ANAISDASCAP PODEMOS VIVER JUNTOS
Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)
VIII SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL
ANAIS DA SCAP PODEMOS VIVER JUNTOS
PUC-MG Belo Horizonte 2016
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Semana de Ciência, Arte e Política (8. : 2016 : Belo Horizonte) S471a Anais da SCAP: podemos viver juntos / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte, 2016. 109 p.: il. ISBN: 978-85-8239-058-0 1. Movimentos sociais. 2. Pluralismo (Ciências sociais). 3. Integração social. 4. Igualdade perante a lei. 5. Política e cultura. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.
CDU: 39.01:32
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EXPEDIENTE
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Prof. Mozahir Salomão Bruck Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:
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Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes
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Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Coordenadora de Pesquisa:
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Coordenador da Pastoral Universitária:
Assessora de Comunicação:
Frei Mário da Paixão Taurinho Michelle Stammet
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ÍNDICE
EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero
12
O SENTIDO DA POLÍTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: QUANDO AS RUAS QUEIMAM
Vladimir Safatle
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OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À IGUALDADE: UM ENSAIO SOBRE A POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA
VIVER E DEIXAR VIVER
A CIVILIZAÇÃO NUMA ENCRUZILHADA
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Laura Alves de Oliveira
Marta Neves
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ÁGUAS E CIDADES: UMA NOVA PERSPECTIVA
José Carlos Carvalho
Marília Carvalho de Melo
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102
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EDITORIAL Desde 2012, uma pergunta
convivência, como as Escolas do
formulada pelo sociólogo francês
Encontro (Scholas Occurrentes),
Alain Touraine tem marcado as
projeto do Papa Francisco em que
reflexões da SCAP: Podemos viver
jovens de países “inimigos” e de
juntos? E foi a ela que voltamos
culturas diferentes são convidados
nossas reflexões nesta oitava edição
a estudar e viver juntos em um
do evento.
aprendizado do encontro, do
Observando os novos movimentos sociais possuidores de capacidade transformadora, caracterizada pela defesa da diversidade social e cultural, reconhecendo o pluralismo e as diferenças, chegamos a lógicas diferentes para os que habitam juntos os lugares, lógicas entremeadas. Nesse contexto,
diálogo, do respeito às diferenças. E é justamente o exercício do diálogo, pressuposto básico da democracia, que tem se apresentado como um grande desafio para o país, diante do crescimento de uma pauta regressiva, de violação de direitos no Congresso Nacional.
registramos movimentos como a
O diálogo, a comunicação,
Praia da Estação, o Duelo de MCs,
as formas entremeadas de estar no
o Carnaval de Rua de Belo
mundo, o viver juntos na diversidade
Horizonte, a Ocupação das
apresentam-se como desafios da
Escolas de São Paulo, a Marcha
atualidade e constituem-se objeto
Mundial das Mulheres e tantos
de reflexão destes anais. Diante de
outros conformados em rede
nossa contemporaneidade, como
de comunicação, experiências e
se dá a política? E a diversidade?
afetos reivindicadores, sobretudo,
E a tolerância? E a preservação
da convivência e aceitação
do planeta? Vladimir Safatle traz
das diferenças. Movimentos
uma contundente reflexão em seu
que pressupõem a inclusão e a
manifesto Quando as ruas queimam.
ampliação e, portanto, a quebra
Pensando nesse manifesto, que não
de paradigmas. Os movimentos
é de hoje nem de ontem, no que não
nas redes e em redes não param
conhece a lei do Estado atual, que se
por aí. Observamos o surgimento
encontra nossa imaginação política.
em todo o mundo de iniciativas
E, ainda, lembra Safatle:
que promovem novas formas de
não bastam revolta e crise, não
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bastam análise e crítica. Uma revolta
antropocentrista e a falsa ideia
é uma revolta, é uma revolta e esse
da inesgotabilidade dos recursos
retorno contínuo sobre si pode
naturais; e, Marília Carvalho de Melo
produzir apenas melancolia e, por
questiona o modelo desenvolvido
fim, derrisão aristocrática.
nas grandes cidades brasileiras, em
Mas quando a revolta e a crítica são
que os recursos naturais não foram
impulsos para a imaginação política,
integrados ao planejamento urbano
então não há mais tautologias.
como elementos de qualidade de
E as ruas queimam.
vida, bem-estar e convívio social.
E queima também aqui a dramática
E ao longo de toda esta edição
poética narrativa de Marta Neves, no texto Viver e Deixar Viver, que, pela diversidade das formas entremeadas de estar no mundo, solidariza-se com pessoas maravilhosas e suas histórias de vida no enfrentamento de tanta intolerância. E não menos graves, os desafios da efetivação do direito à igualdade apresentados na reflexão de Laura Alves de Oliveira. Apresentam-se, ainda, mais outras duas reflexões sobre o planeta e sua preservação: José Carlos Carvalho discute e percebe a civilização contemporânea numa encruzilhada, a partir de visão distorcida influenciada por dois grandes mitos reforçados pela revolução industrial e pelo enfoque materialista do último século: o paroxismo
somos surpreendidos pelas imagens captadas, durante o Carnaval de Rua de Belo Horizonte, pela fotógrafa Tatiane Motta. Se o espaço transformou-se em um instrumento de poder, a ocupação das ruas pela população institui novas espacialidades que apontam para outras formas do viver juntos. A responsabilidade sociocultural da VIII Semana de Ciência, Arte e Política (SCAP) da PUC Minas, unidade São Gabriel, fica documentada nestes anais: Podemos Viver Juntos constituídos numa valorosa reflexão crítica a partir de artigos, ideias e discussões apresentados e desenvolvidos durante sua realização. Leiam e reflitam.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel
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O SENTIDO DA POLÍTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: quando as ruas queimam1 Vladimir Safatle2
Gostaria de agradecer o convite da
Brasília. Elas ainda queimarão em
PUC Minas para vir aqui e conversar
muitos outros e imprevistos lugares,
com vocês sobre essas questões
recolocando o que é separado pelo
tão importantes para todos nós.
espaço em uma série convergente
Eu fiz uma pequena modificação,
no tempo. Na verdade, por mais
então, na verdade, mais do que
que alguns procurem se convencer
uma conferência, eu gostaria de ler
do contrário, por mais que agora o
para vocês um manifesto que eu
fogo pareça ter momentaneamente
escrevi e que está saindo agora em
se retraído, as ruas desde então
primeira mão. Ele gira em torno das
não pararam de queimar, elas só
questões que foram sugeridas para
deslocaram suas intensidades.
serem discutidas. O título é “Quando
É importante lembrar disso, pois
as ruas queimam” e eu gostaria de
há algo que pode existir apenas
dizer o seguinte:
quando as chamas explodem em uma coreografia incontrolada de
Haveria de chegar um tempo no
intensidades variáveis. Por isso,
qual as ruas começariam a queimar.
diante de ruas queimando não há
Desde 2008, elas queimam nos mais
de se correr, não há de se gritar,
variados lugares. Em Túnis, em São
há apenas de se perguntar: o que
Paulo, no Cairo, Istambul, Rio de
fala o fogo? O que diz apenas sob
Janeiro, Madri, Nova York, Santiago,
a forma do fogo?
1
Transcrição da conferência proferida por Vladimir Safatle em 29 de agosto de 2016 na PUC Minas São Gabriel.
2 http://lattes.cnpq.br/7208476340192177
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Quem ouve o fogo a queimar ruas
visibilidade e nomeação, controla
perceberá que ele diz sempre a
o que irá aparecer e como se
mesma coisa: que o tempo acabou.
construirão circuitos de afetos.
Não apenas que não temos mais
Por isso, a negatividade sempre
tempo, mas principalmente que
foi uma astúcia daqueles que
não há mais como contar o tempo
compreendem que a liberdade passa
que está a nascer como uma
pela capacidade de destituir o Outro
possibilidade mais uma vez presente.
da força da enunciação dos regimes
Um tempo que não se conta mais,
de visibilidade possíveis. “Eu sou
que não se narra mais, que não
ninguém” é, na verdade, a forma
se habita mais tal como até agora
contraída de: Eu sou o que você não
se habitou. Este tempo produzirá
nomeia e não consegue representar.
suas narrativas e seus habitantes
Para existir, é necessário fazer a
e queimará o tempo no qual
linguagem encontrar seu ponto de
narrávamos e habitávamos e contará
colapso. Nós somos apenas lá onde
com números que não conhecemos
a linguagem encontra seu ponto
e terá tensões que não saberíamos
de colapso. Na verdade, existir é
como deduzir e despossuirá e não
colocar em circulação um vazio que
será mais medido como instante ou
destitui, uma nomeação que quebra
duração e será outro ao fim e ao
os nomes.
cabo. Contra este tempo e este espaço, Quem ouve o fogo perceberá que
o poder inventa todas as formas de
ele também diz outra coisa: que não
urgências, de ataques terroristas,
há mais lugar. Em 2013, quando no
de crises econômicas, de violência
Brasil as ruas começaram a queimar,
estatal. Ele exige uma solidariedade
uma jornalista entrevistou um
à situação atual forjada no medo e
manifestante. Ao final, ela perguntou
no gozo. Poucos são os que aderem
seu nome: Anota aí, eu sou ninguém.
à situação atual a partir de uma
De fato, a frase não poderia ser mais
ética da convicção; a grande maioria
clara. Como um Ulisses redivivo
adere simplesmente sem crença.
diante dos gigantes Polifemo que
O que não poderia ser diferente,
parecem vir atualmente de todos
já que o poder atual baseia-se na
os lados, ele encontrou na negação
mobilização contínua da ausência de
de si a astúcia maior para conservar
saída, da ausência de escolha.
seu próprio destino. Por mais
Sua lógica é a lógica do
paradoxal que possa inicialmente
sufocamento. Esta é uma das mais
parecer, “eu sou ninguém” é a mais
miseráveis ironias de nosso tempo:
forte de todas as armas políticas.
um regime que prega a livre-escolha
Pois quem controla o modo de
legitima-se através da insistência
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contínua de que não temos escolha.
o crime não é uma patologia social,
Não há outro caminho, diz o
mas um dispositivo fundamental
mantra dos economistas-jornalistas,
para o fortalecimento da coesão.
consultores de sistemas financeiros
Por isso, nunca houve e nunca
especializados em se salvar na base
haverá sociedade sem crime.
do assalto ao dinheiro público. E só
Através do crime, a sociedade
há uma forma de levar as pessoas a
fortalece seu sentimento de unidade
acreditarem não ter escolhas: há de
contra o dano sofrido,
se gerir e produzir continuamente o
ela volta à vida por ter um risco de
medo, gerir situações de emergência
desagregação à espreita. Ela precisa
que se tornam regra, criar um regime
do crime. Na governabilidade atual,
que se sustenta na contradição
o crime não é algo que se combate,
de ser, ao mesmo tempo, liberal e
ele é algo que se gerencia. Tudo
militarista, permissivo e restritivo,
fica mais fácil quando o governo se
que prega a liberdade individual mas
reduz a um gabinete de crise. Isso
grampeia seu telefone. Um regime
talvez nos explique por que nossa
que invade sua privacidade em
época passará à história exatamente
nome de sua própria segurança.
como o momento em que a crise, em todas as suas formas, virou
Por isso, ele necessita fazer os
uma forma de governo. O ideal
ataques terroristas reverberarem
do neoliberalismo é transformar a
no mundo inteiro, com imagens
prática de governo na gestão de um
se repetindo de forma obsessiva
gabinete infinito de crise.
comentadas por jornalistas com seu espanto ensaiado, para afinal
Isso é facilitado pelo fato de o
alimentar mais ataques com essa
neoliberalismo ser, mais do que
promessa tácita de sucesso de
uma doutrina econômica, um
audiência, para arrastar todos
discurso moral. Sua necessidade se
os que caíram sob a lógica do
impõe a nós como uma injunção
ressentimento social à promessa
moral, como uma moral baseada
de fim do anonimato e de
na coragem enquanto virtude.
