ANAISDASCAP PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO
Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)
IX SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL
ANAIS DA SCAP PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO
PUC-MG Belo Horizonte 2017
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Semana de Ciência, Arte e Política (9. : 2017 : Belo Horizonte) S471a Anais da SCAP: porque os tempos estão mudando / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017. 134 p. : il. ISBN: 978-85-8239-073-3 1. Democracia. 2. Internet - Aspectos sociais. 3. Civilização moderna. 4. Cultura - Aspectos sociais. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Campus São Gabriel). III. Título.
CDU: 301.175
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EXPEDIENTE
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Pastoral Universitária:
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Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues
10
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ÍNDICE
EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12
AFINAL, COMO VAI O MUNDO?
Peter Pál Pelbart 15
VIRTUALIDADE E SUBJETIVIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
MOVIMENTOS IMAGEM_CÂMERA
Nádia Laguárdia de Lima
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A ALIENAÇÃO DA POLÍTICA NAS DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS MODERNAS E AS ALTERNATIVAS DEMOCRÁTICAS CONSENSUAIS NA AMÉRICA LATINA: porque os tempos estão mudando
Priscila Mesquita Musa 62
José Luiz Quadros de Magalhães
92
12
EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Políti-
Como uma jornada em espiral, as
ca – SCAP é um evento acadêmico
questões discutem os novos tem-
idealizado e realizado pelos cursos
pos, nomeado pelo sociólogo polo-
e setores da Unidade São Gabriel da
nês Zygmunt Bauman, de tempos
PUC Minas que integram o Ensino,
líquidos, tempos caracterizados pela
a Pesquisa, a Extensão e a Pastoral
incerteza. E foi na obra do poeta, vi-
Universitária. Por meio da interdisci-
sionário e trovador Bob Dylan, ga-
plinaridade, e pautada por debates
nhador do prêmio Nobel de Litera-
acerca de questões contemporâneas,
tura em 2016, que encontramos as
a SCAP objetiva a formação hu-
palavras para nomear a transversali-
manística não só do corpo discente,
dade e batizar a IX SCAP: Porque os
mas também do corpo docente, téc-
tempos estão mudando.
nico-administrativo
e
comunidade
externa. A Semana propicia interlocução com diferentes grupos sociais,
Se vocês acham que vale a pena salvar o seu tempo
instituições de ensino superior e enti-
Então é melhor começar a nadar pra
dades científicas; potencializa o rela-
não afundar como pedra
cionamento da Unidade São Gabriel
Porque os tempos, eles estão
com seu entorno e promove trocas entre áreas de conhecimento. Em 2017, as questões suscitadas pela nona edição da Semana de Ciência, Arte e Política - IX SCAP passam pe-
mudando (...) Há uma luta lá fora que está enfurecida
las transformações na política; trans-
Ela logo vai sacudir as janelas e
formações no país, transformações
balançar as paredes
advindas do uso das tecnologias da informação, pela luta no campo simbólico; pela pós-verdade das narrati-
Porque os tempos, eles estão mudando
vas midiáticas; pelas transformações na vida social; pela insegurança digital, jurídica, territorial, profissional e existencial; pela necessidade de mudanças na economia; pelo questionamento
“para
onde
vamos?”.
A IX SCAP apresenta-se como importante tarefa acadêmica e ação sociocultural da PUC Minas, Unidade São Gabriel e nestes ANAIS: Porque os
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Tempos Estão Mudando, fica docu-
espaço de uso público da cidade de
mentada na profícua reflexão crítica
Belo Horizonte, verificando o rompi-
das ideias de José Luiz Quadros de
mento do ordenamento do tempo,
Magalhães, que reflete sobre a alie-
do espaço e do corpo criando ruptu-
nação da política nas democracias
ras no espaço-tempo da própria cida-
constitucionais modernas e as alter-
de; na análise de Peter Pál Pelbart no
nativas democráticas consensuais na
texto “Afinal como vai o Mundo”, que
América Latina; na discussão de Ná-
cogita o rompimento do consenso
dia Laguárdia de Lima sobre virtuali-
que abduz a capacidade de pensar e
dade e subjetividade na contempora-
apresenta o pensamento como uma
neidade, no contexto de desenfreada
conspiração, uma insurgência do dia
competição do mercado, de declínio
a dia proliferando uma sensibilidade
social das instituições, do cenário
micropolítica, macropolítica, biopolí-
socioeconômico de incertezas e de
tica, ecopolítica, cosmopolítica; e no
extrema flexibilidade, a internet e a
ensaio fotográfico de Pedro Castro
cultura digital diante da contradição
que permeia toda a publicação pro-
do surgimento de conexões assenta-
vocando o leitor com imagens de
das sobre a solidariedade, a coope-
nosso tempo. Assim, fica registrado
ração, o compartilhamento de ideias
nestes Anais a nona edição da Sema-
e a criatividade; nas reflexões de
na de Ciência, Arte e Política – SCAP
Priscila Mesquita Musa sobre a pro-
2017.
dução e circulação das imagens dos movimentos de ocupação coletiva do
Leiam e reflitam.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel
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AFINAL, COMO VAI O MUNDO? Peter Pál Pelbart
1
Eis uma ideia que Deleuze herda
como Artaud o formulou, o desafio
de Nietzsche: o pensamento tem
consiste precisamente em acabar de
por tarefa detectar os sintomas,
vez com qualquer tribunal,
constituir-se como sintomatologia,
com o próprio império do juízo,
retomar a pergunta de personagens
com o Juízo de Deus. Pois não
de Shakespeare: afinal, como vai o
estamos fora dos sintomas que
mundo? Um sintoma, para Deleuze,
detectamos, eles nos atravessam,
é uma recaída, um encontro, um
também nos constituem, se agarram
acontecimento, uma violência.
a nós, e o desafio é guerreá-los em
Cabe, portanto, apreender tais
nós mesmos, ainda que com eles
sintomas do mundo, tratar o
façamos obra, escrevamos livros –
mundo como sintoma. Mas tal
às vezes, assim, os precipitamos e
desafio não pode dar-se buscando
até mesmo os intensificamos, mas
exclusivamente os signos de doença
ao mesmo tempo operamos sobre
sem buscar, ao mesmo tempo, os
eles uma espécie de contragolpe.
signos de vida, de cura ou de saúde, diz Deleuze. E nada disso pode ser
Como abrir um campo de
feito “desde fora” do mundo, do
possíveis? Não serão os momentos
alto, do lugar de juiz, desde uma
de insurreição ou de revolução
extraterritorialidade a partir da qual
precisamente aqueles que deixam
o artista ou o filósofo “condenariam”
entrever a fulguração de um campo
o mundo ou seu andamento –
de possíveis? Inverte-se assim a
1
Doutor em Filosofia, autor e tradutor de vários livros, coeditor da N-1 Edições. http://lattes.cnpq.br/8980044191583358
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relação entre o acontecimento e o
perfeito, porém as forças em vias
possível. Não é mais o possível que
de redesenharem o real. De junho
dá lugar ao acontecimento, mas o
de 2013 para cá, assistimos a uma
acontecimento que cria um possível
contra-insurreição de proporções
– assim como a crise por vezes não
colossais, e de uma brutalidade
é o resultado de um processo, mas
inominável, e muitas outras
o acontecimento a partir do qual
urgências se interpuseram.
um processo pode desencadearse. “O acontecimento cria uma
E aqui me permito indicar uma
nova existência, produz uma nova
segunda direção, que tem a
subjetividade (novas relações com
ver justamente com o que nos
o corpo, o tempo, a sexualidade, o
aconteceu depois de 2013, e que
meio, a cultura, o trabalho...).” Tais
não pode, sob hipótese alguma,
momentos, sejam individuais ou
ser escamoteado. A saber, o golpe
coletivos (como Maio de 68,
e a constatação ululante de que,
ou algo de 2013), correspondem a
queiramos ou não, desde então
uma mutação subjetiva e coletiva em
(mas desde muito mais tempo,
que aquilo que antes era cotidiano
claro!) estamos em guerra.
se torna intolerável, e o inimaginável
Guerra contra os pobres, contra o
se torna pensável, desejável, visível.
s negros, contra as mulheres, contra os indígenas, contra os
É quando surge a figura do vidente,
craqueiros, contra a esquerda,
à qual Deleuze retorna sobretudo
contra a cultura, contra a
em seus livros sobre cinema.
informação, contra o Brasil.
O vidente enxerga em uma situação determinada algo que a excede,
A guerra é econômica, política,
que o transborda, e que nada tem
jurídica, militar, midiática.
a ver com uma fantasia. A vidência
É uma guerra aberta, embora
tem por objeto a própria realidade
denegada, é uma guerra total,
em uma dimensão que extrapola
embora camuflada, é uma guerra
seu contorno empírico, para nela
sem trégua e sem regra, ilimitada,
apreender suas virtualidades,
embora queiram nos fazer acreditar
inteiramente reais, porém ainda não
que tudo está sob a mais estrita e
desdobradas. O que o vidente vê,
pacífica normalidade, institucional,
como no caso do insone de Beckett,
social, jurídica, econômica. Ou seja,
o esgotado, é a imagem pura, seu
ao lado da escalada generalizada da
fulgor e apagamento, sua ascensão
guerra total, uma operação abafa
e queda, a consumação. Ele enxerga
em escala nacional. Essa suposta
a intensidade. Não é o futuro, nem
normalização em curso, essa
o sonho, nem o ideal, nem o projeto
denegação, essa pacificação pela
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violência - eis o modo pelo qual um
outros meios, mas a política que é
novo regime esquizofrênico parece
a continuação da guerra por todos
querer instaurar sua lógica, onde
os meios. É possível que estejamos
guerra e paz se tornam sinônimos,
fazendo disso a experiência mais
assim como exceção e normalidade,
encarnada do Cone Sul. Essa seria,
golpe e governabilidade,
então, a segunda via diante da qual
neoliberalismo e guerra civil.
estamos, em nosso entroncamento.
Nada disso é possível sem uma
Obviamente, como no Jardim dos
corrosão da linguagem, sem uma
Caminhos que se Bifurcam, de
perversão da enunciação, sem uma
Borges, não nos é imposto escolher
sistemática inversão do valor das
uma direção em detrimento da outra
palavras e do sentido do próprio
– é possível ao mesmo tempo salvar
discurso, cujo descrédito é gritante
os vagalumes e enfrentar a guerra.
e ninguém mais lhe dá o mínimo
Um pesquisador mostrou como, nas
valor. Diante disso, é como se
manifestações ocorridas em várias
fosse preciso dar nome aos bois
partes do globo nos últimos anos,
incessantemente, falar novamente
a desmobilização e a mobilização
da guerra, detectar as guerras em
se conjugavam. Por um lado, tudo
curso e nomeá-las, e obviamente
é suspenso. Por outro, a história se
inventar as armas que estejam à
acelera, tudo se interrompe,
altura desse desafio. Seria preciso
e tudo é acionado. A identidade
reler Jünger, que já nos anos 1930
de um suposto sujeito histórico
mostrou como poucos que vivia-se
que conduz o evento parece assim
num estado de mobilização total,
embaralhada, mas não a força do
americanos ou soviéticos, para não
acontecimento político, que passa
falar nos nazistas que acabavam
ao largo da representação, do
de surgir. E depois seria preciso ler
discurso político, do produtivismo
Sloterdijk, que retoma o fio deixado
que antes mobilizava todas as
por Jünger em seu A mobilização
esferas da existência. Será que não
total. E seria preciso reler Jean
encontramos aí uma pequeníssima
Pierre Faye, sobre a perversão da
pista? A saber: não nos cabe
linguagem como uma condição
escolher entre colecionar vagalumes
necessária para tornar aceitável o
e organizar nossas forças.
inaceitável. E Virilio, que mostra a
A pergunta não é: virar desertor ou
dimensão militar dessa mobilização.
enfrentar a guerra, ser esquizo ou
E por que não Clausewitz, que
engajar-se. É um falso problema,
expõe explicitamente a lógica da
as alternativas não são excludentes,
guerra? Hoje já não é a guerra que
a menos que nos coloquemos
é a continuação da política por
num plano da antiga moralidade
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comunista, ou, ao contrário, de um
Em contrapartida, se a cada dia
libertarismo solipsista. Por isso,
parecemos mais vencidos, a derrota
temos nossas reticências em relação
tem ao menos essa vantagem:
às posturas dicotômicas, que opõem
ela nos força a pensar, e a pensar
a potência destituinte ao poder
de outra maneira. É preciso fazer
constituinte, ou vice-versa, sem
valer tal a ocasião. É preciso
enxergar como a conflitualidade
romper o silenciamento a que
contemporânea é mais complexa
fomos reduzidos com o sequestro
e multifacetada e exige, portanto,
absoluto da mídia nacional e dos
outras entradas e saídas do que nos
veículos de comunicação, nessa
são propostas.
construção cotidiana de uma unanimidade pacificadora, para não
Extraímos de um dos livros
dizer uma unidade pacificadora de
publicados por nós essa frase
cunho policialesco. É preciso fazer
paradoxal: a revolução é da ordem
proliferar uma outra sensibilidade
da cólera e da alegria, não da
micropolítica, macropolítica,
angústia e do tédio. A cólera se
biopolítica, ecopolítica,
dirige contra aqueles que destroem
cosmopolítica, romper um consenso
impiedosamente o que nos é caro,
que nos quer abduzir a capacidade
devastam nossa riqueza natural,
de pensar. Sim, fazer do pensamento
social, subjetiva, afetiva, política.
uma conspiração cotidiana, uma
De fato, formou-se uma aliança de
insurgência do dia a dia.
interesses que em poucos meses virou a mesa da suposta democracia
Porque todo poder visa também
da maneira mais brutal, comparável
isto: nos separar de nossa força,
talvez ao assassinato dos irmãos
nos inculcar a tristeza, a angústia,
de Witte em 1672, que governavam
o medo, a culpa, a sensação de
os países baixos no século XVII e
impotência, a desistência. Nem por
que fizeram Espinosa soltar o único
isso se pode fazer a economia da
grito urrado de que se tem notícia
alegria. A alegria, dizia Espinosa,
saído daquele homem que diziam
nada mais é do que expressão
ser tão suave e sereno. Cólera, pois,
de um aumento de potência. E o
contra o cavalar revanchismo que
poder não é um domínio absoluto,
vai destruindo dia a dia o pouco
é uma relação de forças, sempre
que se havia conquistado nos
móvel, e como todo jogo ou toda
últimos 13 anos, numa sede insana
guerra, comporta sua dose de
de dilapidação, num desejo de
indeterminação, e, portanto, de
extermínio vindo do conluio das
reversibilidade. Se Foucault nos
várias máfias que se aliaram nessa
serve para pensar a resistência,
política de terra arrasada.
nessa chave da reversibilidade
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eventual das forças em jogo, talvez
ou tortura, num automatismo de
seja preciso também recorrer a
ação e reação que corre o risco
Espinosa, que diferenciava poder e
de espelhar a lógica dos que
potência, e até os opunha. Por isso,
comandam – somos impelidos a um
talvez se trate menos de retomar
tipo de revide que relança o jogo,
o poder do que de expandir a
ao invés de reinventar as distâncias,
potência. Menos tentar ocupar o
os hiatos, os descolamentos, as
lugar daqueles que tomaram de
cesuras, as desmontagens de nós
assalto o Estado do que ocupar ruas,
mesmos – um novo tabuleiro, onde
praças, escolas, instituições, espaços
nem sequer houvesse lugar para
públicos privatizados, experimentar
um peão chamado eu, muito menos
novas formas de organização, de
um bispo, um rei, uma rainha, e seus
auto-organização, de sociabilidade,
movimentos codificados.
de produção, de subjetivação, mas também, e justamente isso é que
Assim, seria preciso constatar o
parece o mais paradoxal, novas
que se esgotou, hoje. Pois algo se
modalidades de despossessão,
esgotou, não apenas nos modelos
de deserção, de destituição, de
da representação política, mas nas
dissidência, de dessubjetivação. É
formas de vida que os sustentaram
preciso derrubar a corja de bandidos
ou das quais derivam ou que a eles
que sequestrou o Estado, quebrar
se opõem. O esgotamento pode ser
o monopólio das corporações que
uma categoria política, biopolítica,
os sustentam, mas como fazê-lo
micropolítica, cosmopolítica,
sem entrar no jogo em que saímos
nanopolítica até.
vencidos de antemão? Talvez ainda não se tenha inventado máquinas
O esgotamento não é um mero
de guerra à altura da eficácia da
cansaço, nem uma renúncia
megamáquina financeira e policial
do corpo e da mente, porém,
que se instalou. Mas tampouco se
mais radicalmente, é fruto de
inventou um modo de combatê-las
uma descrença, é operação de
sem nelas nos enredarmos.
desgarramento, consiste num descolamento – em relação às
Faltam-nos operadores de
alternativas que nos rodeiam,
desativação, como diz Agamben,
às possibilidades que nos são
modos de tornar inoperante, um
apresentadas, aos possíveis que
poder, uma função, uma operação,
ainda subsistem, aos clichês que
não apenas desativação daquilo
mediam e amortecem nossa relação
a que nos opomos, mas de nós
com o mundo e o tornam tolerável,
mesmos que nos opomos. Pois
porém irreal e, por isso mesmo,
ficamos cativos do que nos aturde
intolerável e já não digno de crédito.
