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ANAISDASCAP CIDADES: TEM GENTE AQUI
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Unidade São Gabriel
VI SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA Belo Horizonte, 8 de setembro de 2014
ANAIS DA SCAP CIDADES: TEM GENTE AQUI
Belo Horizonte 2014
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Semana de Ciência, Arte e Política (6. : 2014. : Belo Horizonte, MG) S612a Anais da SCAP: cidades: tem gente aqui / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2014. 173 p.: il. ISSN: 978-85-8239-022-1 1. Ciência e civilização – Congressos. 2. Direito urbanístico. 3. Urbanização. 4. Economia urbana. 5. Cidadania. 6. Identidade Social. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.
CDU: 711.4
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EXPEDIENTE
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Prof. Mozahir Salomão Bruck
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Frei Mário da Paixão Taurinho
Assessora de Comunicação da PUC Minas no São Gabriel:
Michelle Stammet
10
EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Política
que são produzidos por demandas
(SCAP) da PUC Minas no São
globais, que pressionam a vida local
Gabriel propicia a integração entre
e modificam o modo cotidiano de
diferentes grupos interlocutores
vida do cidadão. O direito à cidade
da Universidade, de outras
passa pela valorização do espaço
instituições de ensino superior e
público urbano, acessível a todos,
entidades científicas, como também
como um lugar de aprendizado
trocas entre diversas áreas de
da vida comum, onde se praticam
conhecimento formal e informal,
novas maneiras de convivência e
promovendo a interdisciplinaridade,
de respeito. As cidades hoje se
a integração entre os cursos
constituem como o ponto crucial
da Unidade e a interação da
onde o futuro da humanidade é
comunidade universitária com a
decidido e de onde teremos a
comunidade externa. A SCAP
resposta à pergunta: podemos viver
se consolidou como o principal
juntos?
evento de extensão da Unidade São Gabriel com ações potencializando
As cidades tornaram-se mercadoria.
o relacionamento da Unidade com
No atual estilo de vida, o de livre
seu entorno e oferecendo novas
mercado onde economia e consumo
oportunidades de aproximação.
são livres, existe uma pressão para que tudo se torne commodities.
O tema da VI SCAP foi “o direito
Nesse quadro, usufrui da cidade
à cidade” e teve como foco a
quem tem como pagar e quem
relação da urbanização com o
não tem como pagar passa a ser
sistema econômico e de quem se
considerado supérfluo. Como explica
beneficia com o atual modelo – o
o sociólogo Zygmunt Bauman em
de colonizar espaços para os ricos e
seu livro “Confiança e Medo nas
isolar em áreas distantes os menos
Cidades”. Segundo o autor, no
favorecidos.
passado, a Europa podia utilizar o resto do mundo como depósito
As cidades de nosso tempo
da população supérflua que era
tornaram-se o palco de embates
“descarregada” em terras distantes.
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Hoje, a população supérflua é
qualquer outra parte do planeta.
produzida em todos os lugares
Ao contrário dos cidadãos “da última
porque o mesmo modelo econômico
fila”, condenados a permanecer no
predomina em todos os países.
mesmo lugar. Bauman descreve em seu livro a presença da mixofobia
A sensação de impotência diante
nas cidades, nome dado ao medo
dessa dinâmica e estrutura das
das pessoas de estarem junto com
cidades produz um sentimento
estranhos e diferentes. Ele defende
crescente de medo e insegurança.
a importância das cidades de
Para Bauman, os medos modernos
promoverem as possibilidades de
tiveram início com a redução do
mixofilia, o encontro e convívio entre
controle estatal da economia e o
diferentes e acredita que as cidades,
fim do estado de bem-estar social.
como laboratórios de descoberta e
Com o enfraquecimento dos estados
experimentação de soluções para
e fortalecimento dos mercados, a
os problemas globais, deveriam
solidariedade foi substituída pela
incrementar a mixofilia e diminuir a
competitividade.
mixofobia.
A alta competitividade produz uma classe de excluídos praticamente
Assim, a tarefa acadêmica da
irrevogável, o que os transforma em
Universidade e a responsabilidade
“classes perigosas”. Para Bauman,
sociocultural da Semana de Ciência,
as elites nas cidades, que ele se
Arte e Política (SCAP) da PUC
refere como pessoas da “primeira
Minas, Unidade São Gabriel fica
fila”, não se identificam com a
documentada nestes Anais: Cidades
cidade, não estão preocupadas
- tem gente aqui, constituídos
com as questões da cidade, não
numa valorosa reflexão crítica a
possuem vínculos comunitários
partir de uma coletânea de artigos,
com o local, nem compromissos.
ideias e discussões apresentados e
Trata-se de pessoas com recursos
desenvolvidos durante a realização
globais, conectadas com as redes
da VI SCAP.
mundiais, e quando o local não mais lhes atende, podem se deslocar para
Leiam e reflitam.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas no São Gabriel
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ÍNDICE EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia
Elisa C. O. Rezende Quintero 10
CIDADES: TEM GENTE AQUI
Maria Elisa Baptista 14
ANOTAÇÕES NAS MARGENS: ENCLAVES FORTIFICADOS E INSCRIÇÕES POÉTICAS NA POLÍTICA
Maria Luísa Magalhães Nogueira
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ANÔNIMO
Pedro Quintero e Vitor Brandão
62
O ESCRITOR E A CIDADE: HORIZONTE BELO E TRISTE
Raquel Beatriz Junqueira Guimarães
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POR MEIO DESTA” Izabella Dutra, Paulo Cantalice, Thainá Nogueira
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PAISAGENS URBANAS: UMA DISCUSSÃO INTERDISCIPLINAR
José Wanderley Novato Silva
92
UM MUNDO ONDE TUDO É AO CONTRÁRIO
Amanda Marina Lima Batista
120
CIDADES: A ESPACIALIZAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL
Cláudio Listher Marques Bahia
130
“VENHO
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CIDADES:
tem gente aqui Maria Elisa Baptista1
Palavra larga e funda, cidade.
tudo isso, se tornam possíveis.
Diz muitas coisas, e a mais bela:
É o lugar onde os direitos abstratos
que há gente aqui. Essa a cidade
se concretizam, mas, mais que
republicana, uma cidade onde
isso, é o lugar onde a consciência,
todos os moradores são cidadãos
a reivindicação e a luta por esses
e todos os visitantes são tratados
direitos toma forma2.
como cidadãos. Uma cidade em
E isso não é pouca coisa.
que a ideia de cidadania é vivida no sentido amplo dos direitos,
A nossa vida se dá em uma
dos deveres, das garantias e das
paisagem cultural que é construída,
alegrias. Direitos que, abrigados no
habitada e mutável. Saber quem
guarda-chuva do direito à cidade
somos depende de nossa memória,
e do direito à moradia, são direitos
daquilo que estrutura e que compõe
territoriais.
a nossa identidade3. E a memória depende, todo o tempo, de fios que
O território é o lugar onde as
fazem uma história, uma pequena
políticas de habitação,
história de cada um, ou a história
de mobilidade, de saneamento,
maiúscula de um povo. Os lugares e
e também as políticas de educação
os objetos guardam essa capacidade
e de saúde, parte indissociável de
evocadora da memória, e é por isso
1 Professora da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9319880330064921 2 David Harvey nos pergunta como o direito à cidade pode ser exercitado pela mudança da vida urbana e nos dá a resposta simples de Lefebvre: “por meio da mobilização social e da luta política/social” (HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia [et al]. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 31). 3 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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que dependemos de lugares,
Uma qualidade da boa cidade,
de coisas, para manter viva a nossa
aquela que nos acolhe e nos diz
identidade. Dependemos de nossas
não só quem somos, mas o que
ruas e praças, e dos edifícios que as
podemos ser, é o que chamamos
cercam, para sermos quem somos.
de vitalidade urbana, uma condição indispensável da vida humana, vida
E a cidade depende de como se
que é urbana por excelência.
mora, para saber que cidade é.
A vitalidade é uma linha mediadora
Morar é a única função da cidade
entre a apatia e a excitação, uma
que diz respeito, sem exceção,
conjugação e um equilíbrio de
a todos nós. Morar é um uso
ações, de atividades e de fruição.
arraigado no solo. Vai depender do
O principal componente são as
relevo, do tipo de solo, do caminho
pessoas. O estímulo e o interesse
das águas, do jeito mais fácil ou mais
suscitados pela presença das
difícil de fazer chegar a água e a
pessoas são infinitos. Não por acaso,
eletricidade, de escoar o esgoto.
as mesas dos cafés nas calçadas
É preciso morar perto, perto da
são mais frequentadas que as do
escola, do posto de saúde, do
interior dos salões e os bancos mais
parque, da praça, do trabalho, da
procurados são os que desfrutam da
padaria, perto dos amigos,
vista para o movimento das pessoas.
do cinema. No entanto, o termo revitalização, O que está perto pode ser função
um termo urbanístico em voga,
da distância, função do tempo ou
pode se referir tanto à recuperação
função da qualidade do percurso.
de qualidades arquitetônicas e
Cumprimos nossas atividades
urbanísticas preexistentes,
necessárias, não importa muito a
à recriação de atrativos esquecidos,
qualidade do caminho ou o sacrifício
à recuperação de áreas degradadas,
a ser feito: as crianças vão à escola,
quanto à completa mudança de
nós vamos à farmácia, à padaria ou
usos e usuários sob a mesma
ao trabalho, faça chuva ou faça sol.
casca romântica dos edifícios. O
Mas caminhar por prazer, sentar à
resultado, catastrófico no meu modo
porta ou sair a passear depende do
de entender, é o enobrecimento
desejo, do clima, das condições do
dessas áreas revitalizadas, como
lugar e dos caminhos.
vimos em tantas cidades, a expulsão
Vai precisar do acesso seguro,
das camadas populares e sua
da rua boa de caminhar, do ônibus
substituição pelas camadas médias e
logo ali.
altas. Recuperam-se as coisas e perdem-se as pessoas.
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Não se trata apenas das grandes
pessoas de conviver e compartilhar
obras, das grandes intervenções,
atividades com desconhecidos,
mas da rua comum. A rua comum
em espaços onde modos de
é a rua em sua simplicidade
sociabilidade acordados regulam
cotidiana, importante apenas para
o uso coletivo e substituem, assim,
seus moradores e transeuntes, sem
as hierarquias, as obrigações e os
pretensões de representar a história
direitos familiares6.
da cidade, mas apenas abrigar a vida comum do homem simples.
Em ambientes que abrigam diversidade, o convívio social
A extensão do conceito de vitalidade
urbano, um convívio que é ocasional,
a um atributo do espaço parte do
fortuito, sem continuidade na
entendimento do espaço como algo
intimidade da vida privada, esse
estruturável, mutável e produzido
convívio baseado na urbanidade,
socialmente . Quando dizemos um
aumenta o grau de tolerância
lugar animado, uma cidade viva ou
ao desconhecido, ao diferente
uma rua morta, estamos percebendo
e ao inesperado. E essa é uma
a cidade como um organismo
característica da urbanidade
vivo, capaz de se modificar
que Jane Jacobs percebia
incessantemente5. A vitalidade de
como a grande qualidade das
um espaço pode ser entendida
grandes cidades: poder sentir-se
como sua capacidade de animação,
seguro, sentir-se bem em meio a
motivada pelas relações sociais que
desconhecidos7. A diversidade é,
aí têm lugar e condicionada pelos
também, potencialmente, explosiva,
atributos espaciais de cada lugar.
possibilitando o enfrentamento e o
4
eventual acordo das visões distintas Ora, a vitalidade do espaço público
sobre aquilo que é um bem comum:
relaciona-se ao vigor da esfera
a cidade8.
pública, ao desejo e ao hábito das 4 MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2008. 5 ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000. 6 ELLIN, Nan. Integral urbanism. New York: Routledge, 2006 7 O sociólogo Richard Sennett associa o esvaziamento dos espaços públicos à dominância dos valores da vida privada sobre os valores políticos e sociais da vida pública. Para entender o Brasil, Sérgio Buarque de Holanda fala de nossa extensão continuada da vida privada e das relações patrimonialistas à esfera do estado e do espaço público. 8 JACOBS, Jane. The death and life of great American cities. New York: Vintage Books, 1992 (©1961).
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A vitalidade é a qualidade urbana
o caminhão de lixo. No entanto, as
mais ameaçada pelo modo como
possibilidades de reconhecimento
nossa sociedade lida com seus
e de interlocução social com os
antagonismos. Pelo medo da
vizinhos dependem de certo grau
violência, um medo generalizado,
de animação, do movimento que
a sensação de insegurança resulta
impele as pessoas a se demorarem
no enclausuramento das atividades,
um pouco mais à porta da casa, do
no cerceamento do tempo e no
grau de contato entre o espaço da
esvaziamento dos espaços de fato
casa e a rua, e do convívio ocasional
públicos, impedindo o aprendizado
possibilitado por essas interações9.
do convívio com os outros.
A animação, e a segurança decorrente dela, dependem,
Há, para cada tipo de rua, um tipo
também, da inteligente mistura de
ou um grau de vitalidade desejável,
usos que pode garantir movimento
composto por ingredientes cujas
em horas diferentes do dia e da
características e dosagem geram
noite, e que garanta uma supervisão
ambientes urbanos favoráveis às
informal dos espaços pelos
atividades que ali se desenrolam.
habitantes daquele lugar.
Assim, uma rua calma garante aos seus moradores a tranquilidade
A imagem de ruas animadas e
necessária para a vida doméstica,
cheias de vitalidade ilustra a ideia
desde que se sintam seguros ao
da cidade como lugar do encontro
chegar ou sair de casa, ao percorrer
e da festa, uma ideia que define
o trajeto necessário até o ponto
a cidade como o habitat humano
de ônibus, a estação de metrô, a
por excelência10. O encontro não
escola, a padaria ou o trabalho.
implica, necessariamente, pensar
A animação adequada a essa rua
do mesmo modo, nem ter os
será, provavelmente, a dos próprios
mesmos hábitos, mas compartilhar
moradores em seu movimento
alguns valores, confrontando
cotidiano de ir e vir, das crianças no
suas próprias diferenças. O lugar
trajeto para a escola, e dos serviços
do encontro é, assim, também o
aí prestados, o carteiro, o medidor
lugar da diversidade e o lugar do
das fornecedoras de gás, água,
acordo. Nesse sentido, habitar é
9 ver HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia [et al]. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013. 10 GEHL, Jan. La humanización del espacio urbano: la vida social entre los edificios. Barcelona: Reverté, 2004 (©1971). HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1996 e Space and the architect: lessons in architecture, 2. Rotterdam: 010 Publishers, 2000.
