e é uma ofensa

três décadas, uma plataforma em

à formação desse país que, como

que os direitos humanos, a igualdade,

todos sabem, foi constituído,

os objetivos de cooperação e o

assim como toda a narrativa do

cuidado com a nossa vida comum

mito de origem do Brasil, por índios,

aqui no planeta tivessem constituído

negros e brancos.

um programa comum, de todos os povos, para além de nossas

É uma ofensa para os povos

fronteiras.

indígenas que um ministro da Educação fale, mesmo que no

Então, a minha oportunidade de

privado, que odeia a palavra povos

me dirigir a vocês, ela vai ocupar

indígenas. Os povos indígenas são

muito mais o campo do pensamento

uma parte indispensável de qualquer

político e a relevância da ciência do

narrativa sobre o Brasil, anterior ao

que trazer para vocês visões sobre

Brasil, e deveriam ser respeitados na

a arte. Mas eu creio que a geração

sua originalidade de serem os povos

de vocês tem o desafio de pensar

que estavam aqui quando Portugal

o mundo onde caiba a diferença.

aportou na nossa praia.


28

Eu queria sugerir a vocês que vissem

a todas as senhoras, senhores,

um documentário que passa na

a essa juventude que, quem sabe,

Netflix com o título de Guerras do

tenha ficado diante da tela para

Brasil. Vocês vão ter a oportunidade

ouvir um homem do povo Krenak

de entrar em contato com diferentes

falar sobre esse tempo que nós

narrativas sobre a constituição dessa

vivemos, sobre a contemporaneidade.

nação brasileira, a sua complexa

No livro Ideias para Adiar o Fim do

formação e a razão pela qual os

Mundo vocês vão poder encontrar

povos indígenas deveriam ter um

um pouco mais das questões que eu

lugar de honra na constituição dessa

levanto acerca de pensarmos que

nação brasileira e nunca serem

somos uma humanidade,

ofendidos por uma autoridade do

mas insistimos nas nossas

ministério da Educação.

desigualdades e em privilégios intoleráveis que nós temos que

Nós estamos falando em um

superar para podermos ao menos

ambiente da universidade

legar às novas gerações as

e a universidade tem sido

perspectivas de um mundo possível.

insistentemente atacada também

Um mundo de onde nós vamos ter

por pessoas que ocupam um lugar

que mitigar os danos já causados

de destaque na vida política do

pelas gerações anteriores.

nosso país, principalmente aqueles que estão com mandato executivo.

Eu achei muito interessante

Mas, também, você ouve gente que

que o Papa Francisco tenha se

está no Congresso falando coisas

referido à ancestralidade como

sobre a nossa formação como país,

um valor a ser resgatado. Eu fiquei

sobre a nossa constituição e sobre a

muito feliz porque, de alguma

própria ideia do nosso futuro como

maneira, a narrativa do século

se fosse um desprezo pela história

XX, principalmente a narrativa do

do nosso povo, pela diversidade

Ocidente, ela fez uma escolha tão

cultural e pela ainda possibilidade

individualista que as gerações foram

de nos constituir de verdade numa

se descolando uma das outras e

nação solidária. Solidária entre

a própria ideia de ancestralidade

nós que nos reconhecemos como

ficou como legado de povos

brasileiros e solidária com os outros

remanescentes, como se quem tem

povos, para que a gente possa ir

a ancestralidade fossem somente os

no sentido de construir essa casa

afrodescentes, os povos ameríndios,

comum, essa nossa casa comum.

os indígenas. E ancestralidade é o que nos torna todos humanos.

Eu agradeço muito a oportunidade

Não é uma perspectiva para além

de dirigir a minha fala a todos vocês,

do dia que nós vivemos hoje,


29


30

mas é tudo o que nós somos de

eles têm uma convivência próxima

memória, tudo o que nós somos de

dentro do território do Xingu e

perspectiva, de subjetividade

observaram que a ecologia que eles

e de sonhos.

acompanhavam ao longo do ano, os ciclos da vida que eles observavam

Então, se nós estamos vislumbrando

estavam mudando, porque muitas

primaveras, que a primavera seja

das coisas que eles coletavam ao

também produzida para além de

longo do ano estavam se perdendo.

buscar a primavera na paisagem,

A banana antes de ficar de vez,

primavera de paisagens, que ela seja

pretejava.

produzida em nós, na subjetividade

O caju caía antes de madurar.

que nós somos capazes de expandir.

E observavam que as andorinhas não

Aquela subjetividade que é capaz de

voavam mais na mesma ocasião.

produzir os paraquedas coloridos,

Elas não faziam o mesmo trajeto e

que não são artefatos, mas são

não indicavam a época da chuva,

dispositivos de pensar, pensar

a época da colheita, a época

sem corrimão, como dizia Hannah

de queimar. Então eles foram

Arendt, pensar por si próprio.

observando nos sinais da cultura, do conhecimento sobre a ecologia

O livro Ideias para Adiar o Fim do

daquele território. Eles observaram

Mundo, assim como O Amanhã não

as mudanças climáticas que os

está à Venda que antecederam um

cientistas estavam monitorando

que saiu agora em agosto com o

pelo painel do clima e produziram

título A Vida não é Útil são uma

pequenos filmes com o título

expressão clara de pensar sem

Para Onde foram as Andorinhas.

corrimão. É quando você consegue

Observação de que as andorinhas,

observar o mundo ao seu redor e

assim como todos os pássaros,

perceber uma disrupção da linha de

os peixes, a vida é capaz de nos

entendimento dos eventos que estão

sinalizar quando nós estamos

acontecendo, sejam eles sociais,

exagerando, quando nós estamos

políticos ou ambientais, é você ser

indo além do que a Terra nos

capaz de fazer como os pássaros,

autoriza.

como as abelhas, como as borboletas.

A Terra é um organismo vivo. Eu tenho repetido em várias

Os nossos parentes lá do Xingu,

oportunidades, a Terra é um

há dois anos atrás, observando a

organismo vivo. Os povos indígenas

mudança climática, os jovens daquela

das Américas sempre disseram que

comunidade, do povo Kamaiurá,

a Terra é a nossa mãe. Os nossos

do povo Mehinako, do povo Aweti,

parentes da América Latina dizem


31

pachamama. E os cientistas agora

desprovidos de qualquer coisa

concordam que esse organismo vivo

material e, podem ter certeza, a vida

é Gaia, tem uma hipótese de Gaia

é um dom que a gente pode fruir,

e tem uma ciência sobre Gaia que

experimentar a cada dia. A vida

indica que o organismo é vivo,

deveria ser experimentada como

tem humor, reage e, como se referiu

uma dança cósmica e não como

ao me receber aqui nesse encontro

alguma coisa útil. Vocês, jovens,

o nosso magnifico reitor Dom Mol,

aprendam com seus pais, com seus

ele disse: “a Terra responde. Se nós a

avós, com seus tios, para além de

atacarmos ela vai responder, ela vai

aprender na universidade, aprendam

responder se a gente estiver sendo

com seus ancestrais. E, nesse

abusado com a vida na Terra”.

sentido, eu faço coro com o Papa Francisco, resgate seus sentidos de

E, de fato, o organismo vivo da Terra,

ancestralidade, não ande sozinho

observado pelos povos indígenas,

pelo mundo. O mundo é um lugar

observado pelos cientistas pelo

para ser sempre compartilhado e a

painel do clima, ele tem a potência

vida aqui na Terra pode ser boa,

de nos corrigir quando nós formos

mas vai depender do tipo de

abusados com a vida aqui na Terra.

pessoas que nós nos constituirmos.

A vida é um dom maravilhoso. A gente não pode imaginar a vida

Muito obrigado pela audiência de

como uma coisa útil, ou utilitária.

vocês.

O título do livro A Vida não é Útil põe em questão essa máquina de que tempo é dinheiro. Pergunta - Mesmo após tantas Ora, a maior parte dos jovens é

décadas de luta, você ainda tem

assolada por esta propaganda de

esperança, vê esperança para o

que o tempo é dinheiro, de que eles

Brasil?

têm que aproveitar sua juventude, porque quando estiverem velhos

Aílton Krenak - A esperança ela me

estarão aposentados e não vão

move no sentido de construir as

ter tanta vantagem nesse mundo

bases materiais, as bases objetivas

materialista, nesse mundo que

para que a gente possa fazer votos

mede a relevância da vida pelo

de um mundo melhor e ter

quanto a pessoa pode ter, e não pela

esperança apoiada no conhecimento.

experiência de ser.

É diferente da esperança que eu chamaria de esperança placebo.

Alguns dos seres humanos mais

Nós estamos vivendo num tempo

interessantes que conheci eram

de pandemia e tem alguns remédios


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que você toma uma bolinha de

articulam. Estes são os campos do

açúcar para pensar que aquilo é

conhecimento que são capazes

remédio, que melhora, isso aí se

de dar conta dos desafios que nós

chama placebo. Quando você bate

vivemos: a ciência, a arte e a política.

no ombro de alguém e fala assim:

Se nós formos capazes de exercitar

vai dar tudo certo fique bem, fique

esses campos do saber, nós vamos

tranquilo. Eu chamo esse tipo de

ser capazes de produzir mundos.

esperança, de esperança placebo.

Tem um livro muito bom do nosso

Ela não está apoiada em nada, ela

querido Davi Kopenawa Yanomami

é só uma esperança. E eu acredito

que tem o título de A Queda do Céu,

que nós podemos experimentar uma

uma cosmovisão Yanomami. Esse

esperança com relação à vida, mas

livro é coisa fundamental. Espero

essa esperança deve ser o resultado

que as universidades brasileiras

do conhecimento.

adotem ele, porque ele já está sendo

É por isso que eu associo a ideia de

adotado por universidades na

esperança também com a ciência.

Europa como uma grande novidade,

A ciência tem essa importância.

digamos assim, por introduzir uma

O conhecimento, o saber tem a

outra epistemologia, por

importância de dar a base para a

introduzir uma outra cosmovisão

nossa perspectiva, para a nossa

de humanidade, de sociedade

subjetividade, porque se a esperança

e de mundo. Na narrativa de

é do campo da subjetividade,

Yanomami, esse mundo que nós

ela também deve estar apoiada no

compartilhamos hoje, este planeta

conhecimento. Eu tenho esperança,

onde a gente vive, está na terceira

porque eu conheço as bases

edição. Porque na história antiga dos

objetivas desse mundo que nós

Yanomami, esse mundo já se

compartilhamos.

acabou algumas vezes. E é muito

Sei da complexidade dele.

interessante também que na

A minha esperança não é vã,

história do Ocidente também já

a minha esperança é fundada no

teve um dilúvio. E essa ideia de

conhecimento.

acabar mundos, de fins de mundo, tem muito mais a ver com a nossa

P - Ainda há algo que pode ser feito

percepção de mundo, do que com

para melhorar essa situação em que

a realidade material do planeta

nos encontramos?

Terra onde nós vivemos. Então nós temos um mundo que a gente pode

AK - Há tudo por fazer.

entender que é a nossa criação e nós

E, principalmente, pensando que

temos um mundo que é o planeta

nós estamos tendo um encontro

que nós habitamos.

em que ciência, arte e política se

E, às vezes, a gente confunde essas


36

duas coisas. O planeta que nós

E se nós legamos um passado

habitamos ele é finito, não tem duas,

colonial, racista e preconceituoso,

nem três edições.

nós precisamos cuidar disso.