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O esgotamento desata aquilo
mais concretos, é a indefinição dos
que nos “liga” ao mundo, que nos
devires, ali onde eles atingem seu
“prende” a ele e aos outros, que nos
efeito de desterritorialização.
“agarra” às suas palavras e imagens, que nos “conforta” no interior da
Ao reconhecer a modéstia do
ilusão de inteireza (do eu, do nós, do
empreendimento filosófico de
sentido, da liberdade, do futuro) da
Deleuze diante da pergunta
qual já desacreditamos há tempos,
militante, “mas afinal, então o
mesmo quando continuamos a eles
que você propõe?”, Lapoujade
apegados.
responde que essa pergunta volta porque ainda não se fez o luto “da
Há nessa atitude de descolamento
filosofia como aparelho de Estado”.
certa crueldade, sem dúvida, da
É uma observação notável. Nesse
qual os textos de Beckett não
sentido, particularmente importante
estão de modo algum desprovidos,
para mim foi a exploração de
mas essa crueldade carrega
certos processos paradoxais que
uma piedade outra. Apenas
atravessam nosso contexto, através
através de uma tal desaderência,
de pares tais como subjetivação/
despregamento, esvaziamento,
dessubjetivação, individuação/
bem como da impossibilidade que
desindividuação, cuidado de si/
assim se instaura, e que Deleuze
desapego de si, desmedida da
chamaria de rarefação (assim
dor/desmedida do poder, obra/
como ele reivindicava vacúolos
desobramento, vida nua/uma vida,
de silêncio para que se pudesse,
crise/criação – eles me permitiram
afinal, ter algo a dizer), advém a
mapear de maneira mais sutil essa
necessidade de outra coisa que,
fita de Moebius, em que passamos
ainda pomposamente demais,
da impossibilidade ao possível, do
chamamos de “criação de possível”.
niilismo ao seu avesso, do biopoder
Não deveríamos abandonar essa
à biopolítica menor, do esgotamento
fórmula aos publicitários, mas
às imagens incandescentes.
tampouco sobrecarregá-la de uma incumbência demasiadamente
O psiquiatra catalão Tosquelles,
imperativa ou voluntariosa, repleta
mestre de toda uma geração da
de “vontade”. Talvez caiba preservar,
psiquiatria institucional francesa,
de Beckett, a dimensão trêmula
escreveu um livro estranho, chamado
que, em meio a mais calculada
O vivido do fim do mundo na
precisão, nos seus poemas visuais,
loucura. Ali ele se refere às situações
aponta para o “estado indefinido”
de colapso em que o paciente por
a que são alçados os seres, e cujo
vezes sente que já “nada é possível”,
correlato, mesmo nos contextos
e subitamente é tomado pela euforia
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de que doravante “tudo é possível”. “Nada é possível, tudo é possível, nada é possível, tudo é possível”. Não é estranho que vivamos algo similar? Quando parece que “tudo é possível”, revela-se a verdade de fundo: “nada é possível”. Quando a desmedida do poder e a desmedida da dor, como o diz Negri no seu belo comentário sobre Jó, faz com que o “tudo é possível” seja uma expressão medonha, porque sempre pode ser pior. Nesse contexto, a expressão “cartografias do esgotamento” deve ser entendida também no genitivo: o esgotamento ele mesmo é o cartógrafo, por assim dizer, indicando pontos de estrangulamento através dos quais se liberam outras energias, visões, noções. Não se trata de saber “quem fala” (daí a frase saborosa da militante que responde ao jornalista, “Anota aí: eu sou ninguém”), nem se trata de indicar “de qual lugar se fala” (seria preciso, antes, valorizar as falas sem lugar), talvez nem mesmo seria preciso determinar “do que” se fala, mas, como o sugeriu Guattari, “o que fala através de nós”.
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VIRTUALIDADE E SUBJETIVIDADE NA CONTEMPORANEIDADE Nádia Laguárdia de Lima1
1
A CONTEMPORANEIDADE
2 VIVEMOS UMA NOVA ERA?
Refletir sobre o tempo contemporâneo é um grande
A modernidade ocidental tem
desafio, já que nele estamos
como protótipo o iluminismo
inseridos. Se aderirmos
filosófico do século XVIII.
perfeitamente à nossa época, não
Com a metáfora da luz, o iluminismo
conseguiremos vê-la; é preciso, pois,
europeu inaugura a crença na
não se deixar cegar pelas luzes do
claridade através do progresso
século, para entrever a sua íntima
científico, político, social, moral e
obscuridade (AGAMBEN, 2009).
econômico, que deveria se contrapor às trevas do obscurantismo.
O contemporâneo nos remete à
A escala de prioridades do
noção de estranho em Freud, pois
projeto político da modernidade,
é próximo, e ao mesmo tempo
estabelecida por Kant em 1803,
distante; familiar, e, no entanto,
inclui a disciplina, a instrução,
desconhecido; nos toca e distancia-
a civilidade e a moralização, como
se infinitamente de nós. Assim,
exercício de racionalidade que visa
considerando a íntima obscuridade
formar mentes e dominar os corpos
que está no cerne de toda leitura
(SIBILIA, 2012).
do contemporâneo, é que podemos abordá-lo. 1 Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Doutora em Educação (UFMG). http://lattes.cnpq.br/9516537449598946
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A severidade paterna e o controle
Comte, em seu Curso de filosofia
familiar se aliam à educação formal,
positiva, considera que o saber
como um importante braço do
humano pode proporcionar a
Iluminismo, que se torna um forte
verdadeira base racional da ação
movimento de uniformização
humana sobre a natureza (TAPIAS,
cultural. A escola, a fábrica e a
2006).
prisão funcionam sob o mesmo regime disciplinar, munidas das
Entretanto, o século XX acompanha
mesmas premissas, visando corpos
profundas transformações sociais
dóceis e úteis para funcionar com
e econômicas. Há um progressivo
eficiência no projeto econômico do
descrédito nas figuras de autoridade
capitalismo industrial (FOUCAULT,
e nas grandes instituições sociais.
1987). Para Foucault (1987), graças
A incidência de duas guerras
às técnicas de vigilância, o domínio
mundiais leva ao questionamento
sobre o corpo se efetua segundo
dos usos do saber científico e da
as leis da ótica e da mecânica,
técnica para o progresso humano.
segundo um jogo de espaços, de
Acompanha-se a desqualificação
linhas, de telas, de feixes, de graus,
dos valores e ideais coletivos que
sem recorrer ao excesso, à violência,
organizam a vida social (LAURENT,
pois “o poder é em aparência menos
2007).
corporal por ser mais sabiamente físico” (p. 159). Nesse contexto,
O fim do século XX e o início do
o Estado se constitui como uma
século XXI marcam o período da
instituição forte que avaliza e
organização social baseada no
dota de sentido todas as demais,
capitalismo mais dinâmico, regido
reforçando e revestindo de
pelo excesso de produção e pelo
autoridade as figuras-chave da
consumo exacerbado.
autoridade moderna, como o pai e
A internet proporciona uma grande
o professor. É necessário abrir mão
revolução no mundo social, político
dos interesses individuais para se
e econômico.
alcançar os grandes ideais sociais. A civilização tem a função de conter
A forte penetração das tecnologias
os excessos de toda ordem
digitais em todos os setores da
(SIBILIA, 2012).
vida humana interfere nos modos de acesso à informação, introduz
A mentalidade cientificista
novas formas de comunicação
determinante durante os séculos
e de relação social, intensifica o
XIX e XX alcança a sua expressão
declínio das identificações verticais
máxima no positivismo. Augusto
e a pluralização das identificações
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horizontais, contribui para a diluição
individuais,
das antigas fronteiras que até então
da moldagem das instituições de
separavam os espaços público e
acordo com as aspirações dos
privado, alterando a relação do
indivíduos (LIPOVETSKY, 2005).
sujeito com o tempo e o espaço
Para o autor, alcançamos a segunda
(LIMA, 2014).
fase da sociedade de consumo, centrada no enfraquecimento dos
Vivemos a era do excesso: de
grandes sistemas de sentidos,
imagens, informações, sentidos,
no culto à participação e à
valores, crenças e objetos.
expressão, na reabilitação do local,
Paradoxalmente, Lipovetsky (2005)
do regional, de certas crenças e
defende a ideia de que vivemos a
práticas tradicionais. A cultura atual
era do vazio. Para o autor,
diversifica as possibilidades de
o vazio é a era pós-moralista,
escolha, multiplicando os pontos
o fim da época de valorização
de referência, minando o sentido
do sacrifício e de condenação do
único e os valores superiores da
prazer, a derrocada de uma moral
modernidade. O processo de
rigorosa e o surgimento de uma era
personalização visa destruir os
polissêmica de elaboração ética à
efeitos do modernismo monolítico,
la carte. Ele nomeia a época atual
o gigantismo, o centralismo e as
de “hipermodernidade”, período em
ideologias mais rígidas.
que estamos mais flexíveis e menos engessados por engrenagens de
O período atual é marcado pelo
poder em nome de verdades que
declínio do Ideal e pela ascensão
se apresentavam como universais.
do gozo (LACAN,1970/2003).
O efêmero é elevado à condição
Ao invés da moral repressora
cultural propícia ao exercício de
da modernidade, vivemos o
imaginários que transbordam, fluem,
imperativo de gozo. A multiplicidade
refluem e não cabem mais nas
dos referenciais simbólicos
sólidas referências antigas.
organizadores da cultura leva ao seu enfraquecimento. As sociedades
De uma ordem disciplinar passamos
individualistas assistem à perda dos
para um processo de personalização
valores tradicionais, dos sentidos
que corresponde ao agenciamento
compartilhados socialmente e dos
de uma sociedade flexível
mitos familiares que vinculavam os
baseada na informação e no livre
seus membros em torno de um ritual
desenvolvimento da personalidade
ou de um valor transmitido através
íntima, da legitimação do prazer,
das gerações. Acompanhamos o
do reconhecimento das exigências
empobrecimento de uma dimensão
38
39
40
fundamental do saber e da memória,
significa a superação do poder
a transmissão da experiência, que
presente na detenção da informação,
é “o sentido que uma coletividade
mas o seu deslocamento, do poder
é capaz de extrair a partir do que
veiculado de forma vertical a outro
seus antepassados viveram, ou das
disposto de forma horizontal.
narrativas que seus contemporâneos
Além do controle exercido pelos
trouxeram de regiões e de países
pares, que constitui uma vigilância
distantes” (KHEL, 2009, p.156).
mais generalizada, horizontal e mútua, existe o controle exercido
A experiência provê sentido à vida
pelos detentores do saber sobre
e valoriza algum saber acumulado
o sistema, e daqueles que podem
que pode nos orientar no futuro.
utilizar os dados obtidos nas
Há uma perda do valor histórico
mensagens que circulam na rede
e das referências que poderiam
para rastrear informações. Na era
conferir alguma segurança ao
do Big Data, as empresas buscam
jovem diante do novo, além do
enquadrar as pessoas em perfis
descrédito em relação ao saber
específicos de consumo, para
acumulado. A equivalência entre
produzir e oferecer produtos
todas as referências, produzidas
personalizados. Para isso, existem
pela perda da experiência, resulta
ferramentas bem sofisticadas de
numa disponibilidade permanente
monitoramento que acompanham
das pessoas para aceitar todas as
praticamente tudo o que se faz no
inovações técnicas (KHEL, 2009).
ambiente virtual.
A cultura digital foi gerada em torno
Nessa perspectiva, o controle
das novas tecnologias digitais.
disciplinar, centralizado na figura
Ela inclui todos os artefatos,
de um líder, dentro de um espaço
produtos, comportamentos
institucional, foi substituído
individuais e coletivos, conceitos e
por outro tipo de controle,
ideologias que surgiram diretamente
descentralizado, invisível, que se
da implantação das tecnologias da
estende para além dos espaços
informação (TAPIAS, 2003).
institucionais, potencializado
A internet, ponto nodal dessa
pela internet. As tecnologias
cultura, envolve uma carga de
não são neutras, elas podem ser
ambiguidade comum a toda
compreendidas como uma moldura
tecnologia. Enquanto para alguns ela
conceitual, que permite correlacionar
representa um espaço democrático,
um conjunto de ideias, tecnologias,
para outros, o acesso ampliado
comportamentos e discursos
e irrestrito às informações não
(BUZATO; SEVERO, 2010).
41
3
A VIRTUALIDADE
fontes de sofrimento humano que impedem o alcance da plena
O uso contínuo dos dispositivos
felicidade: o próprio corpo, fadado
tecnológicos e a imersão no
ao declínio e à dissolução; o mundo
ambiente virtual têm impactado
externo, que pode se abater
profundamente as subjetividades.
sobre nós com forças inexoráveis;
A partir do momento em que
e as relações com os outros
as relações do homem com
seres humanos. Considerando a
as tecnologias digitais têm se
pertinência desse texto freudiano na
tornado cada vez mais intensas,
atualidade, busco refletir sobre as
principalmente com o uso dos
incidências da cultura digital sobre
dispositivos tecnológicos móveis,
essas três fontes de sofrimento
surgem novas configurações sociais
humano.
e diferentes formas do sujeito se conectar ao mundo.
3.1 As subjetividades na cultura virtual
3.2 Subjetividade e mal-estar na cultura digital É possível identificar efeitos da interconexão sujeito/tecnologia
O sujeito se constitui na cultura.
sobre as três principais fontes de
Ela fornece os significantes mestres
mal-estar humano. A virtualização
que ordenam o campo dos ideais.
da vida impacta profundamente as
Cada cultura estabelece os seus
relações dos sujeitos com o corpo,
padrões discursivos e as suas
com o mundo externo e com o
formas de satisfação: “As sociedades
outro. A hipótese que sustenta essa
diferem entre si quanto aos
discussão é a de que a virtualidade
dispositivos discursivos de barrar o
é um recurso utilizado pelos sujeitos
gozo, assim quanto às possibilidades
para lidar com o desamparo cada
de gozo em oferta” (KHEL, 2009, p.
vez mais evidente nas sociedades
26).
atuais, e está articulado às formas de controle exercidas pelo mercado.