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um processo de transformação
enquanto um caminho descuidado,
da realidade e de elaboração de
um edifício de grande feiura, cantos
uma identidade própria em meio à
ameaçadores nos desconcertam e
diversidade e ao acordo social.
indispõem contra os outros.
E é um processo educativo, em que
Que tipo de adultos serão as
nos formamos e reestabelecemos
crianças criadas nas cidades de
constantemente as relações que
muros altos encimados por arame
regem a sociedade.
farpado?
É essa experiência, a experiência
Penso que só a construção de um
de compartilhar lugares e eventos
novo olhar, um olhar nosso para
urbanos, que contribui, em alguma
nós mesmos11, um olhar lúcido que
medida, para a educação, para a
se oponha ao culto da fatalidade12,
sociabilidade, aquilo que se aprende
que enfrente a exploração e a
no convívio com o outro, entre as
especulação13, um olhar que mire
paredes da rua. Assim, uma face
o horizonte e nos faça caminhar
convidativa de um edifício, uma rua
passo a passo14, um olhar que não
amena, a sombra de uma árvore,
se desespera, mas age, pode nos
ou janelas que antecipam alegrias
conduzir na construção de cidades
nos fazem pessoas melhores,
republicanas.
11 Para o arquiteto Norberg-Schulz, habitar, que é a função primordial da vida humana, significa “encontrar outros seres humanos para trocar produtos, ideias e sentimentos, para experimentar a vida como uma multidão de possibilidades” NORBERG-SCHULZ, Christian. Habiter: vers une architecture figurative. Paris: Electa, 1985, p. 7. 12 SANTOS, Boaventura de Souza. 13 CAMUS, Albert. Os quatro pilares da imprensa livre. O manifesto de 1939, censurado à época, foi publicado pela primeira vez em 18 de março de 2012 pelo jornal Le Monde, e em 25 de março de 2012 pelo jornal Folha de São Paulo, com tradução de Paulo Werneck. 14 “Não se projeta nunca para mas sempre contra alguém ou alguma coisa: contra a especulação imobiliária e as leis ou autoridades que a protegem, contra a exploração do homem pelo homem, contra a mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do costume, contra os tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a adversidade das forças naturais; sobretudo, projeta-se contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem, aos golpes cegos
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dos acontecimentos, ao destino. Projeta-se contra a pressão de um passado imodificável, para que sua força seja impulso e não peso, senso de responsabilidade e não complexo de culpa. Projeta-se contra algo que é, para que mude; não se pode projetar para algo que não é; não se projeta para aquilo que será depois da revolução, mas para a revolução, portanto contra todo tipo e modo de conservadorismo. É portanto impossível considerar a metodologia e a técnica do projetista como zonas de imunidade ideológica. A sua metodologia e a sua técnica são rigorosas porque ideologicamente intencionadas. A ideologia não é abstrata imagem de uma futura catarse, é a imagem do mundo que tentamos construir lutando: planejando não se planeja a vitória mas o comportamento que nos propomos manter na luta”. ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000, p.53. 15 “La utopía ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar”. Fernando Birri citado por Eduardo Galeano.
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ANOTAÇÕES NAS MARGENS: enclaves fortificados e inscrições poéticas na política Maria Luísa Magalhães Nogueira1
Pela primeira vez na história da
sempre nela. Não “estranhamos”
humanidade a população urbana é
tampouco o modo como vivemos
superior à rural. Vivemos na cidade,
– juntos, mas isolados – na cidade.
mas não nos perguntamos muito
Não sabemos bem o que significa
sobre o que é esse objeto, que anda
viver na cidade e, tampouco, como
tão na moda. Naturalizamos essa
proceder para que essa vivência seja
nossa experiência cotidiana, inclusive
representativa e produtora de um
com seus dissabores e medos, com
projeto social interessante.
seus deslocamentos monótonos, em que a cidade parece ser só apenas
Ao contrário, viver na cidade tem
um plano a ser atravessado de um
sido significado como viver mal
lugar a outro. Notamos, mas não
– poluição, segregação, medo,
questionamos, as construções e
violência e, por isso, viver na cidade
destruições inúteis, analisadas nas
tem se transformado em viver na
obras de Henri Lefebvre (2008)
cidade evitando a cidade... assim,
que alteram nossas cidades, com
vamos produzindo e reinventando
velocidade impressionante, e as
espaços de recusa ao urbano, os
tornam cada vez mais distantes de
chamados enclaves fortificados
nós mesmos, ainda que estejamos
(CALDEIRA, 2011).
1 Professora do Departamento de Psicologia da UFMG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0658721467035688
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Podemos enxergar na literatura fantástica de Ítalo Calvino alguns ecos importantes para os estudiosos do espaço urbano, que em nossa contemporaneidade, tomam emprestadas as descrições dAs cidades invisíveis, visitadas pelo viajante Marco Polo a serviço do imperador Kublai Khan. O livro é inescapável provavelmente por sua capacidade de traçar imagens em que vemos as cidades da cidade. Suas páginas nos convidam a ver como cada cidade contém diversas cidades, e como vamos produzindo composições diversas a partir da materialidade do espaço e das subjetivações que imprimimos nessa relação. Sobre Irene, uma cidade que fica na extremidade de um planalto, Marco Polo conta que viajantes, pastores, eremitas, passarinheiros, sempre olham para cidade, falam dela, ficam fascinados.
nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene (CALVINO, 1990, p. 114/115).
O texto de Ítalo Calvino fala de várias coisas ao descrever a relação de Irene, seus habitantes e seus não moradores. As diversas cidades da cidade contêm, cada uma, de alguma maneira, o todo da cidade, em metonímia. Pensamos as cidades compostas por partes que comportam o todo, todo feito de partes não desconexas e que se sobrepõem. Ao falar de condomínios fechados, falamos da cidade? O modelo de isolamento e desconexão da cidade, presente no condomínio fechado, prolifera e passa a ser o modo de vida desejado em vários estratos sociais, morar nas margens da cidade, distantes do outro de mim. Nesse cenário, já não sabemos
A esta altura, Kublai Khan espera que Marco diga como é Irene vista de dentro. E Marco não pode fazê-lo: não conseguiu saber qual é a cidade que os moradores do planalto chamam de Irene; por outro lado, não importa: vista de dentro, seria uma outra cidade; Irene é o nome de uma cidade distante que muda à medida que se aproxima dela.
porque nos acostumamos aos
A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca retornar; cada uma merece um
status (CALDEIRA, 2011).
muros. Por que admiramos, do lado de fora e desejamos esse modelo tão obscenamente segregativo? Os muros são para o lado “de fora”, para o outro, diferente. Antes, por causa dele. Muros cada vez mais altos, que não nos incomodam, servem como forma de visibilizar o
Como nos aprisionamos? Quanto mais buscamos a proteção frente ao outro, mais nos sentimos
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invadidos e ameaçados.
medo; a indústria da (in)segurança;
Quanto mais nos fechamos às
o espetáculo da violência.
desestabilizações necessárias à invenção, ao desenvolvimento, à subjetivação, mais limitamos nosso potencial de ação e de produção subjetiva. Vamo-nos sufocando entre o portão, a câmera, a insígnia da vigilância (MUNTADAS, 2008), a espetacularização da violência. As utopias desabam quando se conformam em objetos de consumo. Não é a utopia que os condomínios
Essas tecnologias incluem a ubiquidade dos muros, sua inserção em complexos sistemas de vigilância e distinção, privatização e comoditização da segurança e a naturalização de mecanismos de controle. Essas novas tecnologias do público tornaram a desigualdade e a segregação naturais. O público que elas criaram, inerentemente desigual, não apenas distancia grupos sociais, mas trata essa separação como desejável (CALDEIRA, 2011, p. 217).
fechados querem vender? Em formatos variados, dentro e fora
O excesso de conforto produz uma
da cidade, verticais ou horizontais,
anestesia. O que mais? Como esses
para elite e todos que nela se
arranjos urbanos povoam nossas
espelham, multiplicam-se imagens
subjetivações e nossa fundante
paradisíacas desse modo de viver
experiência de alteridade?
bem, aparentemente tão seguro,
Cabe sublinhar: a previsibilidade que
confortável, previsível, garantido.
parece ser exclusividade de outros
Nessas cidades repletas de muros,
universos, como a matemática ou a
em que o espaço público vem sendo
física, pode ser sempre questionada
cercado, feitas de moradias que não
quando percebemos como nossa
dialogam com a rua, sem varandas,
percepção, demasiadamente
sem janelas dando para rua, sem
humana, é capaz de atravessar tais
praças, sem um território coletivo
previsibilidades aparentes.
para conversas e cumprimentos, vamos destruindo nossas reservas de delicadeza, como sugere Maria Rita Kehl (2011). Há um quê de espetacularização nesse esparramar de cercas. Há a visibilização escancarada e assumida — e às vezes festejada — da segregação: a tecnologia e a arquitetura do
Um exemplo interessante, que inspira o título desse texto, é a história do Último teorema de Fermat2. Esse teorema, derivado de Pitágoras, conta um pouco da história da matemática, esse mundo tão marcado por controle, segurança, previsibilidades
2 A história do teorema e sua demonstração recente, pelo matemático britânico Andrew Wiles, é relatada no livro O Último Teorema de Fermat de Simon Singh (1994).
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fundantes e, mesmo assim,
que interagem com tais universos
tão sujeito aos dissensos e surpresas
– essas somos nós; mesmo se
próprias do encontro entre
não efetivamente frequentamos
diferenças.
condomínios, habitamos, em maior ou menor medida, essa proposta
O matemático Pierre de Fermat
de privatização que o condomínio
afirmou, no século XVII, nas margens
sintetiza.
do livro Arithmetica de Diofanto, referindo-se a uma derivação
Deste modo, trata-se de entender
de Pitágoras: “Encontrei uma
como esses são processos que
demonstração verdadeiramente
vão sendo interiorizados como
maravilhosa disto, mas esta margem
justificativas e desculpas sinceras, no
é estreita demais para contê-la.”
cotidiano concreto e material, por
(SINGH, 1994). Por mais de trezentos
todas essas pessoas, moradores ou
anos, a afirmação do cientista
não de condomínios, por nós, em
francês desafiou a comunidade
maior ou menor medida, independe
matemática e foi motivo de diversos
do CEP ou do tamanho do muro
dissensos e polêmicas, envolvendo
que nos cerca, nós que estamos
promessas de prêmios, a interrupção
todos submersos em desejos de
de um suicídio planejado (pois
separação, conforto, previsibilidade e
o suicida teve uma ideia sobre
segurança. O condomínio é apenas a
o teorema e perdeu a hora do
ponta mais visível, a síntese, o sonho
suicídio) e carreiras dedicadas à
– uma superfície inexaurível. O que
busca da solução prometida por
se passa nessa profundeza, em que
Fermat. Apesar dessa breve alusão
mergulhamos, é o empobrecimento
à matemática, o que interessa aqui
da experiência subjetiva, pois a
é colocar em relevo que mesmo
produção de subjetividade demanda
a previsibilidade dos números é
desestabilização. Demanda encontro,
afetada pela subjetivação que
diferença, a vivência ampliada da
inventamos.
alteridade, o acaso, a surpresa, a invenção. Todos esses ingredientes
Esse texto não é sobre matemáticos
do urbano.
e previsibilidade, do mesmo modo, não é sobre os moradores de
Ora, temos esvaziado as ruas e,
condomínios fechados, com seus
em seguida, reclamamos que não
portais e seguranças armados,
são seguras? E as reclamamos
seus muros e o acesso a ilhas de
só para nós, os nossos – cuidado
segurança. Esse texto não é sobre
com as nossas crianças. Tornamos
sua “maligna” população, pois não
as praças secas (LOPES, 2009,
se trata de demonizar as pessoas
p. 181), perdemos a medida da
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desordem, da entropia necessária
que eram antes próprios da cidade
ao movimento do mundo e à
– o comércio (o mercado), a troca,
mobilidade humana. Esvaziamo-nos
o lazer, o encontro. Assim, vamos
do contato com o outro. Limitamos
esvaziando a cidade e alimentando
caminhos e experiências. Inventamos
sua representação de lugar perigoso
e fortalecemos inimigos. Tornamo-
a ser evitado. Como se a vida na
nos reféns desse imaginário, de
cidade fosse essencialmente ruim.
nossos medos. Estancamos as
A propaganda de um prédio num
trocas. Transformamos a experiência
bairro sobrevalorizado de Belo
da cidade em experiência de medo.
Horizonte informa: Aqui, a vida fora
Tornamo-nos imunes ao conflito,
do comum.
insensíveis à heterogeneidade e fazemos da voz do outro apenas
O que se diz nessa afirmação?
um ruído (RANCIÈRE, 1996), tal
Cabe já sublinhar esse paradoxo
como descreveu Jacques Rancière
em que nos metemos: o
em sua discussão sobre política.
outro nos é fundamental, mas
Assim, tornamo-nos refratários ao
desejamos eliminar a diferença.
desconhecido, ao desconfortável,
A homogeneidade do aqui em
ao outro. A materialização e a
contraponto ao “resto”, onde a vida
proliferação da cerca e do muro
é comum, requer a capacidade
é a concretização de nossas
de dissolver diferença em
estratégias de privação de
semelhança, ou, então, o outro
contato, de aceitação apenas do
extremo, transformar a diferença
que é semelhante a nós mesmos,
em dispositivo discriminatório.
a constante homogeneização,
Tal afirmação demanda, ainda,
alteridade cosmética e confortização
esfumaçar a potência da cidade
(NOGUEIRA, 2013). A alteridade
enquanto espaço de alteridade.
cosmética se apresenta na produção de territórios urbanos em que a
Em São Paulo, o Complexo Cidade
exposição não se dá, onde não há
Jardim reúne torres residenciais,
convite à leitura da cidade, pois ela
comerciais com acesso direto ao
já está decifrada. Não cabe invenção,
Shopping Cidade Jardim que,
troca. Essa dimensão cosmética
por sua vez, não está dotado de
serve ao encobrimento das
acesso aos pedestres.
marcas, refere-se à contenção das
Nesse shopping, cujo slogan afirma
diferenças, do risco, da resistência,
isto é inédito, não há entrada para
dos antagonismos.
pedestres; chega-se de carro, como forma de favorecer a exclusividade
Nesse processo, o shopping center transportou para seu interior usos
que o centro comercial propõe.