protagonismo encarnado no papel
Coragem para assumir o risco de
principal na cena mundial. O gosto
viver em um mundo no qual só se
macabro pela visibilidade de eventos
sobreviveria através da inovação,
de violência espetacular é apenas
da flexibilidade e da criatividade.
a prova da necessidade contínua
Assumir riscos no livre-mercado
de catástrofes e de circulação
aparece atualmente como a
de insegurança como prática de
expressão maior de maturidade
governo. Como já dizia Durkheim,
viril, como saída da minoridade a
e isto nossos governos sabem bem,
que estariam submetidos aqueles
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pretensamente infantilizados pela
com todas as suas forças, negar
demanda de amparo do estado-
que o tempo acabou e que o
providência. Esse mantra leva os
lugar implodiu. Eles se servem da
sujeitos a acreditarem que, se eles
abertura produzida pelas chamas
fracassaram economicamente, é por
que queimam nossas ruas para
culpa absolutamente individual, por
usar o fogo na caldeira que cozinha
culpa da minha incapacidade de me
o festim de sentimentos reativos,
reinventar, de me reciclar como uma
sua ressurreição de arcaísmos com
garrafa pet. Enquanto essa moral
seus golpes brancos, suas fronteiras
do risco simulado era brandida
e suas bandeiras. Foram esses
em voz alta, dois economistas
golpes e essas fronteiras e essas
italianos (Guglielmo Barone e Sauro
bandeiras e esses arcaísmos que nos
Mocetti) divulgaram em 2016 um
fizeram perder até agora e inocular
sintomático estudo mostrando
melancolia em alguns daqueles
como o sobrenome das pessoas
que poderiam estar no campo de
ricas em Florença são, em larga
batalha. Mas lembremos a estes de
medida, os mesmos de 1427 a 2011.
forma clara: Não, nós nunca fomos
Certamente, deve ser por mérito e
derrotados.
pela capacidade destas famílias em educar seus filhos para ter coragem
É verdade, nós perdemos várias
diante do risco.
vezes, mas nunca fomos derrotados.
Até porque, podem ficar tranquilos,
Pois nossas derrotas são, na
pois na primeira crise o Estado irá
verdade, o fogo alto que forja o aço
salvá-los, como salvou Citibank,
de nossas vitórias. Toda verdadeira
BNP/Paribas, Deutsche Bank e
vitória é fruto da elaboração
tantos outros durante séculos.
profunda sobre perdas. Ela reverbera
O que se diz atualmente é: contra
o desejo animal de nunca mais
este patrimonialismo explícito
perder. Por isso, só vence quem caiu
travestido de mérito, contra este
e clama com paciência por uma
rentismo que se faz passar por
segunda chance. Ela virá, mais cedo
coragem não há escolha.
do que esperamos. É isso que nos leva a afirmar que tais perdas não
Há de se ter clareza desse ponto
são derrotas alguma. Talvez o traço
para compreender um paradoxo.
mais sublime e incompreendido da
Costumamos acreditar que de
filosofia hegeliana seja a certeza
todo acontecimento emerge um
de que as feridas do Espírito são
novo sujeito político. Mas nosso
curadas sem deixar cicatrizes. Isso
tempo tem mostrado como todo
significa muita coisa, entre elas que
acontecimento produz também
nada, absolutamente nada, terá a
múltiplos sujeitos que procuram,
força de bloquear, de uma vez por
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todas, a possibilidade de realizar
demorará até entendermos sua
nosso destino. Há momentos em
pulsação. Esta abertura traz
que este destino fala baixo, mas ele
sempre a decomposição das
nunca se cala e é isso o que importa.
formas até então presentes de unidade. No entanto, é nesta
No entanto, é certo que nada nos
hora que mais precisamos de
exime de nos perguntarmos por que
outro corpo para que a perda
nossas perdas são tão constantes
do antigo corpo não produza
nestes últimos tempos. Por que
apenas a fragmentação paralisante
as ruas queimando desde 2008,
de demandas em processo de
por que as nossas ruas queimando
autonomia. Um outro corpo que
desde 2013 não produziram ainda
agencie todas as demandas
as transformações que poderiam
múltiplas em uma constelação,
produzir? Por que esta força efetiva
que desenhe constelações nas
da reação? Várias são as razões
quais os lugares específicos
que poderiam ser levantadas, mas
sejam submetidos a um empuxo
talvez seja o caso de se deter diante
irresistível de indiferenciação e de
de uma, a saber, porque não temos
descentramento. No interior de um
mais um corpo e não há, nem
corpo político construído como
nunca haverá, política possível sem
uma constelação, não há lugar de
corpo. Se quisermos voltar a vencer,
fala, e não há equívoco maior dos
precisaremos de um corpo. Teremos
tempos que correm do que associar
que aprender a dizer, como David
política à constituição de lugares de
Cronenberg: Vida longa à nova
fala, lugares de quem luta contra a
carne. Insurreição não é emergência,
exclusão que acabam produzindo
ou seja, uma insurreição não é
novas exclusões.
necessariamente a emergência de um novo sujeito político.
Ao contrário, no interior da
A insurreição pode ser a explosão
experiência política efetiva há falas
bruta da revolta, mas para que esta
sem lugar, falas que desestruturam
revolta forje um sujeito emergente
a geometria dura dos lugares, há
é necessário ainda mais um esforço.
formas sem figuras.
Só mais um esforço.
Há a monstruosidade caótica de falas sem perspectivas e a beleza
Quando o tempo acaba, a primeira
bruta de singularidades que não
coisa que ocorre é perdermos a
se localizam. Pois construir uma
capacidade de incorporar, de fazer
constelação significa permitir
um corpo político da multiplicidade
a todos os elementos em seu
de demandas sociais. Pois estamos
interior mudar continuamente
a abrir um tempo outro no qual
de lugar, circular em uma zona
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de indeterminação na qual todas
de quem é ninguém. Foi quando a
as diferenças se implicam e se
multiplicidade das vozes apareceu
descentram. Uma constelação
como a expressão da univocidade
produz uma síntese sem unidade,
de um sujeito presente em todos
e é isto o que mais precisamos
os lugares, mas com a consciência
atualmente. Ela produz corpos
de sua ausência radical de lugar,
políticos sem hierarquia e
que a revolta deixou de ser apenas
funcionalidade, que transformam
revolta. Pois esta força de síntese
sua força de implicação em empuxo
de outra ordem que aparece através
de indiferenciação.
da univocidade da nomeação era a condição para que a imaginação
Lembremos o que isso realmente
política entrasse em operação,
significa. Tal como o nosso tempo,
permitindo a emergência de um
o século XIX conheceu uma
novo sujeito. De certa forma, é isto
sequência impressionante de
que nos falta: precisamos ser,
revoltas, movimentos e insatisfação
mais uma vez, proletários.
social vindos de crises econômicas profundas por todos os lados da
Ser proletário pode significar,
Europa. Tal como agora, as ruas
principalmente, vincular-se ao que
queimaram em sequência. Mineiros
não tem nome. Lembremos de
da Silésia, operários ingleses,
Antígona e de seu gesto político
tecelões franceses: todos eles
por excelência, a saber, sua decisão
pararam as fábricas, quebraram
de enterrar seu irmão, mesmo a
máquinas, montaram barricadas,
despeito de decreto de Creonte,
desafiaram a ordem instituída.
representante do poder de Estado.
No entanto, essa multiplicidade de
Não enterrar alguém é a figura mais
revoltas só se transformou em um
clara do apagamento do nome e do
fantasma a assombrar o tempo
lugar. Séculos e séculos tentaram
presente quando todas as ruas
deslegitimar a natureza política de
queimando foram vistas como a
seu gesto ao dizer que se tratava
expressão de um só corpo político,
simplesmente da insistência nas
um só sujeito em marcha compacta
relações de sangue no interior da
pelo desabamento de um mundo
família contra as leis da pólis.
que teimava em não cair. Um sujeito
Mas seu gesto era político porque
político emergiu apenas quando os
ela não falava em nome de sua
mineiros deixaram de ser mineiros,
condição de irmã, de mulher, de
os tecelões deixaram de ser tecelões
representante dos interesses da
e se viram como um nome genérico,
família, de filha de Édipo, de cidadã
a saber, proletários, a descrição de
de Tebas, em nome de seu lugar de
quem é totalmente despossuído,
fala. Ela falava em nome do que fora
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expulso do convívio dos humanos.
imaginação está bloqueada porque
Por falar em nome do que não era
até a forma de nossa crítica usa
mais humano, ela podia falar em
a gramática de quem nos sujeita.
nome dos deuses, pois só os deuses
Nós falamos a linguagem da ordem
podem preservar o que os humanos
contra a qual nós nos batemos.
apagam. E cito o texto de Sófocles,
Desde 2013, subimos à cena política
a resposta de Antígona a Creonte:
para dizer, em larga medida:
Mas Zeus não foi o arauto dessas leis para mim, nem essas leis são as ditadas para os homens pela justiça, companheira de morada dos desuses subterrâneos; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir as leis divinas não escritas e imutáveis; não é de hoje nem de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram.
É no que não é de hoje nem de ontem, no que não conhece a lei do Estado atual, que se encontra nossa imaginação política. Lembremos disto: não bastam revolta e crise, não bastam análise e crítica. Uma revolta é uma revolta é uma revolta e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas cansaço e, por fim, desejo de restauração. A crítica é a crítica é a crítica e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas melancolia e, por fim, derrisão aristocrática. Mas quando a revolta e a crítica são impulsos para a imaginação política, então não há mais tautologias. Perguntemos então de onde vem o bloqueio de nossa imaginação política e veremos que nossa
Eu quero o que é meu, como se o problema todo não estivesse precisamente em falar exatamente que eu também quero a minha parte, eu também quero a minha visibilidade no regime de visibilidade atual, eu também quero meu lugar na axiomática do Estado atual. No fundo e mais uma vez, o que se vê são apenas indivíduos à procura da defesa de suas propriedades. Assim, ao fazer das demandas políticas demandas de autorrealização individual e coletiva (pois neste ponto não há diferença alguma entre dois, o coletivo é apenas um indivíduo ampliado), acabamos por fortalecer uma ordem que afirmará como sempre disse, só existem propriedades e possuidores. Ao reduzirmos nossas demandas à pressão por reparação, fortalecemos aqueles que têm a institucionalidade que pode nos amparar. Nos dois casos, a gramática da revolta é a mesma do poder. O que há de diferente é apenas a demanda para que tal gramática se amplie e seja válida para mim também. Como se, no fundo, todos quisessem ser proprietários do que é a sua parte. Esta foi a maior vitória do neoliberalismo: definir até mesmo a
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gramática da nossa revolta. Não é de
parte de um corpo político parece
se admirar que a imaginação política
inicialmente submeter-se a uma
acabe por se bloquear. Melhor seria
direção, como os corpos em sua
se fôssemos aqueles que não são e
pretensa anarquia se submeteriam
nunca serão proprietários, porque
a um centro funcional, a uma
procuram realizar a promessa
organização parte extra parte.
de uma apropriação que não é
É verdade, e há de se reconhecer
possessão, porque eles se orientam
que o que mais destruiu certa
por um tempo no qual não iremos
esquerda e seus corpos foi seu
mais nos perguntar sobre o que é
dirigismo, seja explícito através das
nosso.
decisões opacas de cúpula de suas instâncias dirigentes, seja implícito
No interior deste horizonte, não é de
através de práticas assembleístas
se estranhar que a prática política
que apenas gerem o esvaziamento
acabe por se reduzir atualmente,
produzido como estratégia
em larga medida, ao bloqueio de
de construção de hegemonia.
