ANAISDASCAP PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO
ANAISDASCAP BRASIL EM TRANSE
Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)
X SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL
ANAIS DA SCAP BRASIL EM TRANSE: Democracia, Tecnologia e Direitos Humanos
PUC-MG Belo Horizonte 2018
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel (10. : 2018 : Belo Horizonte, (MG) S471a Anais da SCAP: Brasil em transe: democracia, tecnologia e direitos humanos / organizadora: Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC-MG, 2018. E-book (189 p.: il.)
ISBN: 978-85-8239-105-1
1. Brasil. [Constituição (1988)]. 2. Direitos humanos - Congressos - Minas Gerais. 3. Democracia - Brasil. 4. Ciência e tecnologia. 5. Direitos e garantias individuais - Brasil. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Campus São Gabriel). III. Título.
CDU: 342.7(100) Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999
7
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EXPEDIENTE
Organização e Edição:
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:
Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez
Revisão:
Prof. Mário Francisco Ianni Viggiano
Fotografias:
Filipe Chaves e Luís Siqueira
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Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes
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Coordenadora de Extensão:
Coordenador de Pesquisa:
Coordenadora da
Pastoral Universitária:
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva
Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues
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ÍNDICE EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12
DESINVENTANDO O BRASIL
Ivana Bentes 17
DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: uma análise do Brasil Robson Sávio Reis Souza 65 contemporâneo
A DEMOCRACIA EM QUESTÃO: pontos e contrapontos
TECNOCIÊNCIAS E SUBJETIVIDADES: uma leitura por territórios, fluxos, máquinas e universos
VERSOS DE LIBERDADE E VENTURA DE SER
João Carlos Lino Gomes Pe. Márcio Antônio de Paiva 113
Bruno Vasconcelos de Almeida
145
Breno Bede 183
12
EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Política
nestes ANAIS “BRASIL EM TRANSE:
– SCAP é um evento acadêmico que
Democracia, Tecnologia e Direitos
integra o Ensino, a Pesquisa,
Humanos” nos artigos e ensaios:
a Extensão e a Pastoral Universitária
Desinventando o Brasil, de Ivana
na PUC Minas São Gabriel.
Bentes; Direitos Humanos em
Por meio da interdisciplinaridade
Tempos Sombrios, de Robson Sávio
e pautada por debates acerca de
Reis Souza; A Democracia em
questões contemporâneas,
Questão, de João Carlos Lino Gomes
a SCAP objetiva a formação geral
e Pe. Márcio Antônio de Paiva;
e humanística não só do corpo
Tecnociências e Subjetividades, de
discente, mas também do corpo
Bruno Vasconcelos de Almeida;
docente, técnico-administrativo e
nos Versos de Liberdade de Breno
comunidade externa.
Bede e no ensaio fotográfico de
A Semana propicia interlocução
Filipe Chaves e Luís Siqueira.
com diferentes grupos sociais, instituições de ensino superior e
Ivana Bentes nos apresenta uma
entidades científicas e promove
lúcida reflexão crítica sobre as
trocas entre as diversas áreas de
transformações que desinventaram
conhecimento.
aquilo que achávamos que o Brasil era. “Estamos em um desses momentos de
Em 2018, as questões suscitadas
confronto entre imaginários em torno
pela décima edição do evento
do Brasil, disputa entre grupos sociais
tiveram como ponto de partida os
pela representação do país, o que
70 anos da Declaração Universal dos
achamos que somos ou deveríamos
Direitos Humanos e os 30 anos da
ser.” A autora nos lembra de que todas
Constituição Brasileira,
essas transformações apresentam um
a constituição cidadã, até chegar às
desafio: o de construir a democracia
perguntas difíceis que temos que
em um novo cenário comunicacional.
enfrentar: afinal, como vai o Brasil?
Para Robson Sávio, dois projetos
Afinal, como vai a democracia?
de sociedade estão no centro das disputas políticas.
A SCAP apresenta-se como
Ele nos fala de disputas narrativas,
importante tarefa acadêmica e
das eleições de 2018 e pergunta: a
ação sociocultural documentada
quem interessa a criminalização da
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política? Pode a democracia conviver
acontecimento biopolítico, ou seja,
com uma economia que mata? João
“uma produção alternativa de
Carlos Lino Gomes e Pe. Márcio
subjetividade, que não só resiste ao
Antônio de Paiva lançam luz sobre o
poder como busca autonomia em
debate contemporâneo para repensar
relação a ele”.
os atuais paradoxos da democracia.
No ensaio fotográfico de Filipe Chaves
Não há dúvida de que a tecnologia
e Luís Siqueira vemos a rua como
tem mudado as regras do jogo
espaço de produção de subjetividades
democrático. Bruno Vasconcelos de
biopolíticas. As fotografias mostram
Almeida vai discutir sobre a complexa
as marcas da eleição presidencial de
relação entre tecnociência e modos
2018. Vestígios de uma disputa que
de produção de subjetividade
dividiu o país, colhidos com câmera
desencadeados a partir do encontro
analógica em muros, calçadas e postes
entre corpos e máquinas. Breno Bede
das ruas de Belo Horizonte.
encerra estes Anais com seus versos
Os fotógrafos apresentam ainda
de liberdade e a fé dedicada ao outro
imagens da multidão que tomou as
que “otimistas chamariam de amor”.
ruas nas primeiras manifestações em
No livro Bem Estar Comum, Antonio
protesto ao governo eleito.
Negri e Michael Hardt lembram que na poesia de Walt Whitman o amor do
Assim, fica registrado nestes Anais a
estranho reaparece constantemente.
décima edição da Semana de
E que esse amor do estranho, do
Ciência, Arte e Política – SCAP 2018.
mais distante, da alteridade, possui outro significado, o do amor como
Leiam e reflitam.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel
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DESINVENTANDO O BRASIL1 Ivana Bentes2
Estamos vivendo um momento de
de turbulência, são portadoras de
crise, um momento de passagem,
transformação.
um momento em que mesmo os nossos conceitos e nossas
Estamos em um desses momentos
experiências sobre o Brasil estão
de confronto entre imaginários
mudando. Quando falamos de crise
em torno do Brasil, disputa entre
se temos a noção de instabilidade,
grupos sociais pela representação
de negativo, crise na política,
do país, o que achamos que somos
na ética, a crise e as crises são
ou deveríamos ser, não em um
indícios de algo muito importante:
futuro longínquo, mas nos futuros
a gente não suporta mais o que até
imediatos, no presente urgente.
então era suportável. A crise é um momento de mudança de patamar
Um processo que traz um desafio:
do que era tolerável.
A construção da democracia em um novo cenário comunicacional. Nesse
O Brasil passou, nos últimos
momento em que mídias e redes
10 anos, por transformações
sociais disputam a narrativa do que
enormes e que desinventaram o
é o Brasil, o que é a política, quem
Brasil, desinventaram aquilo que
nós somos. Existe uma relação direta
achávamos que o Brasil era. Então
entre mídia e democracia, mídias e
a crise, mesmo nesses momentos
construção desses imaginários.
1
Conferência de abertura da X Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel. Belo Horizonte, 3 de setembro de 2018.
2 Doutora em Comunicação (UFRJ). Diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural no Ministério da Cultura de 2015 a 2016. Pesquisadora do CNPQ de Estéticas da Comunicação e Periferias Globais. Autora, entre outros, do livro MídiaMultidão: estéticas da comunicação e biopolíticas (Editora Mauad X. 2015).
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20
Mas o que mudou? Nas primeiras
Outra questão nesses primeiros
décadas, as análises sobre a
estudos era o horizonte das
emergência de uma rede como
democracias pós mídias digitais,
a internet, ou o surgimento das
a democratização dos meios
redes sociais foram a celebração
em um contexto de assimetria
de uma potência, um potencial.
e concentração de poder, um
Falamos muito de revoluções na
potencial disruptivo das mídias.
comunicação, a partir da emergência da mídia livre, da produção de
Com a apropriação tecnológica por
conteúdos digitais, do potencial
diferentes grupos sociais vimos a
colaborativo das redes. Uma espécie
emergência de uma ciberperiferia,
de fim da reserva de mercado na
ou cultura popular digital, a
produção de conteúdos feitas
capacidade dos diferentes grupos
apenas por especialistas, as redes
sociais de se apropriarem das
como laboratórios de formação
tecnologias para uso expressivo,
e autoformação. O declínio dos
cultural, político e artístico muito
mediadores e especialistas como
singulares.
jornalistas, figuras de autoridade, formadores de opinião, historiadores.
A questão que me interessou nas primeiras décadas dos estudos das
Uma série de crises dentro do
novas mídias e redes foi o impacto
próprio campo das ciências
da cultura digital nos territórios
humanas e das autoridades do nosso
ligados às favelas, à pobreza, às
campo. Essas primeiras análises
periferias. Ou dito de outro modo:
traziam um horizonte utópico e
Como a pobreza produz riqueza,
disruptivo, apontando as mudanças
música, cultura, funk, hip-hop, a
de paradigmas.
partir dessa apropriação tecnológica e de repertórios. Esse foi um dos
No próprio campo da produção
campos aos quais me dediquei
de conhecimento as universidades
em uma pesquisa em andamento
começaram a questionar seu
intitulada Periferias Globais, iniciada
modelo fordista de formação,
nos anos 2000.
com a emergência de tecnologias e processos fora do controle
Também me interessaram as
corporativo ou institucional.
experiências de formação livre que
Experiências de formação de
explodiram no Brasil todo. E uma
baixo para cima. Apropriação de
forma de apropriação tecnológica
conteúdos por grupos e pessoas de
singular. A cultura dos remixes,
fora das universidades.
a cultura de ressignificação do negativo em positivo, a capacidade
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de converter as forças hostis
mobilizados desde 2016, desde o
máximas, a pobreza, a violência em
impeachment da presidenta Dilma
processos de criação, invenção e
Roussef pelo menos.
autoformação. Essa emergência no Brasil nos Então, mesmo diante de crises em
últimos 10, 15 anos, das culturas
série, diante dessa instabilidade
que vêm das periferias, dessas
estrutural, podemos invocar esse
bordas que vão se articular, dessa
princípio de conversão do negativo
apropriação que produz uma cultura
em positivo, que é uma característica
popular digital, essa transmutação
do Brasil, e de seus movimentos
da pobreza em riqueza produziram
culturais e sociais mais potentes:
fenômenos muito fortes.
o movimento antropofágico, o movimento do Cinema Novo,
O que foi a emergência da cultura
o tropicalismo, as experiências
digital no Brasil? Podemos começar
contraculturais em plena ditadura
falando da multiplicação das
militar, nas décadas de 1960 e 1970,
primeiras lan houses que apareceram
as explosões criativas em contextos
no Rio de Janeiro e em todo o Brasil,
políticos de exceção e repressão.
nas favelas e periferias. Espaços em que se montavam computadores
Em qualquer conjuntura não
fazendo metareciclagem, usando
podemos deixar de ver essas linhas
sucata, lugares que funcionavam
subterrâneas que atravessam a
como pontos de encontro,
cultura, que estão agindo mesmo em
de festa, sociabilidade, formando
um momento em que parece que
comunidades em torno do acesso as
“está tudo dominado” e as narrativas
tecnologias. E mais do que acesso,
são de perplexidade e impotência .
usos distintos das novas tecnologias.