Mas um mundo que nós imaginamos

Não podemos simplesmente

habitar, ele pode ser criado quantas

embalar esse mundo e passar para

vezes a gente for capaz de imaginar

frente, para a próxima geração sem

mundos. Nós somos capazes de

resolver. Isso significa ter esperança

criar mundo. E esse mundo onde

no mundo.

estamos vivendo agora, se ele não está bom, é porque a gente

P - Como poderemos contribuir

não criou um bom mundo para

efetivamente para a preservação

compartilhar uns com os outros.

dos direitos dos índios na atual

É daí que a gente incentiva que os

conjuntura nacional e estadual?

jovens pensem em mundos melhores

Krenak, você poderia nos contar

do que aquele que estão recebendo

como está a realidade e a situação

a delivery das gerações anteriores.

atual da sua tribo com a pandemia,

E pensar nas nossas relações com

se houve impactos e mudanças

os ancestrais, criticamente também.

necessárias não enfrentadas antes?

Não é porque são nossos ancestrais que tudo que eles fizeram estava

AK - Eu vou responder primeiro a

certo. E nós podemos reverenciar

questão do povo Krenak, porque

os nossos ancestrais e observar

me alegra o espírito saber que o

de maneira crítica o que eles

povo Krenak passou por todas as

configuraram de mundo para nos

difíceis situações do fim do século

legar agora nesse começo de século

20, virou o século 21 consolidando

XXI e que a gente vai legar para

um território, pacificando as relações

as gerações da década de 2030 e

com os nossos vizinhos que no

2040. E, quem sabe, eles vão olhar

século 20 foram muito trágicas e

para trás e dizer: mas que pessoal

resultaram em experiências muito

preguiçoso passou atrás da gente

traumáticas. Vocês sabem que

por aqui, ou que pessoal devasso

houve experiência de militarização

passou atrás da gente por aqui.

da política indigenista dessa região

Então, tem uma responsabilidade

do Brasil e o território Krenak foi

geracional, e isso tem a ver com a

uma espécie de laboratório, onde

ideia da ancestralidade também.

inclusive foi instituído um presídio,

Ancestralidade não é só algo

um reformatório. Então, se você

do campo, digamos, espiritual,

olhar a história de 50 anos atrás,

transcendente. Ele é da ordem

era para o povo Krenak ter

também das nossas relações sociais,

desaparecido ou ter se diluído nessa

das nossas relações humanas.

massa de migrantes e refugiados


37

internos do Brasil, e não teria mais

estávamos prevenidos. Quando

memória da sua ancestralidade, não

chegou a pandemia, a gente apenas

teria mais a capacidade de ensinar

acionou as nossas práticas de

para as suas novas gerações quem é

cuidados. Fechamos as entradas e

esse povo, que foi um dia chamado

territórios e passamos a orientar as

de botocudos da floresta do Rio

pessoas a não ficar andando por aí

Doce. Nós temos uma memória

e obedecer aquelas orientações das

viva sobre essa floresta do Rio

organizações mundiais da saúde

Doce, assim como nossos parentes

como usar máscaras, manter o

Maxacalis, que conseguem dar

distanciamento, as mãos lavadas,

nome a espécies de plantas e de

os cuidados de higiene, lavar as

animais que estão extintos na Zona

mãos e evitar aglomeração. Uma

da Mata, que estão extintos nesse

coisa óbvia que, se todo mundo

encontro de cerrado com campos

tivesse feito, a gente não estava com

rupestres. Estas espécies de animais

130 mil óbitos. Nós chegamos a esse

e de plantas que estão extintos

escândalo, porque a gente ignorou

eles conseguem desenhar, nomear

as recomendações.

e convocar esses seres nos seus cantos na língua Maxacali. Porque,

P - Como podemos inserir uma

para os Krenaks e para os Maxacalis,

educação ambiental e social na

as montanhas, os rios,

educação básica que temos hoje no

os animais, as plantas são seres.

país. É possível interagir as crianças

São seres que têm a mesma

com esse tipo de conhecimento?

importância que nós os humanos e que deveriam ter o mesmo cuidado

AK - Pensando o primeiro setênio,

que nós demandamos, que nós

naquilo que o Rudolf Steiner

queremos que os humanos tenham.

considera como esse período de

Eles também deveriam ter esses

pousar a alma do ser. Esse contato

mesmos cuidados com as florestas,

da primeira infância com a prática da

com os rios e com as montanhas.

agrofloresta, como contato com a

O povo Krenak está aqui numa

terra, que eu chamo de fricção com a

reserva do Rio Doce, numa floresta

natureza, isso deveria ser a prioridade

de 4 mil hectares e nós estamos

quando a gente pensa em Educação.

refugiados aqui desde que a lama

Quando o serviço da Educação se

de Mariana invadiu nosso território,

organiza, ele não deveria ter como

passou por aqui no fundo das

objetivo de alfabetizar a criança e

nossas casas. Vai completar cinco

nem de despertar na criança sobre

anos. Nós somos abastecidos por

qualquer outra técnica. Ele deveria só

caminhão pipa e já estávamos

possibilitar a segurança para que a

confinados e, de certa maneira,

criança pudesse ter uma experiência


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até os 6, 7 anos de intensa comunhão

Como você se sente espiritualmente

com a vida na Terra, com os outros

falando nesse momento da chegada

seres além dos humanos e,

do Covid-19 e a morte de tantas

obviamente, essa Educação deveria

pessoas?

ser feita no seio da família. Mas como você vive num lugar, na região do

AK - Eu me sinto como um cuidador.

mundo onde a própria ideia da

Pode parecer pretensioso, mas

família está sendo posta em questão,

eu me sinto como alguém que

ela está se desestruturando por

está engajado num momento de

razões que se sobrepõem e vai

crise, para pelo menos diminuir o

desde a pobreza até a violência,

sofrimento e a depressão que atinge

a discriminação, tudo isso põe esse

muita gente. Outro dia falando

lugar que a criança deveria ter como

com uma senhora, uma jornalista

privilégio, como um lugar de risco e

que estava em Portugal, ela me

o endereço da criança fica sendo a

disse que já tinham três meses que

escola. As crianças vão muito cedo

ela estava com as crianças dela

para a escola e já que vão muito cedo

no apartamento e que ela estava

para escola, que pelo menos tivessem

enlouquecendo. Eu disse para ela,

a orientação de que um terço do

então, agora nesse tempo nós

período escolar fosse dedicado a

temos que ser capazes de contar

atividades com a natureza, produção

histórias para as crianças que sejam

de alimentos, confecção de coisas

menos apavorantes do que o lado

com as mãos. Ou seja, experimentar

de fora da casa. Ela disse: o que

um contato mais direto com a vida,

nós vamos ensinar para as nossas

ao invés desse isolamento dentro

crianças presas no apartamento?

de uma sala de aula estudando,

Eu falei, busque ensinar a eles

pensando. É claro que não vou

primeiro a ter paciência e depois

abrir um debate agora sobre

coragem. Paciência e coragem.

Educação, mas já que a pergunta

Não é para ficar doente, não é para

é sobre educação ambiental, sobre

ficar deprimido e nem com raiva,

sensibilizar as crianças para uma vida

é para ter paciência e coragem.

mais ligada com a ecologia de cada

Nesse momento, eu acho que o

ambiente em que eles vivem,

exercício é paciência. Mas alguém

eu acho que isso vale a pena.

vai falar que paciência não faz nada. Faz sim. Paciência evita os danos.

P - Como você percebe as

Imagina o tanto de gente que

iniciativas para mudar essa

fica se contagiando na praia. Esse

realidade atualmente?

feriado agora a praia ficou entupida

Eu li que você é muito empático e

de gente. Você não tenha dúvida,

ligado espiritualmente à natureza.

daqui a 15 dias nós vamos ter uma


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notificação daquela marca do mapa.

vai dar conta de toda essa tragédia,

Ela vai subir. Eu digo para vocês,

mas nem de tudo. É por isso que o

agora é hora de ficar quieto. E essa

antropoceno significa uma realidade.

fissura de mandar as crianças para

Ele não é só uma especulação.

escola antes de acabar o ano é uma

Os cientistas que trabalham com

insistência de vender o amanhã.

essa temática do antropoceno

O amanhã não está à venda e

mostram as evidências de que nós

você sabe da estreita analogia que

estamos erodindo a base da vida na

existe entre a infância e o amanhã.

Terra para os humanos. E o grande

Quanta gente diz que as crianças

Lévi-Strauss disse que a Terra

são o amanhã! Então, nós estamos

existiu muito antes dos humanos e,

vendendo o amanhã quando a gente

muito provavelmente, vai continuar

bota essas crianças para sair de

existindo depois. Nós não fazemos

casa por intolerância, por falta de

falta aqui.

paciência com eles, afinal de contas, será que as famílias se esqueceram

P - Como podemos contribuir

de que o lugar delas é em casa?

efetivamente com a preservação

Agora, quando tem que ficar com as

dos direitos dos índios na atual

crianças em casa, fica todo mundo

conjuntura nacional e estadual?

arrancando os cabelos, tem que

Qual o maior desafio que você já

mandar as crianças para algum lugar,

enfrentou nessa sua luta em defesa

ou a escola ou o shopping,

dos direitos indígenas?

ou alguma coisa. Sobre o reclame da juventude consumista, eles foram

AK – Há 30 anos atrás, na

criados para isso.

constituinte, havia otimismo, uma

Não tem como exigir que essa

perspectiva que os brasileiros

juventude, que está com 17, 20 anos

finalmente iriam construir uma

hoje, ter uma crítica sobre o

experiência de democracia e que

consumo. Eles são estimulados ao

nós iríamos, assim, iluminar todos

máximo a dar uma resposta de

os campos do nosso país com

consumidores fanáticos.

uma experiência social avançada.

Essa juventude foi treinada para

É claro que essa esperança não

consumir e agora eles vão ter

foi alcançada no curto prazo e ela

que ser educados para diminuir o

sofreu muito revés, inclusive com

consumo. E quem sabe eles vão

gente negando o fundamento da

conseguir ensinar seus filhos a ter

democracia como uma condição

um pouco mais de cerimônia com

para constituir uma nação.

aquilo que eles comem e consomem,

Mas nós vamos continuar e a luta

porque a vida é uma maravilha, é um

por direitos. Não é alguma coisa

dom, mas ela tem limites. A gente

que você conclui na vida. Diferente


45

de uma biografia, que você chega

um status que a gente obteve e não

um tempo que você para e escreve

deixar recuar mais, não deixar recuar.

a história, a luta por direitos é para

É por isso que a gente tem que

sempre. O grande Nélson Mandela

impor respeito à Constituição que o

é para mim muito além de alguém

Brasil tem. O respeito à Constituição.

que fez a experiência de organizar

Quando você vir um ministro, uma

a vida política na África do Sul,

autoridade pública desfazendo do

seu país de origem. Ele é para mim

princípio que está na Constituição,

um grande pensador do nosso

negue seu apoio a esse sujeito.

tempo que conseguiu dar conta de

A questão não é de como participar

questões muito importantes que era

socialmente. Preste atenção em

o próprio horizonte da democracia

quem você vota. Por enquanto,

na África do Sul. Eles viviam dentro

o sujeito só tem um mandato se

de um apartheid. Eles viviam no pior

alguém eleger ele. Apesar de todas

mundo que você pode imaginar de

as ameaças, ainda é pela eleição

segregação e terrorismo contra o

que se consegue mandatos.

povo de origem africana, os negros.