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Há pelo menos duas vias
Ainda assim, a psicossociologia
interessantes para se pensar a
sublinha: “Ora, a vida em comum
relação com o outro. A psicanálise é
é perigosa, tumultuada, ela destrói
a primeira via que nos vem à mente,
continuamente os pontos de
posto que Freud sempre colocou
referência, propõe sempre novas
em questão como as manifestações
aventuras” (ENRIQUEZ, 2005,
sensíveis de todos nós, por caminhos
p. 166). Fica claro que controlar
mais ou menos bem estruturados,
a desestabilização que o outro
estão articuladas ao processos de
provoca implica extinguir, em si
entrada do sujeito na cultura.
mesmo, a abertura ao novo.
Em seus textos, aqueles
No entanto, não existimos sem o
reconhecidos como sociais,
outro, simples assim:
o autor tentava explorar mais a fundo suas preocupações com a intersubjetividade. Não à toa, o autor demonstrou pouco otimismo com reação ao futuro desse projeto social que nos constitui, ainda que tenha dedicado poucas reflexões sobre nossa constituição como seres de falta (questão que parece ser vista de modo essencialista pelo fundador da psicanálise e, mais fatalmente, por muitos de seus seguidores). Ele chega, em 1921, a desenhar uma interessante descrição do que chamou de narcisismo das pequenas diferenças3, que justifica arranjos em que o outro é visto e usado pelo viés da desqualificação. Essa radicalização do outro, no entanto, não é levada como questão, mas como fato – o que deixa de fortalecer a teoria.
E cabe acrescentar que o próprio sujeito se constitui como sujeito pela existência do outro: é porque um outro nos ama, nos fala e nos olha que nós existimos enquanto sujeitos humanos. Sem a presença dos outros, nós não poderíamos aceder à humanidade (ENRIQUEZ, 2005, p. 163).
Ainda que a diversidade ameace a estabilidade psíquica, paradoxalmente, é a diferença que a constitui em sua natureza individual. A presença do outro em nós é incontestável e fundamental. Reconhecer a diferença do outro não pode ser esvaziá-lo de sua alteridade. Se os vínculos humanos estão carregados de hostilidade, conforme observa a psicanálise, não se trata de querer apagála, mas, antes, de tomá-la como integrante do processo civilizatório – reconhecê-la em mim, suportá-la,
3 Sobre narcisismo das pequenas diferenças: “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. [...] Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD, 2010 [1930], p. 60).
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proceder à modelagem de nossos meandros. O conflito intersubjetivo detonado neste contato é inerente à nossa sociedade. Não é possível ignorar, abstrair ou dissociar nada desse processo. Entretanto, parece que estamos insistindo em criar modos de nos tornarmos alheios ao desconforto que o outro nos provoca – de fato, um desconforto sobre nós mesmos. Isso se passa justamente porque o outro é capaz de revelar nossas limitações, uma vez que projeto nele aquilo que rejeito em mim, e ele passa a servir como eixo para a articulação de um mecanismo de defesa, em que o objetivo é anular o “mal” em mim mesmo, admitindo-o exclusivamente como característica do outro. Há outros caminhos teóricos, além da psicanálise, para se pensar a alteridade, igualmente potentes. As reflexões de José Saramago, no discurso de Estolcomo de 1998, quando o escritor foi reconhecido com Prêmio Nobel, descrevem bem como suas personagens, criaturas, são, simultaneamente, capazes de fazê-lo outro, tanto quanto seus avós. Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa [...] tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira
de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. [...] Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. (SARAMAGO, 1999, p. 17)
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Vemos aqui tanto a importância da
mortífero” (ENRIQUEZ, 2004, p. 51).
atividade, que, numa perspectiva
Por isso, uma reflexão sobre as novas
vygotskiana, vai favorecer com
e antigas formas de resistência no
que possamos nos apropriar da
urbano não é dispensável.
cultura enquanto, simultaneamente, vamos nela nos objetivando – o que
Se as possibilidades de condição
confere uma consistência objetiva
de lugar estão reduzidas, como
à subjetividade e explicita nossa
nos enclaves fortificados,
conexão social inescapável.
cabe reconhecer que, antes, são indeléveis. Não se trata
Podemos pensar, ainda, na dimensão
de simplesmente demonizar o
de poder que atravessa nossa
que parece homogeneizado. É
relação com a diferença. Ao mesmo
obrigatório pensar sobre como
tempo que a diferença nos é
fazer face à especulação urbana,
fundante, ela nos desgasta. Ambas,
à paranoia, aos novos fascismos
identidade e diferença precisam ser
e à despolitização das práticas
pensadas dentro dos sistemas de
cotidianas. Trata-se de buscar os
significação, sugere Tomas Tadeu
respiros de singularidade capazes
da Silva (2003), o que inclui a
de se fazerem sentir mesmo no seio
linguagem, sua instabilidade e seus
da padronização e do controle, do
jogos de poder. A identidade pode
conforto e da alteridade cosmética.
funcionar como uma norma, crivo
Lembrar o desejo pela cidade
através do qual o outro é visto e
porosa, pela heterogeneidade,
interpretado. Porém, esse crivo foi
pelo movimento. Carregamos em
constituído socialmente.
nós a privatização, não a sofremos simplesmente. Resistir, então, é
Subordinar-se à homogeneização
agir contra nossas referências
é esquivar-se da subjetividade que
tradicionais, estar abertos ao outro,
se processa como singularização
à diferença, ao imprevisto, ao acaso,
e devir, é aceitar que ela seja
ao risco.
apenas depositária de fórmulas de identidade. A homogeneização
Se, por um lado, temos a
é incapaz de compor o elo
proliferação dos espaços
fundamental entre eu e outro. Assim,
homogeneizantes, por outro, vemos
a redução substancial dos encontros
uma redescoberta da importância
e, logo, da alteridade, apresentada
do espaço público (é interessante
por esses arranjos urbanos nunca é
a titulação de movimentos com
total. Não pode ser, pois “recusar o
o termo occupy), o que não é
outro seria cair no narcisismo mais
nada desprezível (HARVEY, 2012).
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Afinal, os espaços públicos livres,
Trata-se de um respiro e a evidência
imprevistos, concretos e mesmo
de que não perdemos a capacidade
periféricos (livres da centralidade)
de imaginar cidades?
sustentam o reencantamento constante da vida urbana, como
Essas são ações pequenas, efêmeras,
evidenciam trabalhos como o de
frágeis e despretensiosas (ou não),
João Texeira Lopes, Sophie Watson,
mas são cumulativas. Umas dão
Richard Sennet, Paola Berestein
força e sentido para as outras,
Jacques, Regina Helena Alves da
traçando na nossa compreensão
Silva, no campo da academia.
uma leitura mais crítica do que se
Mas é isso também que a arte
passa no mundo, até que a gente
aponta, com muita insistência hoje
comece a se perguntar e a revindicar
em dia, em suportes diversos.
a cidade para nós. Como os convites propostos por tais ações, podemos
Vemos a proliferação de
ir passando do registro do já-dado,
intervenções artísticas que
ao campo aberto das possibilidades.
sublinham a importância das cidades
Como temos feito, felizmente.
para as pessoas, que recusam o
Ainda que não seja fácil. Aos poucos,
modelo da cidade mercadoria
temos começado a perceber que
que se tenta instituir em Belo
fazer um piquenique na praça
Horizonte, onde a arte, instalações,
não é proibido e, mais, é muito
performances, ações disruptivas,
interessante. A experiência num
vem se acomodando aos poucos na
espaço aberto, como numa praça,
compreensão dura de sociedade.
é qualitativamente muito diferente da experiência que temos num
Em Belo Horizonte, as lãs coloridas
espaço fechado, na praça de
que interligam as pessoas e a praça;
alimentação do shopping.
o homem que come as rosas com
Aos poucos, vamos tomando a
a etiqueta 8 de março e oferece as
cidade de volta. A arte na rua tem
hastes apenas aos outros homens
o poder de ativar nossa memória
passantes na Praça 7; a moça que
sobre para que/quem serve a
distribui panfletos em que se lê
cidade. Vamos redescobrindo que
10 maneiras incríveis para “perder
a condição opressora da cidade
tempo” com um bottom “perca
não é sua natureza, ao contrário,
tempo agora, pergunte-me como”;
as cidades floresceram como
mas há também aquele que, na
alternativa à servidão feudal,
aridez da praça da estação, sobe
a resistência e a política lhe são
numa escadinha de alumínio e,
fundantes.
lá de cima, abre um guarda-sol, oferecendo sombra à fila do ônibus.
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Por isso, não por acaso, vivemos
os horizontes, para que possamos
na cidade hoje. Cidade e política se
imaginar cidades.
interligam e a política é condição fundamental às subjetividades,
As poéticas invisíveis que fomentam
uma vez que a política diz respeito,
as experiências subjetivas
grosso modo, a alguma esfera de
contemporâneas não são fixas —
negociação das diferenças, elemento
derretem-se. Geopoéticas.
fundamental da produção de
São vários os fios e grãos que
singularidades. Assim, precisamos
percorrem tudo, marcando o peso
viver a diferença para negociá-la.
da relação espaço/subjetividade,
Só sabe lidar com a diferença quem
um peso sustentado na leveza da
convive com ela e, assim, a arte
poesia literária e visual, nas artes e
parece ter um papel fundamental
também no mais trivial, no cotidiano
na contemporaneidade, o de abrir
de quem habita uma cidade, de
caminhos para essa vivência e
quem habita várias cidades...
desconfortar, para que se ampliem
REFERÊNCIAS CALDEIRA, Tereza Pires do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2003 [2000]. CALDEIRA, Tereza Pires do R. Muros e novas tecnologias do público. In: ROCA, José (curadoria). Muntadas: informação, espaço, controle. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990a. ENRIQUEZ, Eugène. Psicanálise e ciências sociais. Revista Ágora, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 2, jul./dez. 2005. ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante ou inimigo? In: NOVAES, Adauto. Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. HARVEY, David. Rebel Cities: from the right to the city to the urban revolution. New York: Verso, 2012. JACQUES, Paola B. Corpografias urbanas. Revista Arquitextos/Vitruvius, v. 93, n. 02, p. 93. 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/08.093/165>. Acesso em: 21 jan. 2010.
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ANÔNIMO
1
Pedro Quintero e Vitor Brandão2
O projeto Anônimo nasceu de um
O muro nos fez pensar na questão
acaso, o nosso encontro com um
da ocupação do espaço urbano e a
muro coberto por stencils,
tensão entre o público, o privado e o
em Belo Horizonte.
comum. O comum representa aquilo que é de todos, uma vez que o muro
No início, o que nos chamou a
serve como fronteira, pois ao mesmo
atenção foi a quantidade e a
tempo em que ele delimita uma
variedade de stencils no muro que
propriedade privada, ele também
observados de perto revelavam uma
está na rua pública, em um caminho
riqueza infinita de detalhes.
que é comum a todos e exposto a qualquer intervenção que possa vir a
Aos nossos olhos, era uma exposição
acontecer.
ao ar livre realizada pelo artista dos stencils, pelos passantes que de
O artista que produziu os
alguma maneira intervieram naquele
stencils não assinou seu trabalho.
muro e também pelo tempo que aos
Acreditamos que tenha sido
poucos imprimiu novas camadas
justamente pelo desejo de tornar
e revelou cores de inscrições e
sua arte um bem comum, ou seja,
pinturas antigas.
de todos. E isso dá ao trabalho
1 Em 2014, apresentamos a exposição fotográfica “Anônimo” na VI Semana de Ciência, Arte e Política. 2 Alunos do curso de Publicidade e Propaganda da PUC Minas.
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um sentido novo, transgressor, se pensarmos que as ruas das grandes cidades é, cada vez mais, um espaço do mercado ou do estado, e cada vez menos dos que nela vivem. É exatamente por conta dessa pluralidade de sentidos em uma mesma obra, da tensão entre público, privado e o comum que a atravessa, da relação cidade e errantes, das inúmeras camadas e de sua fragilidade – já que uma tinta cinza pode detê-la a qualquer momento - que nós nos decidimos, tomados por sua potência, preservar esta obra por meio da fotografia. Posteriormente, as fotos transformaram-se em exposições financiadas por crowdfunding além de outros desdobramentos. E por meio da conexão redes e ruas, tivemos o prazer de conhecer o artista responsável pelos stencils, Adriano Paulino.