espaços físicos, ao fechamento da
Conhecemos bem o cortejo
circulação, à paralisação.
tedioso de práticas hegemonistas
Estas são manifestações brutas da
que não dizem seu nome, assim
indignação de quem se sente lesado
como as hierarquias travestidas
e esquecido e calcula a partir do ano
de horizontalidade e os diálogos
necessário a fazer para ser visto.
feitos de imposições em nome de
Mas a política não é apenas
alguma coletividade que nunca teve
exposição da indignação, embora
a capacidade de operar a partir da
isso também lhe seja próprio.
lógica do comum, mas que sonha
Ela é, no seu sentido mais profundo,
no fundo em ser síndica de um
conquista da opinião pública,
condomínio próprio. Não precisamos
produção de aglutinações através
de nada disso mais uma vez.
da emergência de um sujeito dotado de imaginação política capaz de
Contra isso, de nada adianta
implicar qualquer um.
voltar, no entanto, à antiga lógica contra o controle, a autonomia
Isso talvez ajude a explicar por que,
dos indivíduos. Há de se ter muita
muitas vezes, não nos deixamos
ingenuidade para tacitamente
incorporar em um corpo político.
esquecer quanta dominação é
Levantemos duas razões, uma boa e
necessário internalizar para ser
outra má. Primeiro, a boa razão.
reconhecido como indivíduo
Não nos deixamos incorporar
autônomo. Um indivíduo autônomo
porque não queremos mais ser
não é expressão de liberdade, é a
dirigidos e comandados. Fazer
expressão de uma forma insidiosa
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de servidão. Servidão à disciplina,
Notemos ainda que essa quebra da
servidão à identidade e servidão
autonomia não implica servidão.
ao autocontrole travestido de
Servidão existe quando submeto
maturidade. Ele não é expressão de
minha vontade à vontade de um
multiplicidade, mas de repetição da
outro. No entanto, dentro de um
mesma redução dos desejos à forma
corpo político sou causado por
calculada dos interesses.
aquilo que não é vontade de
Uma sociedade pensada como
outro indivíduo. Sou causado por
associação de indivíduos não é uma
algo que é maior do que a soma
sociedade livre, mas uma sociedade
dos interesses individuais, que
controlada pelo pior de todos os
não calcula como um indivíduo,
policiais: aquele que cada um traz
que tem outro tempo, que faz
dentro de si. Como indivíduos, não
ressoar múltiplas vozes e que,
faremos nada.
por ser ressonância contínua de multiplicidades, constitui sujeitos
Na verdade, contra o medo do
em ressonância infinita, como se
controle, o melhor a fazer é lembrar
tais sujeitos portassem em si uma
o que pode realmente um corpo.
pulsação que os constitui e os
Um corpo pode ser o campo de
destitui em ritmo perpétuo, que
implicação genérica no interior do
lhes joga em processos de contínua
qual somos atravessados por uma
reconfiguração. Por isso, é necessário
pulsão que nos constitui, mas da
perceber-se atravessado por uma
qual não podemos nos apropriar.
pulsão para agir politicamente.
Pulsão é este impulso que causa minhas ações sem que eu possa
Contra esta pulsação contínua
controla-lo, é aquilo que me retira
constituinte e destituinte a política
da jurisdição de mim mesmo por
moderna inventou a representação.
fazer ressoar histórias de desejos
Ele nos fez acreditar que só haveria
desejados que não se reduzem à
sujeitos políticos onde houvesse
minha história. Aceitar a existência
representação, que só seria possível
de uma pulsão é aceitar que há
existir se representássemos algo,
algo em mim que me destitui da
um grupo, um setor, uma classe,
condição de próprio, de portador de
um gênero, uma pauta.
interesses próprios, de enunciador
Ela nos contou o conto de fadas
de uma identidade própria. A boa
dos conflitos sociais que devem ser
questão política será: o que significa
dramatizados como se estivéssemos
falar a partir disto que me destitui da
em uma peça ruim, na qual os atores
condição de próprio?
desempenharão sempre os mesmos papéis.
34
Fora da representação só haveria o caos, e é necessário organizar as vozes de maneira tal que se possa controlar seu tempo de fala, seu lugar de fala, sua perspectiva, suas instâncias decisórias. Essa era a forma mais insidiosa de conservação, e ela está presente tanto nas instituições oficiais quanto nos grupos que se opõem a tais instituições. No cento e nas margens, à direita e à esquerda, vemos como
35
a representação tem suas regras,
transcendência ainda maior a
tem seus regimes de visibilidade,
contextos. Há de se tirar os pés da
tem sua imposições e limites, suas
terra para criar e desejar.
condições de possibilidade. Mas definidas as condições preliminares
Tudo isso exige mais do que a
de existência, define-se tudo.
mera indignação, mais do que a autorização por si mesmo que não
Isso nos explica a necessidade de
mede os efeitos de suas ações, que
nunca se contentar ou aceitar uma
não autocritica continuamente suas
emergência local. Nossa luta não
decisões. Por isso, talvez seja o caso
é local, ela é genérica. A força de
de terminar lembrando que não é
colonização das formas de vida
sentimento que nos falta.
pelas dinâmicas de valorização do
Em um capitalismo que se alimenta
capital não é local, ela é genérica.
das excitações contínuas, que constrói o valor de suas marcas
É verdade que, quando a revolta
através da comercialização de
insurge, há uma tendência a
nossas lágrimas e de nossos
abandonarmos a condição de
risos, não haveria como nos faltar
cidadão do Estado para sermos
sentimento. Todo consumidor fala
membros da comunidade, do
a linguagem dos sentimentos e
coletivo, habitantes do lugar próprio
paixões, dos mesmos sentimentos e
ao território.
das mesmas paixões. O que nos falta
Aqueles que pregam o advento da
é rigor. Sim, rigor: a mais estranha de
comunidade, da territorialidade,
todas as paixões, esta que queima
precisam ter ouvidos para ouvir
e constrói. Nenhuma verdadeira
a limitação que tais conceitos
construção se ergueu sem essa
implicam. Não queremos mais ser
impressionante crueldade de artista
reconhecidos apenas em contextos
que se volta contra si mesmo até
específicos, como portadores de
produzir dos seus próprios desejos
propriedades específicas.
a plasticidade do que faz nascer
Há algo em nós que desconhece
de si toda forma. Só a verdadeira
especificidades e transcende
disciplina, esta que não é repressão
contextos, pois somos gêneros sem
ou submissão da minha vontade à
espécies, como dizia o jovem Max.
vontade de um outro, mas que é
Só faz sentido abandonarmos o
trabalho sobre si, que é produção
Estado-nação, que de fato não passa
de uma revolução na sensibilidade,
atualmente de uma patologia social
salva. Uma disciplina de artista.
paranoica destinada a se alimentar
É ela que falta à nossa política.
de afetos familiaristas, identitários e excludentes, em direção a uma
É isso. Muito obrigado.
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OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À IGUALDADE: um ensaio sobre a população negra brasileira Laura Alves de Oliveira1
Resumo: presente nos tratados de direito internacional e também na Constituição da República de 1988, a promoção da igualdade, mais do que um direito fundamental positivado, se apresenta como verdadeiro anseio de uma parcela da população do Estado brasileiro. Ocorre que, não obstante as lutas para efetivação desse direito, sua observância ainda é insipiente na realidade brasileira. Dessa forma, o presente ensaio busca refletir sobre o direito à igualdade, que, por se tratar de tema extenso e de grande relevância, será restrito à análise do direito à igualdade racial. Por meio de breve resgate histórico, pretende-se evidenciar as causas da desigualdade racial, bem como os reflexos percebidos ainda na atualidade. Palavras-chave: Igualdade racial. Racismo. Direito de igualdade. 1 http://lattes.cnpq.br/4448463212144391
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1. INTRODUÇÃO
de tratamento recebidas pelos negros; após isso, com as teorias
Pilar da revolução francesa,
do embranquecimento, segundo
a igualdade se apresenta na história
as quais a negritude era sinal de
como algo muito mais grandioso do
degenerescência e que apenas o
que um direito sistematizado: trata-
branqueamento poderia salvar a
se de ideal de vida, pelo qual muito
população (ainda que a lógica do
se lutou no decorrer dos séculos.
branqueamento no Brasil fosse
Não obstante sua importância, foram
contraditória com a aplicada em
necessárias revoltas e revoluções em
outros países); e, por fim, a teoria
diversos cantos do globo para que
da democracia ou conformação
se pudesse tentar exercê-la de forma
racial, na qual se afirma que todos
plena ou, pelo menos, de maneira
são iguais e que refuta a existência
mais substancial.
de desigualdade racial na história brasileira.
No Brasil, nem sempre a igualdade foi garantida como direito formal
O tema abordado é relevante não
de todos. Até o ano de 1888, negros
porque a população negra pretende
e negras escravizados tinham com
ser vista como vítima na história
o restante da população a relação
na humanidade, ou mesmo porque
de propriedade/proprietário,
deseja expressar que sua dor pelo
sendo certo que não eram sequer
passado é mais forte do que a de
considerados formalmente como
outros grupos vulnerabilizados, mas,
humanos. Com a abolição da
sim, porque o racismo ainda é tabu
escravidão, formalizada pela Lei
na realidade brasileira. Ainda hoje,
Áurea, as pessoas ex-escravizadas
em 2016, as pessoas afirmam (talvez
se tornaram livres e donas do
com a intenção de se convencerem)
próprio destino. Ocorre que, conferir
de que o racismo não existe e que
liberdade não necessariamente
não há desigualdade formal na
significava em oferecer igualdade,
população brasileira.
seja do ponto de vista formal ou material.
Assim como no passado, responsabilizam negros e negras
Durante os cinco séculos de história
pela baixa escolaridade, por
brasileira foi possível perceber
ocuparem (em maioria) postos de
três tipos de abordagens no que
trabalho pouco valorizados, pela
tange à relação entre negros e
hipersexualização de seus corpos
brancos no país: primeiro, com
e, também, pelo extermínio da
as teorias evolucionistas, que
juventude negra brasileira.
justificavam as desigualdades
No Brasil, o racismo é admitido
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apenas enquanto existe nas relações
pretexto de se buscar pessoas a
privadas, sendo refutada fortemente
fim de repovoar Portugal após a
a ideia de um racismo institucional,
redução drástica da população
uma vez que a Constituição e as leis
em virtude da guerra e de
preveem o direito à igualdade de
epidemias. Nos séculos XVI e XVII
todos e todas, independentemente
os portugueses estabeleceram um
de cor, raça, etnia, religião ou crença
comércio estável de negras e negros
e condição social.
para outros territórios, contrariando o próprio discurso de povoamento
Ademais, o período compreendido
para fins de trabalhos agrícola e
entre 2015 a 2024 foi declarado
doméstico.
pela ONU (Organização das Nações Unidas) como década
De mão de obra e povoamento,
internacional dos afrodescendentes,
os negros passaram a ser tratados
com a justificativa de que é
como mercadorias, que eram
internacionalmente reconhecido
trocadas por objetos pelos seus
que os direitos humanos da
pares e também por europeus
população negra precisam ser
instalados na costa do continente
promovidos e protegidos, o que
africano. A força e intelecto das
apenas reforça a necessidade e
pessoas escravizadas era utilizada
urgência de reconhecimento, estudo
sem qualquer contraprestação à
e combate ao racismo em âmbito
altura. O abrigo e a alimentação
interno e internacional, por meio da
garantidos eram apenas formas de
efetivação da garantia de direitos
fazer com que a propriedade dos
sistematizados, bem como pela
senhores pudesse ser utilizada por
execução de políticas públicas que
mais tempo. Com a escravidão,
atuem nas causas da desigualdade e
houve a total anulação da expressão
não apenas em suas consequências.
das vontades e desejos dos escravizados, porque
2.