Então preste atenção. Vai ter

Eles eram segregados pelos colonos

eleições daqui a pouco para

brancos que foram tomar conta de

vereador. Olhe se você não vai botar

seu território. Mas o Mandela teve

uma corja de irresponsáveis para

a genialidade e a generosidade

depois você reclamar. No mandato

de construir uma experiência

principal da República, as pessoas

democrática, em que eles não

fizeram a escolha que quiseram e

tinham que escorraçar os colonos.

agora estão pagando o pato, não é?

Ele abriu um lugar, um caminho de convivência entre o povo africano e

P - Como você vê a situação e

vários povos, porque eles têm muitas

as perspectivas dos povos da

etnias. Ele mesmo tem uma etnia

Amazônia?

que é Xhosa. Depois tem o Zulu e têm muitas etnias que constituem o

AK - Nós podemos olhar a

povo da África do Sul, para além do

perspectiva dos povos da Amazônia

africâner, que são aqueles colonos

em mais de uma direção. A gente

brancos. Ele arrumou uma maneira

podia pensar o seguinte, a despeito

daquela gente se acomodar e olhar

de todo o bate-boca sobre a

um horizonte, um futuro possível.

Amazônia. Ela ainda se constitui

O Brasil não é mais miserável do

num dos maiores acervos de

que aquela situação racista e nós

biodiversidade do planeta.

havemos de vencer isso também.

Os povos que vivem na Amazônia

E essa questão dos direitos, deixar

estão inseridos nesse universo

de ser uma mitigação e passar a ser

fantástico de riqueza biológica e


46

quando ele é pensado positivamente

O Brasil festeja o recorde de

como o lugar onde a economia do

exportação de grãos e ele deveria

futuro vai se desenvolver,

prestar atenção no que está

que ela vai juntar biotecnologia com

largando para trás quando ele

o conhecimento ancestral.

exporta grãos. O Brasil bate recorde

Se nós formos capazes de respeitar

de exportação de minério.

o direito à vida daquelas populações,

Ele deveria olhar para trás e ver

não estou falando só dos indígenas

como fica a Serra da Piedade,

não, os seringueiros, os ribeirinhos,

o Pico do Cauê, o Rio Doce,

o povo do Chico Mendes e todas as

as montanhas que Carlos

outras comunidades extrativistas

Drummond Andrade falou que

que vivem dentro da floresta e que

estavam indo embora de trem.

sabem viver da floresta, quando essa gente puder aportar outras

P - O Brasil possui a sexta

tecnologias a seu tempo,

população mundial e ao mesmo

vão poder criar a possibilidade

tempo o nosso país desponta no

de vida ideal sem destruir aquela

ranking global de países com o

floresta. Pensando por outro lado,

maior desmatamento, ao seu ver,

nós teríamos que nos levantar agora

por que a população brasileira

para impedir essa destruição dessa

adotou uma postura tão passiva

rica biodiversidade da Amazônia,

e inerte frente aos absurdos

porque ela está sendo invadida

praticados contra o meio ambiente?

nesse momento e as queimadas

Por que não há uma cobrança

estão crescendo. E quando parar

mais ostensiva no que concerne

e passar esse período agora de

ao combate ao desmatamento,

agosto e setembro, nós vamos ter

preservação e revitalização das

uma breve parada das derrubadas

nossas florestas?

e queimadas, mas nós vamos ter a ocupação desses lugares que

AK - Seria o caso de nós evocarmos

foram derrubados e queimados por

aqui o tanto de lideranças da

pastagem. É o ciclo de invasão de

floresta, de povos da floresta que

expansão de fronteiras agrícolas

foram assassinados enfrentando essa

para dentro da floresta. Essas áreas

questão do desmatamento. Inclusive

que foram queimadas agora que

a irmã Dorothy que foi assassinada

esfumaçaram o céu do Acre e de

no Pará, que era inglesa e trabalhava

Rondônia estão abrindo espaços

com comunidades na floresta. Os

e vai entrar gado para lá. Então a

empresários da madeira contrataram

gente tem que ter uma visão crítica

os jagunços para matar uma

sobre o tipo de economia que nós

missionária, porque ela estava do

estamos disponibilizando.

lado das comunidades que estavam


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defendendo a floresta. O Chico

É uma mentalidade que precisa ser

Mendes foi assassinado por proteger

reeducada para conviver com os

a floresta contra o desmatamento.

igarapés, com as nascentes, com os

Tem uma lista grande que é

rios e com as florestas.

divulgada a cada ano de ativistas de

Eu soube que aqui dentro de Belo

movimentos sociais, de lideranças

Horizonte já houve disputa entre

de associações comunitárias que são

os empreendimentos imobiliários

perseguidos e assassinados porque

e nascentes. As nascentes que

protegem a floresta. Então, não seria

tinham dentro da cidade, dentro do

correto dizer que os brasileiros são

anel rodoviário e os especuladores

indiferentes a isso. A violência que

imobiliários queriam tomar aqueles

é feita contra a paisagem, a Mata

lugares. A comunidade lutou para

Atlântica, a floresta, o cerrado é

proteger aquela nascente, vocês

movida pelo capital. Tem uma grana

sabem disso. Semana passada

atrás disso. O agronegócio, o agro

estava pegando fogo na Mata da

é pop e mata. Quando a ministra

Baleia e tudo indica que quem

Kátia Abreu estava à frente do

estava botando fogo na Mata da

Ministério da Agricultura, ela ganhou

Baleia queria despistar aquele lugar,

a motosserra de ouro.

como um lugar de recarga, no ciclo

A motosserra de ouro é um troféu

das águas. Queria despistar aquele

que os povos da floresta dão aos

lugar para poder invadir aquilo com

grandes desmatadores. A Kátia

a especulação imobiliária. Então,

Abreu, que foi uma ministra muito

a ganância, o capital e o consumo

laureada pelos governos nos últimos

são coisas que andam juntos.

anos, ganhou a motosserra de ouro que era um troféu que deveria ser

Um abraço a todos e ererré .

uma vergonha para uma autoridade. Foi entregue pela Sônia Guajajara no aeroporto quando as duas se encontraram sem nenhuma intenção e teve cobertura de imprensa e tudo. Ora, o povo no sentido geral vive na cidade, 70% da população do nosso país é urbana, aprendeu a botar calçada para todo lado. Ele derruba a árvore que está no quintal do vizinho, porque a folha cai na varanda dele. 3

Palavra na língua Krenak que significa “força sempre”.


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ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O DESAFIO DE IDENTIFICAR E ENFRENTAR O RACISMO À BRASILEIRA1 Rodrigo Ednilson de Jesus2

Eu queria iniciar dizendo da

Foi uma felicidade muito grande

importância da adesão da PUC

receber um texto deste grupo,

Minas a esse tema do campo das

formado por graduandos da

relações raciais no Brasil.

Psicologia da PUC Minas do Coração

Mais importante ainda é destinar

Eucarístico e liderado pelo professor

este espaço de debate neste

Rubens Nascimento.

momento em que a gente vive dimensões tão intensas de violência

Nesse texto, o grupo faz um

perpetrada pelo Estado contra as

importante debate sobre dois

populações negras e indígenas.

conceitos que nesse momento

E, ambiguamente, vivemos um

são muito importantes: o racismo

período de um silenciamento

estrutural e o racismo institucional.

muito brutal sobre essas mesmas

Importante dizer que o racismo

violências.

estrutural e o racismo institucional não são algo novo no Brasil,

Por isso, eu gostaria de iniciar

um fenômeno inventado pelos

comentando a própria produção

conceitos. Isso quer dizer o racismo

do Grupo de Estudos Pretos da

como estruturador das relações

PUC Minas sobre as dimensões das

sociais e do modo de produção

relações raciais.

da nossa vida cotidiana está

1

Conferência proferida na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 11 de setembro de 2020.

2

Pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, doutor em Educação pela UFMG e mestre em Sociologia pela UFMG.


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53

presente desde o momento do

queria chamar a atenção que esses

início do tráfico negreiro do Brasil,

dois conceitos trazidos à tona,

possibilitando que pessoas tenham

mais contemporaneamente, pelo

sido transformadas em objetos e

autor Sílvio Almeida, passaram

justificando o fato de que suas vidas

rapidamente a se incorporar na

pudessem ser transformadas em

nossa literatura sobre relações

objetos de compra e venda.

raciais no Brasil. Tem muita gente

Essa lógica que estrutura o sistema

fazendo o uso desses conceitos

social no Brasil é chamada, portanto,

e isso mostra também um vigor

de racismo estrutural.

dessa chave conceitual de relações raciais para entender o Brasil atual.

Como eu gosto muito do campo das

Ao mesmo tempo que a gente

palavras, da força das palavras,

nota um crescimento do debate

eu costumo dizer que aquilo que não

sobre relações raciais, a gente vive

tem nome não existe.

uma situação ambígua, notando o

Então, na medida que a gente

reaparecimento daqueles que se

não cria nome para determinados

recusam a admitir a existência do

fenômenos, é como se esses

racismo no Brasil.

fenômenos não existissem. Desse modo, o racismo estrutural

Ao pensarmos no imaginário

ganha significado na medida em que

coletivo nacional, é muito comum

é nomeado. No texto,

observar que o fenômeno do

os componentes do Grupo Preto

racismo seja definido de formas

vão dizer que o racismo estrutural

distintas. Apesar das diferentes

é social e historicamente fundante,

abordagens propostas por autores

ao passo que o racismo institucional

e autoras contemporâneas,

presentificou o racismo estrutural

tematizando o racismo estrutural,

por meio de legislações, sendo

o racismo institucional, o racismo

apenas uma forma de corporificar

recreativo, a interseccionalidade

o racismo estrutural. Então, se o

e outros, é muito comum que as

racismo estrutural está na base da

pessoas façam referência mental a

estrutura social brasileira, o racismo

um racismo que se materializa nas

institucional vai dar dinâmica para

relações entre pessoas e que se

o racismo estrutural, incorporando

expressa por meio de xingamentos,

as lógicas racistas no sistema de

ofensas e piadas.

legislação, no sistema de regulação social.

Esta modalidade de racismo, que nomeamos como racismo

Ao longo da conversa, eu quero

intersubjetivo, é, inclusive, aquele

trazer exemplos sobre isso, mas

regulado e penalizado pela


54

legislação brasileira. Ao criminalizar

O primeiro episódio envolvia a filha

o racismo intersubjetivo, a legislação

do ator Bruno Gagliasso e da atriz

brasileira acaba por dar destaque,

Giovanna Ewbank, uma menina

criminalizando, aos xingamentos e

negra que havia sofrido xingamentos

as ofensas raciais, mas deixando de

racistas por meio das redes sociais.

fora de sua definição todo o conjunto

O outro episódio envolveu o filho da

de práticas institucionalizadas

atriz Thaís Araújo e do ator Lázaro

de racismo e o próprio racismo

Ramos, que também pelas redes

estrutural que organiza e reproduz

sociais havia sofrido xingamentos

as dinâmicas de desigualdades

racistas. Importante destacar que

raciais no Brasil. Isso acaba tendo

o título completo da matéria é:

um impacto muito considerável em

Racismo Raivoso: por que esse

nossas relações cotidianas, como

mal ainda persiste na sociedade

tentarei mostrar na fala de hoje.

brasileira?