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O ESCRITOR E A CIDADE: horizonte belo e triste Raquel Beatriz Junqueira Guimarães1
Jamais poderei esquecer-me de ti Belo Horizonte, de ti nos teus anos vinte. E, se isso acontecer, que, como no salmo, minha mão direita se resseque e que a língua se me pegue no céu da boca. Belo, belo – Belorizonte. Minas – minha confissão. (NAVA, 1986, p. 306-307)
Na literatura brasileira, a cidade
De acordo com Valéria Machado,
moderna foi tema para muitos
o antigo Curral D’El Rei cedeu lugar
escritores, dentre eles Pedro Nava.
a uma cidade geometricamente
Para o memorialista, Belo Horizonte
planejada e ao traçado urbanístico
foi depositária do registro de
inspirado nos modelos europeus e
percepções sobre a modernidade, e
americanos do século XIX.
as mudanças da cidade se tornaram
Belo Horizonte, “inaugurada em
motivos poéticos para o escritor que
1897, símbolo da primeira grande
viveu ali na década de 1920.
obra da República brasileira,
1 Professora da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4190193491782323
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nasce como o marco de uma nova mentalidade que veio para limpar os rastros do passado e sepultar as marcas deixadas por três séculos de dominação do Império” (MACHADO, 2009, p. 81). Essa cidade, marco de uma nova mentalidade, está registrada nas páginas dos seis volumes das Memórias de Pedro Nava. Ao passear por elas, o leitor tornase um flâneur que transita pelas ruas das cidades por onde viveu o narrador-memorialista (Juiz de Fora, Belo Horizonte, Rio de Janeiro), isso porque, na obra de Pedro Nava, a escrita da memória é tecida na/ pela vida das cidades: as avenidas, as praças, a arquitetura, os transportes aparecem cerzidos ao footing dos namorados, aos hábitos das famílias tradicionais, ao corre-corre dos trabalhadores e dos estudantes. Tal como um cronista, Nava se preocupou em informar sobre a vida das pessoas nas cidades,
construção meio de tijolo, meio de madeira, com três entradas sem portas, pintada a óleo e dotada dum torreão para o relógio. Seu verde era semelhante ao dos pistaches e contrastava, qual outra cor, com os verdes dos seis renques de árvores da Avenida Afonso Pena e com os mais numerosos do Parque. Porque a estação debruçava-se sobre ele. (...) BAR – pelo café que lhe ficava em frente, escancarado para a via pública. Só entravam senhores. Logo à frente, à esquerda, um armário quiosque de metal brunido como ouro vivo, aquecido por forninho inferior e em cujas prateleiras estavam sempre quentes os bolinhos de carne, os pastéis, as espadinhas(sic) de galinha. Eram o fino do fino e custavam respectivamente tostão, tostão, duzentão. O balcão e a estante de cigarros — Londres, mistura especial, maço, pacote. O roliço 17. Petit Londrinos. Yolanda verde, Yolanda azul, Liberty oval ou redondo. (...) A freguesia habitual do cafezinho e da conversa. A especial, e mais demorada, das cervejadas ostensivas ou da cachacinha pudicamente tomada em xícaras, para não escandalizar a Família Mineira passando na rua.” (NAVA, 1985, p.3)
os pontos de encontro, as mudanças arquitetônicas pelas quais essas cidades passaram, a destruição e a reconstrução delas. Em Beira-mar, por exemplo, a narrativa autobiográfica é iniciada pela descrição de um ponto de bonde, lugar de encontro e de movimento da cidade moderna. PONTO – porque era o local da Estação dos Bondes. Vejo-a ainda,
A visão do narrador nos envia para a pintura do ponto e do bar com suas cores e sua arquitetura. A câmera do olhar do narrador flagra os habitués do bar, os transeuntes, o entra e sai dos compradores, os produtos em exposição e o cuidado “para não escandalizar a família mineira”,
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numa clara divisão entre os que
o funcionamento do lugar
estão dentro do bar, prováveis
demonstra que ele o conhece
profanadores da tradição, e os que
como quem faz parte, o constitui
passam lá fora, moças e meninas,
e se constitui nele, como um dos
senhoras da alta, homens sérios
materiais de sua composição.
debaixo dos óculos e do bigode.
O narrador-memorialista é parte do
Flanando pelo perímetro do “grande
lugar, do mesmo modo que o Ponto
Bar do Ponto”, o leitor acompanha
é constituinte da cidade, referência
os moradores da cidade indo à
para os moradores da nova capital.
Sapataria Central, à Papelaria e
Sendo assim, o narrador informa:
Livraria de Oliveira & Costa. Os frequentadores da região, e junto com eles o leitor, se alvoroça(va)m ao assistir à passagem de uma “menina e moça irresistível no seu grande chapéu de tagal enfeitado de largas fitas, no seu vestido de palha de seda, nas meias marrons moldando bemaventuradas pernas e cominando com a cor dos sapatos rasos ainda sem salto.” (NAVA, 1985, p. 5. Grifos do autor) Aliados à capacidade de o narrador pintar os lugares, aparecem o estilista que desenha a vestimenta das mulheres, e os fofoqueiros cujas “linguinhas trabalhavam, sobretudo dentro do Bar do Ponto. Que pernas, que seios os desta garota. (..) Dizem que aquela madama está dando. Quem está comendo é o. Esta, agora, não. ada uma recebia seu comentário” (NAVA, 1985, p. 5. Grifos do autor) Todo esse envolvimento do narrador com a arquitetura, o movimento, os costumes, a moda,
O café chamado Bar do Ponto estava para Belo Horizonte como a Brahma para o Rio. Servia de referência. No Bar do Ponto. Em frente ao Bar do Ponto. Na esquina do Bar do ponto. Encontros de amigos, encontros de obrigação. O nome acabou extrapolando, se estendendo, ultrapassando o estabelecimento, passando a designar o polígono formado pelo cruzamento de Afonso Pena com Bahia – local onde termina também a ladeira da rua Tupis.” (...) Bar do Ponto é um vasto hexágono irregular que tive várias vezes a honra de atravessar, no tempo em que se o fazia flanando, conversando, sem esperar o pare e o siga da luz vermelha, da verde, das mangas brancas dos guardas e do trilo de seus apitos”. (NAVA, 1985, p. 4. Grifos do autor)
Ao descrever o ponto do bonde e o bar que existia em suas proximidades, o narrador já antevê as transformações que aquele lugar sofreria, com o passar do tempo, ao anunciar que ali não havia sinais nem guardas de trânsito, que, posteriormente, se tornariam parte da paisagem e personagens dela.
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O narrador, no entanto, não fica apenas na apresentação das cores, formas, dores e amores que transitam pelo trajeto por onde “passava Belo Horizonte inteira” (NAVA, 1985, p. 5). Ele conduz o leitor ao conhecimento das mudanças ocorridas na cidade e o coloca em contado com a multidão de transeuntes, com a velocidade do bonde, e a véspera do trânsito marcado pela chegada dos carros. O narrador apresenta ao leitor as antigas edificações da cidade: O prédio ocupado pelo antigo Correio era uma linda edificação que ficava dentro do triângulo formado por Bahia, Tamoios e, à frente pela Avenida Afonso Pena. Era róseo, de arestas pintadas de branco, alternando largos janelões com elegantes janelas finas. Tinha porão habitável, dois pisos e seu maior requinte estava no vestíbulo cuja altura era a dos seus dois andares, juntos.” (NAVA, 1985, p.7)
E o faz acompanhar, conduzido pelo seu olhar melancólico, a demolição dos prédios da primeira Belo Horizonte: O magnífico exemplar da arquitetura da belle-époque foi derrubado para dar lugar a um arranha-céu e a repartição passou para defronte, sempre na Avenida, para outro próprio federal – o da Delegacia Fiscal por sua vez mudada para casarão quase ponto — que vinha sendo levantado como obra de Santa Engrácia, no mesmo logradouro,
na esquina defronte do Automóvel Clube. (NAVA, 1985, p. 7. Grifos do autor)
Ao flanar pela região do “Grande Bar do Ponto”, portanto, o leitor conhece a arquitetura em ruínas, não só a arquitetura da cidade que, tal como o prédio dos Correios fora derrubado, substituído, mas também a arquitetura da memória do narrador, que, inconformado com os acontecimentos, parece querer perenizar os tempos em que a cidade era nova, jovem como os jovens que circulavam por ela: Essa Igreja [Matriz de São José] é bem proporcionada e antigamente suas três torres destacavam-se no céu livre de Belo Horizonte. Hoje ela encolheu, perdeu altura, esmagada pela palissada(sic) de arranha-céus construída nas suas costas. Da via pública subia-se o adro imponente trinta e oito degraus, interrompidos por três patamares. Assim como o Viaduto de Santa Teresa ligou-se à história do modernismo pelas acrobacias do poeta da geração dos 25, aqueles degraus pertencem também à história do admirável grupo dito de 45. Um dos seus componentes era aficionado a descer e a subir, de automóvel, a rampa escabrosa. E era sentado nos seus degraus, na noite impossível de Belo Horizonte, que Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Rubião, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino — puxavam sua angústia. Como nós, vinte anos antes, na esquina de Álvares Cabral e Bahia, abancados nos
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degraus da Caixa Econômica. (NAVA, 1985, p. 7)
Por essa descrição da frequência dos jovens às escadarias da Matriz de São José, aos arcos do Viaduto Santa Tereza, e aos degraus da Caixa Econômica, o leitor é remetido não só à irreverência juvenil dos escritores na convivência com os espaços urbanos, mas também à história dos outros jovens da cidade e da literatura ali praticada. Os jovens, no entanto, não circulavam apenas por esses espaços centrais da cidade, por onde todos passavam. Iam, naturalmente, para os outros ambientes, mais clandestinos que ficavam em outro cenário, no quadrilátero da zona: Esse compreendia tudo que ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque, vasta área de doze quarteirões de casas. (...) Para nele chegar era preciso marchar rampas abaixo e daí o significado especial de descer dado pelos belorizontinos à ação de ir à zona, à patuscada, à farra, ao cabaré lá embaixo. (NAVA, 1985, p. 54)
A cidade do movimento, da modernidade, do bonde, da zona, é, para o narrador de Beira-mar, um pedaço da França, metrópole da cultura, da arte e do lazer. “A rua Guaicurus era um pedaço de Marselha jogado no sertão”; e o narrador se sentia mais arrebatado “na sala de danças da
Maciela, da sabarense Rosa Maciel” do que no foyer do Operá de Paris. (NAVA, 1985, p. 54-55. Grifo do autor) Para além dessa presença da cidade (des)construída, do lazer e das reuniões juvenis, do bordel, das conversas intelectuais, o narradorpersonagem traz também sua visão da cidade-floresta, e a vida pacata, do tempo dos coronéis: Moraríamos vários anos na Floresta. No quarteirão formado por Januária, Pouso Alegre, Jacuí e Rio Preto, sempre em casas do seu coronel. Residimos sucessivamente no 327, do primeiro logradouro; no 690, do segundo; no 185. Mais tarde é que fomos para um prédio do Seu Raul Mendes, à Avenida do Contorno, mas isto já em período de aculturação e ensaio de abandono do velho bairro do Júlio Pinto. (NAVA, 1976, p. 129)
Antes de o jovem experimentar as delícias da vida na região principal da cidade, vivencia, ao chegar à capital, uma espécie de choque de cultura, e só depois de a futura metrópole ser reconhecida pelas caminhadas juvenis, é que o menino de Juiz de Fora se torna o jovem que, adaptado, passa a frequentar os lugares centrais da cidade e suas ruas de lazer alternativo. Diferentemente do que ocorre nas primeiras páginas de Beira-mar, o memorialista, em Balão Cativo
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leva o leitor para percorrer partes
a presença marcante de certa
de uma cidade mais provinciana que
angústia do crescimento que não se
metropolitana, longe dos prédios,
pode frear:
repleta de chácaras, casarões, que viriam a ser demolidos e
A Avenida Amazonas só tinha
substituídos por prédios ou novos
quatro quarteirões e a cidade
traçados de ruas.
mandava tímidos prolongamentos para a Serra, a Barroca, o Calafate,
A cidade-floresta e suas chácaras
o Bonfim, a Floresta. (...) Entretanto
povoadas de gente recolhida,
crescera para além do Cruzeiro,
apresentada em Balão cativo, é,
materializara o círculo da Avenida
também, comparada a Paris, e pela
do Contorno, tomara conta do Barro
memória do narrador, efetiva-se um
Preto, canalizara o Córrego Leitão,
processo de aglutinação por meio
asfaltara o Centro e ligava-se,
do qual promove-se o encontro da
sem descontinuidade, ao Calafate,
província com a metrópole francesa.
ao Carlos Prates, ao Bonfim,
Quando se olham os mapas históricos de Paris, vemos seu início, Lutécia, circunscrito à Citè, à Ilha de São Luís; depois seu extravasamento nas duas margens, sua progressão até às muralhas de Filipe Augusto — englobando a superfície que hoje nos mostra a Sorbonne, o Panteon, o Instituto e, do outro lado, o Louvre (...) Prosseguem os círculos concêntricos nas linhas dos fermiers généraux e de Thiers. Mas a cidade enjamba cada limite que se lhe dá e Paris continua (...) Assim também Belo Horizonte. Quem Caminha nas calçadas de Aimorés, Sergipe, João Pinheiro e Guajajaras, que se avizinham da Boa Viagem, este perlustrando, na Cidade de Minas, o que foi A Cité para Paris. (NAVA, 1976, p. 144).
Junto com esse processo de aglutinação que compõe o modo de lembrar a cidade, há, ainda,
à Lagoinha. Estendeu-se mais ainda, em todas as direções (...) mas não vai parar! (NAVA, 1976, p. 144-145). Impressionado com a rapidez das mudanças, o memorialista procura, por meio da escrita, recuperar cada detalhe daquela época, quer registrar tudo, porque, afinal, escrever memória é “um ajuste de contas do eu com o eu” é transfundir vida e essa vida é a verdade. E a verdade são as ruínas da cidade transformada, desfigurada pelo tempo. A verdade é a juventude finda. Para manter o passado, o memorialista, por meio do narrador-personagem, procura lembrar, obstinadamente, de cada detalhe da cidade-floresta e da cidade Bar do Ponto, mas em sua tentativa de suspender o processo de arruinamento da cidade, não o consegue controlar, porque,
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como todo processo de memória,
como a cidade-floresta da década
“lembrando estamos provocando o
de 1920.
esquecimento. Depois de escrito, o que foi ressuscitado estará, então,
A cidade lembrada, definitivamente
definitivamente morto”
morta, está, entretanto, viva em
(NAVA, 1985, p. 199).
cada grupo de jovens que circula por suas praças, avenidas, prédios
Morto, definitivamente morto,
públicos, estabelecimentos
como ficou o antigo Curral D’El Rei,
comerciais, ruas, vielas, favelas;
cujas edificações foram derrubadas
está viva para os que fazem da
“por não coincidirem com o cenário
cidade hoje, em 2015, (e fizeram em
projetado para a nova capital,
2005, 1995, 1985, 1965...)
que previa a divisão da cidade em
o lugar conhecido, no qual padecem,
três áreas: central, suburbana e
esperam, amam, discutem,
rural.” (MACHADO, 2009, p. 82);
manifestam; está viva para os que
mortos, definitivamente mortos
conhecem cada pedra das calçadas,
como os prédios demolidos para a
cada tijolo das sarjetas, cada bueiro,
construção de arranha-céus,
cada poste, cada árvore; viva para os
mortos como os jovens que
que distinguem seus odores e suas
circulavam pela Matriz de São José,
cores de todas as horas.
pelo Viaduto de Santa Tereza,
Viva para os que nela vivem
pelo quadrilátero da zona, morta
(NAVA, 1985, p. 10).
REFERÊNCIAS NAVA, Pedro. Chão de Ferro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. NAVA, Pedro. Beira-mar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. NAVA, Pedro. Balão cativo. Rio de Janeiro: Livraria Jose Olympio Editora, 1976. MACHADO, Valéria Aparecida de Souza. A cidade moderna: Belo Horizonte nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade. Revista Outra Travessia n. 8. Cidades da periferia, periferia das cidades. Florianópolis: UFSC, 2009. GUIMARÃES, Raquel. Pedro Nava, leitor de Drummond. Campinas: Pontes, 2002.