RACISMO NO BRASIL: A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A CARNE NEGRA
O tráfico de pessoas negras para realização de trabalho escravo é fato que precede a chegada dos portugueses ao Brasil. As primeiras expedições lusitanas ao continente africano foram realizadas sob o
a escravidão se caracteriza por sujeitar um homem ao outro, de forma completa: o escravo não é apenas propriedade do senhor, mas também sua vontade está sujeita a autoridade do dono e seu trabalho pode ser obtido até pela força (...) Na escravidão, transforma-se um ser humano em propriedade de outro, a ponto de ser anulado seu próprio poder deliberativo: o escravo pode ter vontades, mas não pode realizálas (PINSKY, 2009, p.11).
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A escravidão perdurou no Brasil
e brancos. Na obra A escravidão
por quase quatro séculos e é nítida
no Brasil, de Jaime Pinsky (2009),
a permanência de componentes
as únicas menções realizadas de
sociais, econômicos e políticos
forma direta às mulheres negras que
dessa prática abominável. Os livros
foram escravizadas dizem respeito
didáticos de história atribuíram aos
ao casamento, à reprodução e ao
negros escravizados características
comportamento “naturalmente
falaciosas como a selvageria,
lascivo” delas.
a primitividade e a preguiça para realização de trabalhos de
Nesse sentido, o autor afirma que
qualquer natureza. Perceba que, em
havia uma desproporção numérica
alguns casos, tais características
grande entre homens e mulheres
permanecem naturalizadas, a
negras e que, por isso, os próprios
exemplo dos baianos, cuja maioria
senhores de escravos estimulavam
expressiva da população é negra,
as relações efêmeras entre os
e a quem é atribuída a preguiça
negros, a fim de que o maior número
em excesso; ou mesmo aos jovens
de crianças fosse gerado. Segundo
negros que são suspeitos de
ele, era comum que uma mulher
condutas criminosas até que seja
tivesse filhos com vários homens
provada sua Inocência. Nesse
diferentes. Muito embora os negros
sentido, vale destacar trecho da
fossem obrigados a se converterem
música Boa esperança, do rapper
ao catolicismo, o casamento
Emicida:
religioso entre eles era algo raro e
E os camburão o que são? Negreiros a retraficar Favela ainda é senzala jão Bomba relógio prestes a estourar O tempero do mar foi lágrima de preto Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto Só desafeto, vida de inseto, imundo Indenização? Fama de vagabundo (EMICIDA, 2015).
não desejado pelos senhores, pois não era visto como ato de fé, mas mera formalidade (PINKSY, 2009). Como consequência desses e de outros comportamentos arbitrários praticados pelos senhores de escravos, temos a hipersexualização da mulher negra, que é vista como a beleza exótica, acrescida de desejo sexual incontrolável e
No que se refere às mulheres
que é adequada para relações
negras, até hoje é possível observar
efêmeras, mas não para cultivar
os reflexos individuais e coletivos
relacionamentos afetivos e
desses mecanismos, especialmente
duradouros:
no que tange à forma como se relacionavam com homens negros
Não se levam em consideração esses elementos, quando,
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46
com enorme carga de preconceito, pretende-se atribuir aos negros características como leviandade nas relações pessoais e promiscuidade sexual. Na verdade, isso não tem, evidentemente, nenhum fundamento biológico, ou mesmo social: era fruto do constrangimento a que eram submetidos, à sua condição. Mesmo porque os senhores se utilizavam da situação para dar vazão à sua atividade sexual geralmente bastante reprimida em casa (grifamos) (PINSKY, 2009, p.62).
Assim, percebe-se que no período em que a escravidão vigia, a mulher negra tinha funções específicas na sociedade para além do trabalho forçado (fosse ele nas lavouras ou doméstico): reprodutora entre os seus e garantidora de prazer sexual, em maioria esmagadora forçado entre os homens brancos: Quanto ao senhor, contudo, não há dúvidas. Cumpria com sua mulher branca as obrigações de reprodutor e marido, mas voltava-se às escravas para o prazer sexual. Entregava-se às negras e mulatas com todo o empenho, buscando usufruir delas a satisfação que não encontrava em sua formal cama de casado. O mito de mulheres quentes, atribuído, ate hoje às negras e mulatas pela tradição oral, decorre do papel que lhes era designado pela sociedade escravista (grifamos) (PINSKY, 2009, p.64).
O movimento abolicionista alcançou espaço significativo no século XIX e se utilizou de vários
aspectos da dita promiscuidade sexual das negras como um argumento contrário à escravidão. Segundo eles, a escravidão e o comportamento lascivo das negras corromperiam a família brasileira. A partir desse momento, diversos instrumentos normativos foram criados a fim de evitar a separação de cônjuges, impedirem a venda de filhos menores e estimular a união duradoura entre os escravos. Ao contrário do que narram os livros de história, por mais de 300 anos a população negra resistiu como pode à escravidão. Fugas individuais e coletivas, criação e manutenção de quilombos, suicídio e aborto realizados como forma de refutar a imposição do poder sobre seus corpos, a compra da liberdade, que se expressava pela carta de alforria eram formas materiais da resistência negra e a negociação com os senhores de trabalho por terras e outras formas de tentar melhorar a própria situação no país (SCHWARCZ, 2015). Aliado a essas expressões de negros e negras, o movimento abolicionista brasileiro fez forte campanha pelo fim da escravidão que, em maio de 1888, se viu realizada por meio da assinatura da Lei Áurea. Ocorre que a liberdade formal veio desacompanhada de qualquer política pública ou planejamento de remanejo dos negros e negras
47
de forma que estes ficaram,
atual população brasileira a que um rastro mais profundo deixou foi por certo a branca segues e a negra e depois a indígena. À medida, porém, que a ação direta das duas últimas tende a diminuir, com o internamento do selvagem e a extinção do tráfico de negros, a influência europeia tende a crescer com a imigração e pela natural tendência de prevalecer o mais forte e o mais hábil. O mestiço é a condição dessa vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do clima (MARIGONI, 2011, p.4).
literalmente, à margem da sociedade, muitas vezes tendo que se sujeitar a condições análogas à escravidão, ou então se abrigar nos arredores das cidades, lugares nos quais se constituíram periferias e favelas. No mesmo sentido, a igualdade entre os ex-escravizados e as pessoas livres era mero desejo, sem qualquer conexão com a realidade vigente. Nos dizeres de Lilia Schwarcz, após a abolição, a liberdade não significou igualdade. Se por um lado a lei tinha garantido a liberdade, por outro a igualdade jurídica não passava de uma balela. Essa era a base para a adoção de um modelo de darwinismo e determinismo racial, em tudo oposto ao liberalismo: se o liberalismo é uma teoria do indivíduo, o racismo anula a individualidade para fazer dele apenas o resumo das vantagens ou defeitos do seu ‘grupo racial de origem (SCHWARCZ, 2012, p. 22).
Na obra Nem preto, nem branco, muito pelo contrário, a antropóloga Lilia Schwarcz narra três principais fases que a diversidade de etnias passou na história do Brasil, quais sejam: as teorias biológicas como argumento para manutenção das desigualdades; a miscigenação como forma de gerar o branqueamento da população brasileira; e a democracia racial, que prega a igualdade desde sempre, a cordialidade nas relações
A partir da segunda metade do
entre as pessoas e a completa
século XIX se iniciou no Brasil
refutação de desigualdade racial no
um processo de tentativa de
país.
embranquecimento da população. Para alcançar esse objetivo, algumas medidas foram adotadas, como, por
2.1 A construção social do povo brasileiro
exemplo, a proibição do tráfico de negros e o incentivo à imigração de
Na primeira fase, que pode ser
europeus. Nesse sentido, destaque
verificada com mais intensidade em
para a citação de Joaquim Nabuco
meados do século XIX, as teorias
de 1885, reproduzida em artigo de
raciais se baseavam na biologia para
Gilberto Marigoni:
fundamentarem a desigualdade
Das três raças que constituíram a
existente e incentivada ao redor
48
do mundo. A característica mais
históricas fossem reduzidas a dados
evidente dessas teorias é a utilização
biológicos inquestionáveis.
do método científico próprio das ciências naturais no desenvolvimento
Importante destacar que, em
das ciências sociais. O darwinismo
virtude dessas teorias, e pela crença
social, por exemplo, considerava
absoluta nas teorias científicas,
natural a agressão e a lascividade
a miscigenação extremada era
da população negra, levando em
vista como algo repugnante,
consideração apenas aspectos
sendo considerada por alguns
biológicos. No mesmo sentido,
teóricos como sinal e condição
afirmava que os europeus se
da degenerescência. Isso porque
encontravam no topo da cadeia
acreditava-se que as raças humanas
biológica entre os homens, e
não eram passíveis de cruzamento,
que, portanto, eles eram os mais
visto que correspondiam a
inteligentes, bonitos, civilizados,
realidades diversas, fixas e essenciais
enfim, o modelo a ser seguido e
(SCHWARCZ, 2015).
espalhado ao redor do globo. foi só no século XIX que os teóricos do darwinismo racial fizeram dos atributos externos e fenótipos elementos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos. Vinculados e legitimados pela biologia, a grande ciência desse século, os modelos darwinistas sociais constituíram-se em instrumentos eficazes para julgar povos e culturas a partir de critérios deterministas. (SCHWARCZ, 2015, p. 20).
Dessa forma, inclusive os discursos médico e jurídico foram utilizados para legitimar as diferenças de tratamento social com base em características biológicas. Essas teorias foram utilizadas por diversos estudiosos da época, com a finalidade de naturalizar comportamentos sociais, expressões culturais e características, fazendo com que questões políticas e
A partir da metade do século XIX, muitos cientistas, viajantes e intelectuais estrangeiros, apoiados nas teorias científicas e nos (pre)conceitos raciais, haviam pronunciado diversos veredictos extremamente desfavoráveis ao futuro do Brasil. Escritores como Arthur de Gobineau, Louis Couty e Louis Agassis – que estiveram no Brasil durante a década de 1860 –, além do inglês Thomas Buckle, consideravam o Brasil como um “território vazio” e “pernicioso à saúde”, enquanto os brasileiros eram vistos como “seres assustadoramente feios” e “degenerados”. Para esses viajantes, uma conjunção de fatores climáticos e raciais, sobretudo a “larga miscigenação”, era mobilizada para explicar a suposta inferioridade do homem brasileiro e a impossibilidade de o Brasil acessar os valores do “mundo civilizado”. Essas representações negativas sobre a realidade nacional, quando não influenciaram a opinião dos brasileiros sobre o seu próprio
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53
país, ao menos colocaram em dúvida a viabilidade do Brasil no cenário internacional. Mesmo após a implantação do Regime Republicano – quando algumas vozes já se levantavam na luta contra as teorias deterministas – muitos cientistas estrangeiros, ou mesmo parte da elite política e intelectual brasileira, continuavam propagando a teoria degeneracionista do clima tropical e dos malefícios causados pela miscigenação racial (SOUZA, 2008, p. 147).
e a permanência de variações relevantes, tanto orgânicas como biológicas e cerebrais” (SCHWARCZ, 2015, p. 23). Ele acreditava que nem todos os grupos humanos eram capazes de evoluir de maneira igual, ou mesmo chegar à civilização. Dessa forma, o médico entendia que era necessária, entre outras coisas, a aplicação de leis diferentes conforme a raça das pessoas. Como consequência da naturalização por
No Brasil, foi possível perceber a
meio da biologia de características
atuação do movimento eugenista
sociais, ele entendia que os grupos
brasileiro entre as décadas de 10
raciais tinham noções diferentes
a 30 do século XX. Este foi um
sobre o próprio cometimento de
movimento liderado por intelectuais
crimes e que dessa forma eles não
e cientistas que tinha como
poderiam ser responsabilizados com
objetivo promover a depuração da
punições do mesmo peso. “De certas
população brasileira por meio de
raças se esperava responsabilidade;
seu embranquecimento. Influenciada
de outras, não se podia cobrar o que
pelas teorias darwinistas raciais e
não possuíam”. Em resumo, essa
sociais, profissionais da educação,
era a base teórica que justificava a
do direito e da medicina se uniram
inviabilidade de um código penal
a fim de promover a civilização
único para toda a população
e modernização da sociedade
brasileira.
brasileira. Segundo Nina Rodrigues, explicado Ainda acerca das teorias raciais
por Lilia Schwarcz os crimes são
e eugênicas dar-se-á ênfase às
involuntários em certas raças
ideias defendidas pelo médico
inferiores, que não se pode julgá-los
baiano Raimundo Nina Rodrigues,
com os códigos de povos civilizados
pela conexão direta ao tema ora
“(...) a aplicação da lei deveria ser
trabalhado. Ele entendia que a
condicionada aos diferentes estágios
igualdade era uma espécie de
de civilização e dimensionada
dogma espiritualista, em nada
pelo estudo das raças existentes
compatível com o método científico.
no Brasil” (2015, p. 24). Perceba
Dessa forma, o médico defendia
como a selvageria, a violência e o
a existência de “ontologias raciais
despreparo para convivência em
54
sociedade são entendidos pelo
sociais existentes no Brasil. Ocorre
teórico como aspectos naturais, que
que, em países como os Estados
podem ser facilmente encontrados
Unidos da América e África do
no DNA de qualquer pessoa negra.