No ano de 2017, a revista Isto é

Além de reforçar que o racismo é

lançou uma edição comemorativa

algo moral, que pode ser raivoso

de fim de ano, intitulada

ou não raivoso, o título da matéria

Brasileiros do Ano. Nessa edição

vincula o racismo a uma dimensão

havia um conjunto de pessoas

puramente intersubjetiva, como

(apresentadores, políticos, juristas,

tentei argumentar há pouco. Nesse

empresários, atrizes, etc.), mas

sentido, creio que, se relacionarmos

quando eu batia o olho nessa capa,

a matéria sobre o racismo raivoso

coincidentemente, só conseguia

com a foto principal da edição

identificar brasileiros brancos, sem

analisada, poderíamos encontrar

exceção.

uma resposta plausível para a pergunta contida na própria revista:

Esse aspecto me chamou a atenção

por que o racismo ainda persiste

e por isso eu comecei a fazer uma

na sociedade brasileira? Porque a

análise semiótica dessa capa e do

existência e efetividade do racismo

próprio título. Nesse processo de

estrutural segue inquestionável,

análise notei que, curiosamente,

mesmo em uma reportagem que

havia um título secundário na parte

se propõe a abordar o tema do

superior da revista que também

racismo. Ao negligenciar o fato

despertou minha atenção. O título

de que todos os personagens

Racismo Raivoso dava nome a uma

apresentados na imagem de capa da

matéria secundária que relatava

revista são pessoas brancas, a revista

episódios de racismos sofridos por

Isto é, a um só tempo, desracializa as

filhos de dois atores famosos.

pessoas brancas (referindo-as como brasileiros do ano) e as transforma


55

no símbolo perfeito de sucesso

distribuição racial nesses cargos

individual.

é equivalente com a população brasileira?

Por que, em geral, não evidenciamos a dimensão racializada das pessoas

Estou chamando atenção para

brancas no Brasil? Por que,

este aspecto porque, a despeito da

em geral, tendemos a associar um

imagem exibida pela revista, o título

caráter de universalidade para essas

principal exibido na capa, ao mesmo

pessoas, permitindo nomeá-los

tempo que ignora o pertencimento

genericamente como brasileiros?

racial dos indicados a brasileiros

Imaginemos se essa mesma imagem

do ano, acaba por reforçar padrões

de capa estivesse composta

de normalidade, contribuindo para

apenas por empresários, médicos,

naturalizar a ideia de que raça não

apresentadores negros e negras.

faz diferença na ocupação dos

Tendo a afirmar que, provavelmente,

lugares de poder e prestígio em

a chamada principal da revista seria

nossa sociedade.

“Brasileiros Negros do Ano”. Creio, portanto, que para sermos

Entretanto, ao analisarmos a matéria

justos com a imagem exposta na

secundária, vemos como se constrói

capa, o correto seria alterar o título

uma narrativa que reforça a ideia de

da revista para “Os Brasileiros

que o racismo raivoso seria aquele

Brancos do Ano”.

que se expressaria em xingamentos pejorativos que fariam mal à psique

Voltando à perspectiva apresentada

e à autoimagem dos sujeitos.

por Sílvio Almeida, é preciso

Agindo assim, acabam por construir

dizer que as representações

uma narrativa que é moralmente

hegemonicamente brancas em

inaceitável, na medida em que

lugares de poder e de destaque

nomeia um racismo como raivoso

de nossa sociedade é também o

e acaba por insinuar a existência

resultado do racismo estrutural

de um racismo não-raivoso. Sendo

que acaba distribuindo,

moralmente inaceitável, esse racismo

de modos desiguais, privilégios

raivoso deve ser repelido por nós

e desvantagens. Se formos

e, por conseguinte, esses racistas

pensar, por exemplo, no âmbito

raivosos devem ser identificados e

da PUC Minas ou no âmbito da

punidos exemplarmente.

Universidade Federal de Minas Gerais, quantos professores negros

Após identificar e prender os racistas

e negras, quantos coordenadores

raivosos poderemos tranquilamente

de cursos negros e negras, seríamos

voltar à normalidade de um país

capazes de encontrar? Será que a

marcado pela democracia racial,


56


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58

em que os brasileiros de todas as

um pesquisador estadunidense,

cores teriam as mesmas chances na

em seu livro Racismo à Brasileira,

vida; até de serem eleitos como

vai chamar a atenção para a

brasileiros do ano, portanto. Este é,

ambiguidade presente entre a

justamente, um dos eficazes

inexistência de leis que restringem

mecanismos que Kabengele Munanga

o acesso a determinados espaços

nomeia como racismo perfeito da

para a população negra no Brasil

sociedade brasileira: um racismo que

e a existência de engrenagens

identifica vítimas, mas não é capaz

eficientes que cerceiam a presença

de identificar os perpetradores do

em determinados espaços.

racismo. Assim, ao mesmo tempo

Na esteira dessa constatação,

que a revista procura se vincular a

é importante pensar nas engrenagens

uma posição antirracista, se opondo

que permitem que a maioria de

ao que nomeia como racismo raivoso,

empresários e grandes executivos

ela acaba por perpetuar e naturalizar

brasileiros, apresentadores, modelos,

o racismo estrutural.

apresentadoras de programas infantis sejam brancos e brancas.

Ao pensarmos no fenômeno do racismo no mundo, é muito comum

No ano de 2010 um curta-metragem

trazermos à tona a experiência

intitulado Cores e Botas foi lançado

dos Estados Unidos da América,

no Brasil, com a proposta de

geralmente utilizado como forma de

apresentar a história de Joana, uma

enfatizar a agressividade do racismo

menina negra de classe média, que

de lá, em oposição à cordialidade e a

estudava em uma escola de classe

ausência de raivosidade do racismo

média e que ao longo da infância

de cá.

alimenta um sonho de ser paquita, uma das ajudantes de palco de um

Em geral, comparações como essas

programa infantil dos mais famosos

cumprem o papel de reforçar o

na década de 1990: o Show da Xuxa.

nosso mito fundacional (Mito da

Embora não sofresse com restrições

Democracia Racial). Aquele que

materiais e com desigualdade que

inaugura nossa ideia de nação

atinge boa parte da população negra

moderna e que se sustenta na

no Brasil, Joana vai se descobrir

narrativa de que o nascimento da

negra ao perceber a impossibilidade

nação brasileira é resultado de

de ser uma paquita e de ocupar

uma mistura de negros, brancos e

aquele espaço.

indígenas, que teria dado origem ao povo brasileiro, um povo

Embora não tenha ouvido de

originalmente mestiço e indistinto

ninguém, Joana aos poucos

racialmente. Todavia, Edward Telles,

descobre que aquele espaço era


59

racializado, ocupado apenas por

Sim, somos todos humanos!

meninas brancas e loiras. É nesse

Mas somos humanos diferentes.

contexto que se apresenta o racismo

Neste caso em particular, somos

ambíguo à brasileira, já que ele não

todos humanos marcados por

se afirma, mas está presente nas

diferenças fenotípicas (corpo, cabelo,

relações de modo eficaz.

tom de pele, formato de nariz, etc.), que impactam, de maneira

Ao me propor realizar uma reflexão

significativa, os modos como

sobre o racismo ambíguo em uma

vivenciamos nossa humanidade.

mesa como esta, estou sujeito a

Admitir essas dimensões é

ouvir frases resistentes como as

importante para que no campo

seguintes: “não, no Brasil não há

político a gente consiga avançar no

racismo porque no Brasil todos

reconhecimento da diferença e na

somos iguais”. “Para Deus todos

produção de políticas públicas que

somos a mesma coisa. Deus ama

produzam oportunidades igualitárias.

todos da mesma forma”. Eu costumo chamar a atenção

Neste tocante, penso que um dos

para a ambiguidade dessa própria

grandes desafios da sociedade

afirmação que é, ao mesmo tempo,

brasileira é superar o tabu na

a afirmação de que somos todos

nomeação, e da reflexão em torno

iguais e a afirmação, numa

da ideia de raças, já que é muito

perspectiva cristã, de que Deus

comum que as pessoas reconheçam

ama todos da mesma forma.

a existência do racismo, reconheçam o fato de que o Brasil é racista e de

E eu pergunto: mas se nós somos

que os brasileiros, por conseguinte,

todos iguais, por que Deus se daria

são racistas. Apesar dessas

o trabalho de amar todos

constatações, muitos vão afirmar:

(os diferentes) da mesma forma?

“não existem raças, porque somos

Esta me parece uma dupla de frases

todos humanos’’. A pergunta que

que evidencia nosso esforço para

deveríamos fazer a partir daí é: como

equilibrar o reconhecimento da

é possível haver racismo sem raça?

diferença que nos marca, que salta aos olhos quando olhamos para os

Para entendermos estas resistências

corpos, cabelos e tons de pele das

à ideia de raça, é preciso fazer uma

pessoas que circulam as ruas,

pequena digressão histórica, mais

as escolas e as casas, com a

especificamente para a década de

afirmação retórica de nossa

1940, período em que um conjunto

igualdade ontológica, ou seja,

de cientistas, patrocinados pela

a afirmação que somos todos

UNESCO, desenvolveram uma

humanos.

investigação sobre relações raciais


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no Brasil. A escolha do Brasil como

expectativas projetadas iniciais do

laboratório de experiências bem-

Projeto Unesco, já que o conjunto

sucedidas de contatos interétnicos

de pesquisadores identificaram

visava “apresentar ao mundo

as continuidades das estruturas

os detalhes de uma experiência

assimétricas de negros(as) e

no campo das interações raciais

brancos(as), herdadas do período

julgadas, na época, singular e bem-

escravista e atualizadas no

sucedida, tanto interna quanto

período republicano. De acordo

externamente”.

com Florestan Fernandes e Roger Bastide, dois pesquisadores de peso

De acordo com Marcos Chor

no âmbito do projeto, a passagem

Maio, as imagens sobre o Brasil

do sistema de trabalho servil para

e sobre o Mito da Democracia

um modelo de trabalho livre e

Racial projetadas pelas narrativas

assalariado não havia proporcionado

de Gilberto Freyre (1993) foram

à população negra recém-liberta o

fundamentais para a escolha do

usufruto real das vantagens do

país como “caso exemplar” de

sistema capitalista, pois estes

convivência harmoniosa de grupos

passaram dos postos mais

étnicos distintos. Assim, além

subordinados da hierarquia servil

dos esforços empreendidos pela

aos postos mais precários

ONU, no fim da Segunda Guerra

da hierarquia capitalista.

