PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO

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ANAISDASCAP PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO





Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)

IX SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL

ANAIS DA SCAP PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO

PUC-MG Belo Horizonte 2017


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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Semana de Ciência, Arte e Política (9. : 2017 : Belo Horizonte) S471a Anais da SCAP: porque os tempos estão mudando / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017. 134 p. : il. ISBN: 978-85-8239-073-3 1. Democracia. 2. Internet - Aspectos sociais. 3. Civilização moderna. 4. Cultura - Aspectos sociais. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Campus São Gabriel). III. Título.

CDU: 301.175


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EXPEDIENTE

Secretário de Comunicação:

Organização e Edição:

Prof. Mozahir Salomão Bruck Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:

Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez

Revisão:

Prof. Mário Francisco Ianni Viggiano

Fotografias:

Pedro Gonçalves Ribeiro de Castro


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Grão-chanceler:

Reitor:

Vice-reitora:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Prof. José Tarcísio Amorim

Assessor Especial: Pró-reitores:

Prof.ª Maria Inês Martins (Graduação)

Prof. Wanderley Chieppe Felippe (Extensão)

Prof. Sérgio de Morais Hanriot (Pesquisa e de Pós-graduação)

Prof. Paulo Sérgio Gontijo do Carmo (Gestão Financeira)

Prof. Rômulo Albertini Rigueira (Logística e de Infraestrutura)

Prof. Sérgio Silveira Martins (Recursos Humanos)

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Secretário de Comunicação:

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e Assuntos Comunitários:

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e Desenvolvimento Institucional:

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Prof. Carlos Barreto Ribas

Pró-reitor Adjunto

da PUC Minas São Gabriel:

Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão:

Coordenador de Pesquisa:

Coordenadora da

Pastoral Universitária:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva

Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues


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ÍNDICE

EDITORIAL

Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12

AFINAL, COMO VAI O MUNDO?

Peter Pál Pelbart 15

VIRTUALIDADE E SUBJETIVIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

MOVIMENTOS IMAGEM_CÂMERA

Nádia Laguárdia de Lima

32

A ALIENAÇÃO DA POLÍTICA NAS DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS MODERNAS E AS ALTERNATIVAS DEMOCRÁTICAS CONSENSUAIS NA AMÉRICA LATINA: porque os tempos estão mudando

Priscila Mesquita Musa 62

José Luiz Quadros de Magalhães

92


12

EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Políti-

Como uma jornada em espiral, as

ca – SCAP é um evento acadêmico

questões discutem os novos tem-

idealizado e realizado pelos cursos

pos, nomeado pelo sociólogo polo-

e setores da Unidade São Gabriel da

nês Zygmunt Bauman, de tempos

PUC Minas que integram o Ensino,

líquidos, tempos caracterizados pela

a Pesquisa, a Extensão e a Pastoral

incerteza. E foi na obra do poeta, vi-

Universitária. Por meio da interdisci-

sionário e trovador Bob Dylan, ga-

plinaridade, e pautada por debates

nhador do prêmio Nobel de Litera-

acerca de questões contemporâneas,

tura em 2016, que encontramos as

a SCAP objetiva a formação hu-

palavras para nomear a transversali-

manística não só do corpo discente,

dade e batizar a IX SCAP: Porque os

mas também do corpo docente, téc-

tempos estão mudando.

nico-administrativo

e

comunidade

externa. A Semana propicia interlocução com diferentes grupos sociais,

Se vocês acham que vale a pena salvar o seu tempo

instituições de ensino superior e enti-

Então é melhor começar a nadar pra

dades científicas; potencializa o rela-

não afundar como pedra

cionamento da Unidade São Gabriel

Porque os tempos, eles estão

com seu entorno e promove trocas entre áreas de conhecimento. Em 2017, as questões suscitadas pela nona edição da Semana de Ciência, Arte e Política - IX SCAP passam pe-

mudando (...) Há uma luta lá fora que está enfurecida

las transformações na política; trans-

Ela logo vai sacudir as janelas e

formações no país, transformações

balançar as paredes

advindas do uso das tecnologias da informação, pela luta no campo simbólico; pela pós-verdade das narrati-

Porque os tempos, eles estão mudando

vas midiáticas; pelas transformações na vida social; pela insegurança digital, jurídica, territorial, profissional e existencial; pela necessidade de mudanças na economia; pelo questionamento

“para

onde

vamos?”.

A IX SCAP apresenta-se como importante tarefa acadêmica e ação sociocultural da PUC Minas, Unidade São Gabriel e nestes ANAIS: Porque os


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Tempos Estão Mudando, fica docu-

espaço de uso público da cidade de

mentada na profícua reflexão crítica

Belo Horizonte, verificando o rompi-

das ideias de José Luiz Quadros de

mento do ordenamento do tempo,

Magalhães, que reflete sobre a alie-

do espaço e do corpo criando ruptu-

nação da política nas democracias

ras no espaço-tempo da própria cida-

constitucionais modernas e as alter-

de; na análise de Peter Pál Pelbart no

nativas democráticas consensuais na

texto “Afinal como vai o Mundo”, que

América Latina; na discussão de Ná-

cogita o rompimento do consenso

dia Laguárdia de Lima sobre virtuali-

que abduz a capacidade de pensar e

dade e subjetividade na contempora-

apresenta o pensamento como uma

neidade, no contexto de desenfreada

conspiração, uma insurgência do dia

competição do mercado, de declínio

a dia proliferando uma sensibilidade

social das instituições, do cenário

micropolítica, macropolítica, biopolí-

socioeconômico de incertezas e de

tica, ecopolítica, cosmopolítica; e no

extrema flexibilidade, a internet e a

ensaio fotográfico de Pedro Castro

cultura digital diante da contradição

que permeia toda a publicação pro-

do surgimento de conexões assenta-

vocando o leitor com imagens de

das sobre a solidariedade, a coope-

nosso tempo. Assim, fica registrado

ração, o compartilhamento de ideias

nestes Anais a nona edição da Sema-

e a criatividade; nas reflexões de

na de Ciência, Arte e Política – SCAP

Priscila Mesquita Musa sobre a pro-

2017.

dução e circulação das imagens dos movimentos de ocupação coletiva do

Leiam e reflitam.

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel


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AFINAL, COMO VAI O MUNDO? Peter Pál Pelbart

1

Eis uma ideia que Deleuze herda

como Artaud o formulou, o desafio

de Nietzsche: o pensamento tem

consiste precisamente em acabar de

por tarefa detectar os sintomas,

vez com qualquer tribunal,

constituir-se como sintomatologia,

com o próprio império do juízo,

retomar a pergunta de personagens

com o Juízo de Deus. Pois não

de Shakespeare: afinal, como vai o

estamos fora dos sintomas que

mundo? Um sintoma, para Deleuze,

detectamos, eles nos atravessam,

é uma recaída, um encontro, um

também nos constituem, se agarram

acontecimento, uma violência.

a nós, e o desafio é guerreá-los em

Cabe, portanto, apreender tais

nós mesmos, ainda que com eles

sintomas do mundo, tratar o

façamos obra, escrevamos livros –

mundo como sintoma. Mas tal

às vezes, assim, os precipitamos e

desafio não pode dar-se buscando

até mesmo os intensificamos, mas

exclusivamente os signos de doença

ao mesmo tempo operamos sobre

sem buscar, ao mesmo tempo, os

eles uma espécie de contragolpe.

signos de vida, de cura ou de saúde, diz Deleuze. E nada disso pode ser

Como abrir um campo de

feito “desde fora” do mundo, do

possíveis? Não serão os momentos

alto, do lugar de juiz, desde uma

de insurreição ou de revolução

extraterritorialidade a partir da qual

precisamente aqueles que deixam

o artista ou o filósofo “condenariam”

entrever a fulguração de um campo

o mundo ou seu andamento –

de possíveis? Inverte-se assim a

1

Doutor em Filosofia, autor e tradutor de vários livros, coeditor da N-1 Edições. http://lattes.cnpq.br/8980044191583358


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relação entre o acontecimento e o

perfeito, porém as forças em vias

possível. Não é mais o possível que

de redesenharem o real. De junho

dá lugar ao acontecimento, mas o

de 2013 para cá, assistimos a uma

acontecimento que cria um possível

contra-insurreição de proporções

– assim como a crise por vezes não

colossais, e de uma brutalidade

é o resultado de um processo, mas

inominável, e muitas outras

o acontecimento a partir do qual

urgências se interpuseram.

um processo pode desencadearse. “O acontecimento cria uma

E aqui me permito indicar uma

nova existência, produz uma nova

segunda direção, que tem a

subjetividade (novas relações com

ver justamente com o que nos

o corpo, o tempo, a sexualidade, o

aconteceu depois de 2013, e que

meio, a cultura, o trabalho...).” Tais

não pode, sob hipótese alguma,

momentos, sejam individuais ou

ser escamoteado. A saber, o golpe

coletivos (como Maio de 68,

e a constatação ululante de que,

ou algo de 2013), correspondem a

queiramos ou não, desde então

uma mutação subjetiva e coletiva em

(mas desde muito mais tempo,

que aquilo que antes era cotidiano

claro!) estamos em guerra.

se torna intolerável, e o inimaginável

Guerra contra os pobres, contra o

se torna pensável, desejável, visível.

s negros, contra as mulheres, contra os indígenas, contra os

É quando surge a figura do vidente,

craqueiros, contra a esquerda,

à qual Deleuze retorna sobretudo

contra a cultura, contra a

em seus livros sobre cinema.

informação, contra o Brasil.

O vidente enxerga em uma situação determinada algo que a excede,

A guerra é econômica, política,

que o transborda, e que nada tem

jurídica, militar, midiática.

a ver com uma fantasia. A vidência

É uma guerra aberta, embora

tem por objeto a própria realidade

denegada, é uma guerra total,

em uma dimensão que extrapola

embora camuflada, é uma guerra

seu contorno empírico, para nela

sem trégua e sem regra, ilimitada,

apreender suas virtualidades,

embora queiram nos fazer acreditar

inteiramente reais, porém ainda não

que tudo está sob a mais estrita e

desdobradas. O que o vidente vê,

pacífica normalidade, institucional,

como no caso do insone de Beckett,

social, jurídica, econômica. Ou seja,

o esgotado, é a imagem pura, seu

ao lado da escalada generalizada da

fulgor e apagamento, sua ascensão

guerra total, uma operação abafa

e queda, a consumação. Ele enxerga

em escala nacional. Essa suposta

a intensidade. Não é o futuro, nem

normalização em curso, essa

o sonho, nem o ideal, nem o projeto

denegação, essa pacificação pela


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violência - eis o modo pelo qual um

outros meios, mas a política que é

novo regime esquizofrênico parece

a continuação da guerra por todos

querer instaurar sua lógica, onde

os meios. É possível que estejamos

guerra e paz se tornam sinônimos,

fazendo disso a experiência mais

assim como exceção e normalidade,

encarnada do Cone Sul. Essa seria,

golpe e governabilidade,

então, a segunda via diante da qual

neoliberalismo e guerra civil.

estamos, em nosso entroncamento.

Nada disso é possível sem uma

Obviamente, como no Jardim dos

corrosão da linguagem, sem uma

Caminhos que se Bifurcam, de

perversão da enunciação, sem uma

Borges, não nos é imposto escolher

sistemática inversão do valor das

uma direção em detrimento da outra

palavras e do sentido do próprio

– é possível ao mesmo tempo salvar

discurso, cujo descrédito é gritante

os vagalumes e enfrentar a guerra.

e ninguém mais lhe dá o mínimo

Um pesquisador mostrou como, nas

valor. Diante disso, é como se

manifestações ocorridas em várias

fosse preciso dar nome aos bois

partes do globo nos últimos anos,

incessantemente, falar novamente

a desmobilização e a mobilização

da guerra, detectar as guerras em

se conjugavam. Por um lado, tudo

curso e nomeá-las, e obviamente

é suspenso. Por outro, a história se

inventar as armas que estejam à

acelera, tudo se interrompe,

altura desse desafio. Seria preciso

e tudo é acionado. A identidade

reler Jünger, que já nos anos 1930

de um suposto sujeito histórico

mostrou como poucos que vivia-se

que conduz o evento parece assim

num estado de mobilização total,

embaralhada, mas não a força do

americanos ou soviéticos, para não

acontecimento político, que passa

falar nos nazistas que acabavam

ao largo da representação, do

de surgir. E depois seria preciso ler

discurso político, do produtivismo

Sloterdijk, que retoma o fio deixado

que antes mobilizava todas as

por Jünger em seu A mobilização

esferas da existência. Será que não

total. E seria preciso reler Jean

encontramos aí uma pequeníssima

Pierre Faye, sobre a perversão da

pista? A saber: não nos cabe

linguagem como uma condição

escolher entre colecionar vagalumes

necessária para tornar aceitável o

e organizar nossas forças.

inaceitável. E Virilio, que mostra a

A pergunta não é: virar desertor ou

dimensão militar dessa mobilização.

enfrentar a guerra, ser esquizo ou

E por que não Clausewitz, que

engajar-se. É um falso problema,

expõe explicitamente a lógica da

as alternativas não são excludentes,

guerra? Hoje já não é a guerra que

a menos que nos coloquemos

é a continuação da política por

num plano da antiga moralidade


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comunista, ou, ao contrário, de um

Em contrapartida, se a cada dia

libertarismo solipsista. Por isso,

parecemos mais vencidos, a derrota

temos nossas reticências em relação

tem ao menos essa vantagem:

às posturas dicotômicas, que opõem

ela nos força a pensar, e a pensar

a potência destituinte ao poder

de outra maneira. É preciso fazer

constituinte, ou vice-versa, sem

valer tal a ocasião. É preciso

enxergar como a conflitualidade

romper o silenciamento a que

contemporânea é mais complexa

fomos reduzidos com o sequestro

e multifacetada e exige, portanto,

absoluto da mídia nacional e dos

outras entradas e saídas do que nos

veículos de comunicação, nessa

são propostas.

construção cotidiana de uma unanimidade pacificadora, para não

Extraímos de um dos livros

dizer uma unidade pacificadora de

publicados por nós essa frase

cunho policialesco. É preciso fazer

paradoxal: a revolução é da ordem

proliferar uma outra sensibilidade

da cólera e da alegria, não da

micropolítica, macropolítica,

angústia e do tédio. A cólera se

biopolítica, ecopolítica,

dirige contra aqueles que destroem

cosmopolítica, romper um consenso

impiedosamente o que nos é caro,

que nos quer abduzir a capacidade

devastam nossa riqueza natural,

de pensar. Sim, fazer do pensamento

social, subjetiva, afetiva, política.

uma conspiração cotidiana, uma

De fato, formou-se uma aliança de

insurgência do dia a dia.

interesses que em poucos meses virou a mesa da suposta democracia

Porque todo poder visa também

da maneira mais brutal, comparável

isto: nos separar de nossa força,

talvez ao assassinato dos irmãos

nos inculcar a tristeza, a angústia,

de Witte em 1672, que governavam

o medo, a culpa, a sensação de

os países baixos no século XVII e

impotência, a desistência. Nem por

que fizeram Espinosa soltar o único

isso se pode fazer a economia da

grito urrado de que se tem notícia

alegria. A alegria, dizia Espinosa,

saído daquele homem que diziam

nada mais é do que expressão

ser tão suave e sereno. Cólera, pois,

de um aumento de potência. E o

contra o cavalar revanchismo que

poder não é um domínio absoluto,

vai destruindo dia a dia o pouco

é uma relação de forças, sempre

que se havia conquistado nos

móvel, e como todo jogo ou toda

últimos 13 anos, numa sede insana

guerra, comporta sua dose de

de dilapidação, num desejo de

indeterminação, e, portanto, de

extermínio vindo do conluio das

reversibilidade. Se Foucault nos

várias máfias que se aliaram nessa

serve para pensar a resistência,

política de terra arrasada.