Sul, essas teorias defendiam que
Seguir essa linha de raciocínio é
qualquer forma de miscigenação era
reduzir a complexidade do indivíduo
negativa, e que a forma de lidar com
ao determinismo de um destino
as diferenças entre os grupos era
unicamente baseado em critérios
a segregação, ou seja, a completa
que não podem ser escolhidos
separação da população de acordo
quando se nasce.
com as raças, a fim de que os
Culturas são raças, e suas realidades ontológicas não permitiriam arbítrio ou variação. Era como se ele decretasse que, ainda que a liberdade conseguida pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888 fosse negra, a igualdade pertencia exclusivamente aos brancos (SCHWARCZ, 2015, p. 24).
A partir da negação da individualidade dos seres e baseando-se na desigualdade natural dos grupos raciais é que os teóricos da época pretendiam a aplicação de leis diferentes e de imputação de responsabilidade para cada grupo. Tal constatação apenas reforça a citação acima, na qual se defende que a igualdade não era algo que se pensava pertencer a todas as pessoas, mas apenas às
degenerados não desvirtuassem ou atrapalhassem o progresso dos outros grupos (SCHWARCZ, 2015). No Brasil, se observa que foram grandes os esforços no sentido de reafirmar que o fim da escravidão foi uma dádiva dos portugueses ao contingente negro que vivia no país, que a escravidão ocorrida no Brasil tinha aspectos positivos e que não houve registros de lutas e revoltas para que ocorresse o fim da escravidão, o que de observou em outros países nos quais a escravidão também foi realidade. Toda essa conformação teve como objetivo auxiliar o entendimento sobre a miscigenação da população. Dessa forma, percebe-se que
pessoas brancas.
houve uma leitura diversa de
A segunda fase trabalhada pela
diversidade racial existente a partir
antropóloga salienta como as teorias raciais foram adotadas de maneira peculiar pelos teóricos brasileiros. Não se refutava a naturalidade impingida às diferenças raciais e
como solucionar o problema da das teorias darwinistas raciais: ao invés de promover a segregação entre os grupos, deveria se estimular a miscigenação positiva, a fim de que, misturando as raças, a população se tornasse cada vez
55
mais branca e, com isso, se atingisse
função da cor/etnia, o racismo agia
o objetivo de demonstrar a evolução,
na esfera privada. A integração dos
modernização e civilização do povo
grupos tem seu ápice e finalização
brasileiro (SCHWARCZ, 2015).
na cultura, visto que no cotidiano a desigualdade de tratamento era
Ao contrário do que previam os
patente. Somente na década de
estudos realizados na época, tal
1970 é que o movimento negro
resultado não se verificou na prática.
organizado aparece de forma
Tem-se então que a partir da
mais insistente, com a finalidade
década de 1930, no governo Vargas,
de questionar as desigualdades
pode se observar a terceira fase
presentes na sociedade brasileira,
trabalhada por Lilia Schwarcz com
que tem como pano de fundo a cor
a construção da identidade nacional
dos indivíduos.
brasileira na figura do mestiço. O abrasileiramento da cultura africana,
Dentre as conquistas alcançadas
a permissividade de expressões
pelos movimentos negros em busca
culturais, tais como o samba, a
da diminuição das desigualdades,
culinária, a capoeira, foram formas
pode-se citar a criação em 2002 da
de, na cultura, realizar a união entre
SEPPIR – Secretaria de Políticas de
os diversos grupos que compunham
Promoção da Igualdade Racial, a
a população, sempre com a ideia de
publicação do Estatuto da Igualdade
harmonia e cordialidade.
Racial e a política de ações afirmativas, cuja mais expressiva é a
Foi nesse cenário que a ideia
adoção de cotas nas universidades.
de democracia racial construída
Embora haja dificuldade entre os
por Gilberto Freyre na obra Casa
próprios brasileiros em assumir
Grande-Senzala se tornou cada
a existência de racismo no Brasil
vez mais popular, passando a
ainda hoje, tal constatação é
compor o imaginário brasileiro
necessária para que as conquistas
no qual se reforçava as ideias
acima descritas não sejam vistas
de uma escravidão bondosa, de
como privilégio, mas como parte da
harmonia nas relações entre senhor
reparação pela ausência de políticas
e escravizado e da ausência de
que diminuíssem as desigualdades
resistência a esse período da história
tão profundas que persistem na
brasileira (SCHWARCZ, 2015).
população.
Nesse período, é possível perceber
Por fim, não se pretende de forma
que, embora não houvesse no Brasil
alguma afirmar que o racismo é
nenhuma lei que discriminasse
um problema que atinge apenas
de forma patente as pessoas em
os brasileiros. Prova disso é que
56
57
o período compreendido entre
opressões, é importante que sua
2015 e 2024 é declarada a década
justa função seja explicitada, ainda
internacional dos afrodescendentes
que como forma de projetá-la para
pela ONU – Organização das
o futuro, não obstante o desejo de
Nações Unidas. Isso significa
vê-la em prática nos dias atuais.
dizer que existiu e ainda existem
As interferências jurídicas no que
desigualdades sociais e econômicas
tange à igualdade são importantes
entre negros e outros grupos em
na medida em que objetivam a
âmbito interno e internacional e
diminuição das desigualdades
que o reconhecimento da existência
causadas pelas diferenças existentes
dessa desigualdade é apenas o
entre os grupos que compõem a
primeiro passo para que se possa
sociedade.
agir de forma efetiva a fim de diminuí-la.
A preocupação em se sistematizar no âmbito internacional a proteção
3. IGUALDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
a valores como a igualdade e o respeito às diferenças tem seu ápice no período Pós Segunda Guerra
A igualdade material não é
Mundial, com a criação da ONU e da
algo que se encontra pronto na
Declaração Universal dos Direitos
natureza, mas, pelo contrário,
Humanos. Nesse sentido, diversos
é fruto de reivindicações e
são os tratados internacionais
conquistas de grupos que sofreram
de direitos humanos que cuidam
historicamente pela sua falta. Essa
das tentativas de diminuição das
igualdade pode ser buscada por
desigualdades existentes em suas
meio de ações do poder público
diversas modalidades. A título
que visem diminuir as causas/
de exemplo, podemos citar: a
condições das desigualdades. O
Declaração Universal dos Direitos
Direito, dentre outras funções,
Humanos (1948), Convenção nº 111
tem o papel de promover “um
da Organização Internacional do
tratamento equivalente que
Trabalho sobre Discriminação em
assegure a igualdade e de oferecer
Matéria de Emprego e Ocupação
um tratamento diferenciado
(1958) e a Convenção Internacional
que promova a igualdade”
sobre a Eliminação de Todas as
(ROTHENBURG, 2008, p.78).
Formas de Discriminação Racial (1965). Sobre a Convenção de 1965,
Embora se saiba que na realidade
tem-se que entrou em vigor no
o Direito tem funcionado como
Brasil no ano de 1968 por meio do
instrumento de manutenção de
Decreto nº 65.810 e que dispõe de
privilégios e perpetuação de
diversos mecanismos de combate
58
59
60
61
ao racismo e à discriminação racial,
todos os grupos que compõem a
bem como a promoção de ações
sociedade. Em realidade, significa
afirmativas.
dizer que, por meio de leis e políticas públicas, deverá o Estado garantir
Nos limites do tema proposto para
que a diferença existente entre os
o presente ensaio, tem-se que a
grupos não será obstáculo para
igualdade é direito fundamental
que todos eles sejam tratados com
consagrado no caput do artigo
o mesmo cuidado e que tenham
5º da CR/88 (Constituição da
acesso e garantia das mesmas
República Federativa do Brasil de
prerrogativas e deveres.
1988). O texto constitucional afirma categoricamente que todas as
Na perspectiva do Estado
pessoas são iguais perante a lei e
Democrático de Direito, a promoção
que o Estado brasileiro garantirá a
da igualdade está diretamente ligada
inviolabilidade do direito à igualdade,
ao respeito às diferenças, que são
dentre outros direitos fundamentais.
inerentes a qualquer população.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (grifou-se) (BRASIL, 2016).
Perceba que o caput do artigo 5º cuida, ao mesmo tempo, da igualdade formal e material. Formal quando afirma que todos são iguais perante a lei. Material, pois concebe que cabe ao Estado garantir que ninguém poderá violar a igualdade que deve reger as relações entre as pessoas e entre elas e o próprio Estado. Importante consignar também que a promoção da igualdade por parte do Estado não significa que ele irá apenas garantir a aplicação de uma mesma lei para
Dessa forma, o Estado deve atuar pela igualdade na medida em que a diferença inferioriza um grupo em relação a outro e, também, deve promover o respeito às diferenças existentes entre esses grupos, na medida em que a igualdade pode descaracterizá-los (SANTOS, 2003, p. 485).
3.1. Direito à igualdade racial A igualdade racial pode ser entendida como a igual oportunidade de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas públicas e privadas, independentemente de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica. Essa concepção pode ser depreendida do artigo 1º, parágrafo único, inciso I da Lei 12.228/2010 e traz consigo o maior anseio da
62
63
64
população negra na atualidade. Não se pretende afirmar que apenas as pessoas negras possuem dificuldade na efetivação da igualdade racial no Brasil, mas pelos próprios limites do presente trabalho é importante que
de reclusão, nos termos da lei; (BRASIL, 2016).