Mundial, no intuito de desacreditar cientificamente o conceito de

Assim, embora a UNESCO tenha

raça, que havia sustentado

chegado a um consenso sobre a

ideologicamente o genocídio de

inexistência biológica de raça como

mais de seis milhões de judeus e

diferenciador dos sujeitos e dos

de dezenas de milhares de outros

coletivos, pesquisas produzidas

membros de grupos considerados

no contexto do Projeto Unesco

“racialmente inferiores” (ciganos,

mostraram como a ideia de raça

deficientes físicos e mentais, eslavos,

estava presente no imaginário

poloneses, russos e membros de

coletivo e exercia um papel relevante

outros países do leste europeu), a

na continuidade das assimetrias.

apresentação, em âmbito mundial, de um exemplo concreto de

Importante dizer então que raça

convivência das diferenças, de

não era um conceito presente no

“equilíbrios de antagonismos”, era

imaginário coletivo, já que continua

providencial.

sendo um conceito operacional para as relações sociais. Então, por

Os resultados das investigações

exemplo, quando as pessoas falam

empíricas acabaram contrariando as

sobre o racismo raivoso,


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elas estão denunciando que algumas

pública, na medida em que afirmar

pessoas, baseadas numa crença

que raça não existia era equivalente

que associa características físicas a

a afirmar a impossibilidade de

comportamentos sociais, agem de

implementar uma política baseada

maneira negativas em relação a um

em um conceito inexistente.

determinado grupo. Entretanto, ao ler a reportagem, Quando as forças policiais associam

observamos que o trecho de início

determinadas características

diz o seguinte: “Alan e Alex gêmeos

fenotípicas a um tipo visto como

univitelinos, nascidos de mãe negra e

perigoso, como suspeito, há ali uma

pai branco foram tratados de forma

associação entre a ideia de raça e

diferente na banca”. A reflexão que

comportamentos racistas.

deveria emergir da leitura desta

No ano de 2004, ao repercutir a

frase em contraste com o título da

experiência de dois gêmeos, Alan

chamada é: se raça não existe, por

e Alex, que passaram por bancas

que as autoras usam categorias

de heteroidentificação racial na

raciais (mãe negra e pai branco)

Universidade de Brasília, a revista

para orientar o entendimento do

Veja construiu uma capa muito

leitor? Assim, ao mesmo tempo em

icônica, intitulada “Raça não existe”.

que procura sustentar que raça não

Alan e Alex, gêmeos univitelinos,

exista, ou que seja geneticamente

foram avaliados de modos distintos

inválida, as categorias raciais são

nas bancas de heteroidentificação,

cotidianamente relevantes para o

sendo que um dos gêmeos foi

nosso entendimento social, já que

considerado apto, lido socialmente

é, justamente, essa leitura sobre

como pessoa negra, e o outro

negros e brancos que estrutura o

não foi considerado apto, lido

racismo e que foi utilizada ao longo

socialmente como pessoa não negra.

dos últimos 300 anos como forma de desqualificar a população negra,

Ao noticiar o episódio, a revista Veja

vista como não inteligente, como

fotografou os dois vestindo um com

não bonita, como não capaz,

uma camisa preta e o outro com

não honesta.

uma camisa branca, acompanhados do título: “Raça não existe”.

Em uma sociedade que, após

Considerando o momento político

um século do fim do regime

de debate público em torno das

escravocrata, ainda se estrutura em

cotas raciais para a população negra

padrões exclusivistas e hierárquicos

no ensino superior, a afirmação

de acesso a bens e serviços,

feita pela revista era uma forma

não é de se estranhar a resistência

de desqualificar a própria política

expressa por muitos setores em


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aderir a ações de reparação e de

diferencialista e o antirracismo

ações afirmativas.

universalista. Em suas obras, eles vão chamar a atenção para o fato de que

Como procurei mostrar ao longo

o racismo diferencialista é o racismo

dos últimos minutos, basear esta

que sempre marcou a sociedade

oposição na afirmação de que é

brasileira e, sobretudo, o período

impossível saber quem é negro

anterior a 1930.

e quem é branco no Brasil é uma mentira mal contada, já que até

Ao observarmos o período final

pouco tempo atrás, até este fim de

da escravidão no Brasil, no século

semana, até ontem, era plenamente

XIX, verificamos que a existência de

possível saber e fazer uma distinção

raça, entendida do ponto de vista

com vistas a prejudicar um

biológico, era um consenso científico

determinado grupo e privilegiar

e servia para localizar determinados

outro.

grupos em posições superiores e outros em posições inferiores.

Por isso, se nós, como sociedade

Esse período pode ser definido

e Estado brasileiro, assumimos

como o racismo diferencialista,

que, ao longo dos últimos séculos,

porque, ao mesmo tempo em que

construímos ações negativas

se reconhecia as diferenças, ela era

dirigidas à população negra

usada para hierarquizar a diferença.

baseadas na ideia de raça, qual a dificuldade de usar a ideia de raça

Os referidos autores vão dizer que

para construir ações afirmativas

esse tipo de racismo diferencialista,

dirigidas a esta mesma população?

que também é marca do racismo nos Estados Unidos, vai ter como seu

Caminhando para a conclusão desta

oposto o antirracismo diferencialista.

conversa, eu queria mencionar

Eles vão chamar atenção para o

os autores Kabengele Munanga e

fato de que a legislação Jim Crow

Jacques d’Adesky, que vão utilizar

nos Estados Unidos, pode ser vista

duas características que, para mim,

como uma espécie de antirracismo

são conceitos muito interessantes.

diferencialista pelo fato de sustentar

São pares de conceitos. Um conceito

a existência de direitos, mas

é o que eles chamam de racismo

mantendo as diferenças: “ok, nós

diferencialista e um outro que eles

reconhecemos que somos diferentes

chamam de racismo universalista.

e vamos criar direitos, mas partindo dessas diferenças”. Assim, surgem

Por outro lado, eles vão dizer

nos Estados Unidos as universidades

sobre a existência de dois tipos

historicamente negras, a emergência

de antirracismo: o antirracismo

de uma classe média negra,


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que deriva desse reconhecimento

diferença, faz emergir como par de

da diferença e de uma luta a partir

oposto o antirracismo universalista.

desse reconhecimento. Esse antirracismo universalista Referindo-se, de modo específico,

pode ser bem observado nos meses

ao Brasil, os autores vão chamar a

de novembro, quando algumas

atenção para o fato de que,

pessoas mobilizam uma fake news

a partir de 1930, no Brasil, um forte

atribuída ao ator estadunidense,

sentimento de renovação da ideia de

Morgan Freeman, para sustentar

nação emerge. O livro Casa Grande

que: ”quando as pessoas deixarem

Senzala, de Gilberto Freyre, vai

de pensar em consciência negra,

cumprir um papel muito importante

amarela, verde (como se existisse

nessa missão de renovação da

consciência verde) e pensar em

nação. É neste contexto que vai

consciência humana, o racismo

surgir aquilo que Mundanga e

desaparece”. Nesta frase a ideia

D’Adesky vão nomear como racismo

que emerge é a de que a forma

universalista, entendendo-o como

mais apropriada de combate ao

aquele fenômeno que, embora não

racismo seria o silenciamento sobre

evidencie a diferença, possibilita que

ele. Isso define bem o antirracismo

a diferença desapareça por meio de

universalista. Entretanto, ao fingir

uma ideia universalista.

que raça e racismo não existem, inviabilizamos a possibilidade

A emergência do povo brasileiro,

de criar políticas de combate ao

resultado da união de negros,

racismo já que ele não existe.

brancos e indígenas faz com que desapareçam negros, brancos e

Por fim, penso eu que o desafio

indígenas. Este é o movimento

colocado hoje no Brasil, para

observado na matéria Brasileiros do

que não nos mobilizemos só por

Ano, em que os brasileiros festejados

Black Lives Matter (só em razão

não são diversos, pois tem uma cor

de episódios ocorridos fora do

única, que, coincidentemente, é a

Brasil), mas também por Vidas

cor branca. Assim, nesse racismo

Negras Importam, a primeira coisa é

universalista, o que se comemora é

reconhecer que vidas negras existem

a igualdade, mas é uma igualdade

e que na nossa sociedade boa parte

universal, uma igualdade sem cor, e,

delas experimentam situações de

coincidentemente, uma igualdade

desigualdade e, como evidencia uma

branca. Então, esse racismo

análise semiótica da capa da revista

universalista que distribui de forma

Isto é, de invisibilidade.

desigual as oportunidades, porque não reconhece a existência da


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Isso implica em tirar da invisibilidade essas vidas que experimentam desigualdades históricas e construir políticas de visibilidade positiva, para que não tenhamos visibilidade apenas nos presídios, nas mortes por Covid-19, e nos índices de subemprego. Construir visibilidade positiva poderia nos permitir ser, ao mesmo tempo, diferentes e portadores de direitos iguais. Iguais nos direitos, mas diferentes nas dimensões de gênero, de raça, de sexualidade. É um desafio que já deveríamos ter começado a construir desde o século XVIII, mas creio que é um compromisso urgente para o século XXI.


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A DEMOCRACIA E A LIMITAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA1 Bruno Wanderley Júnior2

O que a pandemia revelou é que

E ela nasceu muito pronta para isso.

os direitos sociais são os mais

Com todas as críticas que se pode

fragilizados do sistema constitucio-

fazer à nossa Constituição,

nal brasileiro, do sistema jurídico

foi uma Constituição muito moderna

brasileiro como um todo. Então,

para a época. Foi uma Constituição

se estamos vivendo em um Estado

que criou vários mecanismos de

democrático e social, deveríamos

participação direta da sociedade,

imaginar que os direitos sociais

a democracia participativa.

e a democracia seriam os mais importantes, os mais protegidos e

A Constituição vai propugnar

com pleno acesso da sociedade.

também, nos seus objetivos fundamentais, a erradicação

A nossa Constituição, de 1988,

da miséria, a erradicação da

nasce junto com o fim da Guerra

discriminação, seja racial, seja de

Fria. Nasce para um novo mundo,

qualquer natureza. Mas o que nós

em um mundo que acreditávamos

percebemos é que a prática que se

ser da liberdade, da ausência de

estabeleceu, a partir da década de

conflitos, um mundo globalizado.

1990, foi na contramão dessa ideia.

1

Conferência proferida na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 9 de setembro de 2020.

2

Doutor em Direito pela UFMG. Coordenador do Laboratório de Direito e Inovação Tecnológica da UFMG.


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O que na verdade vai acontecer,

por quase todos os títulos

denunciado pelo geógrafo Milton

constitucionais, é o valor social

Santos na sua obra e pelo professor

do trabalho da livre iniciativa.

Mario Lúcio Quintão Soares,

A Constituição tenta conciliar

da PUC Minas, é a desconstrução

o capitalismo, tenta conciliar o

daquela razão política do Estado

mercado com o trabalhador.