nessa chave da reversibilidade


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eventual das forças em jogo, talvez

ou tortura, num automatismo de

seja preciso também recorrer a

ação e reação que corre o risco

Espinosa, que diferenciava poder e

de espelhar a lógica dos que

potência, e até os opunha. Por isso,

comandam – somos impelidos a um

talvez se trate menos de retomar

tipo de revide que relança o jogo,

o poder do que de expandir a

ao invés de reinventar as distâncias,

potência. Menos tentar ocupar o

os hiatos, os descolamentos, as

lugar daqueles que tomaram de

cesuras, as desmontagens de nós

assalto o Estado do que ocupar ruas,

mesmos – um novo tabuleiro, onde

praças, escolas, instituições, espaços

nem sequer houvesse lugar para

públicos privatizados, experimentar

um peão chamado eu, muito menos

novas formas de organização, de

um bispo, um rei, uma rainha, e seus

auto-organização, de sociabilidade,

movimentos codificados.

de produção, de subjetivação, mas também, e justamente isso é que

Assim, seria preciso constatar o

parece o mais paradoxal, novas

que se esgotou, hoje. Pois algo se

modalidades de despossessão,

esgotou, não apenas nos modelos

de deserção, de destituição, de

da representação política, mas nas

dissidência, de dessubjetivação. É

formas de vida que os sustentaram

preciso derrubar a corja de bandidos

ou das quais derivam ou que a eles

que sequestrou o Estado, quebrar

se opõem. O esgotamento pode ser

o monopólio das corporações que

uma categoria política, biopolítica,

os sustentam, mas como fazê-lo

micropolítica, cosmopolítica,

sem entrar no jogo em que saímos

nanopolítica até.

vencidos de antemão? Talvez ainda não se tenha inventado máquinas

O esgotamento não é um mero

de guerra à altura da eficácia da

cansaço, nem uma renúncia

megamáquina financeira e policial

do corpo e da mente, porém,

que se instalou. Mas tampouco se

mais radicalmente, é fruto de

inventou um modo de combatê-las

uma descrença, é operação de

sem nelas nos enredarmos.

desgarramento, consiste num descolamento – em relação às

Faltam-nos operadores de

alternativas que nos rodeiam,

desativação, como diz Agamben,

às possibilidades que nos são

modos de tornar inoperante, um

apresentadas, aos possíveis que

poder, uma função, uma operação,

ainda subsistem, aos clichês que

não apenas desativação daquilo

mediam e amortecem nossa relação

a que nos opomos, mas de nós

com o mundo e o tornam tolerável,

mesmos que nos opomos. Pois

porém irreal e, por isso mesmo,

ficamos cativos do que nos aturde

intolerável e já não digno de crédito.


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O esgotamento desata aquilo

mais concretos, é a indefinição dos

que nos “liga” ao mundo, que nos

devires, ali onde eles atingem seu

“prende” a ele e aos outros, que nos

efeito de desterritorialização.

“agarra” às suas palavras e imagens, que nos “conforta” no interior da

Ao reconhecer a modéstia do

ilusão de inteireza (do eu, do nós, do

empreendimento filosófico de

sentido, da liberdade, do futuro) da

Deleuze diante da pergunta

qual já desacreditamos há tempos,

militante, “mas afinal, então o

mesmo quando continuamos a eles

que você propõe?”, Lapoujade

apegados.

responde que essa pergunta volta porque ainda não se fez o luto “da

Há nessa atitude de descolamento

filosofia como aparelho de Estado”.

certa crueldade, sem dúvida, da

É uma observação notável. Nesse

qual os textos de Beckett não

sentido, particularmente importante

estão de modo algum desprovidos,

para mim foi a exploração de

mas essa crueldade carrega

certos processos paradoxais que

uma piedade outra. Apenas

atravessam nosso contexto, através

através de uma tal desaderência,

de pares tais como subjetivação/

despregamento, esvaziamento,

dessubjetivação, individuação/

bem como da impossibilidade que

desindividuação, cuidado de si/

assim se instaura, e que Deleuze

desapego de si, desmedida da

chamaria de rarefação (assim

dor/desmedida do poder, obra/

como ele reivindicava vacúolos

desobramento, vida nua/uma vida,

de silêncio para que se pudesse,

crise/criação – eles me permitiram

afinal, ter algo a dizer), advém a

mapear de maneira mais sutil essa

necessidade de outra coisa que,

fita de Moebius, em que passamos

ainda pomposamente demais,

da impossibilidade ao possível, do

chamamos de “criação de possível”.

niilismo ao seu avesso, do biopoder

Não deveríamos abandonar essa

à biopolítica menor, do esgotamento

fórmula aos publicitários, mas

às imagens incandescentes.

tampouco sobrecarregá-la de uma incumbência demasiadamente

O psiquiatra catalão Tosquelles,

imperativa ou voluntariosa, repleta

mestre de toda uma geração da

de “vontade”. Talvez caiba preservar,

psiquiatria institucional francesa,

de Beckett, a dimensão trêmula

escreveu um livro estranho, chamado

que, em meio a mais calculada

O vivido do fim do mundo na

precisão, nos seus poemas visuais,

loucura. Ali ele se refere às situações

aponta para o “estado indefinido”

de colapso em que o paciente por

a que são alçados os seres, e cujo

vezes sente que já “nada é possível”,

correlato, mesmo nos contextos

e subitamente é tomado pela euforia


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de que doravante “tudo é possível”. “Nada é possível, tudo é possível, nada é possível, tudo é possível”. Não é estranho que vivamos algo similar? Quando parece que “tudo é possível”, revela-se a verdade de fundo: “nada é possível”. Quando a desmedida do poder e a desmedida da dor, como o diz Negri no seu belo comentário sobre Jó, faz com que o “tudo é possível” seja uma expressão medonha, porque sempre pode ser pior. Nesse contexto, a expressão “cartografias do esgotamento” deve ser entendida também no genitivo: o esgotamento ele mesmo é o cartógrafo, por assim dizer, indicando pontos de estrangulamento através dos quais se liberam outras energias, visões, noções. Não se trata de saber “quem fala” (daí a frase saborosa da militante que responde ao jornalista, “Anota aí: eu sou ninguém”), nem se trata de indicar “de qual lugar se fala” (seria preciso, antes, valorizar as falas sem lugar), talvez nem mesmo seria preciso determinar “do que” se fala, mas, como o sugeriu Guattari, “o que fala através de nós”.


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VIRTUALIDADE E SUBJETIVIDADE NA CONTEMPORANEIDADE Nádia Laguárdia de Lima1

1

A CONTEMPORANEIDADE

2 VIVEMOS UMA NOVA ERA?

Refletir sobre o tempo contemporâneo é um grande

A modernidade ocidental tem

desafio, já que nele estamos

como protótipo o iluminismo

inseridos. Se aderirmos

filosófico do século XVIII.

perfeitamente à nossa época, não

Com a metáfora da luz, o iluminismo

conseguiremos vê-la; é preciso, pois,

europeu inaugura a crença na

não se deixar cegar pelas luzes do

claridade através do progresso

século, para entrever a sua íntima

científico, político, social, moral e

obscuridade (AGAMBEN, 2009).

econômico, que deveria se contrapor às trevas do obscurantismo.

O contemporâneo nos remete à

A escala de prioridades do

noção de estranho em Freud, pois

projeto político da modernidade,

é próximo, e ao mesmo tempo

estabelecida por Kant em 1803,

distante; familiar, e, no entanto,

inclui a disciplina, a instrução,

desconhecido; nos toca e distancia-

a civilidade e a moralização, como

se infinitamente de nós. Assim,

exercício de racionalidade que visa

considerando a íntima obscuridade

formar mentes e dominar os corpos

que está no cerne de toda leitura

(SIBILIA, 2012).

do contemporâneo, é que podemos abordá-lo. 1 Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Doutora em Educação (UFMG). http://lattes.cnpq.br/9516537449598946


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A severidade paterna e o controle

Comte, em seu Curso de filosofia

familiar se aliam à educação formal,

positiva, considera que o saber

como um importante braço do

humano pode proporcionar a

Iluminismo, que se torna um forte

verdadeira base racional da ação

movimento de uniformização

humana sobre a natureza (TAPIAS,

cultural. A escola, a fábrica e a

2006).

prisão funcionam sob o mesmo regime disciplinar, munidas das

Entretanto, o século XX acompanha

mesmas premissas, visando corpos

profundas transformações sociais

dóceis e úteis para funcionar com

e econômicas. Há um progressivo

eficiência no projeto econômico do

descrédito nas figuras de autoridade

capitalismo industrial (FOUCAULT,

e nas grandes instituições sociais.

1987). Para Foucault (1987), graças

A incidência de duas guerras

às técnicas de vigilância, o domínio

mundiais leva ao questionamento

sobre o corpo se efetua segundo

dos usos do saber científico e da

as leis da ótica e da mecânica,

técnica para o progresso humano.

segundo um jogo de espaços, de

Acompanha-se a desqualificação

linhas, de telas, de feixes, de graus,

dos valores e ideais coletivos que

sem recorrer ao excesso, à violência,

organizam a vida social (LAURENT,

pois “o poder é em aparência menos

2007).

corporal por ser mais sabiamente físico” (p. 159). Nesse contexto,

O fim do século XX e o início do

o Estado se constitui como uma

século XXI marcam o período da

instituição forte que avaliza e

organização social baseada no

dota de sentido todas as demais,

capitalismo mais dinâmico, regido

reforçando e revestindo de

pelo excesso de produção e pelo

autoridade as figuras-chave da

consumo exacerbado.

autoridade moderna, como o pai e

A internet proporciona uma grande

o professor. É necessário abrir mão

revolução no mundo social, político

dos interesses individuais para se

e econômico.

alcançar os grandes ideais sociais. A civilização tem a função de conter

A forte penetração das tecnologias

os excessos de toda ordem

digitais em todos os setores da

(SIBILIA, 2012).

vida humana interfere nos modos de acesso à informação, introduz

A mentalidade cientificista

novas formas de comunicação

determinante durante os séculos

e de relação social, intensifica o

XIX e XX alcança a sua expressão

declínio das identificações verticais

máxima no positivismo. Augusto

e a pluralização das identificações


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horizontais, contribui para a diluição

individuais,

das antigas fronteiras que até então

da moldagem das instituições de

separavam os espaços público e

acordo com as aspirações dos

privado, alterando a relação do

indivíduos (LIPOVETSKY, 2005).

sujeito com o tempo e o espaço

Para o autor, alcançamos a segunda

(LIMA, 2014).

fase da sociedade de consumo, centrada no enfraquecimento dos

Vivemos a era do excesso: de

grandes sistemas de sentidos,

imagens, informações, sentidos,

no culto à participação e à

valores, crenças e objetos.

expressão, na reabilitação do local,

Paradoxalmente, Lipovetsky (2005)

do regional, de certas crenças e

defende a ideia de que vivemos a

práticas tradicionais. A cultura atual

era do vazio. Para o autor,

diversifica as possibilidades de

o vazio é a era pós-moralista,

escolha, multiplicando os pontos

o fim da época de valorização

de referência, minando o sentido

do sacrifício e de condenação do

único e os valores superiores da

prazer, a derrocada de uma moral

modernidade. O processo de

rigorosa e o surgimento de uma era

personalização visa destruir os

polissêmica de elaboração ética à

efeitos do modernismo monolítico,

la carte. Ele nomeia a época atual

o gigantismo, o centralismo e as

de “hipermodernidade”, período em

ideologias mais rígidas.

que estamos mais flexíveis e menos engessados por engrenagens de

O período atual é marcado pelo

poder em nome de verdades que

declínio do Ideal e pela ascensão

se apresentavam como universais.

do gozo (LACAN,1970/2003).

O efêmero é elevado à condição

Ao invés da moral repressora

cultural propícia ao exercício de

da modernidade, vivemos o

imaginários que transbordam, fluem,

imperativo de gozo. A multiplicidade

refluem e não cabem mais nas

dos referenciais simbólicos

sólidas referências antigas.

organizadores da cultura leva ao seu enfraquecimento. As sociedades

De uma ordem disciplinar passamos

individualistas assistem à perda dos

para um processo de personalização

valores tradicionais, dos sentidos

que corresponde ao agenciamento

compartilhados socialmente e dos

de uma sociedade flexível

mitos familiares que vinculavam os

baseada na informação e no livre

seus membros em torno de um ritual

desenvolvimento da personalidade

ou de um valor transmitido através

íntima, da legitimação do prazer,

das gerações. Acompanhamos o

do reconhecimento das exigências

empobrecimento de uma dimensão


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39


40

fundamental do saber e da memória,

significa a superação do poder

a transmissão da experiência, que

presente na detenção da informação,

é “o sentido que uma coletividade

mas o seu deslocamento, do poder

é capaz de extrair a partir do que

veiculado de forma vertical a outro

seus antepassados viveram, ou das

disposto de forma horizontal.

narrativas que seus contemporâneos

Além do controle exercido pelos

trouxeram de regiões e de países

pares, que constitui uma vigilância

distantes” (KHEL, 2009, p.156).

mais generalizada, horizontal e mútua, existe o controle exercido

A experiência provê sentido à vida

pelos detentores do saber sobre

e valoriza algum saber acumulado

o sistema, e daqueles que podem

que pode nos orientar no futuro.

utilizar os dados obtidos nas

Há uma perda do valor histórico

mensagens que circulam na rede

e das referências que poderiam

para rastrear informações. Na era

conferir alguma segurança ao

do Big Data, as empresas buscam

jovem diante do novo, além do

enquadrar as pessoas em perfis

descrédito em relação ao saber

específicos de consumo, para

acumulado. A equivalência entre

produzir e oferecer produtos

todas as referências, produzidas

personalizados. Para isso, existem

pela perda da experiência, resulta

ferramentas bem sofisticadas de

numa disponibilidade permanente

monitoramento que acompanham

das pessoas para aceitar todas as

praticamente tudo o que se faz no

inovações técnicas (KHEL, 2009).

ambiente virtual.

A cultura digital foi gerada em torno

Nessa perspectiva, o controle

das novas tecnologias digitais.

disciplinar, centralizado na figura

Ela inclui todos os artefatos,

de um líder, dentro de um espaço

produtos, comportamentos

institucional, foi substituído

individuais e coletivos, conceitos e

por outro tipo de controle,

ideologias que surgiram diretamente

descentralizado, invisível, que se

da implantação das tecnologias da

estende para além dos espaços

informação (TAPIAS, 2003).

institucionais, potencializado

A internet, ponto nodal dessa

pela internet. As tecnologias

cultura, envolve uma carga de

não são neutras, elas podem ser

ambiguidade comum a toda

compreendidas como uma moldura

tecnologia. Enquanto para alguns ela

conceitual, que permite correlacionar

representa um espaço democrático,

um conjunto de ideias, tecnologias,

para outros, o acesso ampliado

comportamentos e discursos

e irrestrito às informações não

(BUZATO; SEVERO, 2010).


41

3

A VIRTUALIDADE

fontes de sofrimento humano que impedem o alcance da plena

O uso contínuo dos dispositivos

felicidade: o próprio corpo, fadado

tecnológicos e a imersão no

ao declínio e à dissolução; o mundo

ambiente virtual têm impactado

externo, que pode se abater

profundamente as subjetividades.

sobre nós com forças inexoráveis;

A partir do momento em que

e as relações com os outros

as relações do homem com

seres humanos. Considerando a

as tecnologias digitais têm se

pertinência desse texto freudiano na

tornado cada vez mais intensas,

atualidade, busco refletir sobre as

principalmente com o uso dos

incidências da cultura digital sobre

dispositivos tecnológicos móveis,

essas três fontes de sofrimento

surgem novas configurações sociais

humano.

e diferentes formas do sujeito se conectar ao mundo.