Ainda que sejam baixos os índices de condenação pela prática do crime de racismo em comparação
tal delineamento seja feito.
ao número de ocorrências
Nesse ponto, será feita breve análise
reconhecimento do crime de
das principais normas que cuidam da desigualdade racial em âmbito nacional. Tal apresentação se mostra necessária para demonstrar que não obstante à existência de diversas leis e tratados sobre o assunto, ainda há muito que se avançar na discussão sobre a igualdade racial, uma vez que ela salta aos olhos no cotidiano
ou de processos ajuizados, o racismo já é um passo enorme no cenário brasileiro, visto a dificuldade da sociedade em conceber a existência e a prática cotidiana de ações discriminatórias. No ano seguinte à promulgação da Constituição da República foi publicada a Lei nº7716/1989 que
de brasileiros e brasileiras.
define os crimes resultantes de
Estabelece o inciso XLII do artigo 5º
sintética, a lei busca criminalizar
da CR/88 que o crime de racismo é inafiançável e imprescritível. Pela primeira vez na história brasileira a defesa da igualdade racial por meio da criminalização do racismo é elevada à categoria de garantia fundamental. Observe: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
preconceito de raça ou cor. De forma ações de evidente discriminação, como impedir o acesso ou negar atendimento em restaurantes, hotéis e outros locais. Nela também se tipifica a prática, incitação ou indução à discriminação racial e imputa a pena de reclusão de um a três anos. A pena é aumentada quando essa prática é cometida por intermédio de meios de comunicação social, visto o grande alcance que elas podem ter. Ocorre que, em 1995, foi publicada a Lei nº 9.459 que, dentre outras
(...)
mudanças, trouxe o §3º do artigo
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena
140 do Código Penal, conhecido como injúria racial. Ainda que o conteúdo da nova norma seja
65
similar ao artigo 20 da Lei nº
Por fim, no que tange à legislação
7716/1989, o dispositivo mais novo
pátria sobre a igualdade racial,
adota tratamento mais brando e
em 2010 foi publicada a Lei nº
a possibilidade de tramitação no
12.228 - o Estatuto da Igualdade
juizado especial criminal. Perceba
Racial. O referido estatuto define
que, se por um lado o artigo 20
discriminação racial como qualquer
permite o processamento do feito
tipo de diferenciação de tratamento
perante a justiça comum prévia
que tenha por base a cor, raça ou
denúncia do Ministério Público, com
etnia do indivíduo e que cause
real possibilidade de reclusão do
diminuição de reconhecimento ou
acusado, por outro, a injúria racial é
fruição de um direito fundamental. O
crime de ação pública condicionada
objetivo principal da Lei é a defesa
à representação e que pode ser
de direitos individuais e coletivos,
conduzida a princípio pela vítima
bem como a promoção de efetiva
desacompanhada de advogado.
igualdade de oportunidades para
Cada procedimento possui suas
a população negra brasileira. O
vantagens e desvantagens, ao se
Estatuto dispõe sobre a garantia de
analisar os aspectos processuais.
direitos fundamentais, em especial no direito à saúde, à educação, ao
Na prática, o que se percebe é que a
trabalho, à liberdade de consciência
maioria das condutas que se adequam
e crença e ao acesso à terra e a
a ambos os tipos penais acaba por
moradia.
ser tipificada nos termos do artigo 140, §3º por ser ele mais brando,
Perceba que, para além da
tanto no processamento quanto nas
Constituição da República de
punições. Ainda existe dificuldade
1988, são diversas as normas
por parte da população e dos sujeitos
que pretendem diminuir as
do direito (advogados, promotores
desigualdades existentes no país
e magistrados) em reconhecer a
oriundas das diferenças de cor,
gravidade da conduta discriminatória
etnia ou raça. Tais normas tipificam
tal como ela é. A responsabilidade por
condutas discriminatórias como
isso é em parte da crença popular de
criminosas e estimulam a criação
que não há racismo no país e parte
de políticas públicas de promoção a
no mito da cordialidade brasileira.
igualdade racial. Não obstante, são
Se somos todos iguais e, ao mesmo
poucas as ações efetivadas nesse
tempo um povo pacifico, não há
intervalo de tempo em comparação
que se falar no cometimento de
com o grau de desigualdade
conduta gravosa como a prática de
observado na realidade brasileira.
discriminação racial, mas tão somente de uma injúria racial.
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68
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse período, o branqueamento da população era o maior objetivo desses intelectuais e cientistas,
Ao final do presente trabalho é
que acreditavam ser possível uma
possível concluir que a profunda
miscigenação positiva. Quanto
desigualdade social e racial
mais branco, melhor. Assim, eles
observada atualmente no Brasil
tentavam modificar a imagem do
tem suas raízes no período de
Brasil e do povo brasileiro, querendo
colonização do Brasil. Durante
demonstrar que era falsa a imagem
quase quatro séculos a relação entre
propagada de selvageria e de não
negros escravizados e o restante da
civilidade. Dessa forma, com o
população brasileira era tipicamente
incentivo para migração de europeus
de proprietário e propriedade,
e pelo estímulo à miscigenação
sendo certo que os negros apenas
positiva, o resultado foi o surgimento
eram considerados como pessoas
do mestiço como identidade
para fins de responsabilização
nacional.
criminal quando eram os autores de crimes. As teorias darwinistas
Observa-se que a partir da década
sociais fundamentavam práticas
de 30 do século XX muito se investiu
como a escravidão baseadas nas
para a naturalização da mestiçagem
desigualdades naturais existentes
e da serenidade como características
entre brancos e negros que se
do povo brasileiro, de forma que, na
diziam insuperáveis.
história oficial do país, a abolição da escravidão é vista como dádiva
A tardia abolição da escravidão
do império português e que desde
desacompanhada de qualquer
esse momento não mais existiam
política de inclusão dos negros
diferenças entre negros e brancos.
agora livres fez com que no país se
Assim, surge a ideia de democracia
formasse um imenso contingente de
racial, que afirma sermos todos
mão de obra barata, desqualificada
iguais em todos os sentidos, não
e indesejada. Nesse período, as
sendo necessário nenhum tipo de
teorias eugenistas surgiram como
interferência ou modificação nas
continuação natural das teorias
relações existentes.
darwinistas e defendiam a pureza das raças, de modo que apenas
Somente com o esforço e trabalho
acentuavam e reafirmavam as
árduo dos movimentos sociais
diferenças existentes na sociedade
organizados é que tem sido possível
com relação aos grupos que as
pautar a existência do racismo como
formaram.
problema estrutural no país que precisa ser reconhecido e combatido
69
tanto em âmbito institucional como
nem mesmo trabalhar de forma
nas relações particulares. Nesse
exaustiva a igualdade como direito
sentido, pode se observar que
fundamental. O presente trabalho
existe vasta legislação interna e
apenas pretende expor alguns
internacional, a fim de propor ações
apontamentos que podem ser
para punir aquelas pessoas que
utilizados para o aprofundamento
cometem atitudes discriminatórias e,
dos debates e das ações que
ao mesmo tempo, estimulam ações
busquem diminuir as desigualdades
para a promoção da igualdade racial,
e promover qualidade de vida
buscando superar as desigualdades
para grande parte da população
existentes até hoje.
brasileira, que ainda acredita estar tão distante da proteção da lei e
Por fim, importante
da Constituição e que, no entanto,
salientar que em nenhum momento
não desiste de lutar por um futuro
se buscou esgotar o tema da
melhor.
desigualdade racial no país,
REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil [1988]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em 28 jun 2016. BRASIL. Lei nº 7716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L7716compilado.htm> Acesso em 28 jun 2016. BRASIL. Lei nº 9459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. . Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9459.htm> Acesso em: 28 jun 2016. BRASIL. Lei nº12.228, de 20 de Julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2010/lei/l12288.htm> Acesso em: 28 jun 2016.
70
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VIVER E DEIXAR VIVER Marta Neves1
Na mais recente edição da SCAP,
Dudu Salabert, do Transvest
em 2016, recebemos no teatro da
(projeto de inclusão social de
PUC Minas São Gabriel um grupo de
travestis, transexuais e transgêneros,
pessoas que se conectam a frentes
que oferece a essa população
de luta pelos direitos de populações
diversos cursos gratuitos).
rechaçadas e violentadas de diversas maneiras pelo mero fato de
Não quero aqui tomar o lugar
serem o que são, de serem mulheres,
dessas pessoas maravilhosas e suas
transmulheres, transhomens,
histórias de vida e enfrentamento de
travestis – por pertencerem a um
tanta intolerância. Na tentativa de
gênero ou por não se identificarem
me solidarizar com elas e com todos
com aquele que lhes foi atribuído
os que passam por agressões várias,
ao nascerem. Estiveram conosco,
com essas tantas vidas, esses tantos
na PUC Minas São Gabriel, Tathiane
“amores esquecidos”, como costumo
Mátia e Bia Zazu, da Casa de
dizer, transcrevo a seguir um trecho
Referência da Mulher Tina Martins
de performance minha e do artista
(que acolhe mulheres em situação
Marc Davi, em que tentamos somar
de violência), e também Tiffany e
diversas narrativas desses corpos
1 http://lattes.cnpq.br/2861637905717664
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em abandono, numa espécie de rito
as duas, invisíveis de longe, salvo
em que leio textos e Marc canta,
por um detalhe: como a peruca
não para fundarmos uma religião,
anda pela hora da morte, meteram
mas para pensarmos a ideia de base
numas toucas de meia cola branca
dessa palavra: “religar”.
e costura pra amarrar um cabelo falso, louro, soft. Eram perucas de lã.
Segue, então, um trecho sobre duas
Quentes e lindas, algodões coloridos,
travestis da Av. Antônio Carlos,
coisa de boneca que levaram muito
aqui em Belo Horizonte. O texto é
a sério, amorosas com os cabelos
meu, esclareço, com duas pequenas
de poliéster. De longe eram dois
inserções do Nelson Rodrigues, que
fósforos com picumã laranja, dois
seguem aí, sem ABNT, apenas em
cotonetes usados. Mas de perto
negrito, mas com muito carinho.
tinham algum sucesso... vai saber. O caso é que iam juntas, estavam
Estava procurando Deus e, de
juntas, colavam ali, trampinho duro
repente, vem uma pretinha que
e suave, de pau e nylon, envolvidas
estudava comigo. Para diante de
numa conversinha pequena, de olhos
mim, ri para mim. Estávamos sós,
e mãos e lã que não dava pra lavar.
maravilhosamente sós. Seu riso
Um dia passou um carro da polícia.
não tem os dentes da frente. Diz
E aí você sabe: polícia não gosta de
baixinho: - “Eu também tenho
algodões, de chinelo Decoplast, de
piolhos, lêndeas”. E, até hoje, acho
gente que não tem nome, porque
“lêndea” um nome bonito, como
não tem sexo, porque não tem
se fosse de madrepérola. Como o
vergonha. Foi rápido porque quando
Grande Procurado.
uma delas tentou gritar, o cabelo de poliamida travou-lhe a garganta... e
Então vou lhes dizer aqui quem
o mais que se pôde ver foi o carro
mais procura o Grande Cara. Eram
com a outra dentro, luz piscando
duas irmãs – dessas com X. Dois
forte, abafando a lã que sumiu na
espetos pretos ou brancos ou
escuridão da desova. Ficou a do
pardos ou russos, sei lá. Duas
cabelo na garganta ali, na Antônio
magras profundas. Usavam chinelo
Carlos, não muito longe do Ferro
de dedo alternativo, marca Peggy.
Velho Jujuba, agora fechado. Parada,
Short do Natal, blusa estilo top.
sem voz, acho mesmo que eram
Quase não precisavam fazer a barba,
mudas as duas. Nunca mais se viu
novinhas. Desciam para o ponto –
a do carro de polícia. A da garganta
que era também o dos ônibus, sem
de vidro ainda fez ponto por ali
salto e sem concorrência, só gente
mais um tempo, à procura de Deus,
sem graça pulando do lotação.
com seu chinelinho Festpé. O marca
Mas bora fazer vida. Ficavam ali
Peggy, que ela tanto amava, rachou
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de vez. De fato, qualquer amor há de
dando boas-vindas, conversando
sofrer uma perseguição concreta e
de coisas pequenas da festa e tal e
assassina.
coisa. De repente, ela solta que era seu aniversário. Eu e meus amigos
Acrescento agora mais um breve
prontamente fomos abraçá-la e ela,
relato. Acho que são, afinal, essas
entre um beijinho e outro, saiu com
diversas passagens de vidas que
essa fala: “estou fazendo 37 anos
melhor nos esclarecem a grande
hoje; comemoro mesmo!
questão fundamental que atravessa
Comemoro, sim! Como não vou fazer
tantas outras relativas ao gênero.
isso? Todo dia enterro uma amiga.