Constitucional que é baseada nos

Ela coloca no mesmo patamar a

direitos fundamentais, baseada em

iniciativa privada e o direito do

uma sociedade engajada na defesa

trabalhador, e, principalmente,

dos seus direitos, na construção da

a iniciativa privada do pequeno e do

democracia.

médio empresário, do empreendedor individual, daquela pessoa que não

E nós fomos basicamente

vai trabalhar para uma empresa ou

atropelados por uma lógica inversa,

para alguém, mas ela vai transformar

a lógica do mercado, a razão

o seu empreendedorismo,

instrumental da globalização.

por menor que seja, em uma

Durante a década de 1990 e no

atividade econômica, gerando

início dos anos 2000, houve uma

renda, gerando impostos, criando

tentativa de criar uma chamada

empregos.

crise do Estado Nacional e depois a crise do Estado Social. Fomos

Então, esse era o arcabouço

paulatinamente convencidos de

constitucional direcionado por um

que se tratava de excesso dos

Estado Social, onde o trabalho e a

direitos trabalhistas, de excesso dos

busca do pleno emprego eram a

direitos sociais e que seriam eles

linha mestra do direcionamento da

os culpados da crise econômica,

sociedade e do Estado.

os culpados da incapacidade do

Esse arcabouço vai ser substituído

Estado de cumprir suas obrigações

por uma lógica da desconstrução

constitucionais.

do trabalhador, da “uberização” das relações do trabalho. Quer

E sendo convencidos disso ao

dizer, pessoas que foram perdendo

longo dos anos, permitimos a

seus empregos, pessoas que foram

desregulamentação dos direitos

sendo jogadas na informalidade e

sociais, principalmente,

passaram a ser esses trabalhadores

dos direitos dos trabalhadores,

eventuais, trabalhadores informais,

o que provocou, na verdade, uma

que dedicam todo o seu esforço

crise institucional para nossa

para um tipo de relação que não

Constituição. Porque a coluna

gera direitos, não gera previdência.

vertebral da nossa Constituição, desde o artigo primeiro, passando

Enfim, essa desconstrução ficou


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meio que apagada até antes da

metodologia, de se manifestar em

pandemia, porque a gente não estava

prol de uma pessoa e não de um

percebendo que a sociedade foi

país e de direitos.

perdendo esses direitos ao longo do tempo. Como o mundo também

Nós estamos perdendo aquela

se tornou um mundo virtual, nós

conexão das famosas manifestações

acabamos sendo as principais vítimas

de conjunto que Dalmo Dallari

desse novo paradigma do mercado.

propugnou no seu livro Elementos da Teoria Geral do Estado.

Imagine, por exemplo, quando

Nós estamos perdendo a nossa

se fala de democracia, que a

capacidade de empatia com a

democracia não é apenas o voto.

sociedade, a nossa capacidade de

É muito interessante que nós

entender que os direitos não são

estamos vivendo um momento,

meros instrumentos formais para a

que já tem mais ou menos uns 15

economia ou para a sociologia.

anos, de polarização da sociedade

O direito, na verdade, é uma

brasileira em torno de ideias do

conquista civilizatória da sociedade.

que sejam ideologias políticas.

Quando a gente fala de direito

Boa parte das pessoas não

fundamental, a gente não pode

tem consciência das ideologias

reduzir a importância desse direito,

presentes nos projetos políticos

como o autor Konrad Hesse vai

dos seus candidatos. É uma paixão

pontuar em seu livro A Força

ao personalismo, que começou

Normativa da Constituição para

no governo Lula, e também está

aquela Constituição do século

presente no governo Bolsonaro.

XIX, do Ferdinand Lassalle, meros

Isso faz com que as pessoas hoje

rabiscos em uma folha de papel.

debatam política como uma torcida de futebol.

Ou seja, não adianta ter uma constituição bonita com direitos

Quer dizer, os defensores de um

que foram conquistados duramente

lado vão ignorar toda e qualquer

se na realidade social esses

prova de participação daquele

direitos estão sendo negados e

seu eleito, daquele seu candidato,

desconstruídos. Porque durante

daquele seu herói, em qualquer tipo

muito tempo, em nome dessa nova

de corrupção, em qualquer tipo de

ética econômica, propuseram a

ação ilegal. Vão defendê-lo como se

flexibilização do direito do trabalho.

fosse defesa pessoal e, ao mesmo

Como se o direito do trabalho

tempo, o outro lado que vai atacar

estivesse criando muito custo social,

indiscriminadamente aquele que

como se ele fosse na contramão

considera seu inimigo tem a mesma

do que a sociedade precisa para o


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equilíbrio econômico, então vamos

Com o sistema de saúde sucateado

flexibilizar. Mas, na verdade, o que

e, agora, no momento da pandemia,

houve foi uma desregulamentação.

exaurido, essas pessoas não têm como garantir nem sequer a

Quando o trabalhador perde seu

prevenção para essa doença.

poder econômico, do seu ganho,

Além do mais, do ponto de vista

ele está mais fragilizado ainda, porque

econômico, são elas que não podem

ele depende quase exclusivamente

ficar em casa. São elas que não

da ação do Estado ou de grupos não

têm como fazer home office. Home

governamentais, de caridade, por

office é para nós. Nós fazemos home

exemplo. Então, a gente vê muito isso

office. Nós somos privilegiados,

hoje. As pessoas estão cada vez mais

inclusive os advogados. Todas as

dizendo: porque eu ajudo

audiências são virtuais, tudo agora,

muito fulano de tal, na ONG tal.

nós vamos entrar nesse mundo,

Nós estamos quase que convencidos

nesse novo comportamento. Ouço

de que o Estado não tem mais um

muito dizer que até mesmo as

papel social na sociedade. Quando,

universidades e escolas que estão

na verdade, é essencial a retomada

com esse modelo de aulas virtuais,

do papel social do Estado para que

provavelmente, vão manter esse

nós possamos equilibrar de novo essa

modelo, pelo menos em parte,

relação entre os grupos da sociedade.

a partir do próximo ano, mesmo

E olha o que a pandemia fez. Ela escancarou essas diferenças

depois da pandemia. Mas quem pode ter acesso a isso?

sociais. Ouço muitas pessoas

Na Universidade Federal, eu tenho

dizerem que a pandemia é

alunos que acompanham as aulas por

democrática, porque ela pega ricos

celular e é o único celular da família

e pobres, negros e brancos, que

para todos acompanharem todas as

ela é igual para todo mundo, e em

aulas, do irmão mais novo até o pai.

todo mundo, e isso não é verdade.

Então nós temos um déficit também

O que a gente vê é que a maioria

da exclusão digital. A exclusão

das pessoas que está morrendo,

social leva à exclusão digital. Então,

essas milhares de pessoas que estão

não é verdade que a pandemia

morrendo, são as mais pobres. São

é democrática, que a pandemia

aquelas que chegam no hospital e

acertou todos do mesmo jeito.

não são atendidas, são aquelas que não têm acesso a remédios.

A pandemia escancarou essa

São aquelas que não têm médico

diferença social gritante de um

para cuidar, não têm plano de saúde.

mundo que virou consumista. E é isso que nós somos, vamos ser


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sinceros. Nós estamos aqui com o

empresa pode decidir aquilo que eu

melhor computador, com todas as

posso ou não falar? E aquele acordo

configurações, a placa é de um jeito

que foi feito em São Paulo entre o

e para poder acessar tem que ter

governo e as empresas de telefonia

também o link que está no programa

para monitorar o movimento dos

tal ou no aplicativo tal. E a gente

cidadãos em nome do combate à

acredita que, porque temos acesso

pandemia, dizendo que é importante

à internet, nós ganhamos a liberdade

saber aonde o cidadão vai para

máxima. Sabe o que o sistema global

poder mapear o caminho do vírus?

nos convenceu? De que nós somos os mais livres da história da

Eu acredito que durante a pandemia

humanidade, porque nós podemos

isso é não só constitucionalmente

conversar com nossos amigos do

possível e legalmente possível,

mundo inteiro. Temos as redes

porque temos a lei 13979/2020 que

sociais, trabalhamos pelo computador,

veio para estabelecer como o Estado

compramos pelo computador e

vai lidar com as nossas liberdades.

pagamos pelos aplicativos.

Mas e depois da pandemia? Será que esse sistema vai ser

Só que nós nos esquecemos de que

retirado? Será que tudo o que foi

todos esses aparatos, aplicativos,

gravado, tudo o que foi coletado

sites, programas, hardware e

das nossas informações vai ser

software, pertencem a grandes

deletado? Ou vai ser guardado e,

conglomerados, a grandes empresas

possivelmente, utilizado para

transnacionais de tecnologia.

outras finalidades?

Então, nós não somos livres. Nós fazemos o jogo da Apple,

Outro dia, pesquisando na internet,

nós fazemos o jogo da Microsoft,

eu cliquei em uma cidade da Espanha

nós fazemos o jogo desses novos

e recebi em todas as mídias sociais

conglomerados, desse novo

propaganda de hotel daquela cidade

metacapitalismo, porque são eles

que eu tinha acessado.

que definem os caminhos da nossa

Quer dizer, aquele meu dado de

liberdade. São eles que definem

uma pesquisa a partir de uma

o nosso acesso. São eles que

curiosidade virou um algoritmo de

promovem este acesso e controlam

mercado para me induzir à compra,

o que nós estamos dizendo.

para tentar descobrir quais são os

O Twitter derruba aqueles posts

meus gostos, aquilo que quero fazer

que alega que têm algum conteúdo

e me massacrar com propaganda,

contrário as suas normas.

com a mídia para que eu me torne cada vez mais consumidor e

Mas e a liberdade? Como é que uma

dependente desse sistema.


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E todos nós estamos aqui, com

da sociedade para não ficar só

computador de última geração,

debatendo as ideias, discutindo

celular e o ano que vem vamos ser

ideologia A com ideologia B

induzidos a comprar um modelo

e qual delas responde melhor

mais novo. Então, isso não é

aos problemas que a sociedade

liberdade. Nós estamos escravizados

apresenta. Porque tem uma coisa:

não só pelo sistema, não só por

nem os problemas sociais dos

essa mídia que estamos usando

direitos fundamentais e nem o

aqui hoje, mas também até pelo

problema da democracia começou

próprio material que nós vamos usar,

com o novo coronavírus.

que é fornecido por um grupo de empresas transnacionais.

O coronavírus é mais uma crise, de todas aquelas que nós convivemos

A razão prática do Estado

a vida inteira, a flexibilizar os direitos

Constitucional que foi abandonada,

fundamentais. Imagine você que a

que é essa de promover os direitos

própria Constituição permite que

fundamentais, deu lugar a uma razão

os direitos fundamentais sejam

de mercado que nos convenceu

flexibilizados em face de uma crise,

o que é o certo. Qual seria, então,

e nós nunca vivemos um momento

a única proposta a se fazer nesse

sequer na nossa história recente que

sentido para garantir o retorno à

não tivesse uma crise. Nós nunca

democracia? Vai parecer clichê,

vivemos um momento em que

mas não tem outro caminho que

tivéssemos plenamente os direitos

não seja a educação. Nós da

fundamentais.

universidade estamos acostumados aos debates acadêmicos que muitas

Essa discussão perpassa também

vezes são muito herméticos.

por este entendimento. Não

Nós temos a cultura dos marcos

podemos permitir que o estado

teóricos internacionais, como se

flexibilize os direitos fundamentais

quanto mais eu citar os autores

sem conversar com a sociedade,

alemães, mais inteligente eu sou.

sem debater com os representantes

Com isso, nós nos divorciamos

das classes sociais qual a intenção

daquela utilidade prática que a

daquilo.

ciência do direito tem que ter.

Para encerrar, não há nada mais

A gente deve priorizar nas

absurdo do que, no momento da

universidades a extensão

pandemia, com milhares de pessoas

universitária. Devemos nos

morrendo, você saber de corrupção

conectar mais com a sociedade,

do Estado exatamente nos materiais,

entender mais os problemas reais

naquilo que é usado para a saúde


85

pública. E isso só vai ser revertido se a sociedade voltar a se interessar pela sua participação democrática e não simplesmente ser um passageiro ou um espectador do cenário político brasileiro. Eu espero, sinceramente, que a gente possa acordar para a necessidade de o direito ir para as ruas, do direito não ser mais um monopólio de quem estuda direito, ou dos profissionais do direito, mas que possa ser ensinado na sala de aula para as crianças, no colégio, para que nós possamos entender nossos direitos. Tem alguma coisa errada nesse processo que nos excluiu da discussão democrática. Muito obrigado.