3.1 As subjetividades na cultura virtual

3.2 Subjetividade e mal-estar na cultura digital É possível identificar efeitos da interconexão sujeito/tecnologia

O sujeito se constitui na cultura.

sobre as três principais fontes de

Ela fornece os significantes mestres

mal-estar humano. A virtualização

que ordenam o campo dos ideais.

da vida impacta profundamente as

Cada cultura estabelece os seus

relações dos sujeitos com o corpo,

padrões discursivos e as suas

com o mundo externo e com o

formas de satisfação: “As sociedades

outro. A hipótese que sustenta essa

diferem entre si quanto aos

discussão é a de que a virtualidade

dispositivos discursivos de barrar o

é um recurso utilizado pelos sujeitos

gozo, assim quanto às possibilidades

para lidar com o desamparo cada

de gozo em oferta” (KHEL, 2009, p.

vez mais evidente nas sociedades

26).

atuais, e está articulado às formas de controle exercidas pelo mercado.

A felicidade é um imperativo na contemporaneidade. Mas, o que é a

3.2.1 O corpo

felicidade? Para Freud (1930/2010), a felicidade só é possível como

As transformações tecnológicas

fenômeno episódico, pois as nossas

ocorridas nos últimos anos nos

possibilidades de felicidade são

mostram que as relações entre o real

restringidas por nossa constituição.

e o virtual são bastante complexas,

Freud (1930/2010) descreve três

e o estatuto do corpo torna-se cada


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vez mais ambíguo. A internet, e,

digitais. As interfaces ampliam a

mais especificamente, os espaços

capacidade sensorial e a memória, e

móveis interconectados pelo uso de

potencializam a cognição e a ação

interfaces portáteis, tem alterado a

humanas.

relação do sujeito com o corpo e as suas condições de existência.

Além da interconexão entre o

A atualidade tecnológica nos coloca

corpo e a máquina, a onipresença

diante de espaços diferenciais, com

das imagens em nosso mundo tem

os seus intercruzamentos. O corpo

impactos profundos na relação

se transforma em um conjunto de

dos sujeitos com os seus corpos.

extensões ligadas a um mundo

Em primeiro lugar, esse impacto

multidimensional, pautado pela

pode ser pensado a partir do

interconexão de redes e sistemas

contato do sujeito com as imagens

(SANTAELLA, 2017).

fragmentadas de seu corpo. A partir do uso dos dispositivos tecnológicos

Alguns pesquisadores têm

da imagem o sujeito tem acesso

investigado o uso da tecnologia para

a um mundo de imagens que não

substituir as funções fisiológicas,

mais dependem da percepção

numa aliança corpo/tecnologia

humana, mas sim do alcance

que transforma o homem em uma

da máquina (BROUSSE, 2014).

espécie de ciborgue. O corpo

Passamos a ver, através desses

hoje é colonizado pelas próteses

aparelhos, coisas imperceptíveis para

eletromecânicas, químicas e

a percepção visual humana. São

comunicacionais. Os corpos têm

imagens impossíveis de se ver sem a

sido tecnicamente equipados e

máquina, o que nos torna a cada dia

preparados para se conectarem à

mais dependentes delas.

rede. A convergência dos corpos com as tecnologias chega ao ponto

A imagem tecnológica a serviço da

de se tornarem indistinguíveis,

ciência desfaz a imagem unificada

expandindo a existência humana,

do corpo e expõe um corpo

levando o homem à condição de

recortado em órgãos e unidades

pós-humano. Para Santaella (2003),

separadas. Nessa perspectiva,

o pós-humano reúne a realidade

a ilusão de unidade corporal é

virtual, a comunicação global,

bruscamente quebrada por essas

protética e nanotecnologia, redes

máquinas de visão, que substituem

neurais, algarismos genéticos,

a nossa visão e nos colocam em

manipulação genética e vida

relação a um organismo cada vez

artificial. O homem está cada

mais fragmentado e estranho. Para

vez mais acoplado a ambientes

Le Breton (2003, p. 51),


45

“uma endoscopia de seu estômago

Para Le Breton (2003), a virtualidade

projeta na tela uma alquimia colorida

assinala um novo paradigma da

e precisa de suas entranhas”.

relação do homem com o mundo.

O corpo, antes considerado íntimo,

A navegação na realidade virtual

torna-se público, pois, como diz Le

proporciona aos internautas o

Breton: (2003, p. 51) “... a intimidade

sentimento de estarem presos a um

do corpo virado do avesso como

corpo estorvante e inútil ao qual é

uma luva torna-se obra, entra no

preciso alimentar, do qual é preciso

domínio do espetáculo, isto é,

cuidar, manter, etc.

do espaço público”. A imagem

A radicalidade do discurso anuncia-

tecnológica se sobrepõe ao saber

se em pesquisadores que anunciam

médico e ao saber que cada um

sua vontade de suprimir o corpo da

tem sobre o próprio corpo. Ela

condição humana, de telecarregar

é concebida como contendo a

seu espírito no computador, a fim

verdade sobre o corpo, que deixa de

de viver plenamente a imersão

ser dotado de mistérios e enigmas.

no espaço cibernético. O corpo

Passamos da clínica da palavra à

real é considerado um obstáculo

clínica do olhar. Do desejo de ver

à sua virtualização. O sonho de

passamos para um imperativo de

virtualização do corpo é o sonho

ver, uma imposição colocada para

de suprimir a doença, a morte e

todos. A medida da verdade torna-

todos os entraves ligados ao fardo

se aquilo que é visível.

do corpo. Para alguns, o corpo não está mais à altura das capacidades

Em segundo lugar, o imperativo de

exigidas na era da informação,

visibilidade é também a exigência

é lento, frágil, incapaz de memória,

de se alcançar uma imagem

etc. O corpo, nessa perspectiva,

corporal ideal, sem falhas. Apesar

é um rascunho a ser retificado, como

da multiplicidade de narrativas,

uma matéria-prima a ser rearranjada,

as imagens pessoais dominam

reprogramada. Para Stelarc (1997,

o espaço virtual. As fotografias

p. 26), a condição de pós-humano

compartilhadas nas redes sociais

pressupõe a necessidade de projetar

expõem corpos cada vez mais

um corpo mais autônomo e mais

delineados, perfeitos, esculpidos

eficiente energeticamente, “com

através de uma série de dispositivos

antenas sensoriais ampliadas e

tecnológicos atuais, continuamente

capacidade cerebral aumentada”.

sofisticados, que permitem reparar qualquer suposta imperfeição da

A procura desenfreada por

imagem corporal.

intervenções cirúrgicas revela a tentativa de corrigir ou reparar o


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48

corpo rascunho. Como salienta

exposto como um objeto exterior,

Couto (2012, p. 29), “modificar

estranho à sua imagem corporal

e transgredir, por meio de

unificada.

cirurgias, implantes, transplantes e estimulantes químicos, os limites

As duas perspectivas sustentam

do corpo, estão se tornando novos

o imaginário de um controle

desejos de consumo”. A tentativa de

tecnológico sobre o corpo,

construir uma versão corporal mais

no campo estético ou da saúde.

atualizada e aperfeiçoada denuncia

Um corpo que, graças às tecnologias

uma maior aproximação entre corpo

e aos recursos digitais, pode ser

e objeto de consumo, característica

moldado, corrigido ou controlado,

do nosso século. O aperfeiçoamento

vencendo todos os limites que a

da imagem corporal é possível

vida lhe impõe. Nessa obsessão de

via dispositivos tecnológicos da

controle sobre o corpo,

imagem.

de reparação dos seus defeitos, visa-se um corpo programável,

Algo bastante perceptível hoje é o

universal, apagando exatamente o

horror de ser invisível. As pessoas

detalhe que o singulariza.

se fotografam a cada instante, publicando as suas fotos na rede.

Para Freud, o sofrimento proveniente

Existem os aplicativos específicos

do nosso corpo relaciona-se com o

para corrigirem os supostos defeitos

fato dele estar fadado ao declínio

da imagem corporal, aperfeiçoando

e à dissolução. Diante dessa

a imagem fotográfica segundo os

fonte constante de sofrimento, as

parâmetros sociais. Para encontrar o

tecnociências alimentam a ilusão

parceiro ideal nas redes sociais, mais

humana de que o corpo um dia

vale uma bela foto do que uma boa

poderá ser superado pela máquina,

apresentação textual.

evitando, assim, a doença e a morte.

Assim, as imagens tecnológicas

Na mesma medida em que

incidem sobre a relação do sujeito

imagens de corpos esculpidos,

com o corpo de diferentes formas.

completamente padronizados,

Por um lado, uma exigência de

povoam as redes sociais, proliferam

se mostrar como um corpo ideal,

os sintomas localizados no corpo,

adequado aos padrões sociais.

como a anorexia, a bulimia e a

Por outro lado, as imagens

escarificação. Em grupos virtuais

tecnológicas associadas ao discurso

fechados, adolescentes angustiados

científico expõem o sujeito a um

exibem seus corpos retalhados,

organismo fragmentado, flagrado

marcados pelas práticas de

na mais profunda interioridade e

automutilação, e/ou agredidos pela


49

magreza extrema, transgredindo os

tecnologias têm contribuído para

padrões sociais impostos pela mídia.

a destruição do mundo. Colhemos cotidianamente os efeitos dessa

Com a sua ambiguidade,

intervenção humana sobre a

a internet abriga, por um lado,

natureza, como o desmatamento,

uma faceta libertadora, permitindo

a destruição de recursos não

a livre escolha; por outro lado,

renováveis, as mudanças climáticas,

aprisionadora, veiculando um

a falta de água, a intensa produção

imperativo de beleza e de saúde

de resíduos tóxicos, a poluição,

que, em conexão as exigências

entre outros. A força imperiosa e

do supereu, impõem um controle

indomável da natureza agredida

absoluto sobre o corpo.

pode se mostrar de forma cada

A exigência de gozar a vida convive

vez mais destrutiva, acarretando

com o imperativo de controlar o

tragédias em diferentes locais do

corpo, ambos aliados à lógica do

mundo.

mercado. Pressionados por essa imposição social, muitos buscam

As tecnologias digitais, com sua

relacionamentos puramente virtuais,

intensa produção de imagens,

evitando o contato corpo a corpo.

também têm efeitos sobre a nossa percepção e a nossa

3.2.2 O mundo externo

relação com o mundo. Na era da internet, mensagens e imagens

Para Freud, a prepotência da

de acontecimentos do mundo

natureza nos obriga à rendição

inteiro nos chegam a cada instante

ao inevitável: nunca dominaremos

sem que a gente precise buscar

completamente a natureza.

por elas. Somos bombardeados

O autor, em 1930, afirmava que

continuamente por imagens

“nas últimas gerações a humanidade

que captam cada detalhe das

fez progressos extraordinários nas

catástrofes da natureza em cada

ciências naturais e em sua aplicação

ponto do planeta. As edições

técnica, consolidando o domínio

das imagens são sustentadas por

sobre a natureza de um modo antes

ideologias, significados e valores.

inimaginável” (p. 45). Mas ele conclui

Convivemos com imagens que

que esse progresso não garantiu a

pretendem capturar o real, o sem

felicidade humana. Hoje, ao refletir

sentido, transformando-o em

sobre as conquistas do nosso século,

espetáculo. Imagens de destruições,

não podemos deixar de considerar

tempestades, vulcões, tornados e

o alto preço que pagamos por elas.

todos os tipos de desastres naturais

Não é desconhecido das pessoas

não nos deixam esquecer a nossa

o fato de que as ciências e as

frágil condição humana. O excesso


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52

de imagens chocantes nos afeta de

substituindo-os por outros conforme

diferentes formas, como,

o próprio desejo.

por exemplo, gerando desesperança ou depressão.

Na atualidade, a virtualidade pode

Por vezes, a espetacularização da

ser um refúgio para evitar a dor de

violência e das catástrofes naturais

existir. As adições virtuais atestam a

acaba por banalizá-las. Assistimos

dificuldade de enfrentar os desafios

a esse espetáculo midiático como

que a vida impõe. Freud (1898/1974),

a um filme, que não nos atinge

em seus estudos iniciais já apontava

diretamente.

que não é o fato de consumir uma droga que gera uma adição, mas é

Freud (1930) ressalta que, contra o

necessário que aquilo que se usa

temido mundo externo o sujeito só

como forma de se intoxicar tenha

pode se defender por algum tipo

uma finalidade de substituição

de distanciamento. Se a dificuldade

(FREUD, 1898/1974). Ou seja, é a

de enfrentar o mundo externo é

modalidade de uso que pode tornar

muito grande, alguns fazem uso

um objeto nocivo ao sujeito e não

das drogas, que garantem não

apenas o efeito de uma substância

só o ganho imediato de prazer,

no organismo (LIMA; GENEROSO,

mas também uma parcela muito

2016).

desejada de independência em

Qualquer objeto pode ser usado

relação ao mundo externo, como

de forma adicta, especialmente no

diz Freud (1930, p. 33). Com a ajuda

mundo contemporâneo. Assim,

desse “afasta tristeza”, “podemos

o uso contínuo das tecnologias

nos subtrair à pressão da realidade

digitais pode ser um recurso para

a qualquer momento e encontrar

o sujeito se afastar da realidade

refúgio num mundo próprio que

ameaçadora e incontrolável.

tenha melhores condições de

Ao imergir na virtualidade, o sujeito

sensibilidade” (FREUD, 1930, p.33).

pode buscar se afastar do mundo

Mas Freud indica outras saídas

externo e do laço social. Em um

além da droga. Ele acrescenta

projeto de pesquisa e intervenção

que quando o sujeito enxerga na

com adolescentes nas escolas,

realidade o único inimigo, a fonte de

escutamos as seguintes falas de

todo sofrimento, ele rompe todos

adolescentes: “Eu não consigo me

os laços, dá costas a esse mundo,

separar do celular”, “eu enlouqueço

nada quer saber dele, ou então ele

sem ele”, “preciso conferir o tempo

pode tentar reconstruí-lo, construir

todo se tem publicações nas redes

outro em seu lugar, eliminando

sociais”, “eu passo o dia inteiro

os aspectos mais intoleráveis e

jogando, nem vejo o tempo passar,


53

é a única forma de não me sentir

ele se sustenta sobre um vazio que

sozinho”, “eu esqueço os problemas

abrigará a causa do sujeito,

quando jogo”.

sua singularidade (TIZIO, 2007).

O consumo de imagens na

A perda de referenciais simbólicos

internet substitui a transmissão de

tradicionais organizadores na

experiência, que é incompatível com

cultura atual e a sua substituição

a velocidade imposta pela cultura

por uma multiplicidade de ofertas,

digital. Numa cultura marcada

especialmente na internet, amplia

pela velocidade, desaparecem as

as modalidades de escolha.

condições do convívio humano que

As redes sociais oferecem

tornavam possível a transmissão

grande variedade de opções de

do vivido na forma das narrativas,

identificação.

e, consequentemente, é destruída

Resta-nos refletir sobre as

a qualidade da experiência (KHEL,

modalidades de identificação

2009).

sustentadas por imagens no espaço virtual.

3.2.3 As relações sociais A virtualidade introduz uma nova Para Freud (1930/2010),

lógica espacial e temporal que

o sofrimento que se origina das

rompe com as barreiras físicas

relações com os outros seres

que até então delimitavam e

humanos nós experimentamos

circunscreviam os espaços.

talvez mais dolorosamente que

O espaço é expandido infinitamente,

qualquer outro. O sujeito se constitui

não respeitando os limites físicos,

na cultura, a partir do laço que

e o tempo é comprimido. Há uma

estabelece com o outro. A relação

perda da perspectiva temporal

entre os seres humanos se sustenta

concebida como uma evolução

do discurso e, por meio dele, assume

histórica, que enlaça passado,

as características de uma época e as

presente e futuro. A grande

marcas de uma cultura determinada.

valorização do tempo presente

O laço social articula o campo social

impõe ao sujeito realizações

ao individual através da linguagem,

imediatas. A desvalorização do

a partir de um vazio estrutural que

tempo passado é incrementada pela

opera como causa. O laço social

cultura do consumo, que instiga o

envolve a conexão e a desconexão

culto ao novo.

com o outro, pois, ao mesmo tempo em que liga o sujeito ao outro,

Para Bauman (2004) vivemos em

dele o separa, na medida em que

um mundo líquido, em que o modelo


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55


56

“conexão-desconexão” da internet

de adolescentes de vários países

influencia os relacionamentos sociais

que fizeram um pacto de suicídio

dentro e fora do ambiente virtual.

coletivo através de uma rede social.