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“VENHO POR MEIO DESTA” Izabella Dutra, Paulo Cantalice, Thainá Nogueira1
Cresci com uma imagem de você
A sua imensidão está mesmo nos
gigante e, quando cheguei aqui,
detalhes... As luzes acesas, o céu
percebi que nem tudo o que
azul escuro - quase negro da noite
imaginei era verdade.
caindo -, o cheiro das compotas de
Esse seu comportamento adulto não
doces saindo das janelas, o vermelho
abandona as pequenas partes que
madeira da catuaba, o amarelo bolha
fizeram de você o que você é hoje.
dos pastéis. As sombras do asfalto, a Bahia, a freguesia, a gelada.
Aos sábados, eu percebia o tamanho
A fazenda: o galo, o coelho, a raposa.
da minha gritante carência pelo seu
O vermelho e o branco, o indo e o
movimento. O quintal cimentado era
vindo.
a minha rua, era a avenida que eu só conhecia de ouvir falar. Era a minha
Foi meio assim quando saí de lá e
Cristiano Machado, minha Antônio
cheguei mais perto de você.
Carlos, minha Tereza Cristina. Meu
No começo achei que estava no
carro era um patinete que vivia
lugar errado, porque não havia
batendo em vassouras.
nenhuma praça ali. Mas toda
E aí, enquanto eu ficava parada no
aquela gente desconhecida, todos
sinal vermelho imaginário, pensava
aqueles carros, prédios, ambulantes,
no quão legal devia ser ficar presa
moradores de rua, lanchonetes,
em um congestionamento.
tudo aquilo me abraçava de
1 Alunos de Jornalismo da PUC Minas.
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alguma forma. Eles eram a minha
palavra, mas eu não acho que eles
companhia naquele desconhecido.
saibam o real significado do verbo
E aquelas luzes, as luzes que me
amar. Porque depois de um tempo,
iluminavam pela TV, estavam agora
eles vão mostrando as tais das
diante de mim. Nada mais podia me
garras, tão temidas. Eles querem que
amedrontar.
você seja como eles e que você faça o que eles fazem.
Aí eu mergulhei. Ficamos íntimos em semanas e tudo o que eu fazia era
Se não for assim, você não é bom
relacionado a você.
o suficiente para ser parte do seu grupo de amigos.
Talvez seja porque sempre senti que lá não me cabia direito ou porque
Você está repleta de ursos. E esses
eu te imaginava como um cara
ursos às vezes me afastam de você.
superlegal e moderno, que abraçava
Às vezes volto a sentir aquele medo,
todo mundo e já chegava dizendo:
aquele sentimento estranho de
“agora você é um de nós!”.
quando cheguei aqui. Mas ainda
Talvez seja também por essa sua
assim eu tento me manter em você.
vontade de se perder na juventude,
Eu me distraio com sua arquitetura,
entre o rock e a Praça do Papa,
com os seus contrastes, com o fogo
ou pelo amor ao pão de queijo e as
que te mantém vivo localizado em
rotinas não muito importantes.
seu centro.
Só que sinto cada vez mais que para
Quando nos encontramos pela
ser aceito por você é preciso muito
primeira vez, éramos só textura e
mais do que simplesmente ter boas
cores, pele e tato. Hoje fizemos o
intenções.
que queríamos e agora já é tudo saudade.
Tem muita gente querendo mandar em você e você nem sabe disso.
Talvez por esse seu dom de diminuir
São uns ursos. Eles são lindos à
o espaço entre as pessoas, ou talvez
primeira vista, e o colo deles parece
seja culpa minha, que fico tentando
ser imenso e confortável. Parece que
disfarçar essa minha solidão...
eles querem abraçar todo o mundo
E assim, sem perceber, vou levando
com amor. Aliás, eles amam essa
os dias e as horas.
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PAISAGENS URBANAS: uma discussão interdisciplinar
José Wanderley Novato Silva1
O conceito de paisagem, nascido na
mas também são formadas de
Geografia, foi logo adotado pelas
movimentos, odores e sons - isto
Ciências Biológicas quando um dos
é: contêm componentes materiais
seus campos, a Ecologia, dedicou
e não-materiais aos quais são
especial atenção ao estudo das
atribuídos valores financeiros,
relações entre os seres vivos e o
sentimentais e simbólicos.
meio que habitam. Posteriormente,
O musicólogo canadense Murray
os estudos culturais inseriram
Schafer, por exemplo, desenvolveu
o homem na paisagem, e esse
o conceito de “paisagem sonora”
conceito revelou-se bastante útil
(SCHAFER,1997) para analisar
na abordagem da dinâmica social,
os sons como componentes das
desde as contribuições iniciais
paisagens, e as soundscapes
da Antropologia até os trabalhos
urbanas incluem, naturalmente,
contemporâneos das várias ciências
a poluição sonora, os músicos de rua
sociais, quando o desenvolvimento
e os vendedores ambulantes.
econômico expandiu os seus efeitos a todas as regiões do planeta.
Dentro dessa ampla discussão, a progressiva urbanização das
As paisagens não têm uma
sociedades fez com que as
dimensão unicamente espacial,
paisagens urbanas fossem cada vez
1 Professor da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9171380556226032
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mais estudadas em abordagens que
específicos. As paisagens urbanas
ultrapassam os campos disciplinares
incluem “paisagens temporárias” e,
tradicionais.
tanto os estragos causados por uma
Essa interdisciplinaridade representa
enchente ou um atentado terrorista,
um esforço para compreender
quanto os engarrafamentos
como no meio urbano interagem
cotidianos das grandes metrópoles
elementos naturais, culturais,
são exemplos de paisagens
sociais e econômicos - e como
entendidas nessa dimensão.
os indivíduos, tomados em sua dimensão simultaneamente
Como seres divididos entre um
biológica e psicológica, percebem as
mundo interior, constituído por
paisagens específicas em que vivem.
símbolos, e um mundo exterior, construído pela razão, vivemos
Trata-se de uma discussão que
uma “confusão espacial”: o espaço
ocupa geógrafos, ecólogos,
entendido como o mundo da nossa
sociólogos, antropólogos e
experiência corporal como faz a
psicólogos; ao mesmo tempo, a vida
“fenomenologia da percepção”
nas cidades é diretamente afetada
(MERLEAU-PONTY, 1999), o espaço
pelo trabalho de formuladores de
entendido como o lugar da história
políticas públicas, economistas,
(incluindo a história econômica),
urbanistas, publicitários e arquitetos
o espaço como lugar antropológico
– e também de cada cidadão, em
que condiciona a sensibilidade
suas ações cotidianas individuais ou
humana à sua dimensão cultural,
coletivas.
e o espaço como ambiente natural, mesmo que violentamente alterado.
As paisagens urbanas são
As paisagens urbanas são, assim,
caracterizadas pelas relações, nos
exteriormente, simultaneamente
diferentes espaços das cidades,
paisagens geográficas, econômicas,
entre indivíduos que podem ou
culturais e ecológicas.
não se conhecer, e que podem ser um contato efêmero ou bastante
Um dos impasses entre as
duradouro, como no caso das
ciências sociais e a psicologia
relações de vizinhança. E essas
nessa discussão foi o banimento
relações podem ser alteradas de
das percepções individuais da
forma lenta ou instantânea, tanto
constituição de qualquer ciência,
pelo envelhecimento natural das
como propôs Sauer, um dos
pessoas e das coisas, quanto por
geógrafos criadores do conceito
alterações naturais ou artificiais no
de “paisagem cultural”. Seria
espaço físico, sendo reconstruídas
possível afirmar que os indígenas,
cotidianamente em ritmos
os mexicanos, os espanhóis e
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a população norte-americana
de ações explicadas em parte pela
descendente de ingleses atuaram
dimensão social, compondo um tipo
na Califórnia unicamente a partir de
de “ecologia social”. Assim, a análise
percepções culturalmente - e não
de uma esquina de uma grande
individualmente - determinadas?
cidade revela múltiplos significados
Para alguns pesquisadores, reduzir
grupais (para adolescentes, para
os seres humanos a organismos sem
desempregados, para consumidores,
nenhuma autonomia significa adotar
para os donos de loja etc.), mas
um modelo bastante desfavorável
também individuais - e sem o
aos indivíduos (mesmo que isso
elemento simbólico a compreensão
não seja epistemologicamente
desse espaço torna-se impossível.
importante). De qualquer forma, a reificação ou a externalidade da
Além disso, o esquecimento da
cultura surge, nessa perspectiva,
dimensão biológica pelas ciências
como algo “mitológico” ou
sociais significa um esquecimento
“metafísico”. Nessa perspectiva as
simultâneo do mundo dos sentidos –
instituições deixam de ser vistas
e a vida urbana deixa os indivíduos,
como produtos da interação social,
de fato, um pouco distantes dessa
envolvendo conflito e negociação,
dimensão - que, nas sociedades
para serem a expressão de um todo
rurais, por exemplo, é bem mais
harmônico chamado “cultura”.
importante.
Acerca dessa questão polêmica
Outra abordagem que inclui
alguns geógrafos, como Duncan
os sentidos deriva do conceito
(1980), associam-se às mudanças
de “percepção ambiental”, que
no pensamento antropológico
se tornou um tema importante
que sugerem não o abandono do
para a Geografia (a “Geografia
conceito de cultura, mas a sua
da Percepção”) – uma postura
não-reificação – isto é, a cultura deve
epistemológica criticada por alguns
ser entendida como um “contexto
geógrafos, no entanto,
para”, e não como um “determinante
por ter um caráter mais estético que
de” escolhas, abrindo lugar para a
científico. Mas, embora o conceito
liberdade e criatividade individual.
de paisagem tenha nascido junto com representações científicas que
No entanto, a autonomia dos
procuravam ser muito objetivas
indivíduos tem de ser compreendida
(a cartografia e o trabalho dos
em sua limitação - pelo fato de
naturalistas), esses estudos também
eles estarem necessariamente
tinham um viés delimitado – o
vinculados a algum tipo de grupo,
olhar do viajante. E geógrafos
cuja ação resulta de um conjunto
importantes desenvolveram
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conceitos diferentes de paisagem; em Dardel (2011), por exemplo, a paisagem é “impressionista”, uma
A PAISAGEM URBANA E A CIÊNCIA ECONÔMICA
experiência vivenciada unificadora
Do ponto de vista dos impactos do
de muitos elementos. Em uma
desenvolvimento econômico sobre a
linha similar, outro geógrafo, Tuan
natureza, um dos primeiros grandes
(1980) postulou que a questão de
estudos intitulou-se “Os limites do
como as pessoas criam um mundo
crescimento”, e foi elaborado por
significativo para suas vidas deveria
um grupo de economistas para
compreender o conceito de “lugar”.
o chamado “Clube de Roma” em
Como uma crítica à geografia como
1972. Esse estudo gerou um certo
“ciência dos espaços”, o “lugar”,
desconforto entre os economistas
para esse autor, envolve um modo
por afirmar a impossibilidade
de relacionamento com o mundo –
da generalização planetária do
também uma “experiência”.
modo de vida dos países ricos – pela pressão sobre os recursos
A compreensão das paisagens
não renováveis ou pela poluição
urbanas apresenta também a
lançada no ambiente - negando
necessidade da compreensão da
os pressupostos sobre os quais
sua dimensão comunicativa, que
a ciência econômica havia sido
inclui tanto a comunicação como
construída. Embora esse estudo
transmissão de informações quanto
tenha sofrido críticas posteriores,
a comunicação simbólica – como
ele é importante na medida em
um contato que aproxima indivíduos
que a ciência econômica fez
que partilham um mesmo sistema
uma reflexão acerca dos seus
cultural. Assim, à medida que o
fundamentos e colocou em bases
conceito de paisagem cultural foi
científicas uma “impressão” que
sendo ampliado, os trabalhos sobre
se generalizava entre os críticos
paisagens urbanas foram envolvendo
do capitalismo (e mesmo entre
temas mais complexos e específicos,
os seus defensores) – isto é: a
como cidades decadentes, shopping
possível falência dos pressupostos
centers e condomínios e, mesmo
da economia passou a compor o
que o conceito de paisagem não
novo quadro em que as paisagens
seja mencionado, a sociologia
econômicas passaram a ser
urbana transformou-se em grande
discutidas.
parte em um estudo de “paisagens sociais”, coincidindo em muitos
Schumpeter (1997) via o que
pontos com os trabalhos feitos sob
foi chamado de “destruição
a denominação da “antropologia
criadora” como garantidora do
urbana”.
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progresso econômico, a partir
Harvey (2004) viu também nas
do seu funcionamento como
dimensões de espaço e tempo as
motor do eterno impulso para
fontes de poder social. Do ponto
adiante do capitalismo: cada nova
de vista temporal isso pode ser
tecnologia sucateia a precedente.
notado a partir da monetarização
É forçoso admitir, então, que o
progressiva das relações da vida
progresso científico passa assim a
social e da criação de uma rede
ser o patrocinador da “destruição
cronológica artificial para a vida
criadora” tanto dos produtos
cotidiana a partir dos horários de
quanto da cultura, à medida que
trabalho. Do ponto de vista do
as novas tecnologias criam novos
espaço, o mapeamento do mundo
hábitos de consumo que modificam
abriu o caminho para a apropriação
os padrões tradicionais de
e o controle mais efetivo do espaço,
habitação, alimentação, vestuário e,
controle esse que foi se difundindo
principalmente, de convivência.
a partir da constatação de que todo
A aliança entre a ciência e a
o complexo da produção envolve a
lógica do capital fez com que o
organização espacial, que partindo
conhecimento científico assumisse
das fábricas e dos escritórios,
a dianteira do processo de
conforma as cidades e procura
transformação das paisagens.
se infiltrar mesmo nos espaços domésticos.
Os impactos dessa aliança sobre as concepções de espaço e tempo
Analisando o ambiente do
individual na vida social,
capitalismo contemporâneo Dupas
e particularmente na vida urbana,
(2006) descreveu o que chamou
são importantes.
de “mercado da pobreza”; nessa
Outros autores também
perspectiva não apenas as paisagens
identificaram elementos de caráter
dos países do Terceiro Mundo vêm
sociopsicológico na relação
sendo então progressivamente
indivíduo e espaço, ao longo da
ocupadas pelo capitalismo, mas
história da sociedade ocidental.
também a sua inserção como
Foucault (1979), por exemplo,
mercado de consumo tornou-
estudou a organização do espaço
se importante para as grandes
dedicado às técnicas de controle
corporações – e os efeitos dessa
social; Michel de Certeau (2007)
realidade sobre as paisagens
analisou as formas clandestinas
urbanas são muitos, incluindo uma
de organização popular para se
tendência à homogeneização e à
libertar justamente dessas redes de
invasão desenfreada da publicidade
disciplina.
em todos os espaços públicos (e até domésticos).