3
Nós chamamos de cultura digital
GUERRAS CULTURAIS
essas apropriações tecnológicas. A emergência de ciberfavelas,
Por isso invoco aqui a cultura e a
ciberperiferias, em que o prefixo
arte, os comportamentos e modos
ciber emergiu como um modo
de existência, como os campos
de distinção e de modulação dos
de batalhas em que se travam as
territórios diante das tecnologias.
guerras culturais nas quais estamos
3
Enquanto falo, o Rio de Janeiro está recolhendo o rescaldo de 200 anos da história do Brasil queimados no incêndio do Museu Nacional da UFRJ, ocorrido no dia 2 de setembro de 2018, mas não se muda a história com lágrimas, não se muda a história com choro, não se muda a história com sentimento de impotência.
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ORAL E DIGITAL
tecnológica como forma de ativismo e de luta.
Explodiram as lan houses caseiras nas comunidades, vimos usos
Outro exemplo que gosto é
singulares das tecnologias por
do Quilombo do Campinho da
grupos indígenas, a emergência de
Independência, em Paraty,
“quilombos digitais”. A primeira vez
que pensa o turismo comunitário,
que eu conversei com um indígena
ou etnoturismo. Ou esse grupo
que trabalhava com cultura digital,
Realidade Negra de lá que articula
eu perguntei para ele “Onde é sua
linguagens estéticas de matriz
tribo?”. Ele respondeu: “Eu não
africana e muito tradicionais com a
tenho tribo, eu tenho um portal
cultura urbana em um grupo de
na internet. A minha tribo se
hip-hop quilombola.
reconectou e se reencontrou em uma terra virtual. E hoje a gente luta
São movimentos culturais de novo
pelas causas indígenas utilizando
tipo, que englobam desde ações
as novas tecnologias, as redes, os
culturais, de comportamento e
vídeos”. Essa transculturalidade já
de posicionamento: os novos
tinha resultado em projetos como
movimentos feministas, a visibilidade
o Vídeo nas Aldeias, de cineastas
através das mídias de grupos
e realizadores indígenas que
invisibilizados: indígenas, LGBTQI,
produzem narrativas, produzem
movimentos que reposicionam o
estéticas novas, a partir dessa
debate sobre o racismo, machismo,
passagem entre as culturas.
patriarcado no Brasil, a partir do uso de novas linguagens.
Os portais índios online e webindígena4 usam a tecnologia para um projeto de preservação das línguas
2013 E OS MOVIMENTOS DE NOVO TIPO
indígenas que estão em extinção, para a preservação, registro da
Nessa linha, as manifestações de
cultura oral em novos meios, digitais.
junho de 2013 no Brasil foram o
Ou seja, não há qualquer tipo de
momento de explosão de uma
incompatibilidade entre as culturas
miríade de outras linguagens e
mais tradicionais, ou a cultura oral,
processos. Uma politização da
e as novas tecnologias. Trata-se de
cultura ou uma culturalização da
pensar a transculturalidade,
política, podemos dizer. Movimentos
a interculturalidade, a apropriação
que nascem ou se organizam a partir
4
https://www.indiosonline.net/ e http://www.webindigena.org/ Acesso em 19/05/2019.
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dessa configuração das redes e da
ser branco no país é um privilégio,
cultura digital. Desde 2013 estamos
tudo isso aponta para um momento
literalmente desinventando o Brasil,
muito intenso de rompimento com a
derrubando por terra alguns dos
imagem que tínhamos do Brasil.
seus mitos fundadores e produzindo outras mitologias.
É um momento de uma nova partilha do sensível, para citar
Nos últimos 13 anos o Brasil passou
Jacques Rancière5. Acreditávamos
por uma mutação antropológica
que política não se misturava com
e abalou alguns desses mitos
futebol, mas vimos na Copa do
fundadores. O debate das cotas
Mundo os movimentos de protesto
raciais nas universidades por exemplo
denunciando obras superfaturadas
colocou em xeque o mito de que o
para os megaeventos, populações
Brasil tinha resolvido o problema do
sendo expulsas de seus territórios
racismo a partir do multiculturalismo,
na zona portuária, processos de
que teríamos uma mistura, uma
gentrificação, corrupção no governo
mestiçagem que teria adocicado a
de Sérgio Cabral que anteciparam a
brutalidade da escravidão.
tragédia do Rio de Janeiro, a falência do estado do Rio, que
A narrativa apaziguadora das raças,
foi anunciada pelos manifestantes
dessa escravidão doce que produz
de 2013. Em 2018 já tínhamos o
relações assimétricas (de poder,
governador Sérgio Cabral preso por
de assujeitamento, econômicas,
corrupção, o megaempresário Eike
afetivas e sexuais) entre escravizador
Batista preso, o empresário da máfia
e escravizados se rompeu, não se
dos transportes do Rio preso.
sustenta mais socialmente. A fábula
Uma série de questões e
da relação familiar e afetiva entre
pautas foram denunciadas nas
patrões e empregadas domésticas
manifestações e a mídia ignorava
deixou de ser contada como um
ou malversava. E hoje podemos
trunfo cultural.
nos perguntar: Quem eram os vândalos em 2013? Quem eram os
A emergência do discurso feminista,
reais blackblocks da política, os
que traz a discussão sobre o
depredadores do patrimônio público?
machismo para a cena principal do
Sem dúvidas sabemos quem são.
debate público, toda a discussão sobre o patriarcalismo, o debate da
Enfim, eu faço uma análise muito
“brancocracia”, o entendimento que
mais ampla e generosa de 2013,
5
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2009.
26
27
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foi um movimento decisivo, que
O que me interessou em 2013 foi
tinha participação da esquerda,
como os movimentos sociais,
de parte do movimento conservador
os desorganizados - pessoas que
e foi um movimento multitudinário
não fazem parte de partidos,
que inventou muitas das linguagens
não vieram de universidades, de
das manifestações que redundaram
sindicatos, sem nenhum tipo de
depois nas ocupações das escolas
experiência política - puderam se
pelos secundaristas, por exemplo,
organizar a partir das plataformas
mas também produziu uma
digitais.
renovação da direita.
Como os desorganizados se organizaram a partir de uma nova
Não podemos reduzir 2013 a “origem
partilha do sensível utilizando as
da tragédia”, não foi um golpe da
plataformas e essa cultura digital.
CIA contra a presidenta Dilma, como diziam alguns dos meus amigos de
Podemos falar em um momento
esquerda. Reduzindo as indignações
construtivo de apropriação de
acumuladas a um “golpe da CIA
plataformas como o Facebook,
contra o PT”. Ao mesmo tempo,
o Twitter, por formas grupos
os conservadores diziam que era
não institucionalizados e que
a implantação do comunismo no
redundaram em movimentos e
Brasil. Ou seja, os dois polos estavam
fenômenos posteriores, como a
errados. Achavam que estávamos
primavera feminista e outros.
diante de algo hipermanipulado. Obviamente que em 2013 havia sim
É dessa forma que podemos
grupos conservadores, grupos que
constatar que o espaço público
usaram dessas manifestações para
passa a ser disputado, por exemplo,
desestabilizar o governo de Dilma
por um movimento que ganhou
que não soube dialogar e responder
uma hashtag na internet chamada
aos manifestantes.
#ChegaDeFiuFiu e me pergunto se há cinco anos, há 10 anos a cantada
Mas tínhamos ali um caldeirão,
de rua poderia ser considerada uma
uma explosão que poderia ter ido
expressão do machismo.
para todos os lados. Então, 2013
E a resposta é: não. Uma campanha
foi uma explosão da diversidade
como essa seria considerada
e da multiplicidade de pautas, de
intolerante e exagerada. Mas hoje
linguagens, depois vimos em 2016
entendemos que muita coisa que
as manifestações verde-amarelas,
aceitávamos, se tornou intolerável.
com pautas conservadoras que
O patamar do que era tolerável
culminaram com o impeachment da
mudou, isso é algo radical.
Presidenta da República.
Não poderíamos imaginar no Brasil
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um jornalista como William Waak perder o emprego porque fez uma
CONSUMO E PAUTAS IDENTITÁRIAS
brincadeira racista, não podíamos imaginar um ator de televisão global,
Mas o que mudou? Podemos
José Mayer, sair das telas por um
dar exemplos no campo do
comportamento de assédio.
comportamento, no campo do consumo. Essa imagem que estamos
O horizonte do que era o tolerável em
vendo é uma publicidade da Avon.
termos de racismo, machismo mudou.
Aquela marca de cosméticos para
É isso que chamo de a desinvenção
senhoras, donas de casa, para
do Brasil. Apesar de muitos, inclusive
uma mulher tradicional e bem-
meus pares universitários, chamarem
comportada, com aqueles catálogos
atenção para a possibilidade de um
para a mulheres venderam nas casas.
“radicalismo” das pautas identitárias,
A Avon entendeu que havia outros
de gênero etc. Esse “radicalismo” é
imaginários e que até para vender
decisivo em um primeiro momento
e ampliar seu público precisava
para pautar novos consensos.
das minorias e das linguagens
Eu costumo usar a fórmula, estamos
identitárias. Até para vender
em um momento em que privilégio
cosméticos e batom, ela precisava
se tornou desvantagem, se você é
incluir LGBTQIs no seu discurso e
homem, se você é branco e se você
em sua narrativa. A Avon trouxe
é hétero, quando você abrir a boca
a Elke Maravilha, drag queens,
saiba que você já está errado [risos].
figuras ligadas à emergência dessas
É uma forma de dizer: Algo de
minorias e linguagens.
estruturante mudou. E é importante que a gente veja Dito de outra forma. Alguns sujeitos
que o consumo hoje nos leva a
do discurso tradicionais estão em
pensar sobre essa necessidade e
uma posição em que deveriam ouvir
essa ampliação do que chamávamos
mais do que falar. E isso é talvez muito
de democracia no Brasil. Todos
violento para toda uma geração, e
os movimentos como o afropunk,
por isso eu entendo todos os que
o afrofutursimo, a estética de
se sentem atingidos e em xeque: é
uma figura como a Karol Conká e
que seus privilégios se tornam uma
tantas outras, culturaliza o debate,
desvantagem.
e politiza a cultura a partir de
Mas é um momento importante,
uma estética negra e afro, pop,
pois sem essa radicalização também
valorizando a cultura negra e
não avançamos, fica sempre a mesma
combatendo o racismo através
coisa. Precisamos colocar esse senso
do cabelo, da moda, da música e
comum em questão.
fazendo política através do corpo.