A felicidade é um imperativo na contemporaneidade. Mas, o que é a
3.2.1 O corpo
felicidade? Para Freud (1930/2010), a felicidade só é possível como
As transformações tecnológicas
fenômeno episódico, pois as nossas
ocorridas nos últimos anos nos
possibilidades de felicidade são
mostram que as relações entre o real
restringidas por nossa constituição.
e o virtual são bastante complexas,
Freud (1930/2010) descreve três
e o estatuto do corpo torna-se cada
42
43
44
vez mais ambíguo. A internet, e,
digitais. As interfaces ampliam a
mais especificamente, os espaços
capacidade sensorial e a memória, e
móveis interconectados pelo uso de
potencializam a cognição e a ação
interfaces portáteis, tem alterado a
humanas.
relação do sujeito com o corpo e as suas condições de existência.
Além da interconexão entre o
A atualidade tecnológica nos coloca
corpo e a máquina, a onipresença
diante de espaços diferenciais, com
das imagens em nosso mundo tem
os seus intercruzamentos. O corpo
impactos profundos na relação
se transforma em um conjunto de
dos sujeitos com os seus corpos.
extensões ligadas a um mundo
Em primeiro lugar, esse impacto
multidimensional, pautado pela
pode ser pensado a partir do
interconexão de redes e sistemas
contato do sujeito com as imagens
(SANTAELLA, 2017).
fragmentadas de seu corpo. A partir do uso dos dispositivos tecnológicos
Alguns pesquisadores têm
da imagem o sujeito tem acesso
investigado o uso da tecnologia para
a um mundo de imagens que não
substituir as funções fisiológicas,
mais dependem da percepção
numa aliança corpo/tecnologia
humana, mas sim do alcance
que transforma o homem em uma
da máquina (BROUSSE, 2014).
espécie de ciborgue. O corpo
Passamos a ver, através desses
hoje é colonizado pelas próteses
aparelhos, coisas imperceptíveis para
eletromecânicas, químicas e
a percepção visual humana. São
comunicacionais. Os corpos têm
imagens impossíveis de se ver sem a
sido tecnicamente equipados e
máquina, o que nos torna a cada dia
preparados para se conectarem à
mais dependentes delas.
rede. A convergência dos corpos com as tecnologias chega ao ponto
A imagem tecnológica a serviço da
de se tornarem indistinguíveis,
ciência desfaz a imagem unificada
expandindo a existência humana,
do corpo e expõe um corpo
levando o homem à condição de
recortado em órgãos e unidades
pós-humano. Para Santaella (2003),
separadas. Nessa perspectiva,
o pós-humano reúne a realidade
a ilusão de unidade corporal é
virtual, a comunicação global,
bruscamente quebrada por essas
protética e nanotecnologia, redes
máquinas de visão, que substituem
neurais, algarismos genéticos,
a nossa visão e nos colocam em
manipulação genética e vida
relação a um organismo cada vez
artificial. O homem está cada
mais fragmentado e estranho. Para
vez mais acoplado a ambientes
Le Breton (2003, p. 51),
45
“uma endoscopia de seu estômago
Para Le Breton (2003), a virtualidade
projeta na tela uma alquimia colorida
assinala um novo paradigma da
e precisa de suas entranhas”.
relação do homem com o mundo.
O corpo, antes considerado íntimo,
A navegação na realidade virtual
torna-se público, pois, como diz Le
proporciona aos internautas o
Breton: (2003, p. 51) “... a intimidade
sentimento de estarem presos a um
do corpo virado do avesso como
corpo estorvante e inútil ao qual é
uma luva torna-se obra, entra no
preciso alimentar, do qual é preciso
domínio do espetáculo, isto é,
cuidar, manter, etc.
do espaço público”. A imagem
A radicalidade do discurso anuncia-
tecnológica se sobrepõe ao saber
se em pesquisadores que anunciam
médico e ao saber que cada um
sua vontade de suprimir o corpo da
tem sobre o próprio corpo. Ela
condição humana, de telecarregar
é concebida como contendo a
seu espírito no computador, a fim
verdade sobre o corpo, que deixa de
de viver plenamente a imersão
ser dotado de mistérios e enigmas.
no espaço cibernético. O corpo
Passamos da clínica da palavra à
real é considerado um obstáculo
clínica do olhar. Do desejo de ver
à sua virtualização. O sonho de
passamos para um imperativo de
virtualização do corpo é o sonho
ver, uma imposição colocada para
de suprimir a doença, a morte e
todos. A medida da verdade torna-
todos os entraves ligados ao fardo
se aquilo que é visível.
do corpo. Para alguns, o corpo não está mais à altura das capacidades
Em segundo lugar, o imperativo de
exigidas na era da informação,
visibilidade é também a exigência
é lento, frágil, incapaz de memória,
de se alcançar uma imagem
etc. O corpo, nessa perspectiva,
corporal ideal, sem falhas. Apesar
é um rascunho a ser retificado, como
da multiplicidade de narrativas,
uma matéria-prima a ser rearranjada,
as imagens pessoais dominam
reprogramada. Para Stelarc (1997,
o espaço virtual. As fotografias
p. 26), a condição de pós-humano
compartilhadas nas redes sociais
pressupõe a necessidade de projetar
expõem corpos cada vez mais
um corpo mais autônomo e mais
delineados, perfeitos, esculpidos
eficiente energeticamente, “com
através de uma série de dispositivos
antenas sensoriais ampliadas e
tecnológicos atuais, continuamente
capacidade cerebral aumentada”.
sofisticados, que permitem reparar qualquer suposta imperfeição da
A procura desenfreada por
imagem corporal.
intervenções cirúrgicas revela a tentativa de corrigir ou reparar o
46
47
48
corpo rascunho. Como salienta
exposto como um objeto exterior,
Couto (2012, p. 29), “modificar
estranho à sua imagem corporal
e transgredir, por meio de
unificada.
cirurgias, implantes, transplantes e estimulantes químicos, os limites
As duas perspectivas sustentam
do corpo, estão se tornando novos
o imaginário de um controle
desejos de consumo”. A tentativa de
tecnológico sobre o corpo,
construir uma versão corporal mais
no campo estético ou da saúde.
atualizada e aperfeiçoada denuncia
Um corpo que, graças às tecnologias
uma maior aproximação entre corpo
e aos recursos digitais, pode ser
e objeto de consumo, característica
moldado, corrigido ou controlado,
do nosso século. O aperfeiçoamento
vencendo todos os limites que a
da imagem corporal é possível
vida lhe impõe. Nessa obsessão de
via dispositivos tecnológicos da
controle sobre o corpo,
imagem.
de reparação dos seus defeitos, visa-se um corpo programável,
Algo bastante perceptível hoje é o
universal, apagando exatamente o
horror de ser invisível. As pessoas
detalhe que o singulariza.
se fotografam a cada instante, publicando as suas fotos na rede.
Para Freud, o sofrimento proveniente
Existem os aplicativos específicos
do nosso corpo relaciona-se com o
para corrigirem os supostos defeitos
fato dele estar fadado ao declínio
da imagem corporal, aperfeiçoando
e à dissolução. Diante dessa
a imagem fotográfica segundo os
fonte constante de sofrimento, as
parâmetros sociais. Para encontrar o
tecnociências alimentam a ilusão
parceiro ideal nas redes sociais, mais
humana de que o corpo um dia
vale uma bela foto do que uma boa
poderá ser superado pela máquina,
apresentação textual.
evitando, assim, a doença e a morte.
Assim, as imagens tecnológicas
Na mesma medida em que
incidem sobre a relação do sujeito
imagens de corpos esculpidos,
com o corpo de diferentes formas.
completamente padronizados,
Por um lado, uma exigência de
povoam as redes sociais, proliferam
se mostrar como um corpo ideal,
os sintomas localizados no corpo,
adequado aos padrões sociais.
como a anorexia, a bulimia e a
Por outro lado, as imagens
escarificação. Em grupos virtuais
tecnológicas associadas ao discurso
fechados, adolescentes angustiados
científico expõem o sujeito a um
exibem seus corpos retalhados,
organismo fragmentado, flagrado
marcados pelas práticas de
na mais profunda interioridade e
automutilação, e/ou agredidos pela
49
magreza extrema, transgredindo os
tecnologias têm contribuído para
padrões sociais impostos pela mídia.
a destruição do mundo. Colhemos cotidianamente os efeitos dessa
Com a sua ambiguidade,
intervenção humana sobre a
a internet abriga, por um lado,
natureza, como o desmatamento,
uma faceta libertadora, permitindo
a destruição de recursos não
a livre escolha; por outro lado,
renováveis, as mudanças climáticas,
aprisionadora, veiculando um
a falta de água, a intensa produção
imperativo de beleza e de saúde
de resíduos tóxicos, a poluição,
que, em conexão as exigências
entre outros. A força imperiosa e
do supereu, impõem um controle
indomável da natureza agredida
absoluto sobre o corpo.
pode se mostrar de forma cada
A exigência de gozar a vida convive
vez mais destrutiva, acarretando
com o imperativo de controlar o
tragédias em diferentes locais do
corpo, ambos aliados à lógica do
mundo.
mercado. Pressionados por essa imposição social, muitos buscam
As tecnologias digitais, com sua
relacionamentos puramente virtuais,
intensa produção de imagens,
evitando o contato corpo a corpo.
também têm efeitos sobre a nossa percepção e a nossa
3.2.2 O mundo externo
relação com o mundo. Na era da internet, mensagens e imagens
Para Freud, a prepotência da
de acontecimentos do mundo
natureza nos obriga à rendição
inteiro nos chegam a cada instante
ao inevitável: nunca dominaremos
sem que a gente precise buscar
completamente a natureza.
por elas. Somos bombardeados
O autor, em 1930, afirmava que
continuamente por imagens
“nas últimas gerações a humanidade
que captam cada detalhe das
fez progressos extraordinários nas
catástrofes da natureza em cada
ciências naturais e em sua aplicação
ponto do planeta. As edições
técnica, consolidando o domínio
das imagens são sustentadas por
sobre a natureza de um modo antes
ideologias, significados e valores.
inimaginável” (p. 45). Mas ele conclui
Convivemos com imagens que
que esse progresso não garantiu a
pretendem capturar o real, o sem
felicidade humana. Hoje, ao refletir
sentido, transformando-o em
sobre as conquistas do nosso século,
espetáculo. Imagens de destruições,
não podemos deixar de considerar
tempestades, vulcões, tornados e
o alto preço que pagamos por elas.
todos os tipos de desastres naturais
Não é desconhecido das pessoas
não nos deixam esquecer a nossa
o fato de que as ciências e as
frágil condição humana. O excesso
50
51
52
de imagens chocantes nos afeta de
substituindo-os por outros conforme
diferentes formas, como,
o próprio desejo.
por exemplo, gerando desesperança ou depressão.
Na atualidade, a virtualidade pode
Por vezes, a espetacularização da
ser um refúgio para evitar a dor de
violência e das catástrofes naturais
existir. As adições virtuais atestam a
acaba por banalizá-las. Assistimos
dificuldade de enfrentar os desafios
a esse espetáculo midiático como
que a vida impõe. Freud (1898/1974),
a um filme, que não nos atinge
em seus estudos iniciais já apontava
diretamente.
que não é o fato de consumir uma droga que gera uma adição, mas é
Freud (1930) ressalta que, contra o
necessário que aquilo que se usa
temido mundo externo o sujeito só
como forma de se intoxicar tenha
pode se defender por algum tipo
uma finalidade de substituição
de distanciamento. Se a dificuldade
(FREUD, 1898/1974). Ou seja, é a
de enfrentar o mundo externo é
modalidade de uso que pode tornar
muito grande, alguns fazem uso
um objeto nocivo ao sujeito e não
das drogas, que garantem não
apenas o efeito de uma substância
só o ganho imediato de prazer,
no organismo (LIMA; GENEROSO,
mas também uma parcela muito
2016).
desejada de independência em
Qualquer objeto pode ser usado
relação ao mundo externo, como
de forma adicta, especialmente no
diz Freud (1930, p. 33). Com a ajuda
mundo contemporâneo. Assim,
desse “afasta tristeza”, “podemos
o uso contínuo das tecnologias
nos subtrair à pressão da realidade
digitais pode ser um recurso para
a qualquer momento e encontrar
o sujeito se afastar da realidade
refúgio num mundo próprio que
ameaçadora e incontrolável.
tenha melhores condições de
Ao imergir na virtualidade, o sujeito
sensibilidade” (FREUD, 1930, p.33).
pode buscar se afastar do mundo
Mas Freud indica outras saídas
externo e do laço social. Em um
além da droga. Ele acrescenta
projeto de pesquisa e intervenção
que quando o sujeito enxerga na
com adolescentes nas escolas,
realidade o único inimigo, a fonte de
escutamos as seguintes falas de
todo sofrimento, ele rompe todos
adolescentes: “Eu não consigo me
os laços, dá costas a esse mundo,
separar do celular”, “eu enlouqueço
nada quer saber dele, ou então ele
sem ele”, “preciso conferir o tempo
pode tentar reconstruí-lo, construir
todo se tem publicações nas redes
outro em seu lugar, eliminando
sociais”, “eu passo o dia inteiro
os aspectos mais intoleráveis e
jogando, nem vejo o tempo passar,
53
é a única forma de não me sentir
ele se sustenta sobre um vazio que
sozinho”, “eu esqueço os problemas
abrigará a causa do sujeito,
quando jogo”.
sua singularidade (TIZIO, 2007).
O consumo de imagens na
A perda de referenciais simbólicos
internet substitui a transmissão de
tradicionais organizadores na
experiência, que é incompatível com
cultura atual e a sua substituição
a velocidade imposta pela cultura
por uma multiplicidade de ofertas,
digital. Numa cultura marcada
especialmente na internet, amplia
pela velocidade, desaparecem as
as modalidades de escolha.
condições do convívio humano que
As redes sociais oferecem
tornavam possível a transmissão
grande variedade de opções de
do vivido na forma das narrativas,
identificação.
e, consequentemente, é destruída
Resta-nos refletir sobre as
a qualidade da experiência (KHEL,
modalidades de identificação
2009).
sustentadas por imagens no espaço virtual.
3.2.3 As relações sociais A virtualidade introduz uma nova Para Freud (1930/2010),
lógica espacial e temporal que
o sofrimento que se origina das
rompe com as barreiras físicas
relações com os outros seres
que até então delimitavam e
humanos nós experimentamos
circunscreviam os espaços.
talvez mais dolorosamente que
O espaço é expandido infinitamente,
qualquer outro. O sujeito se constitui
não respeitando os limites físicos,
na cultura, a partir do laço que
e o tempo é comprimido. Há uma
estabelece com o outro. A relação
perda da perspectiva temporal
entre os seres humanos se sustenta
concebida como uma evolução
do discurso e, por meio dele, assume
histórica, que enlaça passado,
as características de uma época e as
presente e futuro. A grande
marcas de uma cultura determinada.
valorização do tempo presente
O laço social articula o campo social
impõe ao sujeito realizações
ao individual através da linguagem,
imediatas. A desvalorização do
a partir de um vazio estrutural que
tempo passado é incrementada pela
opera como causa. O laço social
cultura do consumo, que instiga o
envolve a conexão e a desconexão
culto ao novo.
com o outro, pois, ao mesmo tempo em que liga o sujeito ao outro,
Para Bauman (2004) vivemos em
dele o separa, na medida em que
um mundo líquido, em que o modelo
54
55
56
“conexão-desconexão” da internet
de adolescentes de vários países
influencia os relacionamentos sociais
que fizeram um pacto de suicídio
dentro e fora do ambiente virtual.
coletivo através de uma rede social.