Estive recentemente em uma festa
São várias que já se foram embora
na Casa Nem, no Rio de Janeiro,
e eu tô viva! Vivaaaa!”.
local de acolhimento de pessoas trans, onde há cursos diversos:
Está aí a questão fundamental que
preparação para Enem, fotografia,
mencionei acima e que é parte do
yoga, Libras, costura, sendo
que Tiffany nos disse no encontro da
inspiração para outras iniciativas no
SCAP (“quero ter direito ao amor”,
Brasil.
disse ela): o direito à vida.
Bem, estava em uma das festas da
Resta ainda dizer aqui que a
casa, esperando um desfile de moda
expectativa de existência de uma
acompanhado pela música incrível
travesti no Brasil é de apenas 35
de Martinha do Côco, quando uma
anos.
mulher de cabelão comprido, feliz
E aí, podemos viver?
com sua Catuaba Selvagem na mão,
Deixar viver?
veio se apresentar puxando papo,
Viver juntos?
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A CIVILIZAÇÃO NUMA ENCRUZILHADA José Carlos Carvalho1
Desde a revolução industrial de
apenas a estrutura econômica,
meados do século XVIII,
mas criou novos comportamentos
a humanidade vem experimentando
que modificaram, radicalmente,
um progresso material sem
as relações dos seres humanos
precedentes na história da
entre si e com a natureza, em
civilização, deixando marcas
decorrência, também, dos avanços
profundas na organização
das comunicações, da transmissão
socioeconômica e política do
ágil da informação, da comunicação
planeta nos últimos dois séculos,
instantânea e das modernas técnicas
marcadas por transformações
de marketing, com capacidade de
exponenciais na forma de pensar e
influenciar as atitudes das pessoas e
de agir dos seres humanos.
o imaginário coletivo.
Nesse contexto, o século XX
Os novos padrões de produção
evidenciou o período da explosão
industrial e agrícola, vale dizer,
científica e tecnológica, promovendo
os novos sistemas econômicos
avanços e mudanças dos padrões
progrediram numa escala
e sistemas de produção, como
vertiginosa, sem considerar
em nenhum outro período da
nenhum tipo de aspecto ecológico,
civilização humana. Essa realidade
ignorando a capacidade de
não se restringiu em modificar
resiliência dos sistemas naturais.
1
Engenheiro Florestal. Ex-Secretário de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais e Ex-Ministro de Estado do Meio Ambiente.
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1
Doutor em filosofia pela Universidade de Louvain, BĂŠlgica. Professor de Filosofia da UFMG, aposentado. Primeiro Presidente do DCE da PUC Minas.
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Ou seja, cometemos o equívoco de
pela encíclica Laudato Si, do Papa
construir um sistema econômico
Francisco, que, ao fazer uma
apartado dos sistemas naturais,
releitura do Antigo Testamento e dar
ignorando que a economia produtiva
nova interpretação a essa questão à
não funciona sem as matérias-
luz dos Evangelhos, coloca o homem
primas e os insumos retirados da
como parte da criação e não como
natureza e dos seus ecossistemas.
dono das criaturas. Assim, na esfera das religiões,
Essa visão distorcida da civilização
o Papa traz à reflexão uma profunda
contemporânea na sua relação
mudança de conceito para explicar
com o planeta foi influenciada por
a relação seres humanos-natureza e
dois grandes mitos construídos ao
influir nas relações das sociedades
longo do processo civilizatório, mas
humanas com os ecossistemas,
reforçados pela revolução industrial
tornando-as menos perdulárias e
e pelo enfoque materialista que
predatórias e mais amigáveis.
caracterizou o progresso humano nesse último século: o paroxismo
Todavia, não podemos ignorar que,
antropocentrista e afalsa ideia
como ser dotado de inteligência,
da inesgotabilidade dos recursos
o homem exerce o protagonismo
naturais.
no meio social e também no meio natural, pois é o único ser vivo
O antropocentrismo arraigado
dotado de poder de escolha e
criou a ilusão de que os seres
decisão sobre a vida no planeta.
humanos estão acima da teia da
Até aqui tem exercido esse poder de
vida, que poderiam viver como se
forma irracional e insustentável.
fossem uma ilha, atores exógenos
Mas, também, é o único com
da história natural. Ledo engano.
inteligência para refazer o que foi
Como sabemos, o homosapiens
destruído.
não sobrevive sem os demais seres vivos e o meio físico que o
Os novos modelos econômicos e
cerca. No Ocidente, essa visão
os sistemas de produção em escala
sempre foi reforçada pelas religiões
planetária encontram a sua razão de
monoteístas, que colocam o homem
ser noutra distorção das sociedades
como o centro de tudo, como o
ditas modernas – o hiperconsumo,
senhor de tudo, para o qual todos as
o advento de padrões de consumo
coisas foram feitas.
que não guardam nenhuma relação com as necessidades reais de
Essa leitura radicalmente
uma vida digna. Como se sabe, as
antropocêntrica acaba de ser
pessoas consomem por necessidade
contraditada de forma exuberante
e desejo.
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O marketing comercial e a mídia
existe no mundo, na atualidade,
transformam o desejo numa
mais de 1 bilhão de pessoas vivendo
máquina de consumir,criando um
abaixo da linha da pobreza, com
modelo de consumo supérfluo,
renda diária menor do que $2 (dois
socialmente imoral e culturalmente
dólares), o que significa que estão
perverso, alimentado, ainda,
completamente excluídos dos
pela vocação hedonista visceral
mercados de consumo.
de parcela da sociedade, que deseja fruir o prazer pelo prazer
Nesse contexto, os elevados
sem nenhum limite ético, sem
índices de consumo, a conduta
preocupação com o próximo e o
perdularíssima de parte da
planeta.
sociedade e a deliberada estratégia comercial de abreviar a vida útil
Como essa questão fica restrita ao
dos bens de consumo (in)duráveis,
debate acadêmico e a pequenos
através de uma obsolescência
grupos dos estamentos sociais
perversamente programada,
que trabalham ou se preocupam
concorrem para geração de resíduos
com o tema, essa realidade não é
descartáveis, lançados na natureza,
percebida pelo povo e não se instala
sem destinação ambiental adequada,
no imaginário coletivo, dificultando
representando uma das principais
os esforços, ainda que tímidos, de
fontes de poluição, principalmente
chamar a atenção para a gravidade
no meio urbano. Basta dizer que,
do problema. E o problema está à
no Brasil, mais da metade dos
vista!
municípios ainda depositam seus resíduos em lixões a céu aberto,
Estudos recentes e recorrentes,
afetando o ambiente natural e a
cientificamente comprovados,
saúde das pessoas.
indicam que o consumo de bens naturais já extrapolou a capacidade
A cultura do desperdício amplificada
de suporte do planeta. Aqui, o mito
pelo crescimento populacional a
da inesgotabilidade dos recursos
ser comentado mais adiante tem
naturais está cobrando um preço
provocado a geração de resíduos
alto, pois o volume consumido
sólidos, emissão de gases e
já é superior em 20%, usando os
lançamento de efluentes líquidos
números mais conservadores, do
em quantidade e intensidade sem
que a capacidade do planeta de
precedentes, afetando o planeta
regenerar-se naturalmente.
de forma drástica, com efeitos perigosos e perturbadores para
Esses dados, não incluem,
o equilíbrio ecológico, em escala
lamentavelmente, o fato de que
planetária. Chegou-se a um ponto
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tal de incúria nessa questão, que já
pelo aumento médio da temperatura
há ilha formada por lixo no Pacífico
do planeta, fazendo com que os
Norte.
recordes de temperaturas altas venham sendo batidos anualmente,
Nos países do Terceiro
na última década, sem nenhuma
Mundo e naqueles em vias de
perspectiva de reversão, provocando
desenvolvimento, como no Brasil,
acidentes naturais imprevistos e
além dos resíduos sólidos, o
uma anômala variação do clima,
lançamento de esgoto sanitário e
com efeitos econômicos e sociais
águas residuais nos corpos d’água
imprevisíveis.
são a principal causa da poluição dos ecossistemas dos córregos,
A gravidade do aquecimento
rios,lagos, aquíferos e oceanos,
global mobilizou os esforços das
tornando várias fontes de água doce
Nações Unidas que criou, desde
sem potabilidade para o consumo
1992, na Conferência de Meio
humano. A recente crise hídrica
Ambiente e Desenvolvimento
vivida no Sudeste, principalmente
celebrada no Rio de Janeiro e
em São Paulo, nos dá a dimensão
conhecida como a Rio/92, uma
dessa tragédia, pois a capital
Convenção sobre Mudanças do
paulista é banhada por dois rios
Clima. Na sua penúltima reunião,
relativamente caudalosos, o Pinheiro
realizada em Paris, em 2015, foi
e o Tietê, cujas águas não podem
aprovado o denominado Acordo
ser usadas em virtude do elevado
de Paris, prevendo um grande
índice de poluição e contaminação.
esforço conjugado das nações para
Situação idêntica ocorre em Belo
evitar que o o aumento médio da
Horizonte, como a Lagoa da
temperatura global não exceda
Pampulha, que já foi uma das fontes
os 2°C nesse século, com uma
de abastecimento de água da
recomendação adicional de não
cidade.
ultrapassar 1,5°C. Sem a redução dos GEF que são lançados no
Por outro lado, o desenvolvimento
meio ambiente, essa meta não será
global baseado em uma matriz
atingida até o fim desse século,
energética predominantemente
conforme pactuado em Paris.
construída com a produção de combustíveis fósseis, principalmente
Segundo o IPCC, Painel
carvão mineral, petróleo e derivados,
Intergovernamental de Mudanças
responsáveis pela emissão dos gases
Climáticas, na sigla em inglês, um
de feito estufa – GEF, na atmosfera,
aumento de 2°C deixará os países
levou ao aquecimento global e às
insulares do Pacífico em situação
mudanças climáticas responsáveis
de alta vulnerabilidade, com risco
91
de desaparecerem, em virtude do
Embora a economia neoclássica
aumento do nível dos mares. Como
não reconheça, na natureza há uma
em torno de 70% da população
relação de total interdependência
mundial reside nos ambientes
do recursos naturais (solo, água,
costeiros, essa é outra preocupação
floresta e fauna), tudo está ligado
dos cientistas do IPCC, além dos
a tudo. O desmatamento excessivo
efeitos deletérios sobre a agricultura
e a supressão da cobertura vegetal
e outras atividades econômicas
levou ao esgotamento de madeiras valiosas, ao empobrecimento dos
Outra consequência do hiper
solos, ao fim de inúmeras nascentes,
consumo é a escassez de recursos
minadouros e olhos d’água, além
naturais, notadamente, dos
da maior perda de biodiversidade,
recursos renováveis. Para facilitar
desde a extinção dos dinossauros,
o entendimento do tema, basta
especialmente da fauna.
verificar o que está ocorrendo no nosso próprio país, sem precisar de
Madeiras importantes que serviram
recorrer ao que se passa ao redor do
para construir as casas de nossos
mundo.
antepassados, como jacarandá, peroba, braúna, Gonçalo-alves,
A escola brasileira ensina, com razão,
cedro, jequitibá, aroeira e outras
que somos um país continental e um
não existem mais em escala
dos mais ricos em recursos naturais
comercial. O Pau-brasil, árvore
do planeta. Essa realidade, aliada ao
símbolo que deu nome ao nosso
mito da inesgotabilidade, forjou nos
país consta, atualmente, da lista das
brasileiros a cultura da abundância,
espécies ameaçadas de extinção
a certeza da terra da promissão,
da flora brasileira, significando,
o Jardim do Éden. Mas não é isso
simultaneamente, uma tragédia
que a realidade atual nos mostra.