A internet propicia a frivolidade das comunicações e das formas de

Na internet, as imagens enlaçam os

se relacionar. Os relacionamentos

sujeitos promovendo identificações.

operam na lógica do mercado

Khel (2009) ressalta a força das

e se tornam produtos a serem

imagens e a sua incidência no laço

consumidos e descartados. No

social. Para a autora, na sociedade

espaço virtual, o número de amigos

do espetáculo, são as imagens, em

torna-se critério de popularidade

forma de mercadoria, que organizam

e de prestígio social, quando a

prioritariamente as condições do

quantidade passa a se sobrepor

laço social. As imagens se oferecem

à qualidade dos relacionamentos

como produtoras de sentido,

sociais. Para o autor, os sujeitos na

fazendo com que o movimento

contemporaneidade constroem

errático do desejo ceda lugar ao

identidades efêmeras e estabelecem

gozo promovido pela imagem

laços sociais líquidos, visto que

que encobre a falta de objeto.

evitam as relações duradouras.

Há um apagamento do desejo,

Passam-se, portanto, por indivíduos

e consequentemente, do sujeito,

sem características próprias e sem

levando à angústia.

uma história de vida, pois se tornam apenas sujeitos do presente, sem

As comunicações frenéticas

passado ou expectativas para o

e contínuas nas redes sociais

futuro, em um mundo no qual reina

alimentam um imaginário de que o

uma eterna incerteza.

sujeito não está só, mas conectado ao outro. Em um mundo cada vez

A internet favorece a ilusão de

mais individualista e autocentrado,

proximidade. Entretanto, essa

a interconexão com o outro pode

proximidade puramente virtual

servir ao tamponamento do

provoca efeitos narcísicos e de

desamparo estrutural, evidenciado

agressividade imaginária. Alguns se

e reforçado pela fragilidade do laço

agrupam no espaço virtual em torno

social na nossa sociedade.

de um gozo ou de uma ideia comum. Uma reportagem recente, publicada no Jornal El País, na Espanha, relata

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

uma investigação que permitiu deter na Argentina um jovem de

A virtualidade afeta de forma

17 anos que coordenava um grupo

definitiva as relações com o nosso


57

corpo, com o meio externo e com o

de permanente urgência e por

outro. Ela tanto abre possibilidades

uma multiplicidade de solicitações

impensáveis em todos os setores

simultâneas (KHEL, 2009).

da nossa vida, quanto introduz impasses, desafios e novos sintomas,

Entretanto, apesar desse contexto

que se manifestam especialmente no

de desenfreada competição

corpo e no laço social.

do mercado, de declínio social das instituições, do cenário

A cultura digital está atrelada ao

socioeconômico de incertezas e

mercado. A velocidade tecnológica

de extrema flexibilidade, a internet

evoca, por um lado, a liberdade de

e a cultura digital não impedem o

opções de consumo, e por outro,

surgimento de conexões que se

a dificuldade de fazer escolhas e a

assentem sobre a solidariedade,

impossibilidade de usufruir delas.

a cooperação, o compartilhamento

Para Khel (2009), o alargamento no

de ideias e a criatividade. “Quando

horizonte dos possíveis cobrou o

as contradições desaparecem, os

seu preço em termos de desamparo

espaços sociais são desalojados

e alienação. Em um mundo

e os sentidos multiplicam-se

imediatista e sem passado, o sujeito

infinitamente, surgem novas formas

é convocado a ser autor solitário de

de pertencimento social,

sua história de vida e de seu destino,

de identificação e de invenção”

bombardeado por um sentimento

(LIMA et al, 2017, p. 07).


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60

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MOVIMENTOS IMAGEM_CÂMERA Priscila Mesquita Musa1

Resumo: Na escala da vida

Este ensaio faz uma reflexão

ordinária, à altura do olho, a cidade

sobre a produção e circulação

é condicionada, e não submissa à

das imagens dos movimentos de

relação de poderes e forças – das

ocupação coletiva do espaço de

instituições públicas, do poder

uso público de Belo Horizonte. Foi

econômico, do poder político, do

desenvolvido a partir da vivência

poder social, do poder midiático

junto a alguns movimentos e grupos,

– mas ela é também o que dessas

do compartilhamento de fotografias

forças escapa pelas bordas, o que

e vídeos e da construção coletiva

delas resta, o que delas se apaga, o

da pesquisa através de rodas de

que delas não nos alcança. Mesmo

conversa. É uma investigação

nas condições mais inóspitas e

acerca da potência expressiva da

duramente inumanas, há alguns

imagem enquanto desestabilizadora

pedaços de cidade que resistem

de espaços e tempos socialmente

na potência de suas trincas. Há

estabelecidos e a sua capacidade

algo que consegue romper o

de redistribuir o sensível, a partir

ordenamento do tempo, do espaço

da análise da relação entre os seus

e do corpo e instituir outras cidades.

agentes – fotógrafa, fotografado,

Isso é o que alguns movimentos

espectador e câmera. Apresento

de ocupação do espaço de uso

aqui, especificamente, a Câmera.

público conseguem constituir de mais potente, criando rupturas no

Palavras-chave: Política. Movimentos

espaço-tempo da cidade.

sociais. Fotografia. Espaço público. Cidade.

1 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo e Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG). http://lattes.cnpq.br/6928927382866811


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FRANÇA | COMUNA DE PARIS, 1871

BAHIA | SALVADOR | MANIFESTAÇÕES JUNHO, 2013

SÍRIA | ALEPPO | BARRICADAS, 2015 POR KARAM AL- MASRI

BELO HORIZONTE | ISIDORA | RESISTE ISIDORA, 2014 | POR PRISCILA MUSA

FRANÇA | PARIS | MAIO DE 68 POR MARC RIBOUD

SÃO BERNARDO DO CAMPO | OCUPAÇÃO PINHEIRINHO | RESISTE PINHEIRINHO, 2012 POR CSP CONLUTAS

CISJORDÂNIA | PALESTINA LIVRE MANIFESTAÇÕES NAKBA, 2011

UCRÂNIA | KIEV | PROTESTOS, 2014 POR VALENTYN OGIRENKO


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ITÁLIA | MARCHA DOS ESTUDANTES CONTRA REFORMA EDUCACIONAL, 2014

BELO HORIZONTE | OCUPAÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL, 2013 | POR MARIA OBJETIVA

EUA | NOVA YORK | MANIFESTAÇÃO CONTRA O RACISMO, 2015

BURKINA FASSO | UAGADOUGOU | MANIFESTAÇÃO CONTRA DITADURA, 2014 POR ISSOUF SANOGO

PALESTINA | PALESTINA LIVE, 2001 POR MAJDI MOHAMMED

RIO DE JANEIRO| MARACANÃ | ALDEIA MARACANÃ RESISTE!, 2013 POR VANDERLEI ALMEIDA

TURQUIA| ISTAMBUL | OCUPAÇÃO PRAÇA DE TAKSIN, 2013 | POR UMIT BEKTAS

EGITO| CAIRO | PRIMAVERA ÁRABE, 2011| POR SARAH CARR


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Em sua “Pequena História da

patentear sua descoberta, e, depois

Fotografia”, Walter Benjamim dissipa

de indenizá-los, colocou a invenção

a “névoa que recobre os primórdios

em domínio público”

da fotografia” simplificando o

(BENJAMIN, 1994, p. 91).

conflito histórico que ora atribui a Joseph Nicephóre Niepce a sua

Se em meados do século XIX o

invenção e ora atribui a Louis

Estado francês garantiu o uso

Jacques Mandé Daguerre. O autor

público da imagem fotográfica,

relata que, àquela época, haviam

em 1871 a polícia parisiense utilizou

vários pesquisadores imbuídos da

as fotografias das barricadas da

tarefa de fixar as imagens da câmera

Comuna de Paris2 para identificar

obscura, datada da renascença,

cada um dos communards e

e quando os dois inventores

executá-los. Para Susan Sontag, essa

alcançaram o feito, no início do

ação inaugurou o uso da imagem

século XVIII, sua invenção era

como ferramenta dos estados

iminente. Houve, desta feita, uma

modernos na vigilância e no controle

simultaneidade nas descobertas

de sua população. Para Hannah

de Daguerre e Niepce e “o Estado

Arendt, foi a partir da aparição dos

interveio, em vista das dificuldades

rostos no espaço público e nas

encontradas pelos inventores para

fotografias da Comuna de Paris que

2 A Comuna de Paris foi uma insurreição popular contra o poder dominante em uma afirmação revolucionária da autonomia da cidade. Ocorreu na capital francesa entre 18 de março e 28 de maio de 1871. Foi a realização de uma forma de governo controlada por trabalhadores e membros de classes populares da França e de outros países. Cabe aqui a leitura de Lefebvre sobre a Comuna:

“Eu tive a ideia sobre a Comuna como uma festa, e lancei isso em debate, depois de consultar um documento inédito sobre a Comuna que está na Fundação Feltrinelli, em Milão. É um diário sobre a Comuna. A pessoa que guardou o diário – que foi deportada, por causa disso, e que trouxe de volta seu diário vários anos depois da deportação, ao redor de 1880 – reconta como, no dia 28 de março de 1871, os soldados de Thiers vieram procurar os canhões que estavam em Montmartre e nas colinas de Belleville; como as mulheres acordaram de manhã muito cedo, ouviram o barulho e correram pelas ruas afora e rodearam os soldados, rindo, se divertindo, saudando-os de um modo amistoso. Então, elas partiram para trazer café e o ofereceram aos soldados; e esses soldados, que tinham vindo tomar os canhões, foram mais ou menos conquistados por aquelas pessoas. Primeiro, as mulheres, então, os homens, todo mundo saiu, numa atmosfera de festa popular. O incidente dos canhões da Comuna não foi, de qualquer modo, uma situação de heróis armados que chegam e combatem os soldados, assumindo os canhões. Não aconteceu assim. Foi o povo que saiu das suas casas, que vai regozijando-se. O tempo estava bonito, 28 de março era o primeiro dia da primavera, estava ensolarado: as mulheres beijam os soldados, eles relaxam, e os soldados são absorvidos em tudo isso, uma festa popular parisiense.” (LEFEBVRE apud VELLOSO, 2015).


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os rostos puderam ser identificados

ficou mais acessível em termos

e a Comuna aniquilada.

econômicos e significativamente mais fácil e rápida de manusear.

A primeira fotografia do Caderno de Imagens: Câmera é de uma das

Se, por um lado, as forças de

barricadas da Comuna de Paris.

dominação, controle e exploração

Como comentou Bráulio Britto em

aumentaram consideravelmente

uma conversa comigo por e-mail,

seus meios de ação – e aqui

“estamos batendo a poeira das

podemos dizer não só daquilo que

barricadas há 145 anos”. Ao olhar

se atém às relações entre governo

para a fotografia posso apreender

e governados, entre Estado e

que a traição do estado, embora

sociedade, entre público e privado,

o desastre da história também me

mas no que tange às diversas

atinja, não conseguiu aniquilar a

camadas de poder e atinge a

força da insurreição popular que

microesfera do cotidiano –, por outro

me chega não apenas pelo que está

lado, a câmera em muitas mãos

contido e pode ser visto na imagem

potencializou a capacidade de se

fotográfica, mas pelos fantasmas

contrapor ao regime de visibilidade

desses operários mortos que

estabelecido. Ariella Azoulay

retornam, ou que permanecem,

apontou que “a câmera transformou

na potência de desordenar

a maneira com que os sujeitos são

as narrativas estabelecidas e

governados e a dimensão de sua

possibilitar imaginar, a partir deles,

participação nas formas desse

outros mundos possíveis, outros

governo”3 (AZOULAY, 2008, p.

movimentos possíveis.

89), como também transformou expressivamente a forma de nos

Das Barricadas de Paris até a

relacionarmos uns com os outros

fotografia das manifestações de

e possibilitou a constituição de

junho de 2013 em Salvador, a câmera

narrativas com múltiplos e diferentes

fotográfica passou por uma série de

pontos de vista, outros imaginários e

mudanças paradigmáticas. No longo

outros regimes de sensibilidades.

percurso que sai das pesadas caixas de madeira e placas de vidro até os dispositivos acoplados em objetos de uso cotidiano, como os aparelhos celulares, a tecnologia simplificou,

A invenção da fotografia foi a criação de uma nova situação na qual pessoas diferentes, em lugares diferentes podem, simultaneamente, usar uma caixa preta para a fabricação de

3 Tradução minha. Texto original: “The camera changed the way in which the individual is governed and the extent of his or her participation in the forms of this governance”.


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uma imagem de seus encontros: não uma imagem deles, mas do próprio encontro. A invenção da fotografia não é apenas a invenção de um novo encontro entre as pessoas, mas a invenção de um encontro entre as pessoas e a câmera. (AZOULAY, 2008, p. 93).4

A fotografia é o resultado do encontro entre o fotógrafo e o fotografado com a câmera, entre esses corpos singulares e coletivos – não necessariamente um encontro pacífico e consensual; muitas vezes o encontro é também um confronto. No ato fotográfico, a câmera não responde totalmente ao fotógrafo ou ao fotografado, ela é aquilo que é interposto entre os sujeitos, que é visto e dá a ver o mundo do outro, mas em uma angulação diferente do olho humano, em uma perspectiva recortada, que modifica

Embora revele uma perspectiva diferenciada, a produção em grande escala das câmeras e a produção em grande escala de fotografias e vídeos operou uma transformação significativa na forma de percepção humana, como também apontou Azoulay (2008): A proliferação de imagens que a fotografia facilitou não é simplesmente uma questão de qualidade, mas um vetor essencial de transformação na matriz de percepção. A capacidade para olhar não pode mais ser compreendida como uma propriedade pessoal, mas é um campo complexo de relação que originalmente decorre do fato de que a fotografia tornada disponível ao sujeito possibilita que ele veja mais do que seus olhos sozinhos poderiam ver em termos de abrangência, distância, velocidade de tempo, qualidade, claridade e assim por diante. (AZOULAY, 2008, p. XX).5

as cores, a profundidade de campo, a perspectiva, entre outros. O ponto

A câmera, em grande medida,

de vista humano não é equivalente

reorganizou a acessibilidade do

ao da câmera e não pode ser a ela

olhar, pois em uma variabilidade

reduzido ou por ela substituído.

infinita, adquirimos a possibilidade

4 Tradução minha. Texto original: “[…] the invention of photography was the creation of a new situation in which different people, in different places, can simultaneously use a black box to manufacture an image of their encounters: not an image of them, but of the encounter itself. Not only is the invention of photography the invention of a new encounter between people, but the invention of an encounter between people and the camera”. 5 Tradução minha. Texto original: “The proliferation of images that photography has facilitated is not simply a matter of quality, but an essential vector of change in the perceptual matrix. The capacity to look can no longer be seen as a personal property, but is a complex field of relation that originally stem from the fact that photography made available to the individual possibilities of seeing more than his or her eye alone could see, in terms of scope, distance, time speed, quality, clarity, and so on”.


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de olhar através dos olhos dos

Nas fotografias do Caderno de

outros, de muitos outros.