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Trata-se de uma outra maneira da
ofensa, um palavrão, que remete
gente pensar o discurso político e o
a algo negativo. Como ter direitos
comportamento político.
pode ser algo negativo? Como
É um tipo de midiativismo nas
ter direitos pode ser considerado
redes e nas ruas que vimos ganhar
um privilégio? Os direitos das
visibilidade através de pautas
minorias e das maiorias estão sendo
que eram invisíveis. Como falar
considerados privilégios.
sobre assuntos escondidos, tabus,
Eis a origem do ressentimento de
segredos de família sobre o assédio,
certos grupos.
na campanha #MeuPrimeiroAssédio, chocante e impactante porque revelava algo que todo mundo sabia, mas não verbalizava. Que são
VIRALIZAÇÃO DAS INDIGNAÇÕES E O MIDIATIVISMO
familiares, os mais próximos, os pais, os tios, os padrastos, os vizinhos, os
Essa onda que estamos
“cidadãos de bem” que cometem
experimentando e vivendo no
assédios, abusos e que violentam e
Brasil não é só do Brasil. A gente
batem nas mulheres. Uma campanha
viu explodir e ganhar visibilidade
nas redes faz emergir um discurso
essa luta pela ampliação dos
barrado e velado. Vejam só que
direitos, a defesa da vida contra a
momento rico e importante da
financeirização do capital, contra a
cultura brasileira.
violência baseada na cor da pele, no gênero etc. São movimentos
Minha pesquisa atual passa por
globais. Podemos falar dessa
essa mídia-multidão, ou seja, esse
viralização das indignações, não
momento em que muitos passam
só no Brasil, mas em um contexto
a produzir conteúdo, mídias e
global. 2013 no Brasil veio depois do
campanhas e a incidir socialmente,
15M, a eclosão de um movimento
ao fazer emergir outras narrativas
para pedir “democracia real já”, mais
do país: Somos racistas, somos
participação da população nos rumos
machistas, existe uma brancocracia,
da política, etc.
privilégios e como a gente pode transformar e converter privilégios
No 15M emergiram experiências
em igualdade ou justiça, como
muito interessantes, como o partido
podemos combater privilégios,
político Podemos e a experiências e
como lidar com a questão dos
laboratórios de mídia e midiativismo.
direitos humanos.
Na Praça do Sol em Madrid vimos a eclosão das assembleias e ocupações
O Brasil é um dos países em que
dos indignados transmitidas ao vivo,
direitos humanos se tornaram uma
em direto,
33
em tempo real. As ocupações eram
e experiências que vão se
mostradas para todos os outros
configurando em novas formas de
países em tempo real, o que causou
midiativismo, que não se contenta em
uma comoção surpreendente.
informar, mas que partem para ações de mídia , visibilidade e viralização.
O uso da tecnologia do ao vivo na
Midiativismo é esse momento em que
internet e nas redes produziu uma
você deixa de ser um consumidor
adesão e comoção no mundo inteiro.
da informação e passa a agir a partir
Mas não só as transmissões ao
da informação que você recebe, a
vivo. Todo um “estado da arte” do
gente viu muitas dessas experiências
midiativismo, naquele momento.
no Brasil. Em que as redes e mídias transbordam para as ruas. Junho de
Podemos voltar para junho de 2013
2013 foi isso. E depois os movimentos
no Brasil e encontraremos esse
conservadores também.
laboratório do 15M na Espanha sem dúvida. Não se trata de relações
OS DESORGANIZADOS
causais, mas de contaminação. Grande parte das análises sobre
Desde 2013 é importante
as manifestações de 2013 falam
acompanhar a emergência desse
de um fenômeno que não era
midiativismo. Também estou falando
previsto. A reunião de grupos e
da emergência decisiva da figura dos
de pessoas em torno de pautas
desorganizados. Quem são? É essa
heterogêneas e descentralizadas.
multidão urbana e heterogênea, sem
Mas se olhamos para trás vamos
uma única identidade, fragmentada,
encontrar micromovimentos,
o precariado urbano que pode juntar
campanhas, mobilizações que foram
grupos muitos distintos e que não
se acumulando. Os protestos nas
se juntavam, vindos de espaços,
redes contra a assinatura do código
experiências e territórios díspares.
florestal pelo governo, grupos que mudavam seu sobrenome nas redes
Se a gente pensar em junho de 2013
para apoiar e dar visibilidade ao
é uma referência para visualizarmos
massacre dos índios Guarani Kaiowá,
a emergência dos desorganizados
ou a emergência de movimentos
como força política. Também nas
como a Marcha das Vadias, que
manifestações de grupos como o
transformavam a palavra vadia, que é
dos caminhoneiros, podemos nos
pejorativa e acusatória,
perguntar por essa heterogeneidade.
em autonomia de liberdade para as
Quem eram esses caminhoneiros
mulheres.
que pararam o Brasil em 2018? Onde eles estavam? Que forma é essa de
Trata-se de uma série de movimentos
organização que emergiu articulando
34
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grupos por meio do WhatsApp?
midiática com uma incidência política
Como usaram as mídias digitais para
muito forte.
se articularem e para pressionar o governo? Grupos dispersos, sem
O ACONTECIMENTO 2013
lideranças marcantes, que unificaram suas reivindicações e deram um
Em 2013, eu estava na direção
xeque-mate no governo de Michel
da Escola de Comunicação da
Temer.
UFRJ e abrimos nossas portas e laboratórios para os coletivos de
São movimentos de novo tipo.
mídia, grupos como Mídia Ninja e
A greve dos caminhoneiros foi tão
dezenas de outros no Rio de Janeiro.
inusitada nessa forma de organização
Fizemos experimentos incríveis
via WhatsApp que colocou o governo
e os estudantes dos cursos de
temeroso e golpista em crise.
comunicação se juntaram a esses
Os porta-vozes do governo
midiativistas em coberturas nas ruas,
levantavam contato com eles como
produzindo o que chamamos de
aqueles alienígenas que chegam na
contra discurso ou contra narrativa
Terra e pedem:
sobre as pautas das manifestações
“Me levem ao seu líder.”. Quem eram
e combatendo a criminalização dos
os líderes dos caminhoneiros?
manifestantes.
As lideranças eram fluidas, difusas, eram distribuídas, ou seja, eram
O que a gente via nas mídias
multilideranças que surgiam, faziam
corporativas eram só as imagens
uma performance midiática, nas
de violência, de destruição, os
redes, no Youtube, em mensagens
manifestantes como vândalos e
e memes de Whatsapp que
baderneiros. As mídias livres naquele
repercutiam midiaticamente e
ano foram decisivas na disputa do
desapareciam para dar lugar a outras.
sentido de 2013. Um momento em que esses desorganizados
Esses movimentos que estão
se juntaram para organizar e
emergindo não têm a forma
para disputar a narrativa de um
tradicional do partido, do sindicato,
acontecimento.
tal qual nós conhecemos, a comunicação aqui é decisiva,
Foi a partir de 2013 que começamos
é a forma de organizar os
a falar de disputa narrativa no Brasil.
desorganizados. O uso do WhatsApp
E isso eu acho que é um tema muito
pelos caminhoneiros na greve foi,
importante para a gente entender
comparável ao uso das mídias e redes
que mesmo com avanços políticos,
digitais no 15M, na Primavera Árabe,
econômicos e sociais, se você perde
em junho de 2013, uma governança
a narrativa, você perde a política.
37
O impeachment de 2016 e a ascensão
“nós”, produzindo uma emergência.
da extrema-direita no Brasil foi em parte a perda do controle da
Apresento aqui algumas imagens
narrativa de 2013.
e fotografias impactantes da Mídia Ninja que me parecem significativas
De certa maneira, eu acredito que
dentro da formação dessas
foi isso que aconteceu com todo
linguagens novas. São imagens que
o processo do impeachment. Foi
expressam a iconografia de 2013 e
uma derrota narrativa, construída,
suas disputas narrativas. Em junho
que desmontou e desconstruiu um
de 2013 também vimos a emergência
campo político. Estamos dentro
de um campo importantíssimo, a
dessa disputa narrativa, às vésperas
disputa memética, a comunicação
das eleições presidenciais de 2018.
por hashtags e memes. A memética
Sem dúvida essas experiências da
como uma linguagem popular em
Mídia Ninja em 2013 são um marco
uma disputa narrativa a partir do
e foram inspiradoras. Eu trato
humor, do remix, dos repertórios
dessas invenções políticas e de
da cultura de massa ou dos nichos,
linguagem no livro Mídia-Multidão,
uma comunicação veloz, virótica que
o entendimento das mídias como
produz uma renovação no próprio
forma de organização. Podemos falar
campo do discurso e das linguagens.
de uma mídia negra, mídia indígena, mídia feminista, mídia secundarista,
Eu falei muito de disputa narrativa
mídia vinda de linguagens e
e é disso que se trata, de uma
propostas distintas e que explodem
possibilidade de emergência dessas
pelo Brasil.
multilinguagens. Disputando direitos,
É uma tendência forte no Brasil
disputa em torno dos modos de vida,
e na América Latina, essas vidas-
da educação, saúde e valores que
linguagens que apontam para um
são muito caros para todos nós. Até
midiativismo renovado.
agora eu falei sobre essa mídia de uma forma bem positiva, mas óbvio
A partir de 2013 começamos a falar
que as redes sociais também fizeram
de novas narrativas, que seria a
eclodir as redes de ódio,
articulação desses pequenos canais
as redes da intolerância.
de nichos, quando eles se coordenam e produzem ondas no Facebook,
A memética produz também o que
no Twitter, campanhas, ou seja, são
eu chamo de odioativismo,
capazes de produzir narrativas que
o ativismo que argumenta contra
disputam os sentidos dos fatos.
o outro, contra as diferenças, e nós
Então, podemos dizer que a nova
estamos mergulhados não só por
grande mídia é essa articulação dos
essa ameaça como também pelo
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exército de trolls, esse racismo
e contribuíram para a criação de
exacerbado, linchamentos virtuais
um “estado de exceção” em cidades
nas redes etc. Uma plataforma
como o Rio de Janeiro.
como o Facebook e outras mídias digitais produziram essa percepção
O Rio de Janeiro hoje é um estado
ampliada do outro, deu visibilidade
sob intervenção militar, é um estado
as diferenças e ao mesmo tempo
em que esse regime de exceção
produziu o ódio as diferenças.
paira sobre a cidade, esse regime é sustentado pelo medo, é sustentado
Estamos falando das mídias digitais e
por um discurso midiático da
redes sociais, mas em um país como
insegurança, que produz o ódio ao
o Brasil não se pode falar de mídia
outro, uma guerra real e simbólica
e democracia sem dizer que a mídia
seja contra os manifestantes de 2013,
corporativa funciona como uma
seja contra os pobres e que atinge
Mídia-Estado, rivaliza com a política,
de forma terrível as periferias, com
rivaliza com o Estado.
o genocídio da juventude negra, por exemplo.