A internet propicia a frivolidade das comunicações e das formas de
Na internet, as imagens enlaçam os
se relacionar. Os relacionamentos
sujeitos promovendo identificações.
operam na lógica do mercado
Khel (2009) ressalta a força das
e se tornam produtos a serem
imagens e a sua incidência no laço
consumidos e descartados. No
social. Para a autora, na sociedade
espaço virtual, o número de amigos
do espetáculo, são as imagens, em
torna-se critério de popularidade
forma de mercadoria, que organizam
e de prestígio social, quando a
prioritariamente as condições do
quantidade passa a se sobrepor
laço social. As imagens se oferecem
à qualidade dos relacionamentos
como produtoras de sentido,
sociais. Para o autor, os sujeitos na
fazendo com que o movimento
contemporaneidade constroem
errático do desejo ceda lugar ao
identidades efêmeras e estabelecem
gozo promovido pela imagem
laços sociais líquidos, visto que
que encobre a falta de objeto.
evitam as relações duradouras.
Há um apagamento do desejo,
Passam-se, portanto, por indivíduos
e consequentemente, do sujeito,
sem características próprias e sem
levando à angústia.
uma história de vida, pois se tornam apenas sujeitos do presente, sem
As comunicações frenéticas
passado ou expectativas para o
e contínuas nas redes sociais
futuro, em um mundo no qual reina
alimentam um imaginário de que o
uma eterna incerteza.
sujeito não está só, mas conectado ao outro. Em um mundo cada vez
A internet favorece a ilusão de
mais individualista e autocentrado,
proximidade. Entretanto, essa
a interconexão com o outro pode
proximidade puramente virtual
servir ao tamponamento do
provoca efeitos narcísicos e de
desamparo estrutural, evidenciado
agressividade imaginária. Alguns se
e reforçado pela fragilidade do laço
agrupam no espaço virtual em torno
social na nossa sociedade.
de um gozo ou de uma ideia comum. Uma reportagem recente, publicada no Jornal El País, na Espanha, relata
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma investigação que permitiu deter na Argentina um jovem de
A virtualidade afeta de forma
17 anos que coordenava um grupo
definitiva as relações com o nosso
57
corpo, com o meio externo e com o
de permanente urgência e por
outro. Ela tanto abre possibilidades
uma multiplicidade de solicitações
impensáveis em todos os setores
simultâneas (KHEL, 2009).
da nossa vida, quanto introduz impasses, desafios e novos sintomas,
Entretanto, apesar desse contexto
que se manifestam especialmente no
de desenfreada competição
corpo e no laço social.
do mercado, de declínio social das instituições, do cenário
A cultura digital está atrelada ao
socioeconômico de incertezas e
mercado. A velocidade tecnológica
de extrema flexibilidade, a internet
evoca, por um lado, a liberdade de
e a cultura digital não impedem o
opções de consumo, e por outro,
surgimento de conexões que se
a dificuldade de fazer escolhas e a
assentem sobre a solidariedade,
impossibilidade de usufruir delas.
a cooperação, o compartilhamento
Para Khel (2009), o alargamento no
de ideias e a criatividade. “Quando
horizonte dos possíveis cobrou o
as contradições desaparecem, os
seu preço em termos de desamparo
espaços sociais são desalojados
e alienação. Em um mundo
e os sentidos multiplicam-se
imediatista e sem passado, o sujeito
infinitamente, surgem novas formas
é convocado a ser autor solitário de
de pertencimento social,
sua história de vida e de seu destino,
de identificação e de invenção”
bombardeado por um sentimento
(LIMA et al, 2017, p. 07).
58
59
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62
MOVIMENTOS IMAGEM_CÂMERA Priscila Mesquita Musa1
Resumo: Na escala da vida
Este ensaio faz uma reflexão
ordinária, à altura do olho, a cidade
sobre a produção e circulação
é condicionada, e não submissa à
das imagens dos movimentos de
relação de poderes e forças – das
ocupação coletiva do espaço de
instituições públicas, do poder
uso público de Belo Horizonte. Foi
econômico, do poder político, do
desenvolvido a partir da vivência
poder social, do poder midiático
junto a alguns movimentos e grupos,
– mas ela é também o que dessas
do compartilhamento de fotografias
forças escapa pelas bordas, o que
e vídeos e da construção coletiva
delas resta, o que delas se apaga, o
da pesquisa através de rodas de
que delas não nos alcança. Mesmo
conversa. É uma investigação
nas condições mais inóspitas e
acerca da potência expressiva da
duramente inumanas, há alguns
imagem enquanto desestabilizadora
pedaços de cidade que resistem
de espaços e tempos socialmente
na potência de suas trincas. Há
estabelecidos e a sua capacidade
algo que consegue romper o
de redistribuir o sensível, a partir
ordenamento do tempo, do espaço
da análise da relação entre os seus
e do corpo e instituir outras cidades.
agentes – fotógrafa, fotografado,
Isso é o que alguns movimentos
espectador e câmera. Apresento
de ocupação do espaço de uso
aqui, especificamente, a Câmera.
público conseguem constituir de mais potente, criando rupturas no
Palavras-chave: Política. Movimentos
espaço-tempo da cidade.
sociais. Fotografia. Espaço público. Cidade.
1 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo e Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG). http://lattes.cnpq.br/6928927382866811
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FRANÇA | COMUNA DE PARIS, 1871
BAHIA | SALVADOR | MANIFESTAÇÕES JUNHO, 2013
SÍRIA | ALEPPO | BARRICADAS, 2015 POR KARAM AL- MASRI
BELO HORIZONTE | ISIDORA | RESISTE ISIDORA, 2014 | POR PRISCILA MUSA
FRANÇA | PARIS | MAIO DE 68 POR MARC RIBOUD
SÃO BERNARDO DO CAMPO | OCUPAÇÃO PINHEIRINHO | RESISTE PINHEIRINHO, 2012 POR CSP CONLUTAS
CISJORDÂNIA | PALESTINA LIVRE MANIFESTAÇÕES NAKBA, 2011
UCRÂNIA | KIEV | PROTESTOS, 2014 POR VALENTYN OGIRENKO
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ITÁLIA | MARCHA DOS ESTUDANTES CONTRA REFORMA EDUCACIONAL, 2014
BELO HORIZONTE | OCUPAÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL, 2013 | POR MARIA OBJETIVA
EUA | NOVA YORK | MANIFESTAÇÃO CONTRA O RACISMO, 2015
BURKINA FASSO | UAGADOUGOU | MANIFESTAÇÃO CONTRA DITADURA, 2014 POR ISSOUF SANOGO
PALESTINA | PALESTINA LIVE, 2001 POR MAJDI MOHAMMED
RIO DE JANEIRO| MARACANÃ | ALDEIA MARACANÃ RESISTE!, 2013 POR VANDERLEI ALMEIDA
TURQUIA| ISTAMBUL | OCUPAÇÃO PRAÇA DE TAKSIN, 2013 | POR UMIT BEKTAS
EGITO| CAIRO | PRIMAVERA ÁRABE, 2011| POR SARAH CARR
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Em sua “Pequena História da
patentear sua descoberta, e, depois
Fotografia”, Walter Benjamim dissipa
de indenizá-los, colocou a invenção
a “névoa que recobre os primórdios
em domínio público”
da fotografia” simplificando o
(BENJAMIN, 1994, p. 91).
conflito histórico que ora atribui a Joseph Nicephóre Niepce a sua
Se em meados do século XIX o
invenção e ora atribui a Louis
Estado francês garantiu o uso
Jacques Mandé Daguerre. O autor
público da imagem fotográfica,
relata que, àquela época, haviam
em 1871 a polícia parisiense utilizou
vários pesquisadores imbuídos da
as fotografias das barricadas da
tarefa de fixar as imagens da câmera
Comuna de Paris2 para identificar
obscura, datada da renascença,
cada um dos communards e
e quando os dois inventores
executá-los. Para Susan Sontag, essa
alcançaram o feito, no início do
ação inaugurou o uso da imagem
século XVIII, sua invenção era
como ferramenta dos estados
iminente. Houve, desta feita, uma
modernos na vigilância e no controle
simultaneidade nas descobertas
de sua população. Para Hannah
de Daguerre e Niepce e “o Estado
Arendt, foi a partir da aparição dos
interveio, em vista das dificuldades
rostos no espaço público e nas
encontradas pelos inventores para
fotografias da Comuna de Paris que
2 A Comuna de Paris foi uma insurreição popular contra o poder dominante em uma afirmação revolucionária da autonomia da cidade. Ocorreu na capital francesa entre 18 de março e 28 de maio de 1871. Foi a realização de uma forma de governo controlada por trabalhadores e membros de classes populares da França e de outros países. Cabe aqui a leitura de Lefebvre sobre a Comuna:
“Eu tive a ideia sobre a Comuna como uma festa, e lancei isso em debate, depois de consultar um documento inédito sobre a Comuna que está na Fundação Feltrinelli, em Milão. É um diário sobre a Comuna. A pessoa que guardou o diário – que foi deportada, por causa disso, e que trouxe de volta seu diário vários anos depois da deportação, ao redor de 1880 – reconta como, no dia 28 de março de 1871, os soldados de Thiers vieram procurar os canhões que estavam em Montmartre e nas colinas de Belleville; como as mulheres acordaram de manhã muito cedo, ouviram o barulho e correram pelas ruas afora e rodearam os soldados, rindo, se divertindo, saudando-os de um modo amistoso. Então, elas partiram para trazer café e o ofereceram aos soldados; e esses soldados, que tinham vindo tomar os canhões, foram mais ou menos conquistados por aquelas pessoas. Primeiro, as mulheres, então, os homens, todo mundo saiu, numa atmosfera de festa popular. O incidente dos canhões da Comuna não foi, de qualquer modo, uma situação de heróis armados que chegam e combatem os soldados, assumindo os canhões. Não aconteceu assim. Foi o povo que saiu das suas casas, que vai regozijando-se. O tempo estava bonito, 28 de março era o primeiro dia da primavera, estava ensolarado: as mulheres beijam os soldados, eles relaxam, e os soldados são absorvidos em tudo isso, uma festa popular parisiense.” (LEFEBVRE apud VELLOSO, 2015).
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os rostos puderam ser identificados
ficou mais acessível em termos
e a Comuna aniquilada.
econômicos e significativamente mais fácil e rápida de manusear.
A primeira fotografia do Caderno de Imagens: Câmera é de uma das
Se, por um lado, as forças de
barricadas da Comuna de Paris.
dominação, controle e exploração
Como comentou Bráulio Britto em
aumentaram consideravelmente
uma conversa comigo por e-mail,
seus meios de ação – e aqui
“estamos batendo a poeira das
podemos dizer não só daquilo que
barricadas há 145 anos”. Ao olhar
se atém às relações entre governo
para a fotografia posso apreender
e governados, entre Estado e
que a traição do estado, embora
sociedade, entre público e privado,
o desastre da história também me
mas no que tange às diversas
atinja, não conseguiu aniquilar a
camadas de poder e atinge a
força da insurreição popular que
microesfera do cotidiano –, por outro
me chega não apenas pelo que está
lado, a câmera em muitas mãos
contido e pode ser visto na imagem
potencializou a capacidade de se
fotográfica, mas pelos fantasmas
contrapor ao regime de visibilidade
desses operários mortos que
estabelecido. Ariella Azoulay
retornam, ou que permanecem,
apontou que “a câmera transformou
na potência de desordenar
a maneira com que os sujeitos são
as narrativas estabelecidas e
governados e a dimensão de sua
possibilitar imaginar, a partir deles,
participação nas formas desse
outros mundos possíveis, outros
governo”3 (AZOULAY, 2008, p.
movimentos possíveis.
89), como também transformou expressivamente a forma de nos
Das Barricadas de Paris até a
relacionarmos uns com os outros
fotografia das manifestações de
e possibilitou a constituição de
junho de 2013 em Salvador, a câmera
narrativas com múltiplos e diferentes
fotográfica passou por uma série de
pontos de vista, outros imaginários e
mudanças paradigmáticas. No longo
outros regimes de sensibilidades.
percurso que sai das pesadas caixas de madeira e placas de vidro até os dispositivos acoplados em objetos de uso cotidiano, como os aparelhos celulares, a tecnologia simplificou,
A invenção da fotografia foi a criação de uma nova situação na qual pessoas diferentes, em lugares diferentes podem, simultaneamente, usar uma caixa preta para a fabricação de
3 Tradução minha. Texto original: “The camera changed the way in which the individual is governed and the extent of his or her participation in the forms of this governance”.
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uma imagem de seus encontros: não uma imagem deles, mas do próprio encontro. A invenção da fotografia não é apenas a invenção de um novo encontro entre as pessoas, mas a invenção de um encontro entre as pessoas e a câmera. (AZOULAY, 2008, p. 93).4
A fotografia é o resultado do encontro entre o fotógrafo e o fotografado com a câmera, entre esses corpos singulares e coletivos – não necessariamente um encontro pacífico e consensual; muitas vezes o encontro é também um confronto. No ato fotográfico, a câmera não responde totalmente ao fotógrafo ou ao fotografado, ela é aquilo que é interposto entre os sujeitos, que é visto e dá a ver o mundo do outro, mas em uma angulação diferente do olho humano, em uma perspectiva recortada, que modifica
Embora revele uma perspectiva diferenciada, a produção em grande escala das câmeras e a produção em grande escala de fotografias e vídeos operou uma transformação significativa na forma de percepção humana, como também apontou Azoulay (2008): A proliferação de imagens que a fotografia facilitou não é simplesmente uma questão de qualidade, mas um vetor essencial de transformação na matriz de percepção. A capacidade para olhar não pode mais ser compreendida como uma propriedade pessoal, mas é um campo complexo de relação que originalmente decorre do fato de que a fotografia tornada disponível ao sujeito possibilita que ele veja mais do que seus olhos sozinhos poderiam ver em termos de abrangência, distância, velocidade de tempo, qualidade, claridade e assim por diante. (AZOULAY, 2008, p. XX).5
as cores, a profundidade de campo, a perspectiva, entre outros. O ponto
A câmera, em grande medida,
de vista humano não é equivalente
reorganizou a acessibilidade do
ao da câmera e não pode ser a ela
olhar, pois em uma variabilidade
reduzido ou por ela substituído.
infinita, adquirimos a possibilidade
4 Tradução minha. Texto original: “[…] the invention of photography was the creation of a new situation in which different people, in different places, can simultaneously use a black box to manufacture an image of their encounters: not an image of them, but of the encounter itself. Not only is the invention of photography the invention of a new encounter between people, but the invention of an encounter between people and the camera”. 5 Tradução minha. Texto original: “The proliferation of images that photography has facilitated is not simply a matter of quality, but an essential vector of change in the perceptual matrix. The capacity to look can no longer be seen as a personal property, but is a complex field of relation that originally stem from the fact that photography made available to the individual possibilities of seeing more than his or her eye alone could see, in terms of scope, distance, time speed, quality, clarity, and so on”.
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de olhar através dos olhos dos
Nas fotografias do Caderno de
outros, de muitos outros.