Imagens: Câmera, alguns pedaços

Olhar este singular e coletivo não

de cidade e objetos do cotidiano

mais centralizado em um ponto

constituem outros arranjos: foram

de vista muitas vezes ordenado e

transformados em barricadas,

controlado pelo caminho contínuo

escudos e máscaras. Pedras de

de forças do poder (público,

calçamento das ruas, banheiros

econômico, “político”, midiático

químicos, carcaças de ônibus, carros,

e também o poder instituído nas

tampas de lixo, galões de lixeira,

diferenças das diferentes camadas

portas, placas de trânsito ganharam

sociais).

outras configurações e expressam outras formas de cidade. Em Paris

A fotografia e o vídeo são

na França, Salvador da Bahia,

performados em diversos espaços,

Aleppo na Síria, Isidora em Belo

em diferentes tempos, por diferentes

Horizonte, Ocupação Pinheirinho em

pessoas, grupos, coletivos e

São Bernardo do Campo, Cisjordânia

movimentos que conformam

na Palestina, Oakland nos EUA,

uma comunidade da fotografia,

Kiev na Ucrânia, Roma na Itália,

uma comunidade sem bordas

Belo Horizonte, Nova Iorque nos

e aberta formada por qualquer

EUA, Uagandogou em Burkina

pessoa, qualquer coletivo, mas não

Fasso, Istanbul na Turquia,

necessariamente conectada por uma

Cairo no Egito e Rio de Janeiro,

ideologia, uma etnia,

a precariedade das intervenções que

uma raça ou um gênero, algumas

defendem desde a cidade até a o

vezes mesmo sem equivalência

próprio corpo, em múltiplas escalas,

comum. A produção de imagens

é revelada nas fotografias que

é atravessada e reconfigurada

atravessam espaços, tempos, corpos

pela multiplicidade de existências,

através do mundo, nos contextos

experiências, cosmologias.

mais diversificados.6

6 Diversas vezes durante o trabalho me questionei se deveria apresentar nos Cadernos de Imagem fotos de contextos sociais radicalmente diferentes, e necessariamente delicados, neste caso a Síria, Bukina Fasso e Palestina, sabemos, em plena guerra. Pessoas estão sendo violentamente mortas, cruelmente mortas, covardemente mortas, cabe repetir. Mulheres, crianças, idosas, homens, estão sendo privados dos direitos mais básicos, cabe repetir. Mulheres, crianças, idosas, homens, estão sendo estupradas, cabe repetir. Territórios e cidades inteiras estão sendo arrasadas, cabe repetir. Optei por incluir essas imagens apostando na potência de movimentar o sensível, mesmo em contextos sociais tão dispares, tão conflitivos e por certo contraditórios. O objetivo não foi reduzir a dureza, a violência, a rudeza de alguns acontecimentos em algumas imagens. Essas não são, por certo, imagens que sintetizam a guerra, a violência, a dor.


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Da multiplicação de imagens

ou seja, a confluência de formas

fotográficas e videográficas advém

de ler e entender o mundo que

um comum que pode desconstruir,

apresentam a “capacidade de atuar

pelas frestas que abrem, os poderes

como forma de inteligibilidade do

soberanos e hegemônicos,

mundo vivido”. Segundo o autor,

as imagens-síntese, indentitárias e

“uma grande narrativa corresponde

totalizadoras. Que pode se constituir

a uma trama que propõe a

no espaço sem bordas, sem limites,

compreensão da evolução global

de forma heterogênea, múltipla e

que determina a transformação do

horizontal e sem uma linguagem

nosso mundo vivido” (RANCIÈRE,

unitária. Para Vilém Flusser (1985,

2014, p.20).

p.20), “apenas as séries de fotografia podem revelar a intenção do

Como nos apontou Manuela

fotógrafo”. Talvez também seja

Carneiro Cunha (2009), no livro

significativo pensarmos na potência

“Cultura Entre Aspas”:

da imagem como possibilidade de desconstruir exatamente a autoridade do fotógrafo, mas também do fotografado e do espectador, e permitir a reconfiguração dos lugares, outros arranjos. Também em via de mão dupla, uma potência que de um lado pode conformar um regime de visibilidade global e, de outro, não pode ser reduzida a um regime de visibilidade global.

Em outras palavras, talvez exista sistema, mas não existe cultura que lhe corresponda (SAHLINS, 1988). Com efeito, malgrado a extraordinária difusão da mídia, não existe cultura global. Os paradigmas, as sínteses, as correspondências de sentido fazem-se em uma outra escala, de ordem mais local. Mas como ter um ponto de vista local sobre um processo que nos ultrapassa, do qual não se controlam nem as causas nem os efeitos? (CUNHA, 2009, p.113).

Muitas das ações desses

Voltando para as imagens do

movimentos partem de

Caderno, mais especificamente

questionamentos, ponderações e

à fotografia da barricada nas

posicionamentos embasados em

ocupações do Isidora. No dia 6

narrativas anteriores fundadas no

de agosto de 2014, o governo do

marxismo, no anarquismo e em

Estado de Minas Gerais comunicou

outras correntes de pensamento

oficialmente que havia sido expedido

– em grandes narrativas e crenças

o mandado de reintegração de

sobre o destino da humanidade,

posse das ocupações Vitória,

como escreveu Rancière (2014) no

Rosa Leão e Esperança, da região

texto “Em que tempo Vivemos?”,

do Isidora, que compreende o


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norte de Belo Horizonte e parte de

a terra; no ponto em que aquela

Santa Luzia. Diante de uma outra

que talvez esteja pronta desenha

possibilidade de cidade desenhada

sua outra possibilidade, como

à revelia das várias camadas de

comentou César Guimarães em

poder, com muitas mãos, com

um post do Facebook, estava a

sistemas construtivos que partem

“Comuna do Isidora”. Atrás das

da disponibilidade de recurso,

barricadas, as noites frias de agosto

material e capacidade coletiva, a

foram aquecidas e compartilhadas

única maneira possível de aparição

com pessoas que vinham de vários

do estado em resposta àquilo que

locais da cidade, de diversificados

lhe escapa, seria através do uso e da

contextos sociais, de várias formas

reafirmação soberana de sua força

de vida, de muitas cores, de muitos

policial, a violência.

gêneros.

Uma rede de apoiadores,

Reunidas em torno da fogueira

movimentos, grupos, coletivos

a vigília, que rapidamente se

e sujeitos se potencializou e se

conformou nas saídas mais frágeis

constituiu em apoio ao direito

da ocupação, era menos um lugar de

à cidade, ao direito à moradia

esperar a chegada das tropas e mais

de um número expressivo de

se avizinhar das barreiras que temos

pessoas: Resiste Isidora! Junto com

nesses entre mundos diferentes e

Isidora Resiste! Na precariedade

experimentar outras possibilidades

dos materiais e das mãos que a

de vida, outras configurações.

comunidade e a rede de movimentos

Embora também se reunisse às

dispunham, foram articulados

voltas da fogueira muitos momentos

alguns sistemas que objetivavam

de tensão, vez ou outra vinha o

modificar o topos, retardar a entrada

vento frio da possibilidade de uma

das tropas e minimizar os danos e

tragédia iminente.

as perdas. Dentre os artifícios de defesa, posso apenas revelar os que

A fotografia da barricada foi feita

estavam visíveis: barricadas e olhos

em um desses dias de vigília, a

atentos durante vários dias, noites e

barricada guardada de perto,

madrugadas adentro.

com alguns pneus em chama. A circulação nas redes sociais deu

Por trás da barricada armada na

a ver a força da resistência das

Rua Leila Diniz, no ponto em que

comunidades do Isidora, uma contra

a cidade edificada toca a cidade

visualidade, e criou um outro topos

por se fazer; no ponto em que o

de disputa do discurso, movimentou

asfalto toca, mas não sobrepõe,

a sensibilidade de muitas outras


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pessoas, algumas que nunca tinham

o mundo simbólico das informações:

conhecido uma ocupação urbana.

sociedade informática programada;

Muitas outras fotógrafas voltaram

como o pensamento, o desejo

para registrar a mesma e as outras

e o sentimento vão adquirindo

barricadas do Isidora. As imagens

caráter de jogo em mosaico, caráter

que circularam excessivamente na

robotizado; como o viver passa a

rede contribuíram para desordenar

alimentar os aparelhos e por ele ser

a ordem de despejo.

alimentados”, o excesso de câmeras e de imagens nos movimentos de

Para Ariella Azoulay (2008),

ocupação do espaço de uso público

os teóricos pós-modernos tais como

talvez tenha contribuído para

Roland Barthes, Jean Baudrillard

desautorizar a automatização dos

e Susan Sontag, que vivenciaram

aparelhos.

a primeira onda de crescimento exponencial da fotografia no

No livro “Sobre a Fotografia”,

início da década de 1970, foram

Susan Sontag (2005, p.35) aponta

as primeiras vítimas de uma certa

que “Tudo existe para terminar numa

“fadiga da imagem”. “O mundo

foto”, referindo-se a uma frase do

foi preenchido com imagens de

Mallarmé de que “tudo existe para

horrores que proclamaram em alta

terminar em um livro”. A autora

voz que os olhos dos espectadores

problematiza a imagem como

cresceram sem ver, levando a

substituição da realidade a que se

desobrigá-los da responsabilidade

refere como Mundo-Imagem,

de reter, no gesto elementar de ver,

“os poderes da fotografia, de

aquilo que é apresentado ao olhar.”

fato, têm desplatonizado nossa

(AZOULAY, 2008, p. 11) 7.

compreensão da realidade, tornando cada vez menos plausível refletir

Embora Vilém Flusser (1985) no

nossa experiência à luz da distinção

livro “A Filosofia da Caixa Preta”

entre imagens e coisas, entre cópias

problematizou que há um nível

e originais” (SONTAG, 2005, p.196).

de automação nos aparelhos, nas câmeras, que serve para controlar e

No livro “O Destino das Imagens”,

automatizar a vida humana, “como

Rancière (2012) apresentou um

o interesse dos homens vai se

questionamento às conclusões de

transferindo do mundo objetivo para

alguns teóricos sobre o excesso de

7 Tradução minha. Texto original: “The world filled up with images of horrors, and they loudly proclaimed that viewers’ eyes had grown unseeing, proceeding to unburden themselves of the responsibility to hold onto the elementary gesture of looking at what is presented to one’s gaze.”


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fotografias, como concluiu Susan

no cerne das coisas como sua

Sontag, de que as imagens de

palavra muda.”

alguma forma poderão suprimir a realidade. Também contrapôs as

Roland Barthes e Vilém Flusser

teorias de que a realidade, que não

afirmaram que nos últimos anos,

cessa de representar a si mesma,

para eles o fim da década de 1970,

pode suprimir as imagens. O autor

foram feitas mais imagens do que

coloca que “se só há imagens, não

em toda a história da fotografia.

existe mais o outro da imagem.

A câmera talvez seja menos arma,

E se não existe mais o outro da

menos escudo, e mais outro modo

imagem, a noção mesma de imagem

de ver, outra forma de se relacionar

perdeu seu conteúdo, não há mais

com o mundo dos outros.

imagem”.

E o excesso radical de fotografias pode riscar a fagulha da

Para Rancière (2012) essa leitura

emancipação do olhar, e pode

retira as possibilidades que o próprio

requerer a responsabilidade do

objeto tem de recriar a partir das

espectador e da fotógrafa diante do

suas complexas relações com o

outro. Como apontou Ariella Azoulay

visível e, ao expor várias formas

(2008),

de apresentação da imagem, recolocou a percepção no sensível, na experiência e nas imagens que devolvem o mundo à sua desordem essencial, mutável, que transcende a presença e o testemunho da história e está em constante devir. De um regime de imagéité a outro, se referindo à arte, o autor diz que “a expressão codificada de um pensamento ou um sentimento. Não é mais um duplo ou uma tradução, mas uma maneira como as próprias coisas falam e calam. Elas vêm de alguma forma se alojar

o uso ampliado das câmeras fotográficas por pessoas em todo o mundo criou mais do que uma grande quantidade de imagens; criou uma nova forma de encontro, um encontro entre pessoas que tiram fotos e que observam e exibem fotos de outros, com seu consentimento ou não, abrindo novas possibilidades de ação política e novas condições para a sua visibilidade. (AZOULAY, 2008, p.24). 8

Diante de tantas formas de ver o mundo, a ressonância de uma multiplicidade infinita de imagens, o encontro do corpo sensível que

8 Tradução minha. Texto original: “The widespread use of cameras by people around the world has created more than a mass of images; it has created a new form of encounter, an encounter between people who take, watch, and show other people’s photographs, with or without their consent, thus opening new possibilities of political action and forming new conditions for its visibility.”


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fotografa e filma com o que é

A câmera como extensão do corpo

fotografado e o que vê, a pluralidade

indígena é também o seu olho e sua

de perspectivas e pontos de vista

possibilidade de existir de outras

e o excesso radical de imagens,

formas.

podem constituir outros modos de ver, outros modos de ser visto

Jean-Claude Bernardet (2006),

e outros modos de dar a ver na

ao refletir sobre o trabalho realizado

emergência de novos agentes

junto a povos indígenas brasileiros

fotográficos.

pelo Vídeo nas Aldeias, fala sobre os delicados movimentos que os

Quando uma câmera, por exemplo,

indígenas realizam na concepção

é apropriada por um indígena além

de planos fílmicos onde a câmera

da incorporação de um órgão

acompanha sensivelmente os

estranho ao ser corpo, e aqui nada

detalhes de cada gesto, o silêncio

de novo tomando de empréstimo

dos acontecimentos, a extensão da

a perspectiva antropofágica,

duração das coisas9. Uma recusa,

olhares se instauram.

ou melhor, uma total indiferença

Olhares capazes de transfigurar

à celeridade e fragmentação da

o órgão, a câmera, em uma

vida moderna. É nessa direção,

diversidade de instrumentos,

coloca Bernardet (2006), que esses

que podem se colocar para além de

exercícios também encerram a

exercícios estéticos e documentais

problemática da alteridade trazendo

como, por exemplo, instrumento

consigo um deslocamento da

político de defesa e de denúncia

categoria “outro” em direção a nós

diante das inúmeras atrocidades a

mesmos. “Acredito que a filosofia

que esses povos são submetidos.

da alteridade só começa quando o

Ou como aparecimento de outras

sujeito que emprega a palavra ‘outro’

possibilidades de existência,

aceita ser ele mesmo um ‘outro’ se

capturadas por esses outros modos

o centro se deslocar, aceita ser um

mesmos de existir, capazes de

‘outro’ para o ‘outro’” (BERNARDET,

desconstruir o próprio objeto e

2006, p.22).

suas formas de manuseio.

9 “Criado em 1986, Vídeo nas Aldeias (VNA) é um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. O objetivo do projeto foi, desde o início, apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada com os povos indígenas com os quais o VNA trabalha” (Extraído do site: www.videonasaldeias.org.br).


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É nessa perspectiva que, diante da

O que implica também a elaboração

multiplicação de câmeras e imagens,

de conflitos e a desconstrução de

podemos experimentar uma

verdades.

multiplicação de mundos e olhares.