Vocês devem ter acompanhado as entrevistas do Jornal Nacional
Vamos falar dessa imagem.
com os candidatos à presidência da
Um muro erguido diante do
república [nas eleições de 2018] e é
Congresso Nacional em 2016, para
muito assustador essa bancada, esse
separar manifestantes em favor do
supremo tribunal midiático, de juízo
impeachment de Dilma Roussef
sobre o outro, pouco importando
e os contra o impeachment. Uma
quem são os candidatos.
superpolarização construída midiaticamente. Esse muro simboliza
Essa ideia de que os candidatos têm
o fracasso da política, o fracasso da
que ser julgados midiaticamente
nossa capacidade de conviver com o
por uma força que está acima do
outro, o fracasso da ideia da política
bem e do mal, acima do Estado,
como mediadora de conflitos e de
a mídia corporativa. Quando
convivência entre diferentes.
falo dessa Mídia-Estado, falo da forma de expressão violenta em
É resultado dessa superpolarização
torno das narrativas sobre 2013.
criada de forma midiática. Então,
Narrativas que criminalizaram esses
a imagem simboliza essa partilha
movimentos sociais, criminalizaram
radical do espaço, a transformação
os manifestantes, deram apoio
da política em conflito, uma guerra
a repressão, ao vigilantismo,
de torcidas, irracional, polarizada,
produziram uma condenação dos
sem saída.
movimentos que emergiram no Brasil,
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A questão da polarização é
nosso humor, capacidade cognitiva,
muito importante, é a redução da
crenças. Temos que aprender a ler as
complexidade do pensamento em
mídias, produzir mídias, disputar as
mundos duais e irreconciliáveis.
mídias. A comunicação hoje é
Cria-se um pensamento
um campo de gestão da vida.
hiperpolarizado, o bem ou o mal,
Quem comanda o sistema financeiro
nós e os outros, nós e eles, e não
e quem comanda a mídia comanda
nos leva muito longe, já que produz
todos os outros setores.
um discurso fundamentalista, um
As narrativas comandam a produção.
discurso de ódio.
Podemos falar inclusive de uma economia narrativa, nesse sentido.
Em 2016 a gente viu no processo do impeachment essa produção jurídica
Quando falamos de judicialização
e midiática de crise e instabilidade,
em tempo real das disputas e
numa gestão da velocidade das
da política, dessa velocidade da
informações. Acompanhar o
produção de informação que
noticiário durante o pré-processo
alucina, que descontextualiza e
de impeachment era perceber essa
produz perplexidade, falamos de
gestão alucinatória das informações.
justiçamento e linchamentos em
Recebíamos uma quantidade de
tempo real. A democracia sobrevive
informações fragmentadas que eram
em um regime da tomada de
difíceis de processar e extrair seu
decisões em tempo real?
sentido. O filósofo francês Paul Virillo fala Essa velocidade, essa enxurrada de
sobre a ditadura da velocidade
informação, produz uma espécie de
no livro Velocidade e Política,
anestesia, ficamos perplexos diante
como a velocidade é um poder
da quantidade de informações em
e produz estados mentais e
fluxo e torrentes. É um vazamento
descontextualização. Temos que
contínuo, mas fragmentado,
problematizar todos os processos de
à conta-gotas de informações
justiçamento em tempo real, quando
descontextualizadas. Até produzir
reputações podem ser destruídas a
uma nuvem tóxica o uma histeria
partir de uma manchete de jornal,
coletiva, como por exemplo a
de uma matéria no Jornal Nacional
produção de ódio e de horror à
ou no Fantástico, na televisão ou nas
política e aos políticos.
redes sociais. É real o poder midiático de construir e destruir reputações.
Vivemos e estamos dentro de um laboratório social, em que esses
Denúncias, delações diárias
processos midiáticos interferem no
direcionadas para um só alvo
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produzem um estrago e uma
por exemplo. Se usa argumentos
distorção perceptiva. Esse poder
retóricos para sustentar uma crença
é distribuído e incorporado pelos
ou convicções. A que estamos do
usuários das redes sociais, um
lado certo da história.
denuncismo irresponsável que destrói reputações e vidas.
Estamos falando de uma das características da memética, a
Uma outra característica importante,
possibilidade de produzir um ‘efeito
nesse campo midiático e estético, é
de verdade” mesmo que provisório
a dramaturgia do real, ficcionalizar o
e frágil. “Me dê um meme” e eu
real, criar personagens demoníacos
responderei uma questão complexa
e produzir um teleshow da realidade,
com um truísmo, uma redução, ou
um gênero televiso hoje no Brasil.
com a retórica da “lacração”.
Nós temos uma variedade muito
Uma “vitória” argumentativa através
grande em telenovelas, uma
de um sofisma, imagem, clichê.
dramaturgia forte, inteligente e ela também é usada na ficcionalização
Ao mesmo tempo a memética
e na produção de consensos, na
é responsável pela emergência
moralização de pautas e na produção
de linguagens novas no campo
de estados emocionais. Pode-
do ativismo, da política, da
se produzir histeria, ódio, medo,
sociabilidade. A crise produz
insegurança midiaticamente.
linguagem, a crise produz renovação, a crise produz formas de articular e
MEMÉTICA
disputar essas narrativas novas, de forma popular e pop.
Outra questão importante desde
Essa renovação da linguagem marca
2013 e que atravessa o nosso
os cartazes e flyers da Mídia Ninja
debate até agora, é o limite das
e de muitas redes e coletivos do
instituições clássicas: mídias
campo cultural e político.
corporativas, partidos, Estado, sindicatos, universidades. E a crise
Quais as novas linguagens
de autoridade e centralidade dessas
emergentes? Vivemos a saturação
instituições.
da linguagem política tradicional, inclusive esteticamente falando.
Essa crise de autoridade e a entrada
As manifestações com carros
da Mídia-Multidão produz outros
de som, as palavras de ordem
efeitos. Vamos analisar aqui alguns
gritadas de palanques, os
cartazes das manifestações pró-
comícios tradicionais. É uma
impeachment, em 2016. “Cunha é
saturação da linguagem, não só da
ladrão, mas está do nosso lado”,
política tradicional. A linguagem
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se desgastou e não podemos
assujeitados etc.
subestimar a linguagem. Então podemos falar de uma politização
Com Nietzsche e depois Foucault
da estética e de uma estetização da
e os pensadores contemporâneos
política nesses movimentos de novo
vamos passar a falar da verdade
tipo.
como construção, ou como consenso,
A CRISE DA VERDADE E OUTRAS CRISES
No jornalismo os discursos de
no discurso científico. verdade, de objetividade, de imparcialidade buscam esconder as Falamos da cise de autoridade, da
disputas em torno das verdades e
crise de credibilidade e o fenômeno
seus efeitos.
das fake news é uma das expressões desse contexto em convulsão.
Se as verdades são produzidas,
As fake news (notícias falsas)
cada sociedade tem seu regime
sempre existiram, mas sua forma
de verdade e esse regime produz
contemporânea, a forma da notícia
efeitos. Podem ser desnaturalizados.
combinada com a desinformação
O Brasil está passando por um
intencional, ganha uma nova escala
processo de desnaturalização de
contemporaneamente.
seus mitos e verdades. O combate ao racismo, ao machismo,
A discussão em torno do conceito de
a percepção de privilégios brancos
verdade é uma discussão filosófica,
mostra que estamos em uma
histórica e muito importante.
mutação do nosso regime de
Nietzsche que é um filósofo que
verdades. Aquilo que era verdade,
eu gosto muito, diz que a história
ou era aceitável, deixa de ser
da verdade é a história de um erro.
quando esses regimes mudam.
O conceito de verdade deve ser
Por isso, é muito importante
abandonado por uma pergunta sobre
a gente se perguntar como se
os seus efeitos e performance. Quem
produzem verdade, como se
fala e de onde fala?
produz determinados sentimentos,
Pois se nos ativermos ao conceito
experiências, como a ciência produz
de verdade haverá sempre um
verdades provisórias? Como o
absoluto que desqualifica a crença e
jornalismo produz verdade? Como
a a percepção do outro. O discurso
os meios jurídicos e a lei produzem
fundamentalista usa a verdade
verdade? Estamos falando em
como arma para destruir o outro.
regimes de verdade.
Em nome da verdade se mata, em nome da verdade se excomunga, em
Os regimes de verdade produzem
nome da verdade povos inteiros são
leis, produzem crime. Por exemplo,
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enquanto as drogas forem
do fato de eu acreditar que
consideradas ilegais, elas geram
minha branquitude é um sinal de
crime. A qualquer momento você
superioridade sobre outros? Essa
pode legalizar as drogas e um crime
minha crença pode produzir um
deixa de existir. Os crimes estão
crime, ela pode produzir injustiça e
ligados a um regime jurídico e suas
morte. Não temos que nos perguntar
mutações. O que era crime deixa de
pela verdade das coisas, mas qual o
ser crime, o que não era se torna.
efeito daquilo que eu acredito, já que
No Brasil, o crime de racismo não
as crenças produzem efeitos.
existia e passou a existir, ou passou a ser visibilizado pela sociedade
Ou seja, a disputa em torno das
brasileira.
fake news é a produção de notícias para as nossas crenças, fake news,
Da mesma forma, a comunicação,
as notícias ou o meme falso ou
o regime das mídias e do jornalismo
distorcido é produzido para aquilo
são regimes de produção de
que você já acredita. É o que
verdades. Estamos dentro de uma
chamamos de viés de confirmação.
fábrica de fatos, de memes, de imagens que produzem as verdades
Então nesse sentido a fake news é
nas quais acreditamos. Estamos no
um poderoso modelo de negócio que
meio de uma desordem informacional
cria conteúdos, notícias, promoções,
e muitos perderam o parâmetro em
manchetes, imagens, retórica,
relação ao que podem acreditar ou
produzidas para reforçar crenças.
não. Que fontes e instituições são confiáveis?
Outra questão da crise do conceito de verdade se expressa na própria
Temos que introduzir aqui a questão
forma como as agências checadoras
das crenças. Porque as notícias falsas
de fatos classificam as notícias, com
podem ser desmentidas, mas como
uma vasta gama de modulações
desmentir uma crença? Então talvez
entre o verdadeiro e o falso.
seja mais produtivo falar de regimes
Entre esses polos podemos dizer
de crenças e quais os efeitos dessa
que uma notícia ou informação é
verdade, quais os efeitos minhas
exagerada, insustentável, imprecisa,
crenças produzem? Essa me parece
distorcida etc.
a questão ética que tem que ser enunciada para sairmos do impasse
As fake news vocalizam também
entre falso e verdadeiro.
o imaginário, o medo, aquilo que a sociedade brasileira vê como
“A minha crença me leva a produzir
ameaça e receio. “Novelas irão
injustiças? Quais as consequências
mostrar beijo gay infantil”. Uma fake
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news que associa as novelas e a TV
A desvirtuação das crianças pela
a um comportamento “perverso”
cultura de massa e “ideologia de
ou moralmente condenável. Ou
gênero”. Um meme que sintetiza
ainda: “Zezé di Camargo tem
a histeria brasileira diante das
razão, nunca houve ditadura no
mudanças que estamos vivendo,
Brasil”. Temos o deslocamento
diante das transformações de
da autoridade para uma figura
comportamento e sexualidade.
midiática: Zezé di Camargo tornado historiador, cientista social, alguém
As fakes news também se espalharam
que disputa os fatos históricos. E
pelas questões científicas. Todos
completa “a ditadura só foi ruim para
já ouviram falar nos terraplanistas,
vagabundos.”
pessoas que, a despeito da ciência e de todas as provas científicas em
Isso são as pós-verdades ou os
contrário, acreditam, no século XXI
fatos alternativos, consagrados
que a terra é plana.