Imagens: Câmera, alguns pedaços
Olhar este singular e coletivo não
de cidade e objetos do cotidiano
mais centralizado em um ponto
constituem outros arranjos: foram
de vista muitas vezes ordenado e
transformados em barricadas,
controlado pelo caminho contínuo
escudos e máscaras. Pedras de
de forças do poder (público,
calçamento das ruas, banheiros
econômico, “político”, midiático
químicos, carcaças de ônibus, carros,
e também o poder instituído nas
tampas de lixo, galões de lixeira,
diferenças das diferentes camadas
portas, placas de trânsito ganharam
sociais).
outras configurações e expressam outras formas de cidade. Em Paris
A fotografia e o vídeo são
na França, Salvador da Bahia,
performados em diversos espaços,
Aleppo na Síria, Isidora em Belo
em diferentes tempos, por diferentes
Horizonte, Ocupação Pinheirinho em
pessoas, grupos, coletivos e
São Bernardo do Campo, Cisjordânia
movimentos que conformam
na Palestina, Oakland nos EUA,
uma comunidade da fotografia,
Kiev na Ucrânia, Roma na Itália,
uma comunidade sem bordas
Belo Horizonte, Nova Iorque nos
e aberta formada por qualquer
EUA, Uagandogou em Burkina
pessoa, qualquer coletivo, mas não
Fasso, Istanbul na Turquia,
necessariamente conectada por uma
Cairo no Egito e Rio de Janeiro,
ideologia, uma etnia,
a precariedade das intervenções que
uma raça ou um gênero, algumas
defendem desde a cidade até a o
vezes mesmo sem equivalência
próprio corpo, em múltiplas escalas,
comum. A produção de imagens
é revelada nas fotografias que
é atravessada e reconfigurada
atravessam espaços, tempos, corpos
pela multiplicidade de existências,
através do mundo, nos contextos
experiências, cosmologias.
mais diversificados.6
6 Diversas vezes durante o trabalho me questionei se deveria apresentar nos Cadernos de Imagem fotos de contextos sociais radicalmente diferentes, e necessariamente delicados, neste caso a Síria, Bukina Fasso e Palestina, sabemos, em plena guerra. Pessoas estão sendo violentamente mortas, cruelmente mortas, covardemente mortas, cabe repetir. Mulheres, crianças, idosas, homens, estão sendo privados dos direitos mais básicos, cabe repetir. Mulheres, crianças, idosas, homens, estão sendo estupradas, cabe repetir. Territórios e cidades inteiras estão sendo arrasadas, cabe repetir. Optei por incluir essas imagens apostando na potência de movimentar o sensível, mesmo em contextos sociais tão dispares, tão conflitivos e por certo contraditórios. O objetivo não foi reduzir a dureza, a violência, a rudeza de alguns acontecimentos em algumas imagens. Essas não são, por certo, imagens que sintetizam a guerra, a violência, a dor.
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Da multiplicação de imagens
ou seja, a confluência de formas
fotográficas e videográficas advém
de ler e entender o mundo que
um comum que pode desconstruir,
apresentam a “capacidade de atuar
pelas frestas que abrem, os poderes
como forma de inteligibilidade do
soberanos e hegemônicos,
mundo vivido”. Segundo o autor,
as imagens-síntese, indentitárias e
“uma grande narrativa corresponde
totalizadoras. Que pode se constituir
a uma trama que propõe a
no espaço sem bordas, sem limites,
compreensão da evolução global
de forma heterogênea, múltipla e
que determina a transformação do
horizontal e sem uma linguagem
nosso mundo vivido” (RANCIÈRE,
unitária. Para Vilém Flusser (1985,
2014, p.20).
p.20), “apenas as séries de fotografia podem revelar a intenção do
Como nos apontou Manuela
fotógrafo”. Talvez também seja
Carneiro Cunha (2009), no livro
significativo pensarmos na potência
“Cultura Entre Aspas”:
da imagem como possibilidade de desconstruir exatamente a autoridade do fotógrafo, mas também do fotografado e do espectador, e permitir a reconfiguração dos lugares, outros arranjos. Também em via de mão dupla, uma potência que de um lado pode conformar um regime de visibilidade global e, de outro, não pode ser reduzida a um regime de visibilidade global.
Em outras palavras, talvez exista sistema, mas não existe cultura que lhe corresponda (SAHLINS, 1988). Com efeito, malgrado a extraordinária difusão da mídia, não existe cultura global. Os paradigmas, as sínteses, as correspondências de sentido fazem-se em uma outra escala, de ordem mais local. Mas como ter um ponto de vista local sobre um processo que nos ultrapassa, do qual não se controlam nem as causas nem os efeitos? (CUNHA, 2009, p.113).
Muitas das ações desses
Voltando para as imagens do
movimentos partem de
Caderno, mais especificamente
questionamentos, ponderações e
à fotografia da barricada nas
posicionamentos embasados em
ocupações do Isidora. No dia 6
narrativas anteriores fundadas no
de agosto de 2014, o governo do
marxismo, no anarquismo e em
Estado de Minas Gerais comunicou
outras correntes de pensamento
oficialmente que havia sido expedido
– em grandes narrativas e crenças
o mandado de reintegração de
sobre o destino da humanidade,
posse das ocupações Vitória,
como escreveu Rancière (2014) no
Rosa Leão e Esperança, da região
texto “Em que tempo Vivemos?”,
do Isidora, que compreende o
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norte de Belo Horizonte e parte de
a terra; no ponto em que aquela
Santa Luzia. Diante de uma outra
que talvez esteja pronta desenha
possibilidade de cidade desenhada
sua outra possibilidade, como
à revelia das várias camadas de
comentou César Guimarães em
poder, com muitas mãos, com
um post do Facebook, estava a
sistemas construtivos que partem
“Comuna do Isidora”. Atrás das
da disponibilidade de recurso,
barricadas, as noites frias de agosto
material e capacidade coletiva, a
foram aquecidas e compartilhadas
única maneira possível de aparição
com pessoas que vinham de vários
do estado em resposta àquilo que
locais da cidade, de diversificados
lhe escapa, seria através do uso e da
contextos sociais, de várias formas
reafirmação soberana de sua força
de vida, de muitas cores, de muitos
policial, a violência.
gêneros.
Uma rede de apoiadores,
Reunidas em torno da fogueira
movimentos, grupos, coletivos
a vigília, que rapidamente se
e sujeitos se potencializou e se
conformou nas saídas mais frágeis
constituiu em apoio ao direito
da ocupação, era menos um lugar de
à cidade, ao direito à moradia
esperar a chegada das tropas e mais
de um número expressivo de
se avizinhar das barreiras que temos
pessoas: Resiste Isidora! Junto com
nesses entre mundos diferentes e
Isidora Resiste! Na precariedade
experimentar outras possibilidades
dos materiais e das mãos que a
de vida, outras configurações.
comunidade e a rede de movimentos
Embora também se reunisse às
dispunham, foram articulados
voltas da fogueira muitos momentos
alguns sistemas que objetivavam
de tensão, vez ou outra vinha o
modificar o topos, retardar a entrada
vento frio da possibilidade de uma
das tropas e minimizar os danos e
tragédia iminente.
as perdas. Dentre os artifícios de defesa, posso apenas revelar os que
A fotografia da barricada foi feita
estavam visíveis: barricadas e olhos
em um desses dias de vigília, a
atentos durante vários dias, noites e
barricada guardada de perto,
madrugadas adentro.
com alguns pneus em chama. A circulação nas redes sociais deu
Por trás da barricada armada na
a ver a força da resistência das
Rua Leila Diniz, no ponto em que
comunidades do Isidora, uma contra
a cidade edificada toca a cidade
visualidade, e criou um outro topos
por se fazer; no ponto em que o
de disputa do discurso, movimentou
asfalto toca, mas não sobrepõe,
a sensibilidade de muitas outras
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pessoas, algumas que nunca tinham
o mundo simbólico das informações:
conhecido uma ocupação urbana.
sociedade informática programada;
Muitas outras fotógrafas voltaram
como o pensamento, o desejo
para registrar a mesma e as outras
e o sentimento vão adquirindo
barricadas do Isidora. As imagens
caráter de jogo em mosaico, caráter
que circularam excessivamente na
robotizado; como o viver passa a
rede contribuíram para desordenar
alimentar os aparelhos e por ele ser
a ordem de despejo.
alimentados”, o excesso de câmeras e de imagens nos movimentos de
Para Ariella Azoulay (2008),
ocupação do espaço de uso público
os teóricos pós-modernos tais como
talvez tenha contribuído para
Roland Barthes, Jean Baudrillard
desautorizar a automatização dos
e Susan Sontag, que vivenciaram
aparelhos.
a primeira onda de crescimento exponencial da fotografia no
No livro “Sobre a Fotografia”,
início da década de 1970, foram
Susan Sontag (2005, p.35) aponta
as primeiras vítimas de uma certa
que “Tudo existe para terminar numa
“fadiga da imagem”. “O mundo
foto”, referindo-se a uma frase do
foi preenchido com imagens de
Mallarmé de que “tudo existe para
horrores que proclamaram em alta
terminar em um livro”. A autora
voz que os olhos dos espectadores
problematiza a imagem como
cresceram sem ver, levando a
substituição da realidade a que se
desobrigá-los da responsabilidade
refere como Mundo-Imagem,
de reter, no gesto elementar de ver,
“os poderes da fotografia, de
aquilo que é apresentado ao olhar.”
fato, têm desplatonizado nossa
(AZOULAY, 2008, p. 11) 7.
compreensão da realidade, tornando cada vez menos plausível refletir
Embora Vilém Flusser (1985) no
nossa experiência à luz da distinção
livro “A Filosofia da Caixa Preta”
entre imagens e coisas, entre cópias
problematizou que há um nível
e originais” (SONTAG, 2005, p.196).
de automação nos aparelhos, nas câmeras, que serve para controlar e
No livro “O Destino das Imagens”,
automatizar a vida humana, “como
Rancière (2012) apresentou um
o interesse dos homens vai se
questionamento às conclusões de
transferindo do mundo objetivo para
alguns teóricos sobre o excesso de
7 Tradução minha. Texto original: “The world filled up with images of horrors, and they loudly proclaimed that viewers’ eyes had grown unseeing, proceeding to unburden themselves of the responsibility to hold onto the elementary gesture of looking at what is presented to one’s gaze.”
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fotografias, como concluiu Susan
no cerne das coisas como sua
Sontag, de que as imagens de
palavra muda.”
alguma forma poderão suprimir a realidade. Também contrapôs as
Roland Barthes e Vilém Flusser
teorias de que a realidade, que não
afirmaram que nos últimos anos,
cessa de representar a si mesma,
para eles o fim da década de 1970,
pode suprimir as imagens. O autor
foram feitas mais imagens do que
coloca que “se só há imagens, não
em toda a história da fotografia.
existe mais o outro da imagem.
A câmera talvez seja menos arma,
E se não existe mais o outro da
menos escudo, e mais outro modo
imagem, a noção mesma de imagem
de ver, outra forma de se relacionar
perdeu seu conteúdo, não há mais
com o mundo dos outros.
imagem”.
E o excesso radical de fotografias pode riscar a fagulha da
Para Rancière (2012) essa leitura
emancipação do olhar, e pode
retira as possibilidades que o próprio
requerer a responsabilidade do
objeto tem de recriar a partir das
espectador e da fotógrafa diante do
suas complexas relações com o
outro. Como apontou Ariella Azoulay
visível e, ao expor várias formas
(2008),
de apresentação da imagem, recolocou a percepção no sensível, na experiência e nas imagens que devolvem o mundo à sua desordem essencial, mutável, que transcende a presença e o testemunho da história e está em constante devir. De um regime de imagéité a outro, se referindo à arte, o autor diz que “a expressão codificada de um pensamento ou um sentimento. Não é mais um duplo ou uma tradução, mas uma maneira como as próprias coisas falam e calam. Elas vêm de alguma forma se alojar
o uso ampliado das câmeras fotográficas por pessoas em todo o mundo criou mais do que uma grande quantidade de imagens; criou uma nova forma de encontro, um encontro entre pessoas que tiram fotos e que observam e exibem fotos de outros, com seu consentimento ou não, abrindo novas possibilidades de ação política e novas condições para a sua visibilidade. (AZOULAY, 2008, p.24). 8
Diante de tantas formas de ver o mundo, a ressonância de uma multiplicidade infinita de imagens, o encontro do corpo sensível que
8 Tradução minha. Texto original: “The widespread use of cameras by people around the world has created more than a mass of images; it has created a new form of encounter, an encounter between people who take, watch, and show other people’s photographs, with or without their consent, thus opening new possibilities of political action and forming new conditions for its visibility.”
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fotografa e filma com o que é
A câmera como extensão do corpo
fotografado e o que vê, a pluralidade
indígena é também o seu olho e sua
de perspectivas e pontos de vista
possibilidade de existir de outras
e o excesso radical de imagens,
formas.
podem constituir outros modos de ver, outros modos de ser visto
Jean-Claude Bernardet (2006),
e outros modos de dar a ver na
ao refletir sobre o trabalho realizado
emergência de novos agentes
junto a povos indígenas brasileiros
fotográficos.
pelo Vídeo nas Aldeias, fala sobre os delicados movimentos que os
Quando uma câmera, por exemplo,
indígenas realizam na concepção
é apropriada por um indígena além
de planos fílmicos onde a câmera
da incorporação de um órgão
acompanha sensivelmente os
estranho ao ser corpo, e aqui nada
detalhes de cada gesto, o silêncio
de novo tomando de empréstimo
dos acontecimentos, a extensão da
a perspectiva antropofágica,
duração das coisas9. Uma recusa,
olhares se instauram.
ou melhor, uma total indiferença
Olhares capazes de transfigurar
à celeridade e fragmentação da
o órgão, a câmera, em uma
vida moderna. É nessa direção,
diversidade de instrumentos,
coloca Bernardet (2006), que esses
que podem se colocar para além de
exercícios também encerram a
exercícios estéticos e documentais
problemática da alteridade trazendo
como, por exemplo, instrumento
consigo um deslocamento da
político de defesa e de denúncia
categoria “outro” em direção a nós
diante das inúmeras atrocidades a
mesmos. “Acredito que a filosofia
que esses povos são submetidos.
da alteridade só começa quando o
Ou como aparecimento de outras
sujeito que emprega a palavra ‘outro’
possibilidades de existência,
aceita ser ele mesmo um ‘outro’ se
capturadas por esses outros modos
o centro se deslocar, aceita ser um
mesmos de existir, capazes de
‘outro’ para o ‘outro’” (BERNARDET,
desconstruir o próprio objeto e
2006, p.22).
suas formas de manuseio.
9 “Criado em 1986, Vídeo nas Aldeias (VNA) é um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. O objetivo do projeto foi, desde o início, apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada com os povos indígenas com os quais o VNA trabalha” (Extraído do site: www.videonasaldeias.org.br).
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É nessa perspectiva que, diante da
O que implica também a elaboração
multiplicação de câmeras e imagens,
de conflitos e a desconstrução de
podemos experimentar uma
verdades.
multiplicação de mundos e olhares.