florestal, biológica e cívica. Não fomos capazes, sequer, de proteger
Alguns exemplos são
em escala satisfatória a árvore que
paradigmáticos para explicar como a
dá nome a nossa pátria.
escassez que nos parecia inatingível está nos ameaçando. Comecemos
Outro dado que se contrapõe a
pela Mata Atlântica, que cobria
nossa cultura da abundância é
mais de um milhão de Km do
a perda da fertilidade dos solos.
nosso território, toda a nossa costa
Hoje,dados de vários estudos sobre
atlântica, do Rio Grande do Sul ao
o uso da terra no país demonstram
Rio Grande do Norte, hoje reduzida
que 50% das pastagens encontram-
a menos de 12% da sua cobertura
se em forte estágio de degradação,
original.
o que equivale a uma área em
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torno de 850.000 km2 de terras,
A crise hídrica do Sudeste é o
equivalente ao território do Estado
resultado de falta de planejamento,
de Minas Gerais.
de incúria gerencial, mas também do efeito das mudanças climáticas, com
Essa é uma das maiores
a consequente variação do clima.
contradições de um país que deixa
Essa realidade veio para ficar, razão
sem uso adequado e subutilizada
pela qual medidas de mitigação e
uma área de terra tão vasta, e
adaptação às mudanças do clima se
continua desmatando o cerrado
colocam como variável fundamental
e a Amazônia para expandir a
do processo de planejamento do
sua fronteira agropecuária, sem
território e das cidades.
minimizar a pressão antrópica que ainda ocorre sobre os escassos
Pela vez primeira na história,
remanescentes da Mata Atlântica e
as populações dessas cidades,
avanço da ocupação na Caatinga e
acostumadas à abundância, ao
no Pantanal.
consumo perdulário da água, foram colocadas diante de uma situação
Além dos inexoráveis problemas
de escassez. Até aqui esse era um
ecológicos, provocados pela
problema crônico nordestino, que,
degradação das bacias hidrográficas,
subitamente, ao chegar ao Sudeste
erosão das terras e assoreamento
rico, ganhou a dimensão de crise.
dos cursos d’água, esse arcaico modus de produção acarreta
Mas,o que importa ressaltar aqui
graves prejuízos econômicos para
é que na realidade lidamos com
os próprios donos dos imóveis
recursos finitos e que só serão
rurais, na medida em que ocasiona
infinitos se forem usados de
a dilapidação dos dois principais
acordo com a capacidade de se
fatores de produção do negócio
regenerarem naturalmente.
agropecuário: o solo e a água.
Para isso é fundamental que os sistemas econômicos dialoguem
Retomamos a análise da recente
com os sistemas ecológicos, em
crise hídrica, que pela primeira vez
busca da sustentabilidade.
na história atingiu o abastecimento público de água de São Paulo, Rio
Outro tema relevante para entender
de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória,
as relações homem-natureza diz
Brasília e outras cidades do interior.
respeito à questão demográfica,
Há 10 anos esse era um episódio
infelizmente considerada de
inimaginável, que levaria ao deboche
maneira periférica no debate da
quem, porventura,
sustentabilidade, mesmo nos
tentasse diagnosticá-lo.
meios acadêmicos. Não se pode
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desvincular o hiperconsumo da
de pessoas, ou seja, a cada período
superpopulação, pois o consumo
de 12 anos, entre os anos de 1987 e
aumenta na medida em que
2011, acrescentamos um contingente
aumenta o número de habitantes e
populacional que levamos 12mil
o consumo percapita.
anos para atingir! Embora pouco citada, uma das marcas históricas
Para se ter uma ideia do impacto
mais contundentes do século
demográfico sobre os temas que
XX, principalmente na segunda
procuramos analisar nesse artigo,
metade do século, foi a explosão
vale a pena mencionar a evolução
demográfica.
populacional ao longo da civilização humana, desde o domínio do homo
Esses dados não podem ser
sapiens e de seu protagonismo
ignorados, porque o planeta Terra,
como a única espécie do gênero
em termos de espaço, é o mesmo
homo.
de 12.000 anos atrás. Além do vertiginoso aumento populacional
Tomando como linha de base
dos últimos 50 anos, houve também
o período em que os humanos
um considerável aumento do
tornaram-se caçadores e coletores
consumo percapita, pelo consumo
de plantas, há aproximadamente 10
de novos bens impulsionados a
mil anos a.C., pode se inferir que a
partir do advento de tecnologias
civilização humana levou 12 mil anos
inovadoras, além da oferta de
para atingir o primeiro bilhão de
novos alimentos propiciada pela
pessoas, o que ocorreu na virada do
engenharia de alimentos.
século XVIII para o século XIX, no
Considere-se, ainda, o aumento da
ano de 1802.
expectativa de vida das pessoas que dobrou no último século.
Do início do século XIX até os dias atuais, ou seja, em apenas três
Não se pode menosprezar o
séculos, a população passou de 1
desenvolvimento científico e
para mais de 7 bilhões de pessoas.
tecnológico como meio para suprir
Se recuarmos apenas à década de
essas novas demandas, mas ele
1960 do século passado, veremos
tem sido insuficiente para evitar a
que a população mundial saltou
escassez de determinados recursos
de 3 bilhões de habitantes em 1961
e nada indica que poderá ser uma
para os atuais mais de 7bilhões.
solução definitiva no futuro, embora
Isto é, em apenas meio século,
seja esta a aposta da economia
mais que duplicamos a população.
neoclássica.
Entre os anos 1987 e 1999 e 1999 e 2011, adicionamos mais 2 bilhões
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Esses dados explicam sobre o uso
mas como forma de proteger a
de recursos naturais e a razão pela
humanidade dos seus próprios
qual já consumimos mais bens da
desatinos.
natureza do que o planeta pode oferta naturalmente. O crescimento
Daí a necessidade de um novo
exponencial da população somente
modelo de desenvolvimento
nesses últimos 50 anos não deixa
planejado para corrigir a histórica
dúvida de que estamos vivendo
desigualdade regional e de renda,
um momento crucial da história da
para ser socialmente inclusivo e
civilização.
ambientalmente sustentável, com foco no combate à pobrezae na
Não devemos olvidar que o planeta
proteção do meioambiente.
Terra, como lar da humanidade, é um só, não admite expansão,
Vivemos um tempo de incerteza e
não oferece a possibilidade de
insegurança, mas, também, estamos
fazer “puxadinho”. Isso implica na
no início de uma revolução digital de
necessidade de novos paradigmas
efeitos ainda não mensurados em
de produção e consumo, novas
todaa sua extensão e que podem
tecnologias poupadoras de recursos
trazer mudanças mais profundas do
naturais e, sobretudo, mudanças
que a revolução industrial. Talvez
de comportamento da sociedade
tenha chegado a hora de um novo
e de atitudes dos cidadãos rumo à
Renascimento. O momento de agir
sustentabilidade, não como slogan,
é agora!
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ÁGUAS E CIDADES: uma nova perspectiva Marília Carvalho de Melo1
A crise hídrica vivenciada no sudeste
Sendo a água um bem de domínio
brasileiro chamou a atenção da
público, ou seja, coletivo, nenhuma
população para uma realidade que
pessoa individualmente pode fazer o
até então parecia estar longe desta
uso desse recurso natural de forma
região: a água é um recurso finito.
a degradá-lo e, portanto, causar também um dano à coletividade.
A Lei que institui a Política Nacional
Como um recurso limitado, impõe
de Recursos Hídricos, 9.433/1997,
ao seu uso a racionalidade. E, enfim,
apresenta no primeiro artigo os
o compartilhamento de competência
fundamentos da política dentre os
e responsabilidade para gerir água
quais se destacam:
impõe ao poder público, à sociedade
• a água é um bem de domínio público;
e aos usuários a função de zelar por esse recurso.
• a água é um recurso limitado; e
Analisando as premissas da Lei
• a gestão das águas deve contar
das águas no contexto da crise
com a participação do poder
público, usuários e sociedade.
1 http://lattes.cnpq.br/0957587548508629
hídrica que enfrentou o sudeste do Brasil e especialmente as grandes
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metrópoles, São Paulo, Rio de
Um exemplo a seguir não está longe,
Janeiro e Belo Horizonte, podemos
apesar de ser em menor escala, mas
levantar as seguintes reflexões.
exemplo na concepção integradora de políticas ambientais, a Cidade de
O modelo em que se desenvolveu
Extrema , no extremo sul de Minas
a maioria das grandes cidades no
Gerais, une o desenvolvimento social
Brasil, os recursos naturais não
e econômico – IDH crescente - com
foram integrados ao planejamento
a preservação ambiental. O projeto
urbano como elementos de
que se iniciou em 2005 e cujos
qualidade de vida, bem-estar e
resultados já são demonstrados
convívio social. Essa afirmativa pode
em mídias, congressos e estudos
ser comprovada observando-se a
acadêmicos tem o nome de
situação da qualidade das águas dos
Conservador das Águas.
rios urbanos que, via de regra, são depósitos de esgotos domésticos
A premissa do projeto é o
ou industriais sem tratamento e de
pagamento por serviços ambientais,
resíduos sólidos. Em consequência
ou seja, proprietários rurais são
desse fato, os rios urbanos foram
ressarcidos pela conservação das
canalizados, o que desencadeou
suas propriedades. Três grandes
problemas de enchentes e
metas são estabelecidas: incentivar
inundações nas cidades.
técnicas conservacionistas do uso do solo, implantação de sistemas
Por outro lado, a urbanização tem
de saneamento rural e implantar
atraído cada vez mais pessoas para
e manter a cobertura florestal em
as cidades - no Brasil a população
áreas de preservação permanentes.
urbana já soma 84% (IBGE, 2010 ) - que dependem da água para
Com isso, os proprietários rurais
se abastecer e para garantir o
têm suas terras mapeadas e são
desenvolvimento de bens e serviços
identificadas as áreas prioritárias
dos quais elas dependem.
para conservação, que incluem primeiramente a matas ciliares, por
Essa dicotomia de degradação do
exercerem uma importante função
recurso natural para a instalação das
de proteção dos rios. Além disso, o
cidades e uma população crescente
projeto identifica a conectividade
que depende desses recursos é
entre as áreas de cada propriedade,
o grande desafio de uma nova
principalmente os topos de morros,
perspectiva de desenvolvimento
formando corredores ecológicos
urbano.
para reduzir a fragmentação de florestas existentes e conectar áreas
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que serão recuperadas e assim
A perspectiva do município de
conservar e ampliar a biodiversidade
Extrema se aplica, por exemplo,
local.
aos mananciais de abastecimento da Região Metropolitana de Belo
E, após comprovadas o
Horizonte, que se localizam em
cumprimento das metas de
áreas periurbanas com potencial
conservação, os proprietários
para políticas de pagamentos
recebem o equivalente a 100
por serviços ambientais pela
dólares por hectare reflorestado e
conservação do solo e das florestas.
conservado. Este é o caminho para uma nova Apesar do objetivo inicial do projeto
perspectiva para a gestão das
estar voltado à preservação dos
águas urbanas: uma política de
rios, a restauração florestal é hoje na
recursos hídricos que seja capaz
literatura considerada a única forma
de resultar no abastecimento de
de reverter o aquecimento global.
água em quantidade, qualidade e disponibilidade imediata para
Os resultados do projeto
consumo humano, para a produção,
Conservador das Águas são
inclusive para o lazer e para a
até o momento mais de 3.500
manutenção de valores sociais
hectares de áreas reflorestadas e
tangíveis, como a igualdade de
que, comprovados por meio de
direitos de acesso, e intangíveis,
monitoramento, melhoraram a
como a paisagem e a cultura.
qualidade e quantidade de água
A política eficaz visa ainda à
disponível nos corpos de água da
manutenção de corpos de água
região .
descontaminados e à drenagem adequada das águas.
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