pela era Trump. A capacidade de produzir narrativas que sustentam
Eu estava em uma palestra e uma
crenças. Os negacionistas dizem
garota me disse: “Professora, por
que o holocausto não existiu, que
favor me ajude”, eu falei “O que
não existiu o genocídio do povo
aconteceu?”, ela disse “A minha
judeu durante o nazismo. Milhares
família inteira foi pega pela teoria da
de judeus mortos em campos
Terra Plana, só sobrou eu e minha
de concentração passa a ser um
vó de 89 anos que acreditamos que
fato passível de denegação. São
a Terra é redonda. O que eu posso
produzidos vídeos, depoimentos,
fazer para provar para eles que a
aprecem “autoridades” que
Terra é redonda?”
sustentam crenças. As fakes news se propagam como Outro meme, um dos mais
vírus que se pega, por contaminação.
compartilhados dos últimos tempos
A memética é como se fosse
no Brasil: “Pabllo Vittar ganha
uma virose, um contágio, com
programa infantil na Globo com
vida própria. É uma metáfora que
apoio da Lei Rouanet”. Junta-se em
naturaliza uma construção midiática.
um só enunciado temas tabus e/
No Rio de Janeiro, com as vacinas
ou polêmicos que deixam cidadãos
contra a febre amarela, graças aos
de bem em pânico. A ideia de
memes e às fake news, começou a
doutrinação de crianças em um
circular notícias falsas que diziam que
programa de televisão apresentado
o estado brasileiro estava produzindo
por uma mulher trans com o uso
mortes a partir das vacinas aplicadas
da Lei Rouanet para fins perversos.
nos grupos da terceira idade porque
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queriam matar os velhinhos para
passar, depois do fechamento, por
diminuir o déficit da previdência. E
vistoria de um promotor da infância
as pessoas acreditam e repassam.
e da juventude que foi à Porto
Talvez porque haja uma desconfiança
Alegre fazer um “exame “e chegou a
histórica diante desse Estado.
brilhante conclusão que a exposição Queermuseu não tratava e nem
CIDADÃOS ROBÔS
expunha ou difundia pornografia, zoofilia etc.
Quando falamos da crise de autoridade da mídia, dos partidos,
As obras do Queermuseu,
do Estado, podemos estendê-la
com curadoria de Gaudêncio
para outros campos. A crise de
Fidelis, foram recortadas e
autoridade na arte é um outro
descontextualizadas nas redes e
bom exemplo. Não se trata de uma
caracterizadas na sua literalidade.
questão nova, mas acompanhamos
Se havia nudez ou sexo foram
no Brasil, nesse contexto dos novos
consideradas pornográficas.
cenários comunicacionais o retorno
Se usavam símbolos religiosos foram
de uma antiga questão: Quem diz o
consideradas blasfêmias etc. Uma
que é arte? A polêmica em torno da
narrativa construída por grupos
exposição Queermuseu, fechada por
como o MBL (Movimento Brasil
pressão de grupos conservadores
Livre) associado a grupos religiosos
em setembro de 2017 pelo
e um exército de bots e cidadãos
Santander Cultural em Porto Alegre
zumbis que agiram sob comandos:
traz questões importantes.
derrubar a página do Santander, protestar na exposição etc.
As chamadas “guerras culturais” se voltaram contra artistas e contra o
Estamos em um campo de disputa,
campo da arte (curadores, diretores
a exposição Queermuseu -
de Museu, gestores de cultura, etc.)
Cartografias da Diferença na Arte
culminando com discursos e ações
Brasileira foi fechada e censurada
de judicialização que buscavam
porque discutia questões de
decretar se a exposição violava
gênero e diversidade sexual em
ou não a moralidade, violava ou
obras contemporâneas e clássicas.
não o Estatuto da Criança e do
Adriana Varejão, Cândido Portinari,
Adolescente, sendo apresentada
Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia
como uma exposição com obras
Clark, Leonilson, Yuri Firmesa etc.
que difundiam pornografia, zoofilia, pedofilia, etc. Todo um discurso
Trata-se de um caso sintomático
moral e de produção de histeria
da hiperpolarização produzida no
coletiva. As obras chegaram a
contexto das guerras culturais que
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criam um efeito de verdade causado
o uso de robôs no impulsionamento
pela descontextualização. Entre
dessas informações, campanhas e
270 obras de 85 artistas foram
fake news. Trata-se de promover,
escolhidas pouquíssimas obras,
impulsionar, reforçar crenças e
recortadas, para se construir um
utilizá-las como arma eleitoral com
discurso moralizante e criminalizante
efeitos imediatos.
que via pedofilia, zoofilia e blasfêmia. Entre as obras usadas nessa
Estamos falando da emergência
construção discursiva de
do cidadão robô, que segue o MBL
stacamos: Cruzando Jesus Cristo
quando ele dá um “salve”: “Vamos
Deusa Schiva, de Fernando Baril,
derrubar a página do Santander”,
imagens de crianças com as
na linha dos comandos de
inscrições Criança viada travesti da
linchamento a página do Facebook
lambada e Criança viada deusa das
do banco foi avaliada massivamente
águas, da artista Bia Leite e Interior
de forma negativa. De uma hora
II, da artista Adriana Varejão.
pra outra, o Santander Cultural de Porto Alegre, que é uma instituição
O componente político e a
de prestígio, superbem avaliada,
condenação moral na censura da
foi considerada uma promotora
exposição Queermuseu antecipa
da pornografia e de crimes. E isso
o clima das eleições de 2018, em
numa velocidade muito grande.
que o campo da arte, da cultura,
“Vamos derrubar, vamos tirar a
dos artistas, das questões de
credibilidade dessa página, vamos
gênero e das minorias servem para
produzir um ato político”. Induz-se
se produzir um clima de histeria.
a um comportamento de manada,
Os mesmos sujeitos da política
que permite ações diretas e
corruptos são os sujeitos da
imediatas com as mais diferentes
cultura. Trata-se de um grupo de
consequências.
“pervertidos” que é preciso tirar do
A potência da multidão passa por
poder a qualquer custo.
essa possibilidade de automação não só da informação, mas da
Estamos em um momento
inteligência coletiva, produzindo
importante dessa emergência
cidadãos zumbis que agem como os
de novos regimes de verdade,
bots.
a verdade produzida por meio de cliques, de likes, de
Quando falo de cidadão robô, estou
compartilhamentos, uma quantidade
falando dessa figura dos grupos
gigantesca de posts, imagens,
de Whatsapp que alimenta a linha
memes produzidos em uma
de transmissão de fake news, que
velocidade muito grande. Também
duplica sem checar ou mesmo sem
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ler, que só lê o título, não lê a matéria
público financia e apoia aquilo que
e compartilha mesmo o que for mais
quer ver.
bizarro e improvável porque vem reforçar suas crenças.
Para finalizar trouxe aqui uns
É um comportamento de
memes utilizados para criticar e rir
automação, como nas correntes
da censura, com o prefeito do Rio
do WhatsApp, uma contaminação
horrorizado diante de obras de arte
veloz e virótica que produz estados
clássicas que exibem nudez, como
mentais e emocionais.
A Origem do Mundo, de Courbet, Les Demoiselles d’Avignon, de
Podemos dar contra exemplos
Picasso, Homem Nu, de Lucian
também que rompem a lista de
Freud, etc. O moralismo e as
transmissão de forma crítica.
acusações de pornografia passam
A memética como contra discurso,
pela falta de repertório, de códigos,
usando o humor para se confrontar
pelo olha literal, pela literalidade da
a essa produção de histeria e/
imagem.
ou discursos criminalizantes e moralizantes no campo da cultura
Ao mesmo tempo a discussão do
e da arte. Quando o prefeito do
Queermuseu massifica discussões
Rio, o bispo Marcello Crivella, disse
de grupos e guetos em torno
que a exposição do Queermuseu
do repertório das artes. Arte,
não iria para o Rio de Janeiro de
autonomia, liberdade artística,
jeito nenhum, produziu a reação
curadoria, passam a ser discutidas
inversa. Artistas, galeristas,
por uma multidão. Milhões de
empresários, gestores, o público de
pessoas discutindo no Brasil o que é
arte e cultura, pessoas comuns se
arte e o que não é arte.
mobilizaram e fizeram um processo
Ou seja, os desorganizados
de financiamento coletivo, através
passaram a organizar o sentido do
do crowdfunding, que conseguiu
debate a partir de outros códigos.
arrecadar 1 milhão de reais e tornou
O que pode ser ofensivo ou não para
possível levar uma exposição
determinados grupos, o que viola ou
gigantesca censurada para ser
não as crenças dos outros. Como se
exibida no Parque Lage, no Rio de
negocia valores. Obviamente não é
Janeiro.
censurando, impedindo pessoas de entrarem em um museu, um lugar
Trata-se de uma resposta
que parecia seguro e controlado
extraordinária utilizando as mesmas
para se fazer uma discussão
redes e tecnologias disponíveis.
complexa sem hiperpolarizações e
Novas economias e meios de
reduções.
financiamento do comum, em que o
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Estamos falando da comunicação na
os informados, os que estão dentro
era da sua automação massiva, ou
das universidades, os que trabalham
seja, estamos vivendo uma época
diretamente no campo da arte e
de construção da opinião pública de
da cultura. E descobrimos que uma
forma automatizada e massiva. Isso,
parte do Brasil não saiu do “vovô
tanto para o melhor, quanto para
viu a uva”. Mas o humor e a
o pior. Produz-se campanhas, os
memética também podem nos tirar
grupos se articulam para construir
dessa crise de repertório.
sentidos e verdades que podem
A histeria em volta do Queermuseu,
se tornar consensos. As guerras
que poderia ter sido evitado se
culturais em ambientes digitais
a gente tivesse uma formação
são uma das formas de disputar
em arte e cultura nas escolas, um
o sentido do mundo. Disputar
debate sobre a história da arte,
sentidos.
como a gente vê em qualquer lugar do mundo, essa construção de
Durante muito tempo ficamos
repertório é decisiva para ter um
discutindo conceitos muito
entendimento mais complexo do
sofisticados sobre os campos da
mundo. Sair do literal.
arte. Foucault analisando o quadro “Isto não é um Cachimbo”, de Magritte. O que você está vendo não é a coisa e sim a representação da coisa. E talvez nós do campo universitário, cultural e artístico não imaginávamos que no Brasil olhar um quadro e ver uma cena de nudez poderia ser lido de forma literal como pornografia ou algo que pode ofender alguém. O que falta? Repertório, sair do mundo da literalidade, em que as coisas são apenas o que são. Sem contextos, sem sentidos abertos. Estamos sofrendo a tragédia da literalidade em uma cultura e meio empobrecidos. Esse debate de repertório é decisivo no Brasil, ficamos reféns da nossa bolha cultural, entre nós,
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REFERÊNCIAS
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DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: uma análise do Brasil contemporâneo Robson Sávio Reis Souza1
O resultado das eleições de 2018
A eleição de grupos políticos
no Brasil alterou profundamente
identificados com valores
certo equilíbrio das forças
ultraconservadores, ultraliberais e
políticas nacionais que, desde a
reacionários, notadamente contra
redemocratização (1985) e com
os princípios dos direitos humanos,
a Constituição Federal (1988),
consolidou um processo de
articulavam, a passos lentos, a
deterioração político-institucional,
construção de um estado de bem-
que começou no início da década de
estar social num dos países mais
2010 e teve um marco importante
desiguais do mundo, tendo como
nas jornadas de junho de 2013.
fulcro os pressupostos consolidados, internacionalmente, na Declaração
Não somente no Brasil, os grandes
Universal dos Direitos Humanos
embates políticos contemporâneos
(1948); ou seja, um estado que
se resumem na seguinte questão:
garantisse a todos os cidadãos
a democracia pode conviver com o
além dos direitos liberais (civis
neoliberalismo? Ou até mesmo com
e políticos), também os direitos
o ultraliberalismo?
sociais, econômicos, culturais...