REFERÊNCIAS AZOULAY, Ariella. The Civil Contract of Photography. Brooklin, NY: Zone Books, 2008. BARTHES, Roland; tradução GUIMARÃES, Júlio Castañon. A Câmera Clara: Nota Sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984 BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia. In Magia e técnica, arte e política. 7. ed.São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 90-107. BERNADET, Jean-Claude. Vídeo nas Aldeias, o documentário e a alteridade. In Um Olhar Indígena, Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2006. CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. In Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. EDITORA HUCITEC. São Paulo, 1985 MIGLIORIN, Cesar. Transcrito do Seminário Poéticas da Alteridade, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 2012. RANCIÈRE, Jacques; tradução NETTO, Mônica Costa, A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: EXO experimental org. Editora 34, 2009. RANCIÈRE, Jacques; tradução NETTO, Mônica Costa, organização CAPISTRANO, Tadeu, O Destino das Imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. RANCIÈRE, Jacques. Em que tempo vivemos; tradução Donaldson M. Garschagen. Desenhos, pinturas e fotografias Ed Rusha. In Serrote 16, pp. 203/222. São Paulo: Instituto Moreira Salles, março 2014.SILVA, Rodrigo; Nazará, Leonor (org). SONTAG, Susan; tradução Rubens Figueiredo. Sobre a Fotografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. VELLOSO, Rita de Cássia Lucena. Arquiteturas da Insurreição. Uma análise dos modos de engajamento das sociedades urbanas no presente das cidades e sua repercussão na configuração material do espaço urbano. Disponível em http:// arquiteturasdainsurreicao.blogspot.com.br/p/historias-para-escrever.html
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91
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92
A ALIENAÇÃO DA POLÍTICA NAS DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS MODERNAS E AS ALTERNATIVAS DEMOCRÁTICAS CONSENSUAIS NA AMÉRICA LATINA: porque os tempos estão mudando José Luiz Quadros de Magalhães1
1 INTRODUÇÃO
as instituições e os mecanismos jurídicos. Em que medida esses
Uma questão a ser considerada,
mecanismos determinam e em
previamente, é, em que contexto são
que medida são determinados
aplicados os sistemas,
pelo contexto histórico, social,
1
Presidente Internacional e nacional da Rede para um constitucionalismo democrático latino-americano. Mestre e Doutor em Direito. Professor da PUC Minas e UFMG. http://lattes.cnpq.br/8271201946056867
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94
95
96
cultural e econômico. Podemos
(como o FBI, a CIA, a NASA);
dizer, por exemplo, que a previsão
o voto secreto no colégio eleitoral
de um sistema de governo na
e a inexistência de vinculação do
Constituição de um país funcionará
voto do “grande eleitor” (o eleitor
de maneira diferente em contextos
do partido no colégio eleitoral que
políticos distintos. Assim, um
escolhe o presidente dos EUA) ao
mesmo sistema de governo
partido e candidato que o escolheu
(parlamentar, presidencial, diretorial
funcionam como mecanismos
ou semipresidencial) terá um
de proteção contra escolhas que
funcionamento distinto e servirá
ameacem a permanência de uma
a interesses e objetivos diferentes
democracia controlada, onde as
em sistemas sociais, econômicos
escolhas são restritas, à prova de
e culturais distintos. Por exemplo,
transformações em sentido diverso
Cuba, Suíça e China adotam
ao permitido.
variações do sistema diretorial, e França, Venezuela e Rússia variações
Assim, mecanismos legais,
do sistema semipresidencial.
instituições, estruturas e sistemas políticos determinam e são
É claro que, se os sistemas
determinados pela realidade, sendo
constitucionais de governo variam
necessário o estudo de cada caso
de acordo com o contexto em que
concreto para perceber em que
são introduzidos, esses sistemas
medida determinam e em que
têm, também, uma capacidade
medida são determinados pela
de determinar, em certa medida,
realidade histórica. Sem dúvida,
relações econômicas, sociais e
todo o aparato constitucional
políticas, mantendo, conservando
de democracia representativa
ou, com menos possibilidade,
majoritária é hoje, em muitos
modificando a realidade.
Estados nacionais, um mecanismo de limitação das escolhas
Por exemplo, nos Estados Unidos da
democráticas, uma limitação
América, o sistema presidencial, com
da democracia real, popular.
eleições indiretas para presidente
Esse aparato constitucional
e vice-presidente da República,
em países como Reino Unido,
constitui um sistema de filtro
Alemanha, França, Espanha,
poderoso, juntamente com outros
Portugal e EUA (entre muitos
mecanismos legais estruturais,
outros), impede que as pessoas
como o bipartidarismo de fato; o
enxerguem alternativas ao sistema
financiamento privado de campanha;
socioeconômico e político em que
as agências de estado autônomas
vivem, funcionando o Legislativo,
97
o Judiciário e o Executivo como
enquanto a máquina de legitimação
máquinas processadoras de falsas
e encobrimento da democracia
legitimidades.
parlamentar e do Judiciário funcionarem) à mesmice.
O sistema não permite alternativas
Não há alternativa visível.
reais, as escolhas no parlamento e no executivo são delimitadas, os
Neste ensaio vamos desenvolver
partidos políticos servem como
reflexões acerca dos sistemas de
espaços
governo democrático representativo majoritário e constitucionais
de segregação, nos quais rótulos
modernos, e como suas instituições,
condenam ideias ao esquecimento
seus processos e suas normas
ou estranhamento. O mais
servem como elemento de
interessante é que o sistema é capaz
padronização e legitimação de
de levar as pessoas a se exilarem
decisões previamente tomadas
em partidos políticos que nunca
por aqueles que efetivamente
chegarão ao poder, porque as ideias
detêm o poder. As instituições
deles são inseridas como estranhas
modernas são, desta forma,
à grande maioria; na democracia
uma máquina processadora de
representativa majoritária liberal,
legitimidades falsas, que permitem
permanecerão carimbadas pela sigla
que as pessoas aceitem condições,
e pelo nome das legendas em que as
decisões e padrões de vida que não
pessoas se auto exilam.
aceitariam se não existissem estas instituições processadoras de falsas
Alguns partidos são criados
legitimidades. Para desenvolvermos
para nunca chegarem ao poder,
nossas reflexões partiremos das
justamente pela sigla e significantes
reflexões e análises do professor
que adotam, e sua representação
Ricardo Sanin Restrepo (2012)
(significação) dentro do sistema
acerca da Constituição Encriptada.
de democracia liberal. O pior é que estes partidos legitimam,
Este texto é uma reflexão a partir
fazem parte da máquina de
do artigo do professor colombiano.
legitimação de decisões e de
Começamos nossa reflexão
estabilização e manutenção da
pela análise da apropriação da
realidade socioeconômica e
Constituição pelo Poder Judiciário,
cultural hegemônica no poder.
especialmente pela Suprema Corte
Ingleses, franceses, italianos, norte-
ou pelas cortes constitucionais,
americanos, espanhóis parecem
e como a linguagem hermética e
estar condenados (pelo menos
codificada atua como elemento
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de alienação e distanciamento das pessoas em relação às decisões do Judiciário. O Poder Judiciário, desta forma, ao se apropriar da Constituição e de seu sentido, e ao criptografar o seu sentido em uma linguagem à qual poucos
2 A MÁQUINA JUDICIAL PROCESSADORA DE FATOS E LEGITIMADORA DE DECISÕES PREVIAMENTE TOMADAS
têm acesso, afasta as pessoas dos processos decisórios e de
Primeiro precisamos entender a
construção das normas para
lógica do Judiciário: “Roma locuta,
os casos que se manifestam na
causa finita”: Roma falou, o “império”
realidade histórica social, ao mesmo
disse, acabou a causa, acabou a
tempo que legitimam (falsamente)
controvérsia (ZIZEK, 2009. p. 19).
as decisões e compreensões construídas por poucos dos direitos
Esta frase resume a lógica de
constitucionais.
funcionamento do Judiciário e da democracia representativa
O poder assim permanece com
majoritária moderna. No Judiciário,
poucos, sob controle, enquanto
a pessoa que tem seu direito violado
este mecanismo processador
ou ameaçado (ou entende que isto
de legitimidades faz com que
aconteceu) pode recorrer a este
as pessoas aceitem as decisões
poder do Estado, fazendo uma
com o mínimo questionamento
petição (um pedido) em que expõe
possível e sem ameaça real à
suas razões e prova o acontecido
continuidade do sistema enquanto
por meio de documentos,
tal, com os interesses e objetivos
testemunhos, perícias.
iniciais (modernos e excludentes) inalterados.
A outra parte, ré no processo, apresenta sua defesa, e pode
Para melhor explicarmos nossas
apresentar documentos,
reflexões a partir da compreensão
testemunhos ou perícia em sua
do texto do professor Ricardo Sanin
defesa (embora a responsabilidade
Restrepo, vamos utilizar uma obra
de provar a culpa ou dolo de alguém
cinematográfica de Werner Herzog:
seja sempre de quem acusa).
“Onde sonham as formigas verdes.”
Diante do conflito, o Estado, por meio do juiz, interpreta e aplica as leis e a Constituição (do estado), ao caso concreto apresentado para ele. A lógica deste processo
101
é a concorrência de argumentos
processo, permanece latente. O pior
e provas, em que um lado será
é que o Estado (por meio do juiz)
vencedor. Depois da análise das
não se interessa pela satisfação das
provas e dos argumentos, o Estado
partes, mas se contenta em dizer
se pronuncia e a causa é decidida.
o direito para o caso e extinguir o
Existe a possibilidade do recurso
conflito formalmente no processo,
em que a lógica concorrencial que
sem que se chegue efetivamente a
mantém vivo o conflito permanece:
uma solução real que poderia acabar
recurso (razões do recurso),
efetivamente com o conflito, o que
contrarrazões e finalmente de novo
só ocorrerá com a construção do
o pronunciamento do Estado.
consenso. O consenso pode ser obtido por meio da mediação, que
Acabando a possibilidade de
obedece outra lógica e estabelece
recurso, o Estado pronuncia
outra prioridade.
finalmente sua decisão e a causa acaba: “Roma locuta, causa finita”.
Os problemas, entretanto, não
Este formato de solução de conflitos
acabam aí. A forma como o
dificilmente irá solucionar o conflito,
Judiciário se construiu nos Estados
pois incentiva a concorrência
modernos, não só incentiva a
de argumentos, mesmo que
concorrência (e logo a perpetuação
inicialmente se proponha um acordo,
do conflito) como sustenta a
a finalidade não é a busca do
hegemonia de um grupo de
consenso, ou do restabelecimento
interesses (uma classe social, um
do equilíbrio quebrado pelo
grupo étnico, uma percepção de
conflito, mas é a vitória de uma
direito) sobre outros subalternizados
das partes. A busca da vitória
e radicalmente excluídos. Um
dificulta muito (talvez inviabilize)
filme de Werner Herzog pode
a possibilidade de consenso e de
nos ajudar a compreender como
solução da causa onde as partes
o Poder Judiciário moderno,
se sintam contempladas nas suas
inserido na lógica das democracias
expectativas. O perigo deste sistema
majoritárias liberais do Estado
é que sempre haverá alguém não
constitucional moderno, funciona
satisfeito com a decisão estatal da
como uma máquina processadora
controvérsia. Na prática, as partes
de legitimação de fatos, ou, em
(acusação e defesa) não ficam
outras palavras, como uma situação
satisfeitas.
de opressão e exclusão busca ser legitimada, formalmente, por uma
O resultado é que o conflito, embora formalmente extinto com o
decisão judicial.
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No filme “Onde sonham as formigas
como recurso natural, que deve ser
verdes”, um grupo de habitantes
explorado para a satisfação das
originários (aborígenes) pertencente
necessidades e dos desejos deste
a um grupo ético que habitava a
indivíduo racional e superior a todo
terra que os invasores europeus
o resto. O Direito e todo o aparelho
passaram a chamar de Austrália,
estatal da Austrália, onde se passa
tem suas terras ameaçadas por uma
o filme, é construído a partir da
companhia que pretende explorar o
percepção de mundo do invasor e,
subsolo para extração de minerais.
entre os invasores, dos proprietários
A fórmula já foi mencionada: o
e, entre os proprietários, dos
invasor (que se julga superior)
grandes proprietários. A lógica
impõe o seu direito, sua economia,
dual, binária e hegemônica, se
sua espiritualidade, sua percepção
reproduz em diversas escalas: o
da vida e do mundo ao militarmente
invasor europeu sobre o selvagem
subordinado, que resiste e insiste
aborígene; o proprietário sobre
na manutenção de sua cultura, de
o trabalhador e assim por diante,
sua diferença (embora conviva com
chegando até a família. O Direito
processos de destruição, violência e
moderno reproduz em todas as
assimilação). Para quem vê o conflito
instâncias a lógica do “nós x eles”.
que se instaura, sem a percepção de que ele ocorre em uma situação de
O representante da empresa,
hegemonia e logo de imposição de
acompanhado de um advogado,
uma cultura sobre outra, a postura
tenta um acordo (fundado no
da empresa parece legal e ética.
direito do invasor) logicamente sem sucesso, pois ignora a cultura
Um representante da empresa é
e a espiritualidade do invadido.
escolhido para negociar com os
Com toda a educação, simpatia e
habitantes originários (um grupo
correção, a empresa leva a questão
originário específico) que habitava
ao Judiciário, que obviamente, só
aquelas terras. Nessas terras
poderia decidir a favor da empresa,
habitavam também formigas verdes,
pois o Direito utilizado para a
integrantes de um sistema natural
solução do conflito é o direito
que revela o comportamento de
de uma parte, e não um direito
toda a natureza, como um sistema
construído consensualmente por
integral do qual somos parte.
todas as partes envolvidas.
A percepção moderna hegemônica
Neste filme assistimos este Judiciário
europeia se fundamenta na
como uma máquina processadora
percepção de um indivíduo que não
de legitimidade: quem venceria o
integra a natureza e que a percebe
processo já estava previamente
105
estabelecido antes deste ser
majoritária? Existe a possibilidade de
instaurado, mas a existência do
consensos ou a lógica concorrencial
processo, dos depoimentos, da
impede o diálogo? Vejamos.
provas, do recurso, funcionou
No processo eleitoral, as partes
como um elemento de legitimação
envolvidas se filiam a partidos
para se tomar e explorar as terras
políticos com programas e ideologia
dos aborígenes, que tiveram sua
definida (o que cada vez existe
oportunidade formal de se defender
menos).
no processo, fazendo provas e argumentando, e agora devem se
Cada partido, cada parte terá seus
subordinar ao Estado, que disse o
argumentos construídos em um
direito. Trata-se de um processo
espaço interno, democrático, no
“pseudolegitimador” que extingue
partido, no qual poderia ser possível
culpas e destrói o outro sem solução
construir consensos sobre questões
de conflitos, mas com a imposição
de políticas públicas diversas.
permanente de um direito sobre os
É necessário constatar até que
outros.
ponto esses partidos têm uma estrutura interna de debate que
3 PARTIDOS, PARLAMENTOS E ELEIÇÕES: A MÁQUINA PROCESSADORA DE LEGITIMIDADES DEMOCRÁTICAS MAJORITÁRIAS DE DECISÕES MINORITÁRIAS
permita a construção de consensos, ou se, ao contrário, as decisões também são tomadas pela lógica majoritária que é concorrencial e impede (dificulta) consensos. Vamos descobrir que, nos partidos, que ainda constroem sua ideologia político-partidária por meios dialógicos, a decisão ocorre por meio do voto majoritário, o que
Como funciona a democracia
inviabiliza (dificulta) o consenso.
representativa majoritária? “Roma
Entretanto, a maior parte dos
locuta, causa finita.” Voltamos à
partidos políticos, no início do século
fórmula estrutural do sistema do
XXI, não guardam mais coerência
Direito moderno: nós versus eles,
político-ideológica, o que resulta em
como um processo de competição
um pragmatismo sem ética de busca
permanente, em que o vencedor
do poder pelo poder. Continuando a
proclamado interrompe aquela
lógica da democracia representativa
competição específica. Uma
majoritária, esses partidos que
pergunta: Qual a disposição para o
construíram suas propostas, políticas
debate na democracia concorrencial
públicas e ideologias, se apresentam
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para as eleições, para então o
no parlamento sairão vitoriosos no
“povo” escolher (Roma locuta) e a
parlamento, na medida de que estes
controvérsia, expressa na busca pela
são melhores ou piores, ou, que a
vitória nas eleições, acabe (Causa
discussão no parlamento ocorre
finita), com a proclamação da
em torno de argumentos racionais.
vontade da maioria.