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É inegável, além disso, que os aspectos econômicos da contemporaneidade estão
MAIS ESTUDOS INTERDISCIPLINARES
diretamente ligados a alguns
Entre tantos outros, dois autores
dos problemas que impactam
de contribuições relevantes para
diretamente a vida nas cidades,
o estudo das paisagens urbanas
entre eles a devastação ambiental,
contemporâneas o fizeram sob uma
que se relaciona à controvérsia sobre
perspectiva bastante interdisciplinar:
a mudança climática e à ocorrência
Edward T. Hall (2005), que em seus
de catástrofes naturais; a poluição,
trabalhos incluiu a antropologia,
o uso de pesticidas e a
a sociologia, a comunicação e o
industrialização dos alimentos –
urbanismo, entre outros campos,
que estão ligados aos problemas
e Stuart Hall (2006), que em seus
de saúde dos indivíduos – e muitos
estudos culturais também incluiu
outros.
outras áreas do conhecimento, como a comunicação e as ciências
Isso tem obviamente gerado
políticas.
adaptações e resistências, e junto às proposições do ambientalismo e
A obra de Hall (2005) tratou a
de um “ecocapitalismo” vem sendo
paisagem no que ele chamou de
criado, ainda de forma incipiente,
“dimensão proximal” – a zona de
um movimento original de recusa
interação que existe na esfera
à compressão do espaço-tempo
de movimentação cotidiana
e à aceleração da velocidade nas
dos indivíduos. Ele partiu do
várias dimensões da vida social:
entendimento da cultura como
trata-se do movimento Slow
um complexo de vários níveis de
(“Devagar”), que propõe várias
comunicação, e foi a partir desse
formas de desaceleração da vida
entendimento que estudou a
em sociedade, como os movimentos
percepção que os indivíduos têm do
Slow Food, Slow Schooling e Slow
espaço pessoal e da interação social.
Travel - proposições analisadas por
Para tanto, chamou de “antropologia
Honoré (2007) como constituintes
do espaço” as observações sobre o
de uma nova forma de vida urbana
uso que o homem faz do meio físico,
- as Slow Cities. Embora a proposta
entendendo o uso do espaço como
seja bastante simpática para muitas
uma elaboração especializada da
pessoas, trata-se de um movimento
cultura.
ainda embrionário que visa à criação de “micropaisagens de resistência”.
Escrevendo na década de 1960, Hall (2005) colocou o trabalho, senão
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como uma evidência,
a culturas diferentes vivem em
ao menos como um forte indício da
“mundos sensoriais” diferentes; as
validade da hipótese elaborada por
diferenças notadas na percepção
Whorf (1956) de que o pensamento
das paisagens entre viajantes e
humano é conformado pela
“nativos” quando entram em contato
linguagem. Ao abraçar essa tese,
encontra nessa argumentação uma
ele colocou o trabalho no centro de
explicação bastante razoável.
três questões bastante controversas, mas importantes e contemporâneas:
Além disso, a consideração dos
a primeira, sobre a associação
problemas que a urbanização
entre linguagem e pensamento;
crescente da população mundial
a segunda, sobre os mecanismos
trazia na época em que escreveu
de percepção do sistema nervoso
(particularmente nos Estados
e a linguagem; e a terceira, sobre
Unidos), fez com que esse autor
o funcionamento computacional
colocasse a paisagem urbana
da mente. Elaborando a discussão
em uma posição central nas suas
do espaço físico e localizando-a
análises, pois ele lembrava que
também dentro da cultura, mas
qualquer evento que aconteça na
com referências interdisciplinares
história da humanidade acontecerá
à evolução humana e ao
necessariamente num cenário
comportamento animal, colocou-
espacial, fazendo com que o projeto
se, cinquenta anos atrás, em uma
desse cenário exerça uma influência
posição bastante avançada até os
profunda e persistente sobre as
dias de hoje.
pessoas que ali estejam. A partir dessa constatação, a psicologia
Ele analisou o papel dos sentidos
dos indivíduos passa em sua obra
em diferentes culturas, chegando
a encontrar a arquitetura e o
à conclusão de que os filtros da
urbanismo.
cultura, através da linguagem, implicam num funcionamento
Os estudos contemporâneos do
diferente do sistema nervoso –
urbanismo, mais do que a ação
isto é: confrontados pela mesma
de projetar e ordenar as cidades,
experiência os sistemas nervosos
comporta a análise desse fenômeno
centrais não são alimentados
que, a partir do final da Idade Média
pelos mesmos dados, e o registro
na Europa, tornou-se progressivo,
feito pelo cérebro não é similar,
acompanhando a expansão do
transformando a “experiência” em
capitalismo (embora já tenha
algo não confiável, porque não
existido em outros períodos e
é “objetiva” – ela é mediada pela
locais, como a Grécia clássica ou as
cultura. Pessoas pertencentes
civilizações pré-colombianas):
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a concentração espacial da
produtor codifique seu texto de
população e os seus problemas –
uma forma específica, o receptor
déficit de habitações, dificuldades
irá decodificá-lo dentro de uma
relacionadas ao deslocamento dos
“margem de entendimento”. As
indivíduos, aumento da violência,
análises de Hall (2006) abrem assim
entre outros.
a possibilidade de considerações acerca da percepção da paisagem
Hall (2005), a respeito, fez uma
pelo acréscimo da dimensão
análise de várias características da
interpretativa e da variabilidade de
paisagem urbana: a superlotação
significados que ela pode comportar,
e a compressão dos espaços
a partir do contexto sociocultural de
domésticos, a fuga das classes
quem a percebe.
médias, as comunidades fechadas, o stress urbano, e o que ele chamou
Além disso, ele abordou questões
de “síndrome do automóvel”
acerca do multiculturalismo e dos
pelos impactos desses veículos na
conflitos interculturais na sociedade
paisagem, visto que o automóvel é,
contemporânea que são importantes
segundo ele, “o maior consumidor
para a consideração das paisagens
de espaço público e privado jamais
no contexto da globalização cultural.
criado pelo homem” (p. 218).
Segundo Hall (2006), as identidades culturais - étnicas,
O outro autor mencionado no início
raciais, linguísticas, religiosas e
desse tópico, e que empreendeu
nacionais - estão em crise. Segundo
estudos interdisciplinares
ele, o “eu iluminista”, centrado e
importantes para a consideração
autossuficiente, foi substituído
das paisagens urbanas, é Stuart Hall.
inicialmente pelo “eu sociológico”
Ele analisou o uso da linguagem e
no qual a identidade é definida
os impactos da mídia na sociedade
pela interação social – e, hoje, o
contemporânea segundo a “teoria
“eu pós-moderno” é descentrado
da recepção”. Em sua análise,
pelo fim dos valores e tradições
a comunicação envolve um
das sociedades tradicionais, pela
processo ativo de recepção de
sua colocação num contexto
um “texto” (escrito, oral ou visual)
de rupturas institucionais e
no qual a negociação em torno
comportamentais, e pela rápida
da significação da mensagem
interconexão entre muitas áreas
depende de variáveis diversas
diferentes do mundo, gerando
do receptor e do seu contexto
mudanças no comportamento e
(grupo social ou étnico, padrão
levando à fragmentação dos modos
cultural e nível de conhecimento).
de vida. Hall (2006) entendeu que
Mesmo considerando que o
as culturas nacionais são “discursos”
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– narrativas que criam um sentido
Marcada pelo sincretismo e pelo
que organiza as nossas ações e
hibridismo, a paisagem cultural
a concepção que temos de nós
global, progressivamente urbana,
mesmos. Os membros de uma
e que tende por um lado à
nação são muito diferentes – todas
homogeneização pelos modos e
as nações contêm diferentes povos,
técnicas de produção econômica
classes sociais e grupos específicos
e pela criação de uma sociedade
- mas todos participarão da mesma
global de consumo, comporta muitas
cultura nacional “se acreditarem na
“paisagens culturais específicas”,
mesma história”. Para esse autor, o
que envolvem diferentes formas
mesmo vale para a identidade racial:
de convivência e de conflitos
trata-se de uma categoria discursiva,
– incluindo o ressurgimento de
e não de uma realidade genética.
nacionalismos e fundamentalismos.
Essas categorias formam grupos que
A conclusão de Stuart Hall é
convivem, negociam e entram em
que, não criando o global, nem
conflito nas grandes cidades,
dissolvendo o local (como se
e as paisagens urbanas – bairros,
esperava “pela força irresistível
prédios, locais de esportes e
da modernidade”) e, ao contrário,
manifestações culturais – são em
fazendo ressurgir ou reforçando
parte assim delimitadas.
lealdades étnicas, o próprio Ocidente estaria dando continuidade
Lembrando que o processo de
ao processo continuado de seu
globalização é, na verdade, um
“descentramento”.
processo de “ocidentalização”, Hall (2006) salientou pontos importantes da paisagem cultural
OUTRO OLHAR SOBRE AS CIDADES
global que está em formação - entre eles a assimetria da globalização,
Finalizando este texto é interessante
os processos de reforçamento
buscar, numa perspectiva de
das identidades locais e os efeitos
inversão antropológica, a visão do
não previstos dos processos
“outro” – as sociedades indígenas,
de descolonização, como a
por exemplo – sobre as paisagens
imigração dos habitantes dos
urbanas do Ocidente. A percepção
países da “periferia” para os países
nesses casos pode tanto levar a
centrais. Guattari (1990) chamou
casos curiosos, como a atenção
a atenção para esse fenômeno na
concedida pelos indígenas a
Europa chamando-o de “terceiro-
alguns objetos desprovidos de
mundização”, e declarando a sua
qualquer atrativo para os moradores
irreversibilidade.
das cidades, como postes de iluminação, quanto à compreensão
117
das dificuldades dos integrantes de várias etnias indígenas em reconhecer alguns alimentos ocidentais como “alimentos” (mesmo em situações de fome), além das diferenças de percepção acerca de estados como “estar nu”, e muitos outros. No relato do xamã yanomami Davi Kopenawa, que visitou várias vezes a Europa e os Estados Unidos nas décadas de 1980/90, colhido pelo antropólogo francês Bruce Albert, ele discorreu sobre o temor causado em sua infância pelo contato com os brasileiros “civilizados”: os aviões, o cheiro do cigarro e da gasolina, e a violência. Ao final desse relato, mostrou o seu ponto de vista sobre as metrópoles ocidentais: Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto.
Algumas cidades são belas, mas seu barulho não para nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os yanomami são mentirosos! O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar (...). Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se elas fossem suas namoradas. (KOPENAWA apud NOVAES, 1999, p. 20).
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GUATTARI, F. As Três Ecologias. São Paulo: Papirus, 1990. HALL, E.T. A Dimensão Oculta. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HALL, S. A Identidade Cultural da Pós-Modernidade. São Paulo: DP&A Editora, 2006. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2004 HONORÉ, C. Devagar. Rio de Janeiro: Record, 2007. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. NOVAES, A. (org.) A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 1999. SCHAFER, M. A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 1997. SCHUMPETER, J. A Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997. TUAN, Y. F. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. WHORF, B. L. Language, Thought and Reality (Selected writings). Cambridge: Technology Press of Massachusetts Institute of Techno
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UM MUNDO ONDE TUDO É AO CONTRÁRIO1 Amanda Marina Lima Batista2
Como diria Galeano, estamos em um
O projeto “Sonhos nunca serão
mundo onde tudo é ao contrário.
demolidos” nasceu da tristeza
Com as cidades, não é diferente:
de ver, diariamente, partes do
trocamos espaços coletivos por
São Gabriel serem demolidas em
privatizações, porque o modelo
nome da melhor fluidez do modelo
capitalista de cidade desenvolvida
rodoviarista falido da cidade. As
visa atrair grandes investimentos
famílias se mudando, as crianças
e para isso abre mão dos espaços
brincando nos escombros e o bairro
públicos em nome de centros
de periferia, antes tão cheio de vida,
comerciais e outras “maravilhas”
se tornando vazio, restando apenas
privadas. Investimos nos projetos
ratos, insetos e poucos moradores,
mais poluentes e danosos em
ainda lutando por outro lugar para
detrimento do meio ambiente e do
morar, por uma indenização mais
bem-estar social. Há cerca de quatro
justa.
anos em Belo Horizonte, surgiu a ideia de um novo terminal rodoviário
Desses moradores resistentes, um
cujo local escolhido para construção
casal de idosos, José Norberto e
foi o bairro São Gabriel.
Geralda, se destacou em função
1 Este texto integra o Projeto “Sonhos nunca são demolidos” que resultou em uma instalação em 2013 e uma exposição fotográfica na VI Semana de Ciência, Arte e Política. 2 Aluna do curso de Direito da PUC Minas no São Gabriel.
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de sua imensa solidão devido à
ao verem o trator desfazer sua
remoção e de sua linda história: eles
conquista. Seguem querendo
estavam juntos há trinta e quatro
espaço nessa cidade que os expulsa
anos e nunca haviam se casado, mas
e explora. E é essa luta que nosso
ainda tinham a esperança e o sonho
trabalho busca registrar, para que
de fazerem isso. Sem filhos, estavam
não nos esqueçamos deles e para
inseguros e tristonhos em deixarem
entendermos que a cidade é de
a casinha, cujo segundo andar Sr.
todos e que isso é uma violação.
Norberto estava pintando e havia
Essa violação é fruto de uma
acabado de construir há pouco.
urbanização elitista e higienista que exclui e causa sofrimento.