REFERÊNCIAS AZOULAY, Ariella. The Civil Contract of Photography. Brooklin, NY: Zone Books, 2008. BARTHES, Roland; tradução GUIMARÃES, Júlio Castañon. A Câmera Clara: Nota Sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984 BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia. In Magia e técnica, arte e política. 7. ed.São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 90-107. BERNADET, Jean-Claude. Vídeo nas Aldeias, o documentário e a alteridade. In Um Olhar Indígena, Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2006. CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. In Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. EDITORA HUCITEC. São Paulo, 1985 MIGLIORIN, Cesar. Transcrito do Seminário Poéticas da Alteridade, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 2012. RANCIÈRE, Jacques; tradução NETTO, Mônica Costa, A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: EXO experimental org. Editora 34, 2009. RANCIÈRE, Jacques; tradução NETTO, Mônica Costa, organização CAPISTRANO, Tadeu, O Destino das Imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. RANCIÈRE, Jacques. Em que tempo vivemos; tradução Donaldson M. Garschagen. Desenhos, pinturas e fotografias Ed Rusha. In Serrote 16, pp. 203/222. São Paulo: Instituto Moreira Salles, março 2014.SILVA, Rodrigo; Nazará, Leonor (org). SONTAG, Susan; tradução Rubens Figueiredo. Sobre a Fotografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. VELLOSO, Rita de Cássia Lucena. Arquiteturas da Insurreição. Uma análise dos modos de engajamento das sociedades urbanas no presente das cidades e sua repercussão na configuração material do espaço urbano. Disponível em http:// arquiteturasdainsurreicao.blogspot.com.br/p/historias-para-escrever.html


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A ALIENAÇÃO DA POLÍTICA NAS DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS MODERNAS E AS ALTERNATIVAS DEMOCRÁTICAS CONSENSUAIS NA AMÉRICA LATINA: porque os tempos estão mudando José Luiz Quadros de Magalhães1

1 INTRODUÇÃO

as instituições e os mecanismos jurídicos. Em que medida esses

Uma questão a ser considerada,

mecanismos determinam e em

previamente, é, em que contexto são

que medida são determinados

aplicados os sistemas,

pelo contexto histórico, social,

1

Presidente Internacional e nacional da Rede para um constitucionalismo democrático latino-americano. Mestre e Doutor em Direito. Professor da PUC Minas e UFMG. http://lattes.cnpq.br/8271201946056867


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cultural e econômico. Podemos

(como o FBI, a CIA, a NASA);

dizer, por exemplo, que a previsão

o voto secreto no colégio eleitoral

de um sistema de governo na

e a inexistência de vinculação do

Constituição de um país funcionará

voto do “grande eleitor” (o eleitor

de maneira diferente em contextos

do partido no colégio eleitoral que

políticos distintos. Assim, um

escolhe o presidente dos EUA) ao

mesmo sistema de governo

partido e candidato que o escolheu

(parlamentar, presidencial, diretorial

funcionam como mecanismos

ou semipresidencial) terá um

de proteção contra escolhas que

funcionamento distinto e servirá

ameacem a permanência de uma

a interesses e objetivos diferentes

democracia controlada, onde as

em sistemas sociais, econômicos

escolhas são restritas, à prova de

e culturais distintos. Por exemplo,

transformações em sentido diverso

Cuba, Suíça e China adotam

ao permitido.

variações do sistema diretorial, e França, Venezuela e Rússia variações

Assim, mecanismos legais,

do sistema semipresidencial.

instituições, estruturas e sistemas políticos determinam e são

É claro que, se os sistemas

determinados pela realidade, sendo

constitucionais de governo variam

necessário o estudo de cada caso

de acordo com o contexto em que

concreto para perceber em que

são introduzidos, esses sistemas

medida determinam e em que

têm, também, uma capacidade

medida são determinados pela

de determinar, em certa medida,

realidade histórica. Sem dúvida,

relações econômicas, sociais e

todo o aparato constitucional

políticas, mantendo, conservando

de democracia representativa

ou, com menos possibilidade,

majoritária é hoje, em muitos

modificando a realidade.

Estados nacionais, um mecanismo de limitação das escolhas

Por exemplo, nos Estados Unidos da

democráticas, uma limitação

América, o sistema presidencial, com

da democracia real, popular.

eleições indiretas para presidente

Esse aparato constitucional

e vice-presidente da República,

em países como Reino Unido,

constitui um sistema de filtro

Alemanha, França, Espanha,

poderoso, juntamente com outros

Portugal e EUA (entre muitos

mecanismos legais estruturais,

outros), impede que as pessoas

como o bipartidarismo de fato; o

enxerguem alternativas ao sistema

financiamento privado de campanha;

socioeconômico e político em que

as agências de estado autônomas

vivem, funcionando o Legislativo,


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o Judiciário e o Executivo como

enquanto a máquina de legitimação

máquinas processadoras de falsas

e encobrimento da democracia

legitimidades.

parlamentar e do Judiciário funcionarem) à mesmice.

O sistema não permite alternativas

Não há alternativa visível.

reais, as escolhas no parlamento e no executivo são delimitadas, os

Neste ensaio vamos desenvolver

partidos políticos servem como

reflexões acerca dos sistemas de

espaços

governo democrático representativo majoritário e constitucionais

de segregação, nos quais rótulos

modernos, e como suas instituições,

condenam ideias ao esquecimento

seus processos e suas normas

ou estranhamento. O mais

servem como elemento de

interessante é que o sistema é capaz

padronização e legitimação de

de levar as pessoas a se exilarem

decisões previamente tomadas

em partidos políticos que nunca

por aqueles que efetivamente

chegarão ao poder, porque as ideias

detêm o poder. As instituições

deles são inseridas como estranhas

modernas são, desta forma,

à grande maioria; na democracia

uma máquina processadora de

representativa majoritária liberal,

legitimidades falsas, que permitem

permanecerão carimbadas pela sigla

que as pessoas aceitem condições,

e pelo nome das legendas em que as

decisões e padrões de vida que não

pessoas se auto exilam.

aceitariam se não existissem estas instituições processadoras de falsas

Alguns partidos são criados

legitimidades. Para desenvolvermos

para nunca chegarem ao poder,

nossas reflexões partiremos das

justamente pela sigla e significantes

reflexões e análises do professor

que adotam, e sua representação

Ricardo Sanin Restrepo (2012)

(significação) dentro do sistema

acerca da Constituição Encriptada.

de democracia liberal. O pior é que estes partidos legitimam,

Este texto é uma reflexão a partir

fazem parte da máquina de

do artigo do professor colombiano.

legitimação de decisões e de

Começamos nossa reflexão

estabilização e manutenção da

pela análise da apropriação da

realidade socioeconômica e

Constituição pelo Poder Judiciário,

cultural hegemônica no poder.

especialmente pela Suprema Corte

Ingleses, franceses, italianos, norte-

ou pelas cortes constitucionais,

americanos, espanhóis parecem

e como a linguagem hermética e

estar condenados (pelo menos

codificada atua como elemento


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de alienação e distanciamento das pessoas em relação às decisões do Judiciário. O Poder Judiciário, desta forma, ao se apropriar da Constituição e de seu sentido, e ao criptografar o seu sentido em uma linguagem à qual poucos

2 A MÁQUINA JUDICIAL PROCESSADORA DE FATOS E LEGITIMADORA DE DECISÕES PREVIAMENTE TOMADAS

têm acesso, afasta as pessoas dos processos decisórios e de

Primeiro precisamos entender a

construção das normas para

lógica do Judiciário: “Roma locuta,

os casos que se manifestam na

causa finita”: Roma falou, o “império”

realidade histórica social, ao mesmo

disse, acabou a causa, acabou a

tempo que legitimam (falsamente)

controvérsia (ZIZEK, 2009. p. 19).

as decisões e compreensões construídas por poucos dos direitos

Esta frase resume a lógica de

constitucionais.

funcionamento do Judiciário e da democracia representativa

O poder assim permanece com

majoritária moderna. No Judiciário,

poucos, sob controle, enquanto

a pessoa que tem seu direito violado

este mecanismo processador

ou ameaçado (ou entende que isto

de legitimidades faz com que

aconteceu) pode recorrer a este

as pessoas aceitem as decisões

poder do Estado, fazendo uma

com o mínimo questionamento

petição (um pedido) em que expõe

possível e sem ameaça real à

suas razões e prova o acontecido

continuidade do sistema enquanto

por meio de documentos,

tal, com os interesses e objetivos

testemunhos, perícias.

iniciais (modernos e excludentes) inalterados.

A outra parte, ré no processo, apresenta sua defesa, e pode

Para melhor explicarmos nossas

apresentar documentos,

reflexões a partir da compreensão

testemunhos ou perícia em sua

do texto do professor Ricardo Sanin

defesa (embora a responsabilidade

Restrepo, vamos utilizar uma obra

de provar a culpa ou dolo de alguém

cinematográfica de Werner Herzog:

seja sempre de quem acusa).

“Onde sonham as formigas verdes.”

Diante do conflito, o Estado, por meio do juiz, interpreta e aplica as leis e a Constituição (do estado), ao caso concreto apresentado para ele. A lógica deste processo


101

é a concorrência de argumentos

processo, permanece latente. O pior

e provas, em que um lado será

é que o Estado (por meio do juiz)

vencedor. Depois da análise das

não se interessa pela satisfação das

provas e dos argumentos, o Estado

partes, mas se contenta em dizer

se pronuncia e a causa é decidida.

o direito para o caso e extinguir o

Existe a possibilidade do recurso

conflito formalmente no processo,

em que a lógica concorrencial que

sem que se chegue efetivamente a

mantém vivo o conflito permanece:

uma solução real que poderia acabar

recurso (razões do recurso),

efetivamente com o conflito, o que

contrarrazões e finalmente de novo

só ocorrerá com a construção do

o pronunciamento do Estado.

consenso. O consenso pode ser obtido por meio da mediação, que

Acabando a possibilidade de

obedece outra lógica e estabelece

recurso, o Estado pronuncia

outra prioridade.

finalmente sua decisão e a causa acaba: “Roma locuta, causa finita”.

Os problemas, entretanto, não

Este formato de solução de conflitos

acabam aí. A forma como o

dificilmente irá solucionar o conflito,

Judiciário se construiu nos Estados

pois incentiva a concorrência

modernos, não só incentiva a

de argumentos, mesmo que

concorrência (e logo a perpetuação

inicialmente se proponha um acordo,

do conflito) como sustenta a

a finalidade não é a busca do

hegemonia de um grupo de

consenso, ou do restabelecimento

interesses (uma classe social, um

do equilíbrio quebrado pelo

grupo étnico, uma percepção de

conflito, mas é a vitória de uma

direito) sobre outros subalternizados

das partes. A busca da vitória

e radicalmente excluídos. Um

dificulta muito (talvez inviabilize)

filme de Werner Herzog pode

a possibilidade de consenso e de

nos ajudar a compreender como

solução da causa onde as partes

o Poder Judiciário moderno,

se sintam contempladas nas suas

inserido na lógica das democracias

expectativas. O perigo deste sistema

majoritárias liberais do Estado

é que sempre haverá alguém não

constitucional moderno, funciona

satisfeito com a decisão estatal da

como uma máquina processadora

controvérsia. Na prática, as partes

de legitimação de fatos, ou, em

(acusação e defesa) não ficam

outras palavras, como uma situação

satisfeitas.

de opressão e exclusão busca ser legitimada, formalmente, por uma

O resultado é que o conflito, embora formalmente extinto com o

decisão judicial.


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No filme “Onde sonham as formigas

como recurso natural, que deve ser

verdes”, um grupo de habitantes

explorado para a satisfação das

originários (aborígenes) pertencente

necessidades e dos desejos deste

a um grupo ético que habitava a

indivíduo racional e superior a todo

terra que os invasores europeus

o resto. O Direito e todo o aparelho

passaram a chamar de Austrália,

estatal da Austrália, onde se passa

tem suas terras ameaçadas por uma

o filme, é construído a partir da

companhia que pretende explorar o

percepção de mundo do invasor e,

subsolo para extração de minerais.

entre os invasores, dos proprietários

A fórmula já foi mencionada: o

e, entre os proprietários, dos

invasor (que se julga superior)

grandes proprietários. A lógica

impõe o seu direito, sua economia,

dual, binária e hegemônica, se

sua espiritualidade, sua percepção

reproduz em diversas escalas: o

da vida e do mundo ao militarmente

invasor europeu sobre o selvagem

subordinado, que resiste e insiste

aborígene; o proprietário sobre

na manutenção de sua cultura, de

o trabalhador e assim por diante,

sua diferença (embora conviva com

chegando até a família. O Direito

processos de destruição, violência e

moderno reproduz em todas as

assimilação). Para quem vê o conflito

instâncias a lógica do “nós x eles”.

que se instaura, sem a percepção de que ele ocorre em uma situação de

O representante da empresa,

hegemonia e logo de imposição de

acompanhado de um advogado,

uma cultura sobre outra, a postura

tenta um acordo (fundado no

da empresa parece legal e ética.

direito do invasor) logicamente sem sucesso, pois ignora a cultura

Um representante da empresa é

e a espiritualidade do invadido.

escolhido para negociar com os

Com toda a educação, simpatia e

habitantes originários (um grupo

correção, a empresa leva a questão

originário específico) que habitava

ao Judiciário, que obviamente, só

aquelas terras. Nessas terras

poderia decidir a favor da empresa,

habitavam também formigas verdes,

pois o Direito utilizado para a

integrantes de um sistema natural

solução do conflito é o direito

que revela o comportamento de

de uma parte, e não um direito

toda a natureza, como um sistema

construído consensualmente por

integral do qual somos parte.

todas as partes envolvidas.

A percepção moderna hegemônica

Neste filme assistimos este Judiciário

europeia se fundamenta na

como uma máquina processadora

percepção de um indivíduo que não

de legitimidade: quem venceria o

integra a natureza e que a percebe

processo já estava previamente


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estabelecido antes deste ser

majoritária? Existe a possibilidade de

instaurado, mas a existência do

consensos ou a lógica concorrencial

processo, dos depoimentos, da

impede o diálogo? Vejamos.

provas, do recurso, funcionou

No processo eleitoral, as partes

como um elemento de legitimação

envolvidas se filiam a partidos

para se tomar e explorar as terras

políticos com programas e ideologia

dos aborígenes, que tiveram sua

definida (o que cada vez existe

oportunidade formal de se defender

menos).

no processo, fazendo provas e argumentando, e agora devem se

Cada partido, cada parte terá seus

subordinar ao Estado, que disse o

argumentos construídos em um

direito. Trata-se de um processo

espaço interno, democrático, no

“pseudolegitimador” que extingue

partido, no qual poderia ser possível

culpas e destrói o outro sem solução

construir consensos sobre questões

de conflitos, mas com a imposição

de políticas públicas diversas.

permanente de um direito sobre os

É necessário constatar até que

outros.

ponto esses partidos têm uma estrutura interna de debate que

3 PARTIDOS, PARLAMENTOS E ELEIÇÕES: A MÁQUINA PROCESSADORA DE LEGITIMIDADES DEMOCRÁTICAS MAJORITÁRIAS DE DECISÕES MINORITÁRIAS

permita a construção de consensos, ou se, ao contrário, as decisões também são tomadas pela lógica majoritária que é concorrencial e impede (dificulta) consensos. Vamos descobrir que, nos partidos, que ainda constroem sua ideologia político-partidária por meios dialógicos, a decisão ocorre por meio do voto majoritário, o que

Como funciona a democracia

inviabiliza (dificulta) o consenso.

representativa majoritária? “Roma

Entretanto, a maior parte dos

locuta, causa finita.” Voltamos à

partidos políticos, no início do século

fórmula estrutural do sistema do

XXI, não guardam mais coerência

Direito moderno: nós versus eles,

político-ideológica, o que resulta em

como um processo de competição

um pragmatismo sem ética de busca

permanente, em que o vencedor

do poder pelo poder. Continuando a

proclamado interrompe aquela

lógica da democracia representativa

competição específica. Uma

majoritária, esses partidos que

pergunta: Qual a disposição para o

construíram suas propostas, políticas

debate na democracia concorrencial

públicas e ideologias, se apresentam


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para as eleições, para então o

no parlamento sairão vitoriosos no

“povo” escolher (Roma locuta) e a

parlamento, na medida de que estes

controvérsia, expressa na busca pela

são melhores ou piores, ou, que a

vitória nas eleições, acabe (Causa

discussão no parlamento ocorre

finita), com a proclamação da

em torno de argumentos racionais.

vontade da maioria.

Vejam que já abandonamos qualquer debate intercultural e que a

Neste momento, a minoria

argumentação acima se desenvolve

(insatisfeita) se submete à maioria,

sob a lógica hegemônica de quem

sempre dividida, pois se constitui

diz o que é direito.

também majoritária, em processos internos que reproduzem o mesmo

Os partidos políticos, em geral,

mecanismo. Percebemos que

não trazem uma outra perspectiva

este processo inviabiliza qualquer

ou alternativa à lógica moderna,

possibilidade de consenso, pois,

representando, durante boa parte

desde o início, o que se busca é

do século XX, a controvérsia entre

a vitória: do partido, do projeto

direita e esquerda, conceitos

de lei, do melhor argumento (?).

modernos que se fundam na lógica

Melhor argumento? Será que o

moderna europeia binária (o centro

parlamento funciona com a lógica

será o terceiro incluído ou uma farsa

da vitória do melhor argumento?

política?). O pluralismo partidário

Qual é o melhor argumento? Depois

poderia sugerir uma possibilidade de

de eleito o governo e de eleitos os

superação do pensamento binário na

parlamentares, o governo continua

política moderna, o que não ocorreu

funcionando da mesma maneira:

por força da lógica majoritária e a

“Roma locuta, causa finita”.

divisão entre situação (governo) e oposição. No parlamento, os

Para que o governo governe, ele

representantes, quando discutem

necessita de maioria parlamentar

projeto de lei, de reforma legal ou

(ou maiorias) para que aprove seus

constitucional, argumentam a partir

projetos, sua lei orçamentária, seu

de seu partido político, visando a

plano de governo. Continuamos,

vitória de seu projeto.

portanto, no nível parlamentar com a mesma busca da vitória.