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ASSOMBROS E SONHOS: PANDEMIA, OLIGOPÓLIOS INTERNACIONAIS E NOVOS ARRANJOS COMUNICACIONAIS1

Roseli Figaro2

Dividirei a minha exposição em

se deseja realizar por força de

dois momentos: o momento dos

vontade, aquilo que se imagina,

assombros e o dos sonhos. Do que

que se luta para alcançar ou as

estamos falando quando tratamos

imagens e narrativas desconectas

de assombros? Há no dicionário dois

que realizamos durante o nosso

campos de sentido para isso: um

sono e que guardam relação com o

que é o do espanto, da admiração

inconsciente. Há ainda o sentido de

e o outro que é o do terror e da

quimera, aquele monstro mitológico

fantasmagoria.

de múltiplas cabeças, a fantasia.

O mesmo acontece com o termo

Começarei pelos assombros no

“sonhos”, que também tem vários

sentido do espanto, falta de ar frente

sentidos: o da aspiração do que

ao terror, à fantasmagoria,

1

Conferência proferida na XII Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel, Belo Horizonte, 10 de setembro de 2020.

2 Professora livre docente na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) e do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT).


90

que é algo que não se conhece

a polivalência e a flexibilização

muito bem, que é novo e faz com

do mundo do trabalho. A razão

que percamos o fôlego, o controle

neoliberal estabelece alguns

de nós mesmos.

termos que passam a ser parte de um dogma, o qual deve ser

Estamos vivendo um momento

repetido assim como um cântico:

do assombro não só por conta da

“eu sou colaborador”, “eu sou

Covid-19, do afastamento social,

empreendedor”, “eu sou inovador

que é um assombro, uma virada.

e eu não devo me solidarizar nem

O assombro da pandemia chega

ter empatia com quem está do

em um ambiente recheado de

meu lado, que passa a ser um

problemas, de outros fantasmas,

concorrente”.

de terror. Tais termos já os encontrávamos Há mais de 30 anos no nosso país,

nos anos 1990, nos nossos estudos

vivenciamos uma lógica discursiva

sobre as empresas3. Nas grandes

ideológica, organizacional, política

companhias metalúrgicas esse era

e neoliberal chamada razão

o mantra que se consagrava para

neoliberal. Ela encuca em todos nós

a desestruturação das relações de

a necessidade da desestruturação

trabalho, sobretudo as relações

do Estado de direito, a perda das

sindicais, as negociações, os direitos.

relações contratuais, dos direitos contratados coletivamente. Prega

Esse cenário, então, é extravasado.

o individualismo, o consumismo,

Sai das grandes fábricas e entra

o estar livre para o mercado, o

em todos os ambientes, inclusive

indivíduo solto no mundo para

nas escolas. Temos disciplina de

enfrentar o mercado. Também

empreendedorismo para as crianças,

há o fantasma do preconceito,

no ensino fundamental, em que se

do negacionismo, preconceito à

ensina uma mentalidade, uma forma

diversidade e contra a cidadania.

de pensar. Isso é ideologia. Isso é fazer política.

Esse ambiente do fim dos direitos trabalhistas, da precarização, da

O assombro que vivemos nessa

fragmentação é fundamental

época se aprofunda nos anos

para a política que dá vazão à

2000, com o avanço da internet

reestruturação produtiva no Brasil

e, sobretudo, com o avanço das

dos anos 1990, que vem com

grandes empresas de plataforma,

3

Uma dessas pesquisas é a tese Estudo de recepção: o mundo do trabalho como mediação da comunicação, desenvolvida pela própria conferencista na ECA-USP.


91

a composição de novos oligopólios,

da exploração do trabalho e de um

como o chamado GAFAM4, que são

novo paradigma da circulação do

de uma outra natureza.

capital. Eis a questão de fundo.

Então, deparamo-nos, nas duas

Quando nós, comunicadores,

décadas do século XXI, com a

apontamos o problema que o

transformação da lógica dos meios

afastamento social, gerado pela

produtivos, a implementação de

pandemia da Covid-19, traz para o

uma tecnologia digital, de uma

profissional realizar o seu trabalho,

linguagem que permite digitalizar

a gestão do lar, as dificuldades,

qualquer coisa: a minha voz, a minha

sobretudo das mulheres

expressão, o meu olhar, o meu gesto,

trabalhadoras que têm de cuidar

o meu texto, a sua fotografia, tudo.

dos filhos, da casa, da família e do trabalho, parece que estamos

Tal conhecimento, na primeira

falando de coisas de outro mundo.

década dos anos 2000, foi cantado por grande parte da intelectualidade,

Mas, afinal, nós não tínhamos

dos cientistas, como expressões da

chegado aos céus, onde tudo se

economia do compartilhamento,

resolve pela tecnologia?

da inteligência coletiva, de que

Não é só ficar conectado?

nós tínhamos chegado à aldeia

Parece que não.

global, às relações horizontalizadas

Então, também esse momento

plenamente democratizadas,

proporciona uma reflexão mais

em que todos são iguais. Há milhares

profunda. Como explicar essa

de páginas escritas sobre isso.

condição do trabalhador? Cinquenta5 por cento da força

Hoje, temos condições plenas de

de trabalho brasileira está fora

olharmos para esse material e

do mercado de trabalho. Uma

entendermos que foram quimeras.

outra parte está subempregada

Estamos falando de um momento

em trabalhos fragmentados por

em que há, no início do século XXI,

tarefa, precários, sem pagamento,

a ascensão de um novo modelo de

sem condição. São milhões de

empresa, de um novo paradigma

trabalhadores que estão nessa

tecnológico, de um novo paradigma

amargura. Há uma quantidade

4 Sigla formada a partir das iniciais que reúne o conglomerado formado por Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. 5 A força de trabalho aqui é entendida como todos aqueles em idade apta para o trabalho. Segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2021, o Brasil possui 85.650 mil pessoas ocupadas; 14.805 mil desocupados; 76.483 mil fora da força de trabalho. https://www.ibge.gov.br/explica/ desemprego.php


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93


94

enorme de jovens que estão sendo

Sem o trabalho vivo desses milhões

queimados vivos para pedalar ou

de trabalhadores, que somos todos

dirigir a sua moto para entregar

nós, inclusive do trabalho do usuário,

coisas por aí a troco de centavos.

a inteligência artificial não é nada a não ser uma sequência normativa.

Essa é a realidade do GAFAM.

Então, esse é o assombro.

Estamos falando sobretudo das plataformas mais vinculadas

A crueza do aprofundamento,

aos serviços de comunicação,

da exploração da força de trabalho

como, por exemplo, a Amazon

chega em um momento em que

Mechanical Turk . Quantos milhões

grande parte da intelectualidade

de trabalhadores com tarefas

mundial criou os seus assentos

fragmentadas, parcializadas,

teóricos na máxima de que o

trabalhadores do clique – como

trabalho não é mais a central para

nós os chamamos – há pelo mundo

se pensar o mundo e a sociedade,

afora? Qual a diferença desse

que não é importante para se pensar

trabalhador do clique, que trabalha

a arte, que não é importante para

por centavos, do trabalhador de

se pensar a comunicação, que não

entrega de comida ou mesmo dos

é importante para a cultura, que o

trabalhadores com diploma, com

conceito de trabalho não é nada

especialização, que estão alugando

mais para eles.

6

os seus serviços por hora? O dentista, o professor, o tradutor,

No entanto, tudo está centrado na

o revisor, o jornalista, o publicitário

lógica de como se criam coisas,

– que condição de trabalho é essa,

pensamentos, comunicações.

diferente daquela do início do século

Mas isso é trabalho. É atividade

XX, tão bem retratada em “Tempos

humana de trabalho. Essa é a

Modernos” por Charlie Chaplin?

faceta mais humana do humano. É a sua condição de ser capaz de

A fábrica não é mais aquele

criar algo. O trabalho é central para

ambiente coletivo, embora

se pensar a sociedade. Vejam o

absolutamente mecanizado, mas

que acontece hoje, por exemplo,

é uma fábrica global de pessoas

com os publicitários, devido à

isoladas, trabalhando para o robô,

publicidade programática, com

sendo coordenadas por algoritmos,

a lógica algorítmica de se traçar

ensinando a inteligência artificial.

perfis. Eles viraram analistas de

Que inteligência é essa?

dados, de perfis. São como mineiros

6

Shopping center virtual em que são publicadas, inclusive com valor de remuneração, as tarefas que os computadores teriam dificuldade de executar sozinhos.


95

na extração da mina. É isso que os

tecnologias. Não somos contra a

trabalhadores e analistas são porque

tecnologia, as ferramentas,

a mina de dados de big data precisa

o conhecimento. Isso é fruto do

ser traçada, porque a extração de

trabalho humano. Ninguém é dono

dados, o extrativismo de dados feito

disso. Nenhuma civilização abre mão

por essas plataformas é a lógica da

daquilo que ela conquistou. Ninguém

monetização para fazer o capital

quer voltar a andar de carroça nem

circular.

vai abrir mão do seu refrigerador para passar a cuidar da carne com o

A lógica da monetização está

sal. O que queremos é nos apropriar

baseada em uma circulação rápida,

igualmente dos valores e das

constante e das mais relevantes

maravilhas que esse conhecimento

em termos dos cliques, e não da

proporciona. Queremos o fruto

qualidade. Para formar o quê?

desse conhecimento distribuído para

A minha montanha de minério,

a sociedade, e não embolsado por

de dados. E os analistas são o quê?

meia dúzia de trilionários.

São os mineiros, que vão buscar

Isso é possível. Esse é o sonho.

o ouro, a pepita de ouro, a pedra preciosa, os pacotes, os lotes de

Na parte do assombro falta dizer

dados que são leiloados para a

que essa lógica da monetização dos

publicidade programática.

dados de todos os trabalhadores é a lógica que coloca o cidadão fora da

Isso afeta o mundo do trabalho de

cidadania. Ele deixa de ser cidadão

publicitários, dos jornalistas, dos

para ser usuário. É a palavra que

relações públicas e de toda uma

nós temos ouvido hoje. Não é nem

cadeia produtiva, da educação

consumidor mais, é usuário.

inclusive. Temos de pensar muito

Você precisa usar. Por que você

bem se nós vamos continuar a

precisa usar? Para dar o clique,

ensinar nossos alunos a trabalhar

para estar conectado.

com softwares ou se iremos ensinar

Com isso, tem-se uma avalanche de

o que eles precisam saber, que é a

informações circulando de todos os

filosofia, a sociologia, o saber pensar

tipos e, sobretudo, informação que é

e analisar a realidade para poder se

aquele tipo de narrativa – imagética,

movimentar nesse mundo,

sonora ou textual – que está

se defender, se preparar

construída para chamar o clique.

e ter sonhos realizados. É quase impulsiva essa relação que É fundamental destacar que essa

nós temos com as telas.

lógica da mercadoria orienta a

É de impulso, de acerto e erro.

forma de usos e apropriações das

Você nem quer, mas já está lá.