Realizou-se, então, com a ajuda de muitas pessoas, um ato simbólico
Importante salientar que o que
em relação à luta daquelas famílias
houve no bairro São Gabriel é uma
e de muitas outras comunidades:
pequena amostra do que ocorre, em
o casamento do Norberto e da
proporções até mais desumanas,
Geralda. Foi um ato de despedida,
nas grandes cidades brasileiras
resistência e alegria. Hoje, nossos
como Belo Horizonte. Atualmente, o
recém-casados estão no bairro
Brasil possui um déficit habitacional
Belmonte e recebendo bolsa aluguel
inferior ao número de imóveis vazios
até o famoso “predinho” ficar pronto.
segundo o Censo 2010. Minas Gerais,
A antiga casinha da Rua Doutora
que é o segundo estado com o
Denise já foi demolida, mas o
maior número de habitações vazias,
momento de cooperação e harmonia
conta com cerca de 689 mil imóveis
que se fez não será apagado.
vazios contra 444 mil famílias que compõem o déficit habitacional
Não mesmo. No muro da estação
mineiro estimado pelo Sinduscon-SP.
de metrô, que em breve dividirá lugar com a Rodoviária, está pintado
Com a Copa do Mundo, a
“Sonhos nunca serão demolidos”,
higienização social cresceu ainda
uma homenagem dos artistas
mais, especialmente contra a
grafiteiros à luta pela moradia de
população em situação de rua e
todas as famílias que perderam suas
os moradores de vilas, favelas e
casas. Essa frase se encontrava em
ocupações. Há uma crescente bolha
outra parede do São Gabriel e já foi
imobiliária nas grandes cidades
destruída.
brasileiras que, além de cercear o sonho da casa própria, ainda remove
Entretanto, a mensagem persiste,
e marginaliza mais os pobres e suas
assim como todas as famílias. Elas
moradias. Estamos vivendo a época
seguem resistindo e “re-sonhando”
das cidades de exceção descrita
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por Carlos Vainer na qual a exceção legislativa vira regra para tornar a cidade atraente perante os grandes empreendimentos com benefícios fiscais, além de obras que favoreçam a estética da cidade em nome do progresso urbano ligado às grandes empresas, especialmente às grandes construtoras. Enquanto isso, os movimentos sociais disputam o espaço público com essas forças econômicas, seja por meio de protestos, seja por meio de eventos que valorizam a essência coletiva das cidades, como a Praia da Estação, o Duelo de MCs e o Espaço Comum Luiz Estrela que ocorrem na capital mineira ou por meio da resistência das ocupações urbanas em nome do direito à moradia digna. Esses acontecimentos demonstram o que seria o verdadeiro progresso urbano: a construção de uma cidade plural onde caibam todxs. A luta de todas essas pessoas é diária e, aparentemente, caminha mais vagarosamente que os grandes empreendimentos que sufocam a cidade. Mas a construção dela é uma semente de um mundo melhor. Afinal, como também diria Galeano, vivemos em um mundo muito ruim, mas que está “grávido” de um mundo melhor.
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CIDADES: a espacialização da paisagem cultural
Cláudio Listher Marques Bahia1
A descrição da paisagem de uma
que a vivenciam.
cidade é mais do que qualquer
Para tanto, propõe-se como base
entendimento lógico-científico que
desta investigação: a antropologia -
se possa ter da própria cidade.
por considerar a questão do sentido
Esta reflexão formula outra
da existência por meio da “leitura”
investigação de paisagem pela
do mundo social, aprofundando
dilatação do tempo e espaço da
o conhecimento do homem pelo
cultura urbana, passando a buscar
homem; a fenomenologia - por
outra descrição - a paisagem
tratar a questão do espaço vivido,
cultural das cidades. Pelo viés
referindo-se a experiência primária,
fenomenológico da geografia
anterior a qualquer representação
cultural, deixa-se de valorizar apenas
lógico-científica; e a hermenêutica
a descrição do mundo físico e
- por abordar a questão da
humano para também enfatizar a
temporalidade vivida, pela fusão
descrição do mundo vivido, onde a
de horizontes do fato observado
relação cidadão/cidade é percebida
e do observador no seu momento
e interpretada pelos vários sujeitos
presente.
1 Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7694046038497957
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E, identifica-se, na dinâmica dessas
paisagem? Qual o significado
três bases de investigação,
contemporâneo do termo
um ponto convergente - a relação
paisagem cultural? Observa-se,
do homem com o espaço e o tempo,
por hipótese, que o estudo da
na qual se fundamenta toda a
paisagem apresenta, sobretudo,
interpretação desta reflexão: cidades
uma questão de ordem
– a espacialização da paisagem
epistemológica, e necessita de uma
cultural no tempo. Não se pretende
abordagem metodológica para
referir às espacializações urbanas
sua compreensão. De acordo com
apenas por meio de suas geografias,
George Bertrand (2002),
de suas experiências estéticas
a paisagem não é apenas recortes
passadas, de suas arquiteturas
de elementos de determinada área
visíveis e compositivas do cenário
do conhecimento humano de inter-
urbano, mas, antes de tudo,
relacionamento improcedente.
entender a paisagem das cidades
É, em uma determinada porção do
como uma construção cultural da
espaço e do tempo, o resultado
vida civil e da sociedade no tempo.
da combinação dinâmica, desse
Compreende-se que o território
modo instável, de elementos físicos,
urbano é uma espacialidade dotada
biológicos e antrópicos que, em
de valores socioculturais próprios
uma relação dialética, tornam a
de cada temporalidade. A questão
paisagem um conjunto único e
que se apresenta pela investigação e
indissociável da vida humana, em
construção da paisagem cultural das
constante evolução. Não se trata
cidades implica uma territorialidade
apenas da paisagem “natural”, mas
estabelecida pelo conjunto de
da paisagem total que integra as
práticas e expressões materiais
implicações da ação antrópica.
e simbólicas que garantiram e garantem a apropriação e a
O estudo da paisagem das cidades
permanência do lugar da sociedade
deve sim apresentar um problema
urbana no espaço construído.
de método. Principalmente, se a
Entende-se o espaço construído
paisagem é adjetivada pelo termo
como um lugar cujo conceito está
cultural, o seu entendimento requer
subordinado à organização espacial
atenção de uma investigação
- é o espaço revestido da dimensão
científica, pois uma determinação
política, socioeconômica, cultural
de paisagem cultural, a priori,
e de sentido identitário, histórico e
remete-se a um complexo ambiente
relacional do sujeito que o habita.
de significação antropológica, que indica uma inicial e geral
Todavia, uma questão crucial permanece: afinal, o que é
compreensão do termo cultura:
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Sistemas de valores subjacentes que
tema específico de investigação.
estruturam as tomadas de posturas
Entretanto, no século 20,
fundamentais da vida cotidiana, que
paulatinamente o termo paisagem
passam despercebidos à consciência
foi sendo desconsiderado pelas artes
dos sujeitos, mas são decisivos
e vem se transformando em objeto
para a sua identidade individual e
da pesquisa acadêmica e, no século
de grupo. (CERTEAU & GIARD &
21, tem se reafirmado na pluralidade
MAYOL, 1997, p. 347).
conceitual, na formalidade estrutural e na forma de apreensão, passando
Considerando-se sua origem a
a ser objeto de interesse de
partir da descrição do ambiente
estudos de geógrafos, arquitetos e
que envolve o homem, o estudo
historiadores.
da paisagem cultural das cidades ocupa-se atualmente, com maior
Numa perspectiva contemporânea
atenção, da rede relacional que
da geografia cultural, Augustin
historicamente liga os homens ao
Berque (1998) definiu paisagem a
território.
partir da dinâmica de dois conceitos: paisagem-marca e paisagem-
Este trabalho objetiva uma base
matriz. Marca, pois expressa uma
teórica geográfica para uma
civilização, e matriz porque participa
metodologia que construa um
dos esquemas de percepção e de
entendimento sobre paisagem
ação da cultura – que canalizam,
cultural hoje. A questão
em certo sentido, a relação de uma
metodológica para a compreensão
sociedade com o espaço e com
do termo paisagem cultural das
a natureza, e, consequentemente
cidades firma-se a partir de uma
a paisagem de seu ecúmeno. O
perspectiva transdisciplinar pela
estudo da paisagem, que tendo
Geografia, Arquitetura e História.
sua origem pela descrição do ambiente que envolve o homem,
IDENTIDADE, LUGAR E PAISAGEM
ocupa-se com maior atenção, com a rede relacional que historicamente liga, por exemplo, os cidadãos
O termo paisagem remete sua
ao seu lugar – a cidade, e parte
origem ao século 15 e, até o século
para uma investigação de relação
20, apresentou-se como vocábulo
dinâmica e dialética da paisagem
mais aplicado à atividade artística
em si e as categorias de análises
da pintura, e não provocando
estabelecidas por Roger Brunet
discussões sobre seu significado,
(1995): fisionômica, da percepção e
nem maiores preocupações
dos sistemas.
conceituais e muito menos foi
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A paisagem além de carregar
das práticas políticas e culturais.
a marca da cultura se constitui também objeto privilegiado dos
No pensamento tradicional
trabalhos da geografia cultural e
geográfico a paisagem ocupou papel
cuja interpretação é uma tarefa
relevante, inclusive no âmbito da
fascinante para os geógrafos
abordagem morfológica tradicional
ocupados com as realidades
da cidade, sendo, posteriormente,
culturais, entendendo que cultura é
abandonada pela corrente teórico-
um fator essencial de diferenciação
quantitativa, reemergindo na
social, uma construção que
perspectiva humanística. O tema
permite aos indivíduos e grupos se
paisagem volta ao debate da
projetarem no futuro e nos aléns
geografia como, por exemplo:
variados; em suma, é a mediação entre os homens e a natureza
- o conceito de paisagem urbana
e ainda pode-se constatar que
como aspecto particular da evolução
a geografia cultural apresenta,
geral do conceito de paisagem –
desde seus primórdios, uma base
maior riqueza de reflexão teórico-
antropológica e um crescente
metodológico, acarretando
referencial fenomenológico,
facilidade na compreensão dos
principalmente na publicação de
fundamentos epistemológicos nas
L‘homme et laterre: nature de la
variações históricas do termo;
réalité geographique de Eric Dardel, em 1952, e no texto de apresentação
- e o entendimento de paisagem
da reedição pelos geógrafos
cultural a partir da interação dos
franceses Jean-Marc Beese e
três temas da paisagem urbana
Philippe Pinchemel, em 1990.
abordados por Horácio Capel (2002) – a dinâmica morfológico-
O pensamento fenomenológico
funcional urbana, a compreensão
iniciado nos meados do século 20
da cidade como fato cultural e
na geografia cultural revelou um
análise tecnológica das informações
processo de renovação no qual a
espaciais (GIS).
tradição humanista, alicerçada em Ratzel e Vidal de La Blache, e a
No desenvolvimento do pensamento
posição teórica da geografia cultural,
geográfico observa-se que
em Sauer – Escola de Berkeley,
na trajetória dos conceitos de
foram reavaliadas por geógrafos
paisagem identificam-se aspectos
contextualizados na valorização da
de convergências e divergências.
cultura. A nova tarefa da geografia
A geografia cultural surge das
cultural foi tratar de examinar o
paisagens e da diversidade dos
papel das paisagens na constituição
gêneros de vida, e, pela cultura
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institui o sujeito, a sociedade
afetiva e simbólica, é o mundo da
e o lugar onde é desenvolvida
existência, dos lugares, da paisagem,
a coletividade, resultando na
que rearranja as dimensões do
identidade coletiva que delineia
conhecimento, e principalmente
as marcas exteriores e explica as
lugar daquelas ações no mundo
diferenciações dos sistemas de
vivido.
valores nos quais se desenvolvem os grupos humanos.
A geografia cultural tomou parte das preocupações contemporâneas
A perspectiva fenomenológica da
sobre as questões e fenômenos
geografia cultural valoriza e enfatiza
identitários, em especial pela
a descrição do mundo vivido, onde
identidade dos lugares e sua
a relação sujeito/objeto é percebida
interatividade na formação
e interpretada pelos vários agentes.
da consciência individual e de
O sujeito que olha todas as coisas
grupo, que, pela perspectiva de
também pode olhar a si mesmo e
Dardel, foi elaborada a partir da
reconhecer-se no que está vendo,
geografia humanista. Os geógrafos
como definiu Merleau-Ponty,
humanistas, mesmo não tendo uma fundamentação fenomenológica,
o mundo não é aquilo que penso,
favoreceram as bases da
mas aquilo que eu vivo; estou
fenomenologia na geografia ao
aberto ao mundo, comunico
pensar os lugares e as regiões como
indubitavelmente com ele, mas não
mundo vivido.
o possuo, ele é inesgotável... ele é um meio natural e o campo de todos
Mais recentemente, a geografia
os meus pensamentos e de todas
cultural apresentou um emergente
as minhas percepções explicitas.
e discreto viés fenomenológico em
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.14).
que se percebe a compreensão do espaço como espaço vivido.
Esse mundo que não é o que se
E assim a paisagem, criadora e
pensa, mas aquilo que se vive, está
criatura do processo de urbanização,
relacionado na fenomenologia
da rede urbana e da vida da
de Merleau-Ponty e também na
cidade, constitui-se lugar fértil
geografia cultural de Dardel.
- mundo vivido, à investigação fenomenológica da geografia
Para Dardel a Geografia não
cultural, conforme afirmação de
considera a natureza em si, mas
Werther Holzer (1996),
a relação dos homens com a natureza, uma relação existencial
A paisagem, assim como o lugar
que é, às vezes, teórica, prática,
e a região, é um desses termos
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que permitem à geografia colocar-
os pensamentos do intelectual
se como uma das ciências das
Thomas Kuhn, do filósofo sociólogo
essências nos moldes propostos
francês Henri Lèfebvre, do geógrafo
pela fenomenologia. Ela nos remete
americano Edward Soja e, no Brasil,
para o mundo que é um campo
também geógrafo Milton Santos,
que se estrutura na relação do eu
assistindo-se assim, nessa evolução,
com o outro, o reino onde ocorre
um crescente acirramento de
nossa história, onde encontramos
uma realidade do conhecimento
as coisas, os outros e nós mesmos.
geográfico de intensa diversidade
(HOLZER, 1996, p. 72).
temática e de um cenário epistemológico difuso.
Pensando a fenomenologia na geografia cultural referenciada
A partir dessa reflexão
em Dardel, localiza-se também
fenomenológica e epistemológica
o pensamento de Edward Relph
pode-se observar uma convergência
(1978), que compreende o lugar
de postura crítica entre três áreas
como mundo vivido, mas vai além
de conhecimento distintas: a
ao definir que não há limites a serem
Geografia Cultural, a Arquitetura e
delineados entre espaço, paisagem
a História. Esta convergência toma
e lugar – lugares têm paisagem, e
nítido contorno quando se observa
paisagem e espaços têm lugares
que os arquitetos contemporâneos
(RELPH, 1978, p. 3).
têm considerado a cidade como um lugar distinto em suas formas
O lugar é entendido, conforme
de organização urbana, de
Mathias le Bossé (2004), como
manifestações cotidianas, de seus
o baluarte fundamental da
ritos e de seu ritmo: a memória
identidade cultural, não só pelo
cultural das marcas da interação
sentido naturalista, mas pelo
entre cidade e seus cidadãos na
vínculo fenomenológico que ancora
experiência vivida no seu momento
naquilo que Dardel determinou
presente, entendendo que a cidade
como geograficidades. Os lugares
revela uma paisagem significante
desempenham papel fundamental
que confere ao seu morador a
na formação de consciências
noção de pertencer a um lugar que
individuais e coletivas.