Vejam que já abandonamos qualquer debate intercultural e que a
Neste momento, a minoria
argumentação acima se desenvolve
(insatisfeita) se submete à maioria,
sob a lógica hegemônica de quem
sempre dividida, pois se constitui
diz o que é direito.
também majoritária, em processos internos que reproduzem o mesmo
Os partidos políticos, em geral,
mecanismo. Percebemos que
não trazem uma outra perspectiva
este processo inviabiliza qualquer
ou alternativa à lógica moderna,
possibilidade de consenso, pois,
representando, durante boa parte
desde o início, o que se busca é
do século XX, a controvérsia entre
a vitória: do partido, do projeto
direita e esquerda, conceitos
de lei, do melhor argumento (?).
modernos que se fundam na lógica
Melhor argumento? Será que o
moderna europeia binária (o centro
parlamento funciona com a lógica
será o terceiro incluído ou uma farsa
da vitória do melhor argumento?
política?). O pluralismo partidário
Qual é o melhor argumento? Depois
poderia sugerir uma possibilidade de
de eleito o governo e de eleitos os
superação do pensamento binário na
parlamentares, o governo continua
política moderna, o que não ocorreu
funcionando da mesma maneira:
por força da lógica majoritária e a
“Roma locuta, causa finita”.
divisão entre situação (governo) e oposição. No parlamento, os
Para que o governo governe, ele
representantes, quando discutem
necessita de maioria parlamentar
projeto de lei, de reforma legal ou
(ou maiorias) para que aprove seus
constitucional, argumentam a partir
projetos, sua lei orçamentária, seu
de seu partido político, visando a
plano de governo. Continuamos,
vitória de seu projeto.
portanto, no nível parlamentar com a mesma busca da vitória.
São sempre parciais, esta é a ideia.
O sistema concorrencial continua
Será que este processo permite que,
inviabilizando qualquer possibilidade
neste debate, um escute o outro?
de construção de consenso. Vamos
Haverá efetivamente a possibilidade
acreditar, por enquanto, que os
de diálogo?
argumentos expostos e contrapostos
Há uma comunicação possível?
109
Quando a pessoa que argumenta vai para um debate com a intenção de vencer ou outro, esta pessoa
4 DESOCULTAMENTO, MODERNIDADE E ESTADO
estará aberta para ser convencida, ou todo o argumento do outro será
Vivemos um momento de
recebido para ser imediatamente
desocultamento. A modernidade,
desmontado? A lógica concorrencial
fundada sobre um projeto de
tende ao totalitarismo. No final, só
hegemonia europeia, encontra-se
restará o “melhor”, e o “derrotado”
em crise radical, e toda a diversidade
tende ao ocultamento, um
ocultada começa a ser revelada e se
esquecimento provisório. Claro que,
rebela, em muitos casos, de forma
se observarmos o funcionamento
difusa. Embora a crise se aprofunde,
dos parlamentos contemporâneos
os governos do “Norte” (colonizador,
nas Américas ou na Europa,
“desenvolvido”) ainda insistem nos
perceberemos que, em muitos casos,
mesmos discursos e nas práticas
não se trata de uma concorrência de
excludentes, para solucionar
argumentos, de vitória de melhores
problemas que são da essência
argumentos, mas de um mercado
desta modernidade.
como espaço de negociação, a partir de posições de força, sustentadas
Esses problemas só serão superados
por interesses corporativos fora do
com a construção de uma outra
parlamento.
sociedade, uma outra economia, uma outra forma de fazer política
Em outras palavras, o problema
e democracia, fundadas em
da lógica concorrencial que
outros valores, sustentados pela
inviabiliza o consenso e o risco de
diversidade não
que a vitória do melhor argumento oculte o argumento derrotado foi
hegemônica, tanto como direito
superado pela criação de espaços
individual quanto direito coletivo.
de negociação, que não se fundam
A modernidade se funda (assim
em argumentos racionais, mas na
como todo o aparato criado para
força e no poder de negociação em
viabilizar o projeto moderno)
um mercado político determinado
na negação da diferença e da
por interesses preponderantemente
diversidade, tanto em uma
econômicos.
perspectiva individual como coletiva. O Estado moderno necessita da uniformização de valores, de comportamentos, precisa padronizar as pessoas, para viabilizar o seu
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projeto de um poder hegemônico,
uniformizados; o projeto moderno
centralizado, capaz de oferecer
se funda na lógica nós (superiores,
segurança e previsibilidade para os
civilizados, europeus) versus
que construíram o Estado e o direito
eles (selvagens, bárbaros, índios,
modernos: os nobres, os burgueses
africanos, muçulmanos, judeus,
e o rei. Esta aliança está de pé até
mulheres, inferiores, incivilizados,
agora.
preguiçosos, etc.).
Um bom exemplo podemos
A invasão da América (que será
encontrar na cobertura, pela
chamada assim pelo invasor, a
imprensa, da posse dos novos
partir do nome de um invasor)
monarcas na Europa em 2013.
marca o início do genocídio do
Uma Europa em crise, desemprego
mais diferente, que é considerado
por toda parte, e famílias reais
selvagem, menos gente, meia
de vários lugares do mundo se
gente, sem alma, ou com meia
encontrando em uma festa de
alma, que por isso pode ser morto,
casamento enquanto os grandes
escravizado, torturado.
proprietários (banqueiros
O mecanismo nós versus eles
empresários) se entopem de ganhar
funda-se em uma lógica narcisista:
dinheiro, mantendo o povo distraído
“Sou melhor, porque não sou o
com a festa da nacionalidade (bem
outro inferior ou, sou espanhol,
moderna), simbolizada pela fantasia
sou europeu, uma vez que não sou
do poder “real” e pelo sucesso dos
selvagem, bárbaro, infiel, índio,
empreendedores burgueses, em
negro ou muçulmano”.
meio à falência de uma sociedade individualista, egoísta, estrutural e
Importante é lembrar que a lógica
radicalmente desigual.
hegemônico-narcisista ocorre na formação dos Estados modernos,
Alguns pontos nucleares
nos quais um grupo se sobrepõe a
da modernidade devem ser
outro: o castelhano sobre os bascos,
compreendidos: o projeto moderno
catalães, galegos, valencianos
é hegemônico (sempre haverá
na Espanha moderna, criando o
um grupo hegemônico e diversos
espanhol; ou ingleses sobre celtas
grupos excluídos, subalternizados,
galeses, escoceses ou irlandeses,
ocultados); o projeto moderno é
em um processo de ocultamento
uniformizador: os considerados mais
interno violento. Essa hegemonia se
diferentes serão expulsos (mortos,
repete ainda internamente, fruto da
torturados, presos ou jogados na
construção da economia moderna
miséria) e os menos diferentes serão
capitalista, onde, entre o grupo
113
étnico-hegemônico,
dos quinhentos anos modernos
ou entre o novo grupo inventado,
ocidentais (inclusive pelo direito
na nova nacionalidade (franceses,
moderno, no Brasil formalmente até
portugueses ou espanhóis, por
1988), como mais do que a mulher.
exemplo), existem proprietários, empresários, ricos e de sucesso
A compreensão do pensamento
e, de outro lado, empregados,
binário, presente na lógica nós
trabalhadores, subordinados (ou
versus eles é fundamental para
na expressão norte-americana:
entendermos e superarmos a
perdedores).
modernidade na qual estamos mergulhados até a cabeça. Esse
Portanto, a lógica moderna
dispositivo moderno sustenta todas
se reproduz de forma circular
as relações sociais e econômicas
autorreferencial indefinidamente e
e, enquanto não compreendermos
assim será enquanto não rompermos
isso, não sairemos deste círculo
com a sociedade moderna, europeia,
infinito de violência e exclusão.
ocidental, hegemônica: na invasão
Continuamos matando o outro
da América encontramos um grupo
selvagem, sem alma, menos gente,
de pessoas que se autodenominam
bárbaro, considerado inferior pelo
civilizados, que se consideram
grupo hegemônico.
mais do que o restante do mundo e ocultam a diversidade (o outro
O dispositivo nós versus eles está
inferior); na formação do Estado
dentro de nossa cabeça. É preciso
moderno, um grupo étnico interno
romper com a modernidade e
se considera mais do que outro
desocultar a diversidade, criando
grupo (como nos exemplos citados
uma sociedade não hegemônica,
de Espanha e Reino Unido acima)
sem nós ou eles; sem civilizados
e ocultam e proíbem os outros de
ou incivilizados; sem proprietários
viverem suas diferenças em relação
e empregados. No processo de
ao grupo hegemônico que impõe
construção desta sociedade
seus valores; no grupo hegemônico
moderna, intrinsecamente (porque
também existem aqueles que se
não tem como esta sociedade
consideram mais do que outros
moderna ser de outro jeito) desigual
menos (o proprietário em relação
e opressora, como já demonstrado
ao trabalhador, no capitalismo
acima, é necessário construir
moderno); chegando esta lógica
justificativas, para que as pessoas
na escola, nas relações sociais
possam aceitar passivamente o
até na relação familiar, onde o
seu papel social, inclusive para que
homem é considerado no decorrer
oprimidos aceitem fazer o papel
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de cães de guarda do sistema
do Estado é a escola moderna.
protegendo os opressores.
Ela é criada para uniformizar. Ora, a escola moderna é uma grande
Para isso, é necessário criar um
descoberta da modernidade
aparato ideológico capaz de
para formar pessoas que pensem
construir as explicações lógicas da
do mesmo jeito, e que aceitem
desigualdade e sua legitimidade o
passivamente o sistema como
que podemos chamar de aparato
natural (com o único possível) e pior
(ou aparelhos) ideológicos do
(como justo).
Estado moderno. Louis Althusser (1985) irá desenvolver esta ideia
Ou seja, os que têm mais merecem
(no século XX), e, hoje, entre
ter mais. Essa escola moderna irá
outros importantes pensadores,
uniformizar comportamentos e
encontramos Slavoj Zizek (2003),
valores e negará a diversidade de
que nos ajuda a compreender a
forma permanente, simbolicamente
ideologia como mecanismo de
(todas as crianças em uniformes,
encobrimento que aparece de forma
pensando do mesmo jeito, com
bem-sistematizada pela primeira
o mesmo cabelo e o mesmo
vez com Karl Marx (2006) (no
comportamento), assim como em
século XIX). Portanto, para que este
sua estrutura de funcionamento
poder opressor, uniformizador e
com hierarquia, normas herméticas,
excludente se efetive, ele precisa
horários fechados, disciplinas
criar justificativas (que serão,
fragmentadas. Existem ainda
é claro, mentirosas ou ideológicas
escolas diferenciadas para classes
no sentido negativo). Sem isso,
sociais diferentes: uma escola para
as pessoas (uma boa parte) não
nós onde as crianças aprenderam
aceitariam passivamente ser
a comandar, mandar, liderar; uma
subordinadas e excluídas vivendo
escola para os nós e eles, onde estes
em um sistema econômico, social
aprenderão a obedecer os de cima e
e cultural violento, que é contra as
mandar nos de baixo (a improvável
pessoas que, em grande número,
classe média, essencialmente uma
o defendem.
mentira histórica que cumpre bem sua função); e ainda a escola para
As pessoas prejudicadas por este
eles que aprenderão a obedecer, e
sistema o defendem e são mesmo
saberão muito bem por que estão
capazes de matar e torturar para
obedecendo.
defender este sistema e aqueles que se beneficiam dele. Um desses
Este Estado moderno precisa criar
importantes aparelhos ideológicos
mecanismos para reproduzir as
117
pessoas que ocuparão os espaços
Assim, o cerco se fecha para
para o funcionamento e reprodução
eles: se não uniformizado pela
do sistema, logo, teremos
escola, será reprimido pelos
universidades que produzem
aparelhos repressivos. O problema,
conhecimentos; universidades
no Brasil contemporâneo (e a
que reproduzem o conhecimento
contemporaneidade é moderna
e formam técnicos que se acham
para o Ocidente), é que o sistema
superiores, mas não aprendem a
que deveria aparecer em momentos
pensar, e cursos técnicos nos quais
distintos de forma distinta,
as pessoas não precisam pensar,
uniformizando o pensamento e
filosofar, saber muito do mundo que
criando fiéis seguidores de sua falsa
as cerca, mas, aprendem bem a fazer
legitimidade para alguns e punindo
a máquina funcionar.
e retirando de circulação os outros que escaparam da ideologia, atua de
Além dos aparelhos ideológicos que
forma simultânea e sufocante para
garantem a reprodução do sistema
os de baixo, criando mais violência
e explicam por que o sistema
e ameaçando implodir o sistema
é assim, deixando as pessoas
moderno de ideologia e repressão.
acomodadas em seu “mundinho” e,
O Brasil vive, nesta segunda década
ainda, recrutando cães de guarda
do século XXI uma fúria punitiva de
dispostos a morrer pelos legítimos
viés fascista, que ameaça destruir
iluminados do sistema, é necessário
o próprio sistema moderno, não
todo um aparelho repressor, pronto
pela sua superação por um sistema
para funcionar contra aqueles
includente, mas pelo caos que
que escaparam, de alguma forma,
surgirá pela impossibilidade de o
consciente ou inconscientemente
Estado dar conta de fiscalizar e
do sistema ideológico, ou, ainda,
punir todos aqueles “criminosos”
para punir aqueles que o sistema
que surgem da desigualdade
não deu conta de incluir em alguma
e da criminalização de novos
das funções. Ora, sempre existem
comportamentos.
os excedentes do sistema que já cumpriram a função de mão
Cada vez mais temos mais crimes o
de obra reserva (o que hoje é
que tornou todos os brasileiros em
desnecessário), assim como, neste
criminosos. Não tem escapatória.
sistema moderno, sempre existem os
Ao não mais diferenciar um nós
excedentes destinados aos presídios
(que não comete crime porque
e manicômios, assim como, cada vez
faz as leis – os ricos); o nós e eles
mais, os miseráveis que não servem
simultâneo (a classe média que
nem para ser explorados.
não comete crime, porque sustenta
118
119
120
numericamente o “nós”) dos que
e todos. Tudo é permanentemente
facilmente cometem crime pela sua
consumido e consumível de objetos
própria existência (pois são tratados
a pessoas. Tudo é rapidamente
como bandidos pela criminalização
consumível, o que gera o enorme
da pobreza e dos movimentos
mal-estar contemporâneo.
sociais que reivindicam direitos), o sistema ameaça entrar em colapso.