96


97

Não é por você só. Isso é pela lógica

Cria o medo, a insegurança nesse

do conhecimento que se adquiriu

caldo de crise – crise do emprego,

do funcionamento de nossas

crise financeira e crise também da

habilidades no processo sensorial.

falta de confiabilidade, da dúvida, da insegurança no momento de

A quantidade de informação circula

pandemia.

de maneira geral e controversa, porque nos chega sempre

As pessoas dizem que não querem

como embate. O que é uma boa

tomar a vacina, porque elas

informação? Como selecionar a

desconfiam de todos, de tudo,

boa informação? Em que você vai

esqueceram-se do conhecimento.

acreditar? Aí você vai para as redes

Voltamos um século atrás. Esse é

dos amigos, para as correntes e você

o momento de assombro. E o que

é enredado. Como fez a Cambridge

retrato dessa forma não é nem um

Analytica , do senhor Steve Bannon,

quinto do que os dados mostram.

e outros pelo mundo, chamados

Se vocês abrirem os olhos, a sua

engenheiros do caos , para ludibriar

sensibilidade e olhar para o outro,

as populações, organizá-las pelo

olhar o que é um ônibus na periferia,

que elas têm de pior, pelo ódio, pelo

o que é condição de moradia, o que

confronto, pelo preconceito, pela

é uma população imensa do Brasil

incapacidade da compreensão.

sem saneamento básico no século

7

8

XXI, essa é a realidade, factível, Não se trata de uma lógica natural

que precisa ser confrontada com a

da tecnologia, e isso é preciso

assombração das fake news.

ficar muito claro, já que é a forma que monetiza mais rapidamente.

Nossa inteligência coletiva está

Eis a questão. Todas as lógicas de

sendo monetizada e fazendo parte

monetização mais expressivas do

da riqueza de poucos.

Facebook, das redes sociais são

Essa inteligência coletiva é que faz

aquelas vinculadas a algum tipo de

o capital circular, se valorizar em

informação incorreta de escárnio,

benefício de poucos. Por isso, temos

de preconceito e por aí vai. O que

de sair do assombro, respirar fundo

essa lógica cria na sociedade?

e buscar alternativas.

7

Estamos nos referindo ao escândalo, divulgado em março de 2018, sobre o vazamento e uso de dados de 50 milhões de norte-americanos usuários do Facebook, pela consultoria Cambridge Analytica, como estratégia para angariar votos à campanha de Donald Trump em 2016. Para se atualizar sobre o caso, sugerimos a leitura da série de conteúdos disponibilizados pelo El País, que podem ser consultados no link https://brasil.elpais.com/noticias/caso-cambridgeanalytica/.

8

Fazemos referência ao livro de Giuliano Da Empoli, 2019.


98

E agora, o que vamos fazer? É isso

informação de qualidade nesse

que muitos jovens comunicadores

ambiente tóxico? Temos que sair

e experientes têm buscado fazer

desse cenário altamente intoxicado

e outros trabalhadores também,

e pensar nos sonhos.

mesmo aqueles iludidos com a ideia do tal do empreendedorismo,

O que é sonhar? O sonho também

de que vai ser patrão de si

pode ser visto em duas chaves de

mesmo, o que é uma situação de

sentido. São várias chaves,

aprofundamento da precarização,

mas vamos escolher aqui não

sem dúvida, da perda total dos

aquelas narrativas desconectas do

direitos e da desregulamentação

nosso inconsciente, das fantasias,

dos direitos do trabalho.

nem das quimeras mitológicas. Vamos escolher o sonho na

Tal assombro, que se materializa na

perspectiva histórica, naquela

hashtag, no top trends,

condição maravilhosa do ser

nos youtubers beneficia, além das

humano com a sua imaginação do

empresas de plataformas, uma

realizável, a projeção do possível,

porção de outras companhias

daquilo que se projeta construir,

satélites, que são como parasitas

daquilo que vamos construir juntos.

que atuam a partir desse conjunto de dados e se beneficiam deles

É nessa perspectiva que nós vamos

sobretudo na política. Vamos pegar

tratar o sonho. O sonho desses

o caso da Cambridge Analytica.

jovens que não têm trabalho nem

Eles não são Google nem Facebook,

emprego e que vão atuar para

mas como é que atuam no Twitter,

encontrar um trabalho, que vão criar

no WhatsApp? Precisamos estudar

as suas alternativas de trabalho.

mais isso. Qual é essa lógica que

O que não quer dizer que estamos

permite o acesso a perfis específicos

idealizando essas alternativas,

e possibilita criar a discórdia, criar e

porque elas são frágeis, precárias,

aprofundar a insegurança, o medo

com muitas dificuldades de

para que aqueles sentimentos mais

sustentação. Mas elas são reguladas

daninhos emerjam do ser humano

pelo sonho de se fazer um trabalho

e se expressem na arena pública,

no qual se acredita, por se fazer um

desconstruindo o Estado de bem-

bom trabalho para a sociedade.

estar social, que nós, no Brasil, nunca tivemos, e o Estado de direito.

Nós estudamos e encontramos

Eles são um canto ao fascismo.

no Brasil centenas desses jovens,

É isso que eles afirmam.

também experientes jornalistas,

Então, trata-se de um ambiente

sobretudo, que se organizam para

tóxico. Como é que vamos produzir

juntos fundarem um veículo de


99

comunicação. É uma alternativa de

arranjo de trabalho de jornalistas

trabalho e também uma alternativa

muito competentes. Quem fez a

de produção discursiva que se

reportagem do problema sobre a

propõe fazer um outro jornalismo,

polícia na Argentina, cercando a

voltado para aqueles valores que se

moradia do presidente?

aprende, certamente, nas profissões:

Quem tinha a informação?

de que somos comunicadores

Quem está acompanhando todo dia,

responsáveis por aquilo que

toda semana, a informação sobre o

fazemos, o que produzimos e temos

mundo todo? O Opera Mundi,

um compromisso com a informação

um grupo pequeno de jornalistas

de qualidade, a cidadania,

que faz um esforço danado.

9

a apuração e uma postura ética. Temos isso pelo Brasil todo. Muitos desses jovens constroem

Essa gente sonhadora não vive nas

os seus arranjos de trabalho

narrativas desconectadas do nosso

compromissados também em

sono, não vive na fantasia. Mas essa

reportar a voz daqueles que não

gente, que se organiza nesses novos

têm espaço nos grandes meios de

arranjos de trabalho, são pessoas

comunicação. Então, são os arranjos

sonhadoras que planejam uma vida

de comunicação das periferias, dos

melhor, um jornalismo melhor,

jovens, das mulheres, dos negros,

uma assessoria de comunicação

o jornalismo de qualidade;

melhor, um marketing

de reportagem, o jornalismo

comprometido com a cidadania.

internacional. Há aí um sonho que está Não sabemos nada do que acontece

florescendo, de resistência, de que

no mundo a não ser aquilo que é

é possível construir uma alternativa.

noticiado pelas grandes agências

O problema é que todo esse

internacionais, como as guerras e

material, que é produzido por

as desgraças. Não sabemos direito,

essa gente sonhadora, ainda está

por exemplo, o que acontece na

dependente das plataformas, que

Argentina. Hoje, eu fiquei sabendo

estão ganhando dinheiro com o

o que aconteceu na Argentina

trabalho deles. É por isso que o

graças ao Opera Mundi, que é um

Google adora abrir o projeto para

10

9

A esse respeito indicamos ver o relatório da pesquisa coletiva do CPCT, intitulado As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às corporações de mídia. O material está disponível no site www.eca.usp.br/ comunicacaoetrabalho.

10 A reportagem mencionada pode ser lida no link http://twixar.me/MpBm


100


101


102

acolher novos arranjos – parece até

desses meninos que atuam com

que são muito bonzinhos, mas não.

aplicativo, dessa gente toda.

É que eles sabem onde está a mina. A mina está na criatividade do

Trata-se de uma nova regulação,

trabalho dessa gente jovem.

um novo pacto social, porque

Então, o sonho precisa galgar um

nós não podemos continuar no

outro estágio, um outro patamar.

assombro. É possível sonhar. Essas questões são relevantes

Nós já sabemos que podemos

e fundamentais, inclusive para a

nos organizar para fazer uma boa

manutenção dos Estados Nacionais,

comunicação, um bom jornalismo.

porque os termos de uso que

Agora, nós precisamos reivindicar

você clica sem ler é a lei que hoje

que esse produto do nosso trabalho

vigora no mundo. Não é mais a

não monetize apenas as plataformas.

Constituição de 1988, não é mais a lei brasileira. O que nos governa

Quando concluímos a nossa

hoje são os termos de uso dessas

pesquisa, em 2018, e publicamos

plataformas todas, e nós não

em livro nosso relatório “As relações

podemos aceitar que meia dúzia de

de comunicação e as condições

empresas mandem no mundo.

de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos

Temos de sonhar. Temos de ousar

alternativos às corporações de

no sonho, porque é possível planejar,

mídias”, já dizíamos que era preciso

organizar, trabalhar e solidarizar.

buscar políticas públicas para

Para que não só os novos arranjos

reivindicarmos a criação de fundos

de trabalho dos comunicadores

de sustentação para esses novos

tenham vida, consigam colocar o

arranjos.

seu trabalho de qualidade para as pessoas, mas que todos os outros

Esses fundos têm de ser criados

trabalhadores também possam ter

com verbas das plataformas,

esse direito.

com dinheiro que sai do nosso próprio trabalho, com os nossos

Precisamos sonhar, porque é

dados, com os dados dos usuários.

esse sonho que nos fará resistir à

É possível fazer isso. É preciso ter

lógica da segregação, à lógica da

força política. É necessário se ter

individualização e da animalização.

a regulamentação democrática

Porque o medo e a insegurança

das empresas de plataforma com

trazem a barbárie, que é a antessala

a criação de fundos públicos, não

da animalização, da perda da

estatais, para financiar o trabalho

razão total. Então, esse sonho

desses comunicadores, o trabalho

urge ser realizado, ser planejado,


103

ser mobilizado. É um sonho de

e, sobretudo, quando o sonho é

retomada do Estado de direito,

regido pelos laços de empatia e

de retomada da qualidade da

solidariedade, podendo organizar

informação, da solidariedade

e dirigir a ação. Nós precisamos

e da empatia com a coletividade.

sair do assombro. O assombro nos imobiliza. O sonho nos mobiliza.

Acredito muito na juventude,

É o sonho que vem dar uma

na força da juventude, na esperança

resposta ao assombro.

REFERÊNCIAS CPCT Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho. Site oficial: www.eca.usp.br/ comunicacaoetrabalho DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020. FIGARO, Roseli. Estudo de recepção: o mundo do trabalho como mediação da comunicação, desenvolvido pela própria conferencista na ECA-USP. São Paulo: Anita Garibaldi, 2001. FIGARO, Roseli et al. As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às corporações de mídia. São Paulo: ECA-USP, 2018.

FIGARO, Roseli et al. Relatório dos resultados da pesquisa: como trabalham os comunicadores em tempos de pandemia da Covid-19? São Paulo: ECAUSP, 2020. IBEGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego. Primeiro trimestre de 2021. https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php OPERA MUNDI. Diálogos do Sul. Golpe na Argentina? Entenda como fascismo fardado tenta avançar no país. 11 setembro 2020. Disponível em: http://twixar.me/MpBm


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Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos, apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor, nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica da PUC Minas e da Reitoria.


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