São sempre parciais, esta é a ideia.

O sistema concorrencial continua

Será que este processo permite que,

inviabilizando qualquer possibilidade

neste debate, um escute o outro?

de construção de consenso. Vamos

Haverá efetivamente a possibilidade

acreditar, por enquanto, que os

de diálogo?

argumentos expostos e contrapostos

Há uma comunicação possível?


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Quando a pessoa que argumenta vai para um debate com a intenção de vencer ou outro, esta pessoa

4 DESOCULTAMENTO, MODERNIDADE E ESTADO

estará aberta para ser convencida, ou todo o argumento do outro será

Vivemos um momento de

recebido para ser imediatamente

desocultamento. A modernidade,

desmontado? A lógica concorrencial

fundada sobre um projeto de

tende ao totalitarismo. No final, só

hegemonia europeia, encontra-se

restará o “melhor”, e o “derrotado”

em crise radical, e toda a diversidade

tende ao ocultamento, um

ocultada começa a ser revelada e se

esquecimento provisório. Claro que,

rebela, em muitos casos, de forma

se observarmos o funcionamento

difusa. Embora a crise se aprofunde,

dos parlamentos contemporâneos

os governos do “Norte” (colonizador,

nas Américas ou na Europa,

“desenvolvido”) ainda insistem nos

perceberemos que, em muitos casos,

mesmos discursos e nas práticas

não se trata de uma concorrência de

excludentes, para solucionar

argumentos, de vitória de melhores

problemas que são da essência

argumentos, mas de um mercado

desta modernidade.

como espaço de negociação, a partir de posições de força, sustentadas

Esses problemas só serão superados

por interesses corporativos fora do

com a construção de uma outra

parlamento.

sociedade, uma outra economia, uma outra forma de fazer política

Em outras palavras, o problema

e democracia, fundadas em

da lógica concorrencial que

outros valores, sustentados pela

inviabiliza o consenso e o risco de

diversidade não

que a vitória do melhor argumento oculte o argumento derrotado foi

hegemônica, tanto como direito

superado pela criação de espaços

individual quanto direito coletivo.

de negociação, que não se fundam

A modernidade se funda (assim

em argumentos racionais, mas na

como todo o aparato criado para

força e no poder de negociação em

viabilizar o projeto moderno)

um mercado político determinado

na negação da diferença e da

por interesses preponderantemente

diversidade, tanto em uma

econômicos.

perspectiva individual como coletiva. O Estado moderno necessita da uniformização de valores, de comportamentos, precisa padronizar as pessoas, para viabilizar o seu


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projeto de um poder hegemônico,

uniformizados; o projeto moderno

centralizado, capaz de oferecer

se funda na lógica nós (superiores,

segurança e previsibilidade para os

civilizados, europeus) versus

que construíram o Estado e o direito

eles (selvagens, bárbaros, índios,

modernos: os nobres, os burgueses

africanos, muçulmanos, judeus,

e o rei. Esta aliança está de pé até

mulheres, inferiores, incivilizados,

agora.

preguiçosos, etc.).

Um bom exemplo podemos

A invasão da América (que será

encontrar na cobertura, pela

chamada assim pelo invasor, a

imprensa, da posse dos novos

partir do nome de um invasor)

monarcas na Europa em 2013.

marca o início do genocídio do

Uma Europa em crise, desemprego

mais diferente, que é considerado

por toda parte, e famílias reais

selvagem, menos gente, meia

de vários lugares do mundo se

gente, sem alma, ou com meia

encontrando em uma festa de

alma, que por isso pode ser morto,

casamento enquanto os grandes

escravizado, torturado.

proprietários (banqueiros

O mecanismo nós versus eles

empresários) se entopem de ganhar

funda-se em uma lógica narcisista:

dinheiro, mantendo o povo distraído

“Sou melhor, porque não sou o

com a festa da nacionalidade (bem

outro inferior ou, sou espanhol,

moderna), simbolizada pela fantasia

sou europeu, uma vez que não sou

do poder “real” e pelo sucesso dos

selvagem, bárbaro, infiel, índio,

empreendedores burgueses, em

negro ou muçulmano”.

meio à falência de uma sociedade individualista, egoísta, estrutural e

Importante é lembrar que a lógica

radicalmente desigual.

hegemônico-narcisista ocorre na formação dos Estados modernos,

Alguns pontos nucleares

nos quais um grupo se sobrepõe a

da modernidade devem ser

outro: o castelhano sobre os bascos,

compreendidos: o projeto moderno

catalães, galegos, valencianos

é hegemônico (sempre haverá

na Espanha moderna, criando o

um grupo hegemônico e diversos

espanhol; ou ingleses sobre celtas

grupos excluídos, subalternizados,

galeses, escoceses ou irlandeses,

ocultados); o projeto moderno é

em um processo de ocultamento

uniformizador: os considerados mais

interno violento. Essa hegemonia se

diferentes serão expulsos (mortos,

repete ainda internamente, fruto da

torturados, presos ou jogados na

construção da economia moderna

miséria) e os menos diferentes serão

capitalista, onde, entre o grupo


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étnico-hegemônico,

dos quinhentos anos modernos

ou entre o novo grupo inventado,

ocidentais (inclusive pelo direito

na nova nacionalidade (franceses,

moderno, no Brasil formalmente até

portugueses ou espanhóis, por

1988), como mais do que a mulher.

exemplo), existem proprietários, empresários, ricos e de sucesso

A compreensão do pensamento

e, de outro lado, empregados,

binário, presente na lógica nós

trabalhadores, subordinados (ou

versus eles é fundamental para

na expressão norte-americana:

entendermos e superarmos a

perdedores).

modernidade na qual estamos mergulhados até a cabeça. Esse

Portanto, a lógica moderna

dispositivo moderno sustenta todas

se reproduz de forma circular

as relações sociais e econômicas

autorreferencial indefinidamente e

e, enquanto não compreendermos

assim será enquanto não rompermos

isso, não sairemos deste círculo

com a sociedade moderna, europeia,

infinito de violência e exclusão.

ocidental, hegemônica: na invasão

Continuamos matando o outro

da América encontramos um grupo

selvagem, sem alma, menos gente,

de pessoas que se autodenominam

bárbaro, considerado inferior pelo

civilizados, que se consideram

grupo hegemônico.

mais do que o restante do mundo e ocultam a diversidade (o outro

O dispositivo nós versus eles está

inferior); na formação do Estado

dentro de nossa cabeça. É preciso

moderno, um grupo étnico interno

romper com a modernidade e

se considera mais do que outro

desocultar a diversidade, criando

grupo (como nos exemplos citados

uma sociedade não hegemônica,

de Espanha e Reino Unido acima)

sem nós ou eles; sem civilizados

e ocultam e proíbem os outros de

ou incivilizados; sem proprietários

viverem suas diferenças em relação

e empregados. No processo de

ao grupo hegemônico que impõe

construção desta sociedade

seus valores; no grupo hegemônico

moderna, intrinsecamente (porque

também existem aqueles que se

não tem como esta sociedade

consideram mais do que outros

moderna ser de outro jeito) desigual

menos (o proprietário em relação

e opressora, como já demonstrado

ao trabalhador, no capitalismo

acima, é necessário construir

moderno); chegando esta lógica

justificativas, para que as pessoas

na escola, nas relações sociais

possam aceitar passivamente o

até na relação familiar, onde o

seu papel social, inclusive para que

homem é considerado no decorrer

oprimidos aceitem fazer o papel


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de cães de guarda do sistema

do Estado é a escola moderna.

protegendo os opressores.

Ela é criada para uniformizar. Ora, a escola moderna é uma grande

Para isso, é necessário criar um

descoberta da modernidade

aparato ideológico capaz de

para formar pessoas que pensem

construir as explicações lógicas da

do mesmo jeito, e que aceitem

desigualdade e sua legitimidade o

passivamente o sistema como

que podemos chamar de aparato

natural (com o único possível) e pior

(ou aparelhos) ideológicos do

(como justo).

Estado moderno. Louis Althusser (1985) irá desenvolver esta ideia

Ou seja, os que têm mais merecem

(no século XX), e, hoje, entre

ter mais. Essa escola moderna irá

outros importantes pensadores,

uniformizar comportamentos e

encontramos Slavoj Zizek (2003),

valores e negará a diversidade de

que nos ajuda a compreender a

forma permanente, simbolicamente

ideologia como mecanismo de

(todas as crianças em uniformes,

encobrimento que aparece de forma

pensando do mesmo jeito, com

bem-sistematizada pela primeira

o mesmo cabelo e o mesmo

vez com Karl Marx (2006) (no

comportamento), assim como em

século XIX). Portanto, para que este

sua estrutura de funcionamento

poder opressor, uniformizador e

com hierarquia, normas herméticas,

excludente se efetive, ele precisa

horários fechados, disciplinas

criar justificativas (que serão,

fragmentadas. Existem ainda

é claro, mentirosas ou ideológicas

escolas diferenciadas para classes

no sentido negativo). Sem isso,

sociais diferentes: uma escola para

as pessoas (uma boa parte) não

nós onde as crianças aprenderam

aceitariam passivamente ser

a comandar, mandar, liderar; uma

subordinadas e excluídas vivendo

escola para os nós e eles, onde estes

em um sistema econômico, social

aprenderão a obedecer os de cima e

e cultural violento, que é contra as

mandar nos de baixo (a improvável

pessoas que, em grande número,

classe média, essencialmente uma

o defendem.

mentira histórica que cumpre bem sua função); e ainda a escola para

As pessoas prejudicadas por este

eles que aprenderão a obedecer, e

sistema o defendem e são mesmo

saberão muito bem por que estão

capazes de matar e torturar para

obedecendo.

defender este sistema e aqueles que se beneficiam dele. Um desses

Este Estado moderno precisa criar

importantes aparelhos ideológicos

mecanismos para reproduzir as


117

pessoas que ocuparão os espaços

Assim, o cerco se fecha para

para o funcionamento e reprodução

eles: se não uniformizado pela

do sistema, logo, teremos

escola, será reprimido pelos

universidades que produzem

aparelhos repressivos. O problema,

conhecimentos; universidades

no Brasil contemporâneo (e a

que reproduzem o conhecimento

contemporaneidade é moderna

e formam técnicos que se acham

para o Ocidente), é que o sistema

superiores, mas não aprendem a

que deveria aparecer em momentos

pensar, e cursos técnicos nos quais

distintos de forma distinta,

as pessoas não precisam pensar,

uniformizando o pensamento e

filosofar, saber muito do mundo que

criando fiéis seguidores de sua falsa

as cerca, mas, aprendem bem a fazer

legitimidade para alguns e punindo

a máquina funcionar.

e retirando de circulação os outros que escaparam da ideologia, atua de

Além dos aparelhos ideológicos que

forma simultânea e sufocante para

garantem a reprodução do sistema

os de baixo, criando mais violência

e explicam por que o sistema

e ameaçando implodir o sistema

é assim, deixando as pessoas

moderno de ideologia e repressão.

acomodadas em seu “mundinho” e,

O Brasil vive, nesta segunda década

ainda, recrutando cães de guarda

do século XXI uma fúria punitiva de

dispostos a morrer pelos legítimos

viés fascista, que ameaça destruir

iluminados do sistema, é necessário

o próprio sistema moderno, não

todo um aparelho repressor, pronto

pela sua superação por um sistema

para funcionar contra aqueles

includente, mas pelo caos que

que escaparam, de alguma forma,

surgirá pela impossibilidade de o

consciente ou inconscientemente

Estado dar conta de fiscalizar e

do sistema ideológico, ou, ainda,

punir todos aqueles “criminosos”

para punir aqueles que o sistema

que surgem da desigualdade

não deu conta de incluir em alguma

e da criminalização de novos

das funções. Ora, sempre existem

comportamentos.

os excedentes do sistema que já cumpriram a função de mão

Cada vez mais temos mais crimes o

de obra reserva (o que hoje é

que tornou todos os brasileiros em

desnecessário), assim como, neste

criminosos. Não tem escapatória.

sistema moderno, sempre existem os

Ao não mais diferenciar um nós

excedentes destinados aos presídios

(que não comete crime porque

e manicômios, assim como, cada vez

faz as leis – os ricos); o nós e eles

mais, os miseráveis que não servem

simultâneo (a classe média que

nem para ser explorados.

não comete crime, porque sustenta


118


119


120

numericamente o “nós”) dos que

e todos. Tudo é permanentemente

facilmente cometem crime pela sua

consumido e consumível de objetos

própria existência (pois são tratados

a pessoas. Tudo é rapidamente

como bandidos pela criminalização

consumível, o que gera o enorme

da pobreza e dos movimentos

mal-estar contemporâneo.

sociais que reivindicam direitos), o sistema ameaça entrar em colapso.

5

PROIBIR DE UM LADO E PERMITIR DE OUTRO

Talvez aí seja importante entender, dentro de um pensamento

Um estudo que necessita ser

sistêmico, por que o sistema admite

feito deve ter como objetivo a

concessões (permissões) que

compreensão de como o sistema

ajudam a diminuir a pressão que

reage à pressão crescente

ocorre ao aumentar a intolerância

decorrente do aumento da

contra determinadas condutas.

criminalização, sobre determinados

Ao criminalizar mais, fiscalizar

comportamentos e um aumento

mais, controlar mais e punir e

sufocante dos mecanismos de

encarcerar mais, assistimos a

controle (ideológico e tecnológico)

um movimento simultâneo de

sobre as pessoas, com o aumento

permissões de comportamentos que

das permissões de gozo. Em outras

não eram permitidos, criando uma

palavras, precisamos investigar quais

possibilidade de escape da pressão

são os comportamentos cada vez

que se exerce do outro lado.

mais proibidos e, em contrapartida, quais são as permissões concedidas

Neste ponto é necessário refletir

para diminuir a pressão sobre o

e investigar o que tem sido, cada

aumento de controle e repressão.

vez mais, proibido e como passou a ser permitido. Planejado ou não,

Zizek nos traz Milner. Jean-

fundado ou não em uma estratégia

Claude Milner sabe muito bem

de poder, o fato é que os sistemas

que o establishment conseguiu

têm se comportado desta maneira:

desfazer todas as consequências

ao lado da criminalização da

ameaçadoras de 1968 pela

pobreza e dos movimentos sociais,

incorporação do chamado “espírito

direitos que eram negados, e grupos

de 68”, voltando-o, assim, contra

que eram radicalmente excluídos,

o verdadeiro âmago da revolta.

recebem agora uma autorização de

As exigências de novos direitos

“jouissance”. Recebem permissão (e

(que causariam uma verdadeira

não direitos) para gozar.

redistribuição de poder) foram

O gozo principal está expresso na

atendidas, mas apenas à guisa

sociedade de hiperconsumo de tudo

de “permissões” – a “sociedade


121

permissiva” é exatamente aquela

estas lutas por poder, em uma

que amplia o alcance do que os

acomodação decorrente de uma

sujeitos têm permissão de fazer sem,

aparente vitória pelo recebimento

na verdade, lhes dar poder adicional.

de permissões para atuar, fazer e

[...]é o que acontece como direito ao

até mesmo ser feliz, desde que não

divórcio, ao aborto, ao casamento

se perturbe aqueles que exercem o

gay e assim por diante; são todas

poder naquilo que lhes é essencial:

permissões mascaradas de direitos;

a manutenção do poder em suas

não mudam em nada a distribuição

vertentes econômica, cultural, militar

de poder.

e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras

Zizek cita Milner (2009): “Os que

vertentes).

detêm o poder conhecem muito bem a diferença entre direito e

O capitalismo tem sido capaz de, até

permissão. Talvez não saibam

o momento, ressignificar os símbolos

articular em conceitos, mas a prática

e discursos de rebeldia e luta em

esclareceu muito. Um direito, em

consumo. Assim o movimento hippie

sentido estrito, oferece acesso

e punk foi limitado aos símbolos de

ao exercício de um poder em

rebeldia controlados, nos quais as

detrimento de outro poder. Uma

calças rasgadas já vêm rasgadas de

permissão não diminui o poder, em

fábrica e os cabelos são pintados

detrimento de outro poder. Uma

com tintas facilmente removíveis.

permissão não diminui o poder de

Che Guevara é vendido na Champs

quem outorga; não aumenta o poder

Elisée e os pichadores e grafiteiros

daquele que obtém a permissão.

expõem no Museu de Arte de São

Torna a vida mais fácil, o que não é

Paulo. Tudo é incorporado, domado

pouca coisa.”

e pasteurizado. A diversidade está

2

em uma praça de alimentação de A partir dessas ideias podemos

shopping center ou no Epcot Center,

refletir sobre o “sucesso” (depende

onde é possível comer comidas de

para quem) da democracia liberal

diversos lugares do mundo com

representativa e as operações

um sabor e tempero adaptados ao

constantes que este sistema tem

nosso paladar.

feito de conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões

Da mesma forma funciona

que esvaziam e desmobilizam

a democracia parlamentar

2 Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragédia, depois como farsa; São Paulo: Boitempo, 2011, p. 58), mas é feita pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner: La arrogancia del presente – miradas sobre una década: 1965-1975, Buenos Aires: Manantial, 2010.