5
PROIBIR DE UM LADO E PERMITIR DE OUTRO
Talvez aí seja importante entender, dentro de um pensamento
Um estudo que necessita ser
sistêmico, por que o sistema admite
feito deve ter como objetivo a
concessões (permissões) que
compreensão de como o sistema
ajudam a diminuir a pressão que
reage à pressão crescente
ocorre ao aumentar a intolerância
decorrente do aumento da
contra determinadas condutas.
criminalização, sobre determinados
Ao criminalizar mais, fiscalizar
comportamentos e um aumento
mais, controlar mais e punir e
sufocante dos mecanismos de
encarcerar mais, assistimos a
controle (ideológico e tecnológico)
um movimento simultâneo de
sobre as pessoas, com o aumento
permissões de comportamentos que
das permissões de gozo. Em outras
não eram permitidos, criando uma
palavras, precisamos investigar quais
possibilidade de escape da pressão
são os comportamentos cada vez
que se exerce do outro lado.
mais proibidos e, em contrapartida, quais são as permissões concedidas
Neste ponto é necessário refletir
para diminuir a pressão sobre o
e investigar o que tem sido, cada
aumento de controle e repressão.
vez mais, proibido e como passou a ser permitido. Planejado ou não,
Zizek nos traz Milner. Jean-
fundado ou não em uma estratégia
Claude Milner sabe muito bem
de poder, o fato é que os sistemas
que o establishment conseguiu
têm se comportado desta maneira:
desfazer todas as consequências
ao lado da criminalização da
ameaçadoras de 1968 pela
pobreza e dos movimentos sociais,
incorporação do chamado “espírito
direitos que eram negados, e grupos
de 68”, voltando-o, assim, contra
que eram radicalmente excluídos,
o verdadeiro âmago da revolta.
recebem agora uma autorização de
As exigências de novos direitos
“jouissance”. Recebem permissão (e
(que causariam uma verdadeira
não direitos) para gozar.
redistribuição de poder) foram
O gozo principal está expresso na
atendidas, mas apenas à guisa
sociedade de hiperconsumo de tudo
de “permissões” – a “sociedade
121
permissiva” é exatamente aquela
estas lutas por poder, em uma
que amplia o alcance do que os
acomodação decorrente de uma
sujeitos têm permissão de fazer sem,
aparente vitória pelo recebimento
na verdade, lhes dar poder adicional.
de permissões para atuar, fazer e
[...]é o que acontece como direito ao
até mesmo ser feliz, desde que não
divórcio, ao aborto, ao casamento
se perturbe aqueles que exercem o
gay e assim por diante; são todas
poder naquilo que lhes é essencial:
permissões mascaradas de direitos;
a manutenção do poder em suas
não mudam em nada a distribuição
vertentes econômica, cultural, militar
de poder.
e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras
Zizek cita Milner (2009): “Os que
vertentes).
detêm o poder conhecem muito bem a diferença entre direito e
O capitalismo tem sido capaz de, até
permissão. Talvez não saibam
o momento, ressignificar os símbolos
articular em conceitos, mas a prática
e discursos de rebeldia e luta em
esclareceu muito. Um direito, em
consumo. Assim o movimento hippie
sentido estrito, oferece acesso
e punk foi limitado aos símbolos de
ao exercício de um poder em
rebeldia controlados, nos quais as
detrimento de outro poder. Uma
calças rasgadas já vêm rasgadas de
permissão não diminui o poder, em
fábrica e os cabelos são pintados
detrimento de outro poder. Uma
com tintas facilmente removíveis.
permissão não diminui o poder de
Che Guevara é vendido na Champs
quem outorga; não aumenta o poder
Elisée e os pichadores e grafiteiros
daquele que obtém a permissão.
expõem no Museu de Arte de São
Torna a vida mais fácil, o que não é
Paulo. Tudo é incorporado, domado
pouca coisa.”
e pasteurizado. A diversidade está
2
em uma praça de alimentação de A partir dessas ideias podemos
shopping center ou no Epcot Center,
refletir sobre o “sucesso” (depende
onde é possível comer comidas de
para quem) da democracia liberal
diversos lugares do mundo com
representativa e as operações
um sabor e tempero adaptados ao
constantes que este sistema tem
nosso paladar.
feito de conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões
Da mesma forma funciona
que esvaziam e desmobilizam
a democracia parlamentar
2 Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragédia, depois como farsa; São Paulo: Boitempo, 2011, p. 58), mas é feita pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner: La arrogancia del presente – miradas sobre una década: 1965-1975, Buenos Aires: Manantial, 2010.
122
123
124
(democracia liberal ou liberal-social
Aquele bife à milanesa especial
representativa e majoritária). As
(assim como o pão de queijo),
opções são limitadas e os partidos
diferente, delicioso, feito em casa,
políticos, da esquerda “radical” à
com o sabor único da vovó, agora
direita “democrática”, se parecem
é industrializado: nós não mais
com a diversidade de comidas
fazemos, mas podemos comer a
com tempero parecido ao dos
hora que quisermos. Igual é o suco
shopping centers. Escolher entre
de laranja caseiro, industrializado,
esquerda e direita, especialmente
que vem com gominhos e com
nas democracias ocidentais da
carinho, de verdade. O problema
Europa e dos EUA (ou Canadá e
da jouissance é que ela se tornou
Austrália), dá no mesmo. Muda o
obrigatória na cultura consumista
marketing, as caras e as roupas,
contemporânea (que é também
muda a embalagem, mas o conteúdo
moderna). Se posso aproveitar de
é muito semelhante. Este aparato
alguma coisa, experimento isso
democrático representativo,
como uma obrigação de não perder
parlamentar e partidário processa
a oportunidade de gozar. Daí tanta
permanentemente as insatisfações,
depressão em uma sociedade
lutas, reivindicações, como uma
fundada no gozo, no prazer e
grande máquina de empacotar
no consumo: uma sociedade do
alimentos ou enlatar peixes e
desespero.
feijoadas. A diferença entre conquistar um Essa absorção das reivindicações de
direito e uma permissão ocorre
poder democrático transformando-
nas relações de poder e não,
as em permissões bondosas do
necessariamente, na existência ou
poder democrático representativo
não de determinados processos
desmobiliza e perpetua as
formais institucionalizados.
desigualdades e violências inerentes
Em outras palavras, a democracia
à modernidade e, logo,
representativa pode ser meio (isso é
ao capitalismo, sua principal criação.
uma exceção à regra) de conquista
As democracias liberais (sociais)
de poder e de direitos, e isso os
representativas majoritárias se
exemplos da América do Sul têm
transformaram em processadores de
nos demonstrado.
reivindicações, esvaziando o poder
As transformações constitucionais,
popular. Os direitos, a conquista do
na Venezuela, no Equador e na
poder pelo povo se transformou em
Bolívia, têm representado ganho
permissões de jouissance3.
de poder para aqueles que foram
3 No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma contínua.
125
historicamente alijados deste
quem detém o poder moderno,
durante séculos.
são comuns as rupturas. Toda
A questão essencial que ocorre nas
vez que esta democracia serve
democracias liberais representativas
como canal de conquista de poder
(e os países acima citados não se
daqueles que não tinham, assistimos
enquadram mais neste conceito) é,
a uma ruptura, muito comum: Brasil
em que medida, a luta por direitos
(1964 e as várias e constantes
resulta em ganho de poder, ou, ao
tentativas de golpes e pequenos
contrário, como tem ocorrido com
golpes diários); Chile (1973); as
muita frequência, em ganho da
ditaduras da Argentina e do Uruguai,
possibilidade de aproveitar, usufruir,
na década de 1970; a tentativa de
sem efetivamente uma transferência
golpe contra Hugo Chaves em 2001;
de poder de quem concede,
o golpe em Honduras e, em 2012,
permite, para quem é o permitido e
o golpe parlamentar no Paraguai
concedido.
e no Brasil (2016) são alguns exemplos. Assim, após o
Uma coisa é a pessoa poder usufruir
constitucionalismo liberal não
de uma permissão de exercício
democrático, a conquista da
de um direito. O poder continua
democracia representativa vem
com quem permite. Outra coisa é
acompanhada dos constantes
conquistar esse direito para si, o que
golpes que geram ditaduras e
implica que quem detinha o poder
totalitarismo.
de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso de uma
A relação de poder nestas duas
mudança de mãos do poder. O que
formas alternativas de manutenção
podemos perceber, e precisamos
de poder no Estado moderno
ter atenção, é para o fato de que
ocorre de formas distintas.
a recente e precária “democracia”
Enquanto o poder nas democracias
representativa pode ser precária
liberais sociais e representativas
como instrumento efetivamente de
permanece nas mesmas mãos por
democracia, mas cumpre muito bem,
meio de permissões, nas ditaduras
com efetividade e competência a
e nos totalitarismos ocorre uma
sua função de manter o poder nas
submissão que funciona em forma
mãos de sempre, ou, em outras
de concessões ou permissões
palavras, mudar para manter as
paternalistas, atendendo aos
coisas como estão.
pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão
Percebendo que esta já precária
ideológica, no totalitarismo, onde
democracia é apenas tolerada para
o poder concede, mesmo não
126
127
128
havendo possibilidade do pedido. No
majoritários (o que acontece na
totalitarismo o poder, além de criar
Bolívia, no Estado Plurinacional).
o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado
6 ALTERNATIVAS: A SUPERAÇÃO DO PENSAMENTO BINÁRIO
pelo poder). Portanto, temos, nestas duas estruturas de poder, formas de
Não há possibilidade de consenso
submissão agressivas. A primeira,
quando a minha satisfação depende
um ditador paternalista pode ou
da insatisfação de outro. Não é
não atender aos pedidos aceitáveis,
possível uma democracia efetiva
punindo os pedidos inaceitáveis.
consensual no sistema capitalista e as contradições binárias inerentes
Essa submissão se funda em
a este sistema. Consensos nesses
relações de amor e ódio à figura do
sistemas, que envolvam questões
poder encarnada no líder.
socioeconômicas serão sempre
O totalitarismo é mais sofisticado:
ideológicos (falsos) e os consensos
o poder atende às demandas ocultas
realizados em outros campos
do povo, que são direcionadas
tendem a sofrer distorções
aos interesses daqueles que
ideológicas negativas. A lógica
efetivamente detêm o poder.
moderna, fundada no pensamento
Nesse Estado o poder é total e age
binário, sustenta a modernidade.
todo tempo. Não há concessões
Uma armadilha que precisa ser
dialógicas ou racionais. O poder é
superada. O novo constitucionalismo
real, brutal, mas age a partir das
democrático na América Latina,
demandas ocultas do povo, que
especialmente as Constituições
são manipuladas e redirecionadas.
da Bolívia e do Equador, aparece
Diferente de submissões
como uma alternativa de superação
(ditaduras e totalitarismos) e
das engrenagens uniformizadoras
de permissões (democracia
do Estado moderno, assim como
representativa majoritária), um
fundamento para a construção
espaço de conquista de direitos não
de um outro sistema de mundo
hegemônicos significa que o poder
superando este, construído a partir
é dividido, compartilhado. Trata-
da hegemonia “ocidental” moderna.
se da construção de um espaço
No lugar de uma democracia
comum, onde o direito comum é
meramente representativa e
construído por meio da construção
majoritária, concorrencial,
de consensos, sempre provisórios,
é construída a alternativa de uma
nunca hegemônicos e raramente
democracia consensual fundada
129
na busca do consenso na solução
ideologicamente (no sentido
dos conflitos e na construção de
negativo e positivo do termo)
políticas públicas.
naturalizada de homem e mulher, sugiro a leitura de Judith Butler
No lugar de um Judiciário que
(2011).
funciona de forma imperial, dizendo o direito ao caso concreto, a busca
Não vamos desenvolver estas ideias
permanente é a da mediação, por
agora. Isso exigiria muitas páginas
meio da construção de consensos
e muitas palavras. Seria um livro
provisório e sempre democráticos,
inteiro. O que queremos sugerir,
que objetivem o equilíbrio, ou o
como reflexão nestas palavras finais,
restabelecimento do equilíbrio
neste texto, é que as dicotomias que
perdido com o conflito. Para que
são naturalizadas não são naturais,
seja possível a construção de uma
e mais, que devemos superar
democracia consensual e de espaços
este pensamento dicotômico
comuns, de um direito comum é
binário, para viabilizar consensos
necessário que algumas dicotomias
democráticos e a superação de uma
naturalizadas sejam historicamente
sociedade e economia excludentes.
superadas como, por exemplo:
A superação da exclusão não se dá
capital versus trabalho.
pela inclusão, mas pela superação da dicotomia exclusão versus inclusão.
Quais são as dicotomias necessárias? Claro que não vamos responder esta
Uma sociedade sem excluídos será
pergunta agora. Podemos apenas
uma sociedade sem incluídos.
provocar afirmando que, mesmo as
A mesma lógica pode ser aplicada
dicotomias que parecem naturais,
em outras dicotomias: pobres e
como dia e noite, claro e escuro,
ricos; capital e trabalho; bem e
são simplificações falsas e
mal; “nós versus eles”; civilizado e
construções arbitrárias culturais.
incivilizado. Estas dicotomias não
Não há um dia e uma noite, mas
são naturais, não são necessárias,
um permanente processo de
e de sua extinção depende a
transformação das condições
construção de uma alternativa ao
de clima e luminosidade, que se
violento mundo moderno.
rebelam ao contar matemático das horas, dos minutos e segundos. Não há um claro e um escuro, mas um processo permanente de mudança de luminosidade. Sobre a falsidade da dicotomia
130
131
132
7 CONCLUSÃO: OS EIXOS DE RUPTURA DO CONSTITUCIONALISMO BOLIVIANO E EQUATORIANO
serão apenas mencionados. As rupturas possíveis que elencamos só poderão ser vistas sem as lentes uniformizadoras do Direito moderno. Elas ocorrem na realidade social e cultural dos povos que
Existe um grande risco na análise
constituem a Bolívia e o Equador,
das Constituições da Bolívia e do
que, durante muito tempo, viveram
Equador: analisá-las sob o enfoque
em ordenamentos jurídicos europeus
da teoria da Constituição moderna
modernos, que excluíram, ocultaram
europeia. Acredito que utilizar as
e tentaram uniformizar essas
lentes da teoria da constituição
sociedades diversas. Vejamos:
europeia moderna inviabilizará enxergar e logo compreender
1
No lugar da uniformização
o potencial revolucionário de
hegemônica, a partir de
ruptura radical com a modernidade
um padrão europeu, o
presentes nestas constituições.
reconhecimento da diversidade
Serão apenas mais duas
como direito individual e coletivo
constituições interessantes e
pelo ordenamento jurídico.
diferentes dentro de um paradigma que não mudou na sua essência.
2 Decorrente da ideia anterior,
Não é este o potencial destas duas
a afirmação do direito à
Constituições.
diversidade como direito individual e coletivo sobre a ideia
Elas exigem a construção de uma
de direito à diferença (individual
outra teoria da Constituição, de
ou coletivo), que implica a
uma outra teoria do Direito, de uma
superação de qualquer padrão
outra teoria do Estado. Elas exigem
hegemônico estabelecido pelo
uma teoria não moderna, não
Estado e ainda presente na ideia
hegemônica, e logo não europeia.
de direito à diferença (diferente
Alguns eixos devem ser percebidos,
de quê?).
estudados e aprofundados para percebermos o potencial de
3 Superação da exclusividade
ruptura radical que representam as
da lógica binária, fundada
experiências em curso nestes dois
principalmente no dispositivo
países.
moderno nós versus eles (e da qual decorrem outros
Esses eixos precisam ser
dispositivos, como inclusão
desenvolvidos, mas neste trabalho
versus exclusão; capital versus
133
trabalho e culturalismo versus
deve se adequar ao respeito à
universalismo.
vida como totalidade sistêmica e não o contrário.
4 Criação de espaços de diálogo, não hegemônico, intercultural
8 Nova concepção de pessoa
(para além do multiculturalismo),
superando a ideia do “indivíduo”
que permita a construção de um
liberal que nasce e morre com
espaço comum, de um direito
uma personalidade distinta e
comum, em uma perspectiva
separada da comunidade e
transcultural.
da natureza. Construção de um conceito de pessoa plural,
5 Substituição de um sistema
dinâmica, processual, que não se
moderno monojurídico
limita, e não pode limitar-se a um
(hegemônico) por um sistema
nome coletivo, a um rótulo, a um
plurijurídico, que permita a
fato, ou a um nome de família.
pluralidade de direitos de família, de propriedade e de jurisdições.
9 Democracia consensual como prioridade.
6 Igualdade entre jurisdição originária e ordinária.
10 Judiciário consensual (justiça de mediação) como prioridade.
7 Nova concepção de natureza como conceito integral
11 Pluralismo epistemológico como
superando a ideia de recursos
fundamento do conhecimento,
naturais, um dos mitos modernos
da democracia e da justiça plural;
que separa o homem da natureza, e transforma a natureza
12 Superação da dicotomia
em algo selvagem a ser domado
“culturalismo versus
e explorado pela civilização.
universalismo”, o que implica a
Isso implica a superação da
superação do falso conceito de
ideia de desenvolvimento
universalismo (o universalismo
sustentado, conceito que passou
europeu) (WALLERSTEIN, 2007).
a condicionar a natureza e o meio ambiente às necessidades
O desenvolvimento de alguns
de desenvolvimento econômico
desses eixos pode ser encontrado
moderno (capitalismo), que
no livro de Magalhães (2012), Estado
implica mais consumo e
plurinacional e direito internacional,
mais produção, como meta
e promove uma análise inicial de
permanente. A prioridade é a
cinco desses 12 eixos.
natureza, e o sistema econômico
134
REFERÊNCIAS
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Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos, apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor, nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica da PUC Minas e da Reitoria.