é único, mundo vivido, e a um povo que tem identidade própria. Então,
Hoje, se observada a epistemologia
mais recentemente pela Arquitetura,
geográfica, de ciência moderna,
verifica-se que é a paisagem cultural
preconizada por Kant, à fronteira
das cidades que lhe confere unidade
da Geografia Cultural, reafirmada
e situa o seu habitante no tempo e
por Dardel, encontram-se também
no espaço.
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Afinal, que paisagem é essa?
sociedade, e ainda estar intimamente relacionada à natureza. A arquitetura
Pelo olhar contemporâneo, cultura
dos edifícios não representaria mais
e cidade são entendimentos
que um aspecto de uma realidade
indissociáveis e constituem o vetor
mais complexa, de uma estrutura
componente do objeto desta
particular, mas ao mesmo tempo,
reflexão - a paisagem cultural das
seria o dado último verificável
cidades.
dessa realidade mais concreta com o qual se pode encarar a cidade.
Destarte, apresenta-se aqui uma
Nessa perspectiva, considera e
abordagem epistemológica aliada a
caracterizam-se os edifícios como
uma ação transdisciplinar elegendo a
“fatos urbanos” (ROSSI, 1998, p. 22).
Geografia, a História e a Arquitetura
Na ideia de Amos Rapoport (1969),
como ambientes investigatórios da
segundo certa ênfase conceptiva e
paisagem cultural das cidades:
projetual arquitetônica, entendeuse a arquitetura como um ambiente
a) a História, pela reflexão
construído organizado por
humanística; a análise histórica
quatro elementos: espaço, tempo,
a partir dos conceitos de
comunicação e significado, que
descontinuidade, de ruptura,
caracterizam os edifícios como
de limiar, de limite, de série,
espaços arquiteturais qualificados
de transformação. A História
como lugares, dotados de
determina não somente questões
significação, e fundamentalmente
de procedimento, mas também
espacializados pela praxe social.
problemas teóricos.
E, numa simplificação de sua própria ideia, Rapoport concluiria que ao
b) a Arquitetura, pela manifestação
conceber um projeto arquitetônico
absolutamente coletiva, inseparável
organiza-se o tempo e o espaço.
da formação da civilização e
Bernard Tschumi (1999), ainda,
objeto permanente universal e
opôs-se à noção superestimada
necessário, no qual a arquitetura
da forma arquitetural, mais
é dado real que se remete à
particularmente reintegrou o termo
experiência concreta do sujeito
função, e reescreveu o movimento
no mundo, assumindo dimensão
das pessoas no espaço junto com
existencial e, concomitantemente,
a ação e eventos que se localizam
caracterizando-se em suas bases
dentro do campo político-social
estáveis - ambiente propício à vida
arquitetônico. A definição de
e intencionalidade estética, nesse
Arquitetura como simultaneamente
sentido diferindo-a de outras artes
espaço e evento trouxe de volta
e ciências por dar forma concreta à
o interesse político ou, mais
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precisamente, a questão do espaço
e o momento presente estabelecem
como relativo à prática social.
a tarefa de integração pétrea entre
Concluiria Bernard Tschumi, que,
o agora e o antes. E, finalmente, na
se a Arquitetura não é “forma pura”,
consolidação do tempo e espaço
nem exclusivamente determinada
dos edifícios como ambiente da
pela estrutura socioeconômica ou
práxis social, a Arquitetura mostra-
funcional, a pesquisa para a sua
se transcendente de sua própria
definição deve-se desenvolver na
representação cultural, por não ser
dimensão urbana. Observou-se
apenas um testemunho de uma
que tais autores, ao relacionarem
forma de organização dada pela
o homem ao ambiente construído,
cultura, mas por ser também sua
consideraram os edifícios
guardiã, conferindo, à questão
como obras de Arquitetura que
edilícia e urbana da Arquitetura
fundamentam e organizam-se
status de fato cultural.
no tempo e espaço da existência humana. Entenderam, como na
c) a Geografia, pela natureza
acepção de Maurice Merleau-Ponty
científica; dentro de uma perspectiva
(1945), formulada na sua obra
de estudos urbanos na geografia
Fenomenologia da Percepção, o
cultural, procura-se a partir de
espaço não como uma categoria
uma atitude epistemológica
abortada das coisas, mas o
uma metodologia que resulte
mediador de sua existência. Se
numa definição de paisagem
espacialmente está implícita a
cultural. A Geografia como ciência
dimensão da existência do homem
sempre foi esse pensamento
nas definições de arquitetura
extraordinariamente ativo, essa
de Rapoport e Tschumi pelo
anterioridade de tratar todo ser
entendimento de que “o corpo é
e seu ambiente a princípio como
o sujeito do espaço – o espaço
objeto em geral e no segundo
é existencial porque pertence a
momento nas particularidades,
própria essência do ser”, como
a um tempo como se eles nada
definiu Merleau-Ponty (1999, p. 337),
fossem e, no entanto, se achassem
esses autores compreenderam
predestinados aos nossos artifícios.
também que o tempo está
Portanto, manifesta-se sempre no
relacionado com a vivência.
homem uma forma de pensamento
Essa vivência é a experiência
de natureza geográfica, no qual
temporal no espaço vivido, além de
indagações de ordem espacial,
representar valores estruturantes da
tais como aquelas associadas à
memória e da existência rotineira da
localização, ao deslocamento e ao
vida urbana, nos quais a interação
território imediato, ainda emergem
de obras de arquitetura do passado
como questões indissociáveis
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da sobrevivência. Ou melhor,
Objetiva-se, portanto, compreender
epistemologicamente do empirismo
e interpretar a cidade pela sua
à ciência e fenomenologicamente
dinâmica cultural e seus predicados
um retorno às coisas mesmas .
morfológico-funcionais para que, numa ação posterior, compreender
Entende-se que a paisagem cultural,
e interpretar o espaço urbano
a partir da Geografia, da Arquitetura
constitua o acontecimento do objeto
e da História, é um aspecto
observado - a própria cidade.
fundante e peculiar da civilização, representativa do processo de
A conceituação de paisagem cultural
intenção do homem com o meio
das cidades está alicerçada no
natural, considerando o caráter
patrimônio de cultura da sociedade,
dinâmico da cultura com a qual a
formado por bens de natureza
vida e a ciência humana produzem,
material e imaterial, nos quais se
por exemplo, a cidade - suas formas
incluem as formas de expressão,
de organização, suas manifestações
saberes e fazeres, criações
cotidianas, seus ritos, seu ritmo -
científicas, artísticas e tecnológicas,
imprimindo marcas ou atribuindo
as edificações, os conjuntos urbanos,
valores à paisagem urbana.
espaços para manifestações
PAISAGEM CULTURAL – uma questão de método transdisciplinar
artístico-culturais, sítios de valores históricos e paisagísticos, e outros. Com a instrumentalização e os pressupostos teórico-metodológicos
No século 20, o termo cultura
da transdisciplinaridade
apresentou um esgotamento de seu
geoarquitetônica-histórica, ocupa-
significado, restringindo-se a uma
se esta reflexão, que após uma
discussão particular da vida social,
abordagem histórico-evolutiva dos
concebida como um “modo vida
conceitos de paisagem cultural
cultivado” como também no “estado
e, em particular, de paisagem
mental do desenvolvimento de uma
urbana, passa-se da imprescindível
sociedade”. (ORTIZ, 1988, p. 19).
fundamentação epistemológica
E a paisagem urbana entendeu-se
do estudo da paisagem urbana à
pelo caráter dinâmico da cultura e
investigação empírica da paisagem e
da ação humana sobre o território
sua inerente relação orgânica com a
urbano e pela sua convivência
evolução urbanística das cidades.
com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e
Nesse panorama, uma
social.
problematização se faz possível pela transdisciplinaridade da Arquitetura
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166
e Urbanismo, da Geografia e da
tempo, companheiro das gerações,
História – o entendimento da
e é constituída para além da sua
paisagem cultural como ação para
imagem física, delineando-se por
estruturação conceitual da atividade
um conceito mais amplo e dinâmico
do arquiteto-urbanista no processo
de cidade – paisagem cultural,
e sobre o fenômeno da urbanização
entendendo-se por cultura, como
contemporânea e sua consequente
Vidal de La Blache, aquilo que se
intervenção e preservação.
interpõe entre o homem e o meio, e humaniza as paisagens. Mas é
A constituição do patrimônio
também uma estrutura geralmente
cultural e da memória urbana é uma
estável de comportamento, que
prática característica dos Estados
interessa descrever e explicar.
modernos que, pelos seus agentes, recrutados entre os intelectuais, e
Destarte, apresenta-se como base
seus instrumentos jurídicos, abalizam
metodológica uma abordagem
um conjunto de bens naturais ou
epistemológica aliada a um
construídos na esfera pública. Pelo
substrato legal e a uma ação
valor que lhes é atribuído, como
transdisciplinar, elegendo a
manifestações culturais e como
Geografia, a História e a Arquitetura
símbolos urbanos e naturais, esses
como ambiente investigatório.
bens merecem proteção, visando
Contudo, com raras exceções, as
a sua transmissão às gerações
pesquisas, por exemplo, não se têm
futuras. E, mais do que garantir sua
se envolvido com a sofisticação
transmissão, é necessário também
teórica e nem com o papel no
o entendimento de que a cidade
processo social da paisagem.
como paisagem cultural, no seu tempo presente, é um território
Neste estudo, a paisagem cultural
significante que confere ao morador
é fundamentada e organizada
a noção de pertencer a um lugar
no tempo e espaço da existência
que é único e a um povo que tem
humana; e o tempo está relacionado
identidade própria. A partir do
com a vivência e essa vivência é
patrimônio e da memória urbana,
a experiência temporal no espaço
contextualizam-se não apenas o
vivido, além de representar valores
bem de referência, mas todo o
estruturantes da memória e da
espaço apropriado historicamente e
existência rotineira da vida urbana,
constituído na paisagem urbana. A
nas quais a interação do passado e
paisagem da cidade tem vitalidade
o momento presente estabelecem a
porque tem lastro e porque vive,
tarefa de integração pétrea entre o
inserindo-se dinamicamente no
agora e o antes.
167
E, finalmente, na consolidação do
- e a estrutura transversal de um
tempo e espaço como ambiente da
pensamento geoarquitetural-
práxis social, a paisagem cultural
histórico.
mostra-se transcendente de sua própria representação cultural, por
Entendendo a transdisciplinaridade
não ser apenas um testemunho de
como última fronteira do processo
uma forma de organização dada
cognitivo humano, não só pela
pela cultura, mas por ser também
transversalidade do conhecimento
sua guardiã, conferindo à questão
da Geografia, da História e da
paisagem das cidades status de fato
Arquitetura, mas como também
cultural.
pelo procedimento científico a partir de um pensamento complexo que
Assim, pela abordagem
visa à criação de uma meta e não
fenomenológica da historicidade
de um ponto de vista, inicialmente,
e preservação da essência do
referencia-se, no espaço e tempo,
conteúdo epistemológico da
nos conhecimentos geográficos,
evolução do espaço e tempo
arquitetônicos e históricos - pelas
urbano, este trabalho organiza a
identidades e territorialidades
transversalidade do pensamento
das rupturas epistemológicas
geográfico, arquitetônico e histórico
socioculturais, e no termo paisagem
pelas rupturas epistemológicas e
- pela amplitude e polissemia
paisagens das cidades.
conceitual. O objetivo não está em fazer uma adição de conhecimentos,
Como investigação dos limites da
mas selecionar e organizar
faculdade humana de conhecimento
conhecimentos necessários para o
e os parâmetros condicionantes
entendimento da paisagem cultural
da validade desses conhecimentos
de cidades, advindo da ciência
entende-se a epistemologia da
geográfica e sua linha tênue que
cultura urbana que, juntamente
limita o comprometimento e a
às fronteiras com a pesquisa
autoridade das outras disciplinas –
geográfica, histórica e arquitetônica,
Arquitetura e História.
define-se: Por meio da estrutura de - a análise e os critérios
temporalidades de ruptura e
intermediadores da dinâmica
consequente matriz epistemológica
da aquisição do saber a partir
e transdisciplinar geoarquitetural-
de situação empírica para o
histórica, a paisagem cultural
conhecimento científico;
apresenta-se como um conceitochave, a partir do qual se supõe
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a construção de uma abordagem
uma interpretação de base
metodológica mais rica para
fenomenológica e hermenêutica,
o entendimento do termo na
por meio de um observador
contemporaneidade. Assim,
situado no presente, que percebe
dentro de ambientes culturais
as cidades a partir de sua
distintos descritos pelas rupturas
experiência cultural através do
epistemológicas geoarquitetural-
tempo. Este estudo apresenta a
históricas, observa-se que os
questão urbanística referenciada
conceitos de paisagem não
ao itinerário antropológico das
estabelecem unanimidades
cidades, pressupondo a construção
temporais ou disciplinares, mas
cultural da imagem urbana
uma mutação permanente.
associada à identidade do cidadão,
Entendimentos diversificados
no tempo e no espaço, pela atitude
convivem em diferentes momentos
transdisciplinar da Geografia e seus
históricos, mesmo que alguns
limites com a História e a Arquitetura
significados – objetivos e subjetivos,
da cidade.
marca e matriz, real e representação, material e imaterial – apareçam
Desse modo, a questão
dominantes em alguns períodos
metodológica para a compreensão
e conceitos menos evidentes
do termo paisagem cultural firma-
atravessem uma temporária latência
se a partir de uma perspectiva
para uma renovação posterior.
transdisciplinar e pauta-se tanto pela identificação e análise
Este estudo é uma abordagem
de rupturas, paisagens do
investigativa da paisagem cultural
conhecimento geográfico e pela
intencionalizado e fundamentado
análise transdisciplinar – Geografia,
em uma metodologia transdisciplinar
Arquitetura e História.
de pesquisa estabelecida sobre
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