1
Licenciado em Filosofia, doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Direitos Humanos. É professor da PUC Minas, onde coordena o Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) e da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais; associado da Sociedade Teologia e Ciências da Religião (Soter) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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Dois projetos de sociedade estão no
principalmente os países ocidentais
centro das disputas políticas.
e, em especial, os países periféricos
De um lado, articularam-se partidos
- ainda marcados pela desigualdade
políticos identificados com grupos,
e injustiça social. Tais forças são
movimentos e as lutas políticas
francamente favoráveis ao mercado
emancipatórias, cujos programas
e à economia rentista, a sustentarem
focam na continuidade do processo
um “sistema global idólatra que
de construção de uma sociedade
exclui, degrada e mata”.4
mais democrática, inclusiva e igualitária. De outro, partidos que
Ademais, a atualidade do discurso
representam os interesses do poder
do Papa em relação ao que ocorre
econômico, em sua fase rentista
na América Latina e no Brasil nos
e especulativa, concentrador de
últimos tempos pode ser percebida
riqueza e renda - que garante a
quando o pontífice tratou, em outras
vida nababesca de 1% da população
ocasiões, das múltiplas tentativas de
mundial2 e de um contingente
destruição da identidade dos povos
similar no Brasil. Nas palavras do
latino-americanos: “Identidade que
Papa Francisco, de “uma economia
alguns poderes, tanto aqui como
que mata”.
em outros países, se empenham por
3
apagar, talvez porque a nossa fé é Aliás, o Papa Francisco é talvez
revolucionária; porque a nossa fé
o único grande líder mundial
desafia a tirania do ídolo dinheiro”.5
contemporâneo que se mostra preocupado e atento ao
Em sociedades verdadeiramente
recrudescimento das forças
democráticas, que priorizam a
ultraliberais que dominam
defesa dos direitos humanos (todos
2
De toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada. O dado faz parte do relatório “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, lançado pela Oxfam às vésperas do encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, que as elites empresariais e políticas do mundo. Mais informações em: https://www.oxfam.org.br/ noticias/super-ricos-estao-ficando-com-quase-toda-riqueza-as-custas-de-bilhoes-de-pessoas. Acesso em 25fev2019.
3 Disse o Papa: “Assim como o mandamento não matar põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata”. Veja em: http://domtotal.com/ noticia/1247389/2018/04/papa-francisco-critica-politicas-economica-que-criam-novosexcluidos/ . Acesso em 25fev2019. 4
Papa Francisco. Discurso no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares.
5 Idem.
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os direitos e os direitos de todos),
sociais são necessários para
os governos estão a serviço dos
o aperfeiçoamento da própria
interesses populares, atuando para
democracia.
o provimento e a consolidação de políticas públicas capazes de
(3) a democracia é a afirmação
mitigar os efeitos avassaladores de
da soberania popular; ou seja,
uma economia que, cada vez mais,
todo poder vem do povo e não
precede, domina e subjuga a política.
dos governantes, da burocracia estatal ou de grupos que se
SIMULACROS DE DEMOCRACIAS
apropriam do Estado para a defesa de interesses privados e particulares.
Uma visão liberal-conservadora define a democracia como um
Historicamente, o Brasil nunca foi
conjunto de regras procedimentais
um país inteiramente democrático.
e formas de organização política:
A violência multifacetada - gerada
eleições livres, imprensa livre,
pela exclusão social, por um sistema
partidos políticos, autonomia dos
de justiça altamente seletivo, uma
três poderes e acesso aos direitos de
elite de mentalidade escravocrata
liberdade e igualdade. E, claro,
e pelo patriarcalismo indutor de
a garantia da propriedade privada.
múltiplas formas de opressão sempre impediu a efetivação de
Acontece que os pilares de uma
direitos para todos, por um lado e,
democracia de fato, para além de
por outro, desequilibra as disputas
democracias meramente formais,
sociopolíticas à medida que a
são outro conjunto de valores
maioria do povo é sistematicamente
sociopolíticos:
esmagada por essa ordem social
6
elitista e autoritária. (1) a democracia cria, consolida, garante e amplia os direitos;
As relações de mando e obediência, características da hierarquização
6
(2) ademais, a democracia
da sociedade brasileira, estão
valoriza os conflitos, portanto,
presentes no cotidiano das famílias,
as disputas sociais como
das igrejas, das relações de trabalho,
algo legítimo. E, mais que
nas escolas e em quase todos os
isso, os conflitos, gerados por
espaços da vida, a definir uma
múltiplos interesses de grupos
cidadania marcada por privilégios
Cf. CHAUÍ, M., 2012.
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de uns pouco e uma subcidadania
já desgastado pelo processo eleitoral
- caracterizada pela não efetivação
belicoso de 2014 e as jornadas
dos direitos - à maioria da
de junho de 2013. O resultado:
população.
a produção de uma “cidadania regressiva”:
A criação e efetivação de direitos é recente em nosso país. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes deram alguns passos importantes para a construção de uma sociedade minimamente igualitária e justa. Mas, quando estávamos no caminho “civilizatório”, a sair de uma democracia meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia mais inclusiva e igualitária veio, mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, uma ruptura institucional, em 2016, com o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Os históricos segmentos refratários e violentos da sociedade brasileira (as elites econômicas do empresariado, dos bancos e do agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados pela bancada BBB (da Bala, da Bíblia e do Boi) no Congresso; a mídia empresarial antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça se uniram para golpear a trajetória de construção gradual de uma sociedade verdadeiramente democrática. Isso no contexto de uma gravíssima crise econômica que se abateu sobre o país, fragilizando ainda mais o governo central -
Todavia, nos dias atuais, considerando os avanços de uma nova direita no Brasil e no mundo, surge uma terceira perspectiva do conceito aqui em discussão, qual seja a cidadania regressiva. Dela resulta um tipo novo de cidadão, que participa ativamente da vida comunitária e social, de atividades políticas, de organizações de diferentes tipos, atua nas ruas e em redes sociais, mas não para manter, ampliar ou conquistar direitos e bens materiais, simbólicos e sociais para todos e todas, e sim para reduzilos, bem como ao Estado como fiador deles, deixando os indivíduos ao sabor de seu próprio mérito e empreendedorismo pessoal no jogo do mercado, sem reconhecer as desigualdades concretas que marcam cada um e torna dessemelhante a competitividade, e nem reparar dívidas históricas que determinadas formações sociais, como a brasileira, têm com alguns grupos sociais, vide a comunidade negra. (MARTINS, M. F., 2019, p. 46).
O importante é perceber que por trás do conjunto de atores sociais e políticos conservadores que comandaram o processo de impeachment estão os interesses do poder econômico. Para aniquilar a democracia de fato, esses segmentos são os mentores de um modelo de governança que retira do povo a soberania e a transfere para o deus-mercado.
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O quadro mundial também deve ser
os vários e legítimos interesses
considerado. A subalternidade da
e conflitos sociais, políticos e
política à economia, característica do
econômicos e passa a ser um mero
neoliberalismo global, ajuda a explicar
gestor, ocupado e preocupado com
a crise de legitimidade das instituições
a eficiência de toda uma estrutura
públicas, a centralidade do deus-
pública que, no neoliberalismo, é
mercado e a fragilidade de governos
direcionada a maximizar os interesses
populares.
econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico
Assim, podemos falar de um estado
desconsiderando os direitos da
de exceção - uma exigência do
maioria dos cidadãos.
neoliberalismo, que reconfigura as estruturas do poder e do
No estado neoliberal, o espaço
Estado a partir de uma lógica de
privado dos interesses dos poderosos
exceção, corroendo até mesmo os
é alargado e, ao mesmo tempo, o
pressupostos da democracia liberal.
espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido.
Trata-se de um estado de exceção porque convivemos com uma
As contrarreformas aprovadas
democracia sem povo, a serviço do
durante o governo de Michel Temer
mercado, e sustentada por medidas
(2016 -2018), por exemplo, todas elas,
autoritárias dos três poderes
atendem aos interesses privados de
amalgamados contra o povo e
uns poucos e contraria os interesses
a Nação, como ocorre no Brasil
públicos da grande maioria do povo
contemporâneo.
brasileiro. Foram um ataque direto às políticas públicas de promoção de
Portanto, a ruptura havida em 2016
direitos consolidadas na Constituição
se baseou num pressuposto segundo
de 1988.
o qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como
Nos termos do neoliberalismo é
uma empresa. O Estado é pensado a
impossível uma democracia de fato.
partir de interesses privados; deixa de
Só serve uma democracia tutelada
ter como base fundante o interesse
pelos donos do capital ou por seus
público, respaldado na soberania
prepostos nos poderes do Estado.
popular, para se preocupar e garantir
Portanto,
os interesses de uns poucos, em detrimento dos direitos de todos. O político, nesses termos, deixa de ser um representante eleito a mediar
convém levar a sério a hipótese segundo a qual entramos num sistema social pós-democrático inédito na história, que rompeu com o velho sistema que articulava capitalismo nacional, Estado social, democracia liberal.
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Uma certa distribuição dos poderes entre o “político”, o “econômico” e o “social” era estabelecida, deixando às forças políticas e sociais uma margem de ação e um jogo de iniciativas e propostas. Entre essas forças, o sindicalismo participava do equilíbrio dinâmico de um capitalismo nacional regulado, garantindo, no entanto, avanços sociais e progressões salariais pela negociação e por uma conflitualidade relativamente instituída. Capitalismo e democracia parlamentar, mas também em parte social pareciam poder se conciliar até certo ponto. Com o neoliberalismo, essa conciliação não está mais na ordem do dia. O neoliberalismo, pela extensão de seus efeitos e manifestações, é um verdadeiro sistema político-econômico cuja originalidade é preciso apreender. Essa originalidade provém, inicialmente, do fato de que o neoliberalismo visa esvaziar a democracia (em sua dupla forma política e social) de seu conteúdo. Percebe-se melhor agora que as políticas neoliberais obedeceram a uma estratégia de “desdemocratização, segundo a fórmula de Wendy Brown7, que conduziu progressivamente ao estabelecimento de uma situação em que a “soberania popular”, na orientação das escolhas políticas, é destituída em proveito das “forças de mercado”. (DARDOT, P.; LAVAL, C. Revista Fevereiro, 2016, p. 09).