122


123


124

(democracia liberal ou liberal-social

Aquele bife à milanesa especial

representativa e majoritária). As

(assim como o pão de queijo),

opções são limitadas e os partidos

diferente, delicioso, feito em casa,

políticos, da esquerda “radical” à

com o sabor único da vovó, agora

direita “democrática”, se parecem

é industrializado: nós não mais

com a diversidade de comidas

fazemos, mas podemos comer a

com tempero parecido ao dos

hora que quisermos. Igual é o suco

shopping centers. Escolher entre

de laranja caseiro, industrializado,

esquerda e direita, especialmente

que vem com gominhos e com

nas democracias ocidentais da

carinho, de verdade. O problema

Europa e dos EUA (ou Canadá e

da jouissance é que ela se tornou

Austrália), dá no mesmo. Muda o

obrigatória na cultura consumista

marketing, as caras e as roupas,

contemporânea (que é também

muda a embalagem, mas o conteúdo

moderna). Se posso aproveitar de

é muito semelhante. Este aparato

alguma coisa, experimento isso

democrático representativo,

como uma obrigação de não perder

parlamentar e partidário processa

a oportunidade de gozar. Daí tanta

permanentemente as insatisfações,

depressão em uma sociedade

lutas, reivindicações, como uma

fundada no gozo, no prazer e

grande máquina de empacotar

no consumo: uma sociedade do

alimentos ou enlatar peixes e

desespero.

feijoadas. A diferença entre conquistar um Essa absorção das reivindicações de

direito e uma permissão ocorre

poder democrático transformando-

nas relações de poder e não,

as em permissões bondosas do

necessariamente, na existência ou

poder democrático representativo

não de determinados processos

desmobiliza e perpetua as

formais institucionalizados.

desigualdades e violências inerentes

Em outras palavras, a democracia

à modernidade e, logo,

representativa pode ser meio (isso é

ao capitalismo, sua principal criação.

uma exceção à regra) de conquista

As democracias liberais (sociais)

de poder e de direitos, e isso os

representativas majoritárias se

exemplos da América do Sul têm

transformaram em processadores de

nos demonstrado.

reivindicações, esvaziando o poder

As transformações constitucionais,

popular. Os direitos, a conquista do

na Venezuela, no Equador e na

poder pelo povo se transformou em

Bolívia, têm representado ganho

permissões de jouissance3.

de poder para aqueles que foram

3 No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma contínua.


125

historicamente alijados deste

quem detém o poder moderno,

durante séculos.

são comuns as rupturas. Toda

A questão essencial que ocorre nas

vez que esta democracia serve

democracias liberais representativas

como canal de conquista de poder

(e os países acima citados não se

daqueles que não tinham, assistimos

enquadram mais neste conceito) é,

a uma ruptura, muito comum: Brasil

em que medida, a luta por direitos

(1964 e as várias e constantes

resulta em ganho de poder, ou, ao

tentativas de golpes e pequenos

contrário, como tem ocorrido com

golpes diários); Chile (1973); as

muita frequência, em ganho da

ditaduras da Argentina e do Uruguai,

possibilidade de aproveitar, usufruir,

na década de 1970; a tentativa de

sem efetivamente uma transferência

golpe contra Hugo Chaves em 2001;

de poder de quem concede,

o golpe em Honduras e, em 2012,

permite, para quem é o permitido e

o golpe parlamentar no Paraguai

concedido.

e no Brasil (2016) são alguns exemplos. Assim, após o

Uma coisa é a pessoa poder usufruir

constitucionalismo liberal não

de uma permissão de exercício

democrático, a conquista da

de um direito. O poder continua

democracia representativa vem

com quem permite. Outra coisa é

acompanhada dos constantes

conquistar esse direito para si, o que

golpes que geram ditaduras e

implica que quem detinha o poder

totalitarismo.

de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso de uma

A relação de poder nestas duas

mudança de mãos do poder. O que

formas alternativas de manutenção

podemos perceber, e precisamos

de poder no Estado moderno

ter atenção, é para o fato de que

ocorre de formas distintas.

a recente e precária “democracia”

Enquanto o poder nas democracias

representativa pode ser precária

liberais sociais e representativas

como instrumento efetivamente de

permanece nas mesmas mãos por

democracia, mas cumpre muito bem,

meio de permissões, nas ditaduras

com efetividade e competência a

e nos totalitarismos ocorre uma

sua função de manter o poder nas

submissão que funciona em forma

mãos de sempre, ou, em outras

de concessões ou permissões

palavras, mudar para manter as

paternalistas, atendendo aos

coisas como estão.

pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão

Percebendo que esta já precária

ideológica, no totalitarismo, onde

democracia é apenas tolerada para

o poder concede, mesmo não


126


127


128

havendo possibilidade do pedido. No

majoritários (o que acontece na

totalitarismo o poder, além de criar

Bolívia, no Estado Plurinacional).

o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado

6 ALTERNATIVAS: A SUPERAÇÃO DO PENSAMENTO BINÁRIO

pelo poder). Portanto, temos, nestas duas estruturas de poder, formas de

Não há possibilidade de consenso

submissão agressivas. A primeira,

quando a minha satisfação depende

um ditador paternalista pode ou

da insatisfação de outro. Não é

não atender aos pedidos aceitáveis,

possível uma democracia efetiva

punindo os pedidos inaceitáveis.

consensual no sistema capitalista e as contradições binárias inerentes

Essa submissão se funda em

a este sistema. Consensos nesses

relações de amor e ódio à figura do

sistemas, que envolvam questões

poder encarnada no líder.

socioeconômicas serão sempre

O totalitarismo é mais sofisticado:

ideológicos (falsos) e os consensos

o poder atende às demandas ocultas

realizados em outros campos

do povo, que são direcionadas

tendem a sofrer distorções

aos interesses daqueles que

ideológicas negativas. A lógica

efetivamente detêm o poder.

moderna, fundada no pensamento

Nesse Estado o poder é total e age

binário, sustenta a modernidade.

todo tempo. Não há concessões

Uma armadilha que precisa ser

dialógicas ou racionais. O poder é

superada. O novo constitucionalismo

real, brutal, mas age a partir das

democrático na América Latina,

demandas ocultas do povo, que

especialmente as Constituições

são manipuladas e redirecionadas.

da Bolívia e do Equador, aparece

Diferente de submissões

como uma alternativa de superação

(ditaduras e totalitarismos) e

das engrenagens uniformizadoras

de permissões (democracia

do Estado moderno, assim como

representativa majoritária), um

fundamento para a construção

espaço de conquista de direitos não

de um outro sistema de mundo

hegemônicos significa que o poder

superando este, construído a partir

é dividido, compartilhado. Trata-

da hegemonia “ocidental” moderna.

se da construção de um espaço

No lugar de uma democracia

comum, onde o direito comum é

meramente representativa e

construído por meio da construção

majoritária, concorrencial,

de consensos, sempre provisórios,

é construída a alternativa de uma

nunca hegemônicos e raramente

democracia consensual fundada


129

na busca do consenso na solução

ideologicamente (no sentido

dos conflitos e na construção de

negativo e positivo do termo)

políticas públicas.

naturalizada de homem e mulher, sugiro a leitura de Judith Butler

No lugar de um Judiciário que

(2011).

funciona de forma imperial, dizendo o direito ao caso concreto, a busca

Não vamos desenvolver estas ideias

permanente é a da mediação, por

agora. Isso exigiria muitas páginas

meio da construção de consensos

e muitas palavras. Seria um livro

provisório e sempre democráticos,

inteiro. O que queremos sugerir,

que objetivem o equilíbrio, ou o

como reflexão nestas palavras finais,

restabelecimento do equilíbrio

neste texto, é que as dicotomias que

perdido com o conflito. Para que

são naturalizadas não são naturais,

seja possível a construção de uma

e mais, que devemos superar

democracia consensual e de espaços

este pensamento dicotômico

comuns, de um direito comum é

binário, para viabilizar consensos

necessário que algumas dicotomias

democráticos e a superação de uma

naturalizadas sejam historicamente

sociedade e economia excludentes.

superadas como, por exemplo:

A superação da exclusão não se dá

capital versus trabalho.

pela inclusão, mas pela superação da dicotomia exclusão versus inclusão.

Quais são as dicotomias necessárias? Claro que não vamos responder esta

Uma sociedade sem excluídos será

pergunta agora. Podemos apenas

uma sociedade sem incluídos.

provocar afirmando que, mesmo as

A mesma lógica pode ser aplicada

dicotomias que parecem naturais,

em outras dicotomias: pobres e

como dia e noite, claro e escuro,

ricos; capital e trabalho; bem e

são simplificações falsas e

mal; “nós versus eles”; civilizado e

construções arbitrárias culturais.

incivilizado. Estas dicotomias não

Não há um dia e uma noite, mas

são naturais, não são necessárias,

um permanente processo de

e de sua extinção depende a

transformação das condições

construção de uma alternativa ao

de clima e luminosidade, que se

violento mundo moderno.

rebelam ao contar matemático das horas, dos minutos e segundos. Não há um claro e um escuro, mas um processo permanente de mudança de luminosidade. Sobre a falsidade da dicotomia


130


131


132

7 CONCLUSÃO: OS EIXOS DE RUPTURA DO CONSTITUCIONALISMO BOLIVIANO E EQUATORIANO

serão apenas mencionados. As rupturas possíveis que elencamos só poderão ser vistas sem as lentes uniformizadoras do Direito moderno. Elas ocorrem na realidade social e cultural dos povos que

Existe um grande risco na análise

constituem a Bolívia e o Equador,

das Constituições da Bolívia e do

que, durante muito tempo, viveram

Equador: analisá-las sob o enfoque

em ordenamentos jurídicos europeus

da teoria da Constituição moderna

modernos, que excluíram, ocultaram

europeia. Acredito que utilizar as

e tentaram uniformizar essas

lentes da teoria da constituição

sociedades diversas. Vejamos:

europeia moderna inviabilizará enxergar e logo compreender

1

No lugar da uniformização

o potencial revolucionário de

hegemônica, a partir de

ruptura radical com a modernidade

um padrão europeu, o

presentes nestas constituições.

reconhecimento da diversidade

Serão apenas mais duas

como direito individual e coletivo

constituições interessantes e

pelo ordenamento jurídico.

diferentes dentro de um paradigma que não mudou na sua essência.

2 Decorrente da ideia anterior,

Não é este o potencial destas duas

a afirmação do direito à

Constituições.

diversidade como direito individual e coletivo sobre a ideia

Elas exigem a construção de uma

de direito à diferença (individual

outra teoria da Constituição, de

ou coletivo), que implica a

uma outra teoria do Direito, de uma

superação de qualquer padrão

outra teoria do Estado. Elas exigem

hegemônico estabelecido pelo

uma teoria não moderna, não

Estado e ainda presente na ideia

hegemônica, e logo não europeia.

de direito à diferença (diferente

Alguns eixos devem ser percebidos,

de quê?).

estudados e aprofundados para percebermos o potencial de

3 Superação da exclusividade

ruptura radical que representam as

da lógica binária, fundada

experiências em curso nestes dois

principalmente no dispositivo

países.

moderno nós versus eles (e da qual decorrem outros

Esses eixos precisam ser

dispositivos, como inclusão

desenvolvidos, mas neste trabalho

versus exclusão; capital versus


133

trabalho e culturalismo versus

deve se adequar ao respeito à

universalismo.

vida como totalidade sistêmica e não o contrário.

4 Criação de espaços de diálogo, não hegemônico, intercultural

8 Nova concepção de pessoa

(para além do multiculturalismo),

superando a ideia do “indivíduo”

que permita a construção de um

liberal que nasce e morre com

espaço comum, de um direito

uma personalidade distinta e

comum, em uma perspectiva

separada da comunidade e

transcultural.

da natureza. Construção de um conceito de pessoa plural,

5 Substituição de um sistema

dinâmica, processual, que não se

moderno monojurídico

limita, e não pode limitar-se a um

(hegemônico) por um sistema

nome coletivo, a um rótulo, a um

plurijurídico, que permita a

fato, ou a um nome de família.

pluralidade de direitos de família, de propriedade e de jurisdições.

9 Democracia consensual como prioridade.

6 Igualdade entre jurisdição originária e ordinária.

10 Judiciário consensual (justiça de mediação) como prioridade.

7 Nova concepção de natureza como conceito integral

11 Pluralismo epistemológico como

superando a ideia de recursos

fundamento do conhecimento,

naturais, um dos mitos modernos

da democracia e da justiça plural;

que separa o homem da natureza, e transforma a natureza

12 Superação da dicotomia

em algo selvagem a ser domado

“culturalismo versus

e explorado pela civilização.

universalismo”, o que implica a

Isso implica a superação da

superação do falso conceito de

ideia de desenvolvimento

universalismo (o universalismo

sustentado, conceito que passou

europeu) (WALLERSTEIN, 2007).

a condicionar a natureza e o meio ambiente às necessidades

O desenvolvimento de alguns

de desenvolvimento econômico

desses eixos pode ser encontrado

moderno (capitalismo), que

no livro de Magalhães (2012), Estado

implica mais consumo e

plurinacional e direito internacional,

mais produção, como meta

e promove uma análise inicial de

permanente. A prioridade é a

cinco desses 12 eixos.

natureza, e o sistema econômico


134

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BUTLER, Judith. El género en disputa: el feminismo y la subverión de la identidad. 4. imp. Barcelona; Buenos Aires, México: Paidós, 2011. MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Estado plurinacional e direito internacional. Curitiba: Juruá, 2012. MARX, Karl. A ideologia alemã: Feurbach: a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista – Marx e Engels. São Paulo: Martin Claret, 2006. MILNER, Jean-Claude. La arrogancia del presente: miradas sobre una década: 19651975. Buenos Aires: Manantial, 2010. _____. L’arrogance du présent: regards sur une décennie, 1965-1975. Paris: Grasset, 2009. SANIN RESTREPO, Ricardo. Redhes. Revista de derechos humanos y estudios sociales, año IV, n. 8, jul./dic. 2012: Disponível em: <http://www.uaslp.mx/Spanish/Academicas/ FD/REDHES/Documents/Número%208/Redhes8-05.pdf>. WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2009. _____. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003. WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007.


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136


137

Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos, apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor, nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica da PUC Minas e da Reitoria.



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