UMA REPÚBLICA TUTELADA
de democracia aparente da Nova República por meio da transferência do poder político real para as Forças Armadas.”8 Segundo Safatle, mais importante do que as eleições presidenciais é o deslocamento do poder em curso no Brasil. Desde Temer, inexiste agenda política importante que não passe pelas Forças Armadas: paralisação de caminhoneiros, decomposição do governo carioca e degeneração do governo federal. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas e cada vez mais se tornam protagonistas. A montagem do governo de Jair Bolsonaro, com quase a metade dos ministros das Forças Armadas, comprova a tese de Safatle. Por outro lado, setores do sistema de justiça também resolveram tutelar os demais poderes. O protagonismo exacerbado do Poder Judiciário pode ser observado na seletividade da atuação de alguns magistrados a interferir no processo político e eleitoral.
O filósofo Vladimir Safatle tem alertado que o Brasil caminha para
A estrutura judicial brasileira serve
uma espécie de ditadura camuflada,
para garantir privilégios de classe,
ou seja, a tutela total e irrestrita das
operar discricionariamente a
Forças Armadas: “o jogo consiste
aplicação da lei, perseguir inimigos
a terminar o período de pactos e 7
Cf. Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale. Les Pairies Ordinaires, 2007.
8
SAFLATE. V. Cartas sobre a mesa.
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(bodes expiatórios geralmente
empresarial. Apesar de formarem
construídos pela mídia), proteger
um contingente numericamente
interesses econômicos dentro
maior, esses grupos de advogados,
e fora do aparelho do Estado,
promotores, juízes e policiais são
operar a favor do capital e contra
minoritários quando se trata do
os interesses públicos. Tudo sob o
controle do poder das corporações.
manto da lei, essa invenção liberal
Reconhecemos, também, algumas
usada, também, como armadilha
entidades de advogados populares
para ludibriar o povo, à medida que
e setores da justiça e do MP que
a igualdade de direitos se torna mera
lutam por uma democratização do
convenção retórica ou formal.
judiciário e por uma república de fato.
A lei, no Brasil, de um modo geral, é uma dádiva para os ricos e para
As ações arbitrárias que unem
os membros da classe média. Para
bacharéis, outros operadores do
os demais, salvo exceções, é açoite.
sistema de justiça e os militares
Como nesse país nunca tivemos um
remontam da proclamação da
estado de bem-estar social, a lei é
república: um golpe que teve como
instrumento de salvaguardas para
principais atores: advogados,
30% dos brasileiros (ricos e classe
militares, latifundiários e maçons.
média).
Desde então, esses segmentos, em diversos momentos da vida
Qualquer cidadão brasileiro sabe
republicana, de forma mais ou
que o poder judiciário é seletivo,
menos coesa, patrocinaram todo o
elitista, hermético e, às vezes,
tipo de tutela à democracia no país.
antidemocrático; que as leis são operadas para favorecerem uns em
Não por acaso, durante a ditadura
detrimento de outros com muita
militar, assistimos a convivência
frequência.
amistosa entre os generais, os tribunais (a começar pelo Supremo
Ressalvamos a valorosa e combativa
Tribunal Federal), as grandes bancas
empreitada de muitos operadores
de advogados, juízes e policiais.
do direito que, à revelia das
Obviamente, esses segmentos,
corporações jurídicas (que mais
salvo exceções, sempre estiveram
parecem castas), têm tentado,
a serviço de interesses das elites
a todo custo, pautar suas ações
econômicas, sociais e políticas.
dentro dos princípios republicanos e democráticos, inclusive
Em vários momentos da vida
sendo excluídos de instituições,
nacional, essa associação - que
agremiações de classe e da mídia
envolve os setores jurídico, policial
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e militar - protagonizou rupturas
à violência extremada contra estes
democráticas.
últimos - denunciava a ouvidos moucos que a democracia no Brasil
Os pactos feitos “por cima”, ou seja,
é muito frágil.
entre as elites, como a famigerada lei da anistia (de 1979), sempre foram
Porém, todos, inclusive os
abençoados por esses atores. E os
acadêmicos, afirmavam com
grandes beneficiários dos golpes são
retumbante convicção que a
os fiadores dessa união.
democracia brasileira estava consolidada. Dormíamos felizes com
Infelizmente, boa parte da classe
lemas do tipo “Brasil: um país de
média, inclusive alguns setores
todos”.
progressistas, dormiu em “berço esplêndido” depois da Constituição
Gradualmente, desde 2016, o
Federal de 1988. Primeiro, porque
país começou a ser duplamente
não houve nenhuma reforma
tutelado. De um lado, uma espécie
substantiva no sistema de justiça e
de juristocracia (governo de juízes)
no modelo policial-militar herdados
que consolidava um estado penal-
da ditatura. Ademais, sob a égide
policial-judicial seletivo; doutro,
do chamado “estado democrático
as Forças Armadas atuando
de direito” consolidou-se um
politicamente. Some-se a esse
pensamento hegemônico segundo
cenário a ação da mídia empresarial,
o qual a democracia de direito se
a criminalizar a política e as
transbordaria na democracia de fato.
instituições republicanas.
A abissal desigualdade social,
CRIMINALIZAÇÃO DA POLÍTICA: A QUEM INTERESSA?
o recrudescimento do estado policial-penal, potencializado com as propostas de alterações legislativas patrocinadas pelo ministro Sérgio
Como compreender a onda
Moro, e a brutal violência seletiva
avassaladora de criminalização da
transformada em política estatal
política, capitaneada principalmente
continuaram a conviver com uma
pela mídia empresarial e por
nação cuja cidadania é de e para
segmentos conservadores e
poucos.
ultraliberais das elites nacionais?
Não obstante a melhoria dos
Trata-se de interesses que querem
indicadores sociais desde 1988,
implantar nas mentes e nos
o abismo que separa os ricos e a
corações dos brasileiros que a
classe média dos pobres - somado
política institucional (aquela que se
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desenvolve nos poderes públicos,
Observando os resultados de pleitos
nos partidos etc.) é suja, pervertida e
de 2014 e 2016 já se percebia o
eivada de vícios e de corrupção.
crescente afastamento do eleitor do processo de escolha dos
Nos últimos anos, a mídia
representantes. Nas eleições de
comercial se articulou à ação
2018, foram recordes os indicadores
de influenciadores das políticas
de abstenção e votos nulos e
ultraliberais, em postos-chave da
brancos. Resultado: um candidato
sociedade, pagos por think tanks
radical e de extrema-direita, com
americanos.9
discursos veementes contra os direitos humanos, que teve pouco
Com essa estratégia, os cidadãos
mais de 35% dos votos (do total
foram se afastando cada vez mais
do eleitorado) e cujo somatório
da política. Muitos passaram a
de votos (57 milhões, pouco mais
repetir expressões do tipo “todos os
que 1/4 da população) foi eleito
políticos são bandidos”; ou “não voto
presidente do país.
porque meu voto não vale nada”. Em redes sociais, fake news sobre o
DISPUTAS DE NARRATIVAS
tema são abundantes. Até bem pouco tempo, a mídia Essa estratégia provoca, entre
empresarial10 e os setores
outros, um afastamento do cidadão
conservadores da sociedade, irmãos
das instâncias de participação,
siameses, tinham o monopólio da
inclusive do processo eleitoral,
informação e se pontificavam como
e um desencanto gradual com a
donos da verdade.
democracia, os direitos humanos e as ideias de justiça e de liberdade.
9
Porém, à medida que a sociedade
São grupos e instituições americanas que têm parceiros estratégicos no Brasil para a formação de influenciadores de lideranças políticas e sociais com ideologia neoliberal com o objetivo de atuarem na Academia, jornalismo (mídia), sistema de justiça (juízes, promotores, policiais) e junto ao neopentecostalismo (católico e, principalmente, evangélico). Recomendamos o artigo de Kátia Gerab Baggio que faz um apanhado sobre ações de think tanks no Brasil (BAGGIO, K. G., 2018, pp 115-150).
10 Em relação à mídia empresarial, o Papa Francisco não cansa de alertar sobre a imposição de um discurso em uníssono que se concretiza com “a concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural” e é parte da estratégia do sistema que produz a morte dos pobres e da Mãe Terra. E, para tanto, “as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações.” (Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares).
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foi se tornando mais plural e
econômicas, políticas, intelectuais,
polissêmica novos atores (sociais,
sociais, religiosas que concentram
políticos, culturais...), historicamente
o poder e a influência no Estado e
silenciados e/ou ignorados, entraram
na sociedade, para a defesa de seus
em cena na disputa das narrativas
privilégios).
no espaço público.
AS ELEIÇÕES DE 2018 Para o bem e/ou para o mal, as redes sociais passaram a disputar
Muitos analistas políticos têm
com a mídia tradicional as visões de
considerado que, com o advento do
mundo. Ademais, à medida que os
neoliberalismo a partir da década
grandes oligopólios de comunicação
de 1980, iniciou-se um processo de
brasileiros resolveram produzir
implosão dos estados de bem-estar
um discurso único ficava clara a
social. No Brasil, tardiamente, esse
partidarização da imprensa e sua
fenômeno ocorreu décadas depois:
credibilidade junto à sociedade
houve políticas neoliberais durante
brasileira caía abruptamente.
o período do governo de FHC (1995 – 2002), parcialmente revertidas nos
Assim, visões totalmente
governos de Lula e Dilma (2003 –
antagônicas de mundo também
2016).
entraram na disputa. Não só duas visões, como deseja uma narrativa
É importante considerarmos,
binária e maniqueísta. Mas múltiplas
mesmo que rapidamente, algumas
visões lastreadas em paradigmas
das variáveis que deflagraram uma
neoliberais (mercado e capital no
série de conflitos sociais, políticos
centro do debate) e socialistas ou
e culturais no país. Partiremos
socialdemocratas (o ser humano
dos eventos ocorridos em 2013,
como protagonista).11
as chamadas “jornadas de junho”. Naquele momento, não somente
Numa sociedade multicultural,
no Brasil, mas em várias partes
diversa e desigual, outras vozes
do mundo, uma série de atos de
entraram na disputa pelas narrativas
protesto questionavam, entre
sobre as demandas de múltiplos
outros, a democracia representativa.
grupos sociais, étnicos, culturais,
Vozes de diversos segmentos
religiosos.
sociais, com interesses diferentes,
E isso, obviamente, incomodou
demandavam mudanças substantivas
por demais o establishment (elites
no modelo esgarçado de governança
11
Obviamente, estamos simplificando uma discussão complexa, dado não ser objetivo deste texto refletir sobre o tema.
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democrática capitalista12, no qual
Nesse contexto, é importante analisar
os representantes eleitos não
o fato de parte da classe média
representam os interesses da maioria
brasileira, historicamente acostumada
dos eleitores.13
com privilégios, bandeou para um discurso e prática saudosistas
Havia evidências claras de múltiplas
de uma sociedade estruturada
falências que, a rigor, apontavam
no autoritarismo. Pedidos de
para algo muito mais profundo:
intervenção militar e fechamento
o esgotamento do modelo de
das instituições republicanas, por
democracia capitalista. Esse
exemplo, começaram a pipocar em
esgotamento pode ser percebido
manifestações de rua, televisionadas
em várias dimensões: colapso do
para todo o país, e nas redes sociais.
ecossistema; da política; da economia
Um dos alvos prediletos desses
baseada na especulação (e sua última
grupos foi um conjunto de políticas
grande crise, a partir de 2008, nos
públicas de direitos humanos.
Estados Unidos); das instituições tradicionais (incapazes de dar
Ao invés de usar seu poderio
respostas às demandas de sociedades
político para lutar por justiça
cada vez mais complexas).
social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos
Uma guinada à direita começava a
de poucos, esses segmentos da
se esboçar à medida que as classes
classe média direcionavam seu
médias e os setores conservadores e
discurso raivoso contra os pobres e
de direita passaram a disputar as ruas
aqueles grupos e partidos taxados
(espaços tradicionalmente ocupados
de “comunistas”. Considerando-se
pelos movimentos sociais e grupos
“superiores”, não miravam o “andar de
progressistas).
cima”; ao contrário, atacaram o “andar de baixo”, extravasando preconceito e
No mesmo período, sinais do refluxo
ódio contra os pobres.
da crise econômica global batiam às portas do nosso país. Como sabemos,
A violência, que sempre determinou
o sistema político foi incapaz de
a “ordem” das relações sociais no
incorporar as reivindicações dos
Brasil, tornou-se o recurso utilizado
diversos segmentos que saíram às
em doses cavalares por setores
ruas naquele ano.
da classe média que tentavam
12 Para uma maior compreensão da crise democrática no capitalismo, indicamos o artigo “A democracia no capitalismo” (ABDALLA, M., 2018, pp 19- 44). 13 Veja também em: MARTINS, M. F. Educação, cidadania regressiva e movimentos sociais regressivos: o MBL em questão. Crítica Educativa, 2019.
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se reposicionar num cenário de
(tendo como principais atores deste
disputas reais e simbólicas.
campo neopentecostais dentro do protestantismo e do catolicismo).
Nesse contexto, o governo de Dilma Rousseff (e movimentos sociais),
Os segmentos que lideraram a ruptura
acuados, defendiam a democracia
democrática de 2016 não obtiveram
e a crença segundo a qual eleições
êxito no primeiro turno das eleições
regulares corrigiriam o refluxo
(de 2018), principalmente na disputa
autoritário defendido por segmentos
presidencial. Os candidatos prediletos
sociais insatisfeitos com tudo o que
deles, Geraldo Alckmin (PSDB) e
tinha a ver com o establishment.
Henrique Meirelles (MDB) tiveram votação pífia.
O processo eleitoral se iniciou radicalizado e nenhum programa
Não houve nenhuma dificuldade
de governo tratava de debater e
de união desses grupos em torno
pautar as reformas estruturais14.
da candidatura de extrema direita
E, sem reformas estruturais, os
e ultraliberal. Afinal, Jair Bolsonaro,
setores progressistas e democráticos
apesar do evidente desdém com a
se conformaram na defesa da
Constituição, a justiça, os direitos
democracia formal.
humanos, entre outros, carrega os principais predicados da coalizão
UMA COMPETIÇÃO VICIADA E DESIGUAL
que tomou o poder em 2016: diferentemente de candidatos de ultradireita europeia, por exemplo,
As jornadas de 2013, capturadas
que são antiliberais, o presidente
por setores da direita, a não
eleito tem um discurso ultraliberal que
aceitação do resultado das eleições
agrada profundamente os segmentos
de 2014 derrotado (Aécio Neves)
reacionários e as elites brasileiras.
e o impeachment parlamentar-
Em nome de interesses privados,
judiciário-midiático de 2016 foram
individualistas e até antinacionais,
alguns dos sinais de um movimento
esses segmentos aderiram ao então
de marcha à ré da frágil democracia
candidato do Partido Social Liberal
brasileira, liderado pelas elites e
(PSL) já no primeiro turno das
setores conservadores e reacionário
eleições.
nacionais, incluindo grupos religiosos
14 São reformas que alteram as estruturas política e econômica do país e favorecerem a construção de uma sociedade justa e igualitária. Como, por exemplo, a reforma do sistema econômico (o que inclui reforma tributária, mudar a tributação sobre consumo para tributação sobre riqueza e renda); a reforma agrária; a reforma política; entre outras.
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Num ambiente verdadeiramente
espalhados em redes sociais,
democrático, a candidatura de
com recursos financeiros não
Bolsonaro dificilmente prosperaria.
contabilizados, segundo denúncia
A maioria dos cientistas sociais e/
do jornal Folha de São Paulo,15
ou políticos que fazia análise de
às vésperas do primeiro turno
conjuntura um ano antes da eleição de
tutelou, em certa medida, a decisão
2018 tinha essa percepção.
do eleitor. As mensagens foram cuidadosamente pensadas para
O primeiro turno das eleições se
atingir o imaginário e o emocional
transformou numa guerra. Mas a
de uma sociedade amedrontada e
desproporcionalidade da disputa
moralista: acusavam o candidato
eleitoral desde o final do primeiro
do PT, sem provas e sem nenhuma
turno foi caracterizada pela
evidência empírica, de desrespeitar
composição e pelo modus operandi
valores familiares, de práticas
da coalizão que se articulou em torno
violentas, de alianças com
da candidatura ultraconservadora,
“demônios” inexistentes. Guiado
ultraliberal e de extrema direita e que
por um tsunami de mensagens
tem como principais atores:
desonestas e falsas, o eleitor não
a) Elites econômicas: grandes
tinha instrumentos nem condições
empresários, o agronegócio
de averiguar os fatos. Formou
e banqueiros que, segundo
opinião de última hora baseado em
reportagens publicadas pela mídia,
mensagem em massa em grupos
despejaram rios de dinheiro na
de WhatsApp. Isso é um dos
campanha de Bolsonaro.
fatores explicativos do movimento
A expedição de notícias falsas
abrupto do eleitorado na semana
em doses cavalares através de
do primeiro turno das eleições, que
grupos de Whatsapp e a produção
impulsionou várias candidaturas
deliberada de conteúdos falsos
de ultradireita16 nas disputas
15 No dia 18 de outubro de 2018 uma ampla reportagem do jornal “Folha de S. Paulo” afirmava que empresários simpáticos ao candidato Jair Bolsonaro teriam comprado “pacotes” de disparo em massa de mensagens contra o PT (fake News), o que caracteriza caixa dois de campanha. Conforme a legislação eleitoral em vigor, doações de empresas em campanhas são vetadas. Empresas com a rede de lojas de departamento Havan chegaram a gastar 12 milhões de reais na campanha do então presidenciável, conforme reportagem da Folha. Até a entrega deste artigo, a justiça eleitoral, mais uma vez, deixou de atuar. Assim sendo, podemos afirmar que a maior fake News das eleições de 2018 foi a ameaça do então presidente do TSE, ministro Luiz Fux, segundo a qual o tribunal seria implacável contra as notícias falsas. 16 Estamos nomeando como ultradireita a versão extrema do conservadorismo, que se expressa de forma reacionária. É formada por grupos que não aceitam a modernidade e buscam mobilizar e conquistar o aparato estatal pelo uso da força, saudosos de um passado nostálgico. São autoritários, reativos a todo tipo de diversidade, contrários a políticas de direitos humanos e violentos; portanto, incompatíveis com a democracia. Combinam com o modo mais violento, excludente e opressor do capitalismo na contemporaneidade: o ultraliberalismo.
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92
pelo executivo, principalmente
período pós-eleições, as condições
na disputa presidencial, e do
jurídicas e institucionais para
legislativo (notadamente no
a consolidação de uma ordem
Congresso).
autoritária que poderá emergir no Brasil, num futuro próximo.
b) Elites da burocracia estatal: juízes, promotores, policiais e
c) Participação de think tanks
outros funcionários públicos
norte-americanos17. São instituições
do alto escalão que atuam (no
que financiam formadores de
aparelho estatal) como se fossem
opinião ultraliberais na mídia, em
prepostos e/ou parceiros das elites
espaços acadêmicos e junto a
econômicas e ultraliberais. Esses
grupos religiosos neopentecostais
grupos da alta burocracia pública
dentro do protestantismo e do
vêm agindo sistematicamente (por
catolicismo. Essas instituições dos
ações, conivências e omissões)
EUA investem há muito tempo
para o atendimento das demandas
na formação de uma ampla rede
dos setores do establishment.
de influenciadores que atuam em
Segmentos do sistema de justiça
universidades, imprensa, igrejas,
- mais preocupados em perseguir
clubes de serviço, empresas,
e destruir biografias de políticos
ONGs, sociedades secretas,
escolhidos a dedo -, não somente
divulgando princípios ultraliberais e
permitiram, mas foram coniventes
antidemocráticos, com impacto em
com o processo eleitoral maculado.
amplos segmentos da vida social.
Militares voltaram a atuar
Esses influenciadores criaram uma
politicamente.
imensa rede de agentes políticos
O discurso de Bolsonaro agradava
que são incapazes de defenderem
setores poderosos das Forças
valores democráticos; odeiam
Armadas e das instituições de
quaisquer políticas que visam a
segurança que apresentavam
justiça e a igualdade e só exaltam
o capitão do Exército como o
os valores e interesses privados
único capaz de reverter a crise
e individualistas. São contra um
da insegurança pública brasileira.
estado social e preferem entregar
Já comprometidos com todo
todo o patrimônio nacional aos
o processo anterior de ruptura
estrangeiros desde que seus
democrática e institucional, esses
privilégios de classe sejam
grupos de elites de burocratas
mantidos.
estatais trataram de articular, no 17 Sugerimos o artigo “Conexões ultraliberais nas Américas: o think tank norte-americano Atlas Network e suas vinculações com organizações latino-americanas” ((BAGGIO, K. G., 2018, pp 115150).
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d) Ação da mídia empresarial.
Executivo Federal.
Há muito, os grupos midiáticos brasileiros se consolidaram como
Não é nossa intenção fazer um
um instrumento de controle e
inventário desses descaminhos, mas
manipulação da informação na
não é honesto deixar de registrar
tentativa de imposição de um
essa questão. Por outro lado,
pensamento único. De forma
é evidente que a culpabilização
hermética, seus veículos de
dirigida exclusivamente ao partido
comunicação atuaram em uníssono
é desonesta e persecutória e
para favorecer o lado da disputa
desconsidera que quaisquer
que atendia aos interesses da
governos estão passíveis de erros e
coalização ultraliberal. Para
acertos na condução do Estado.
consolidar a ruptura democrática e a imposição de um governo
Especificamente em relação à
ultraliberal e das elites, a coalizão
campanha eleitoral de 2018, o PT
que se formou em torno do
não foi eficiente nem na inteligência
candidato vencedor usou (e
estratégica, nem na infraestrutura
continua usando depois das
capaz de enfrentar a campanha
eleições) os armamentos de uma
bolsonarista – que contou, segundo
guerra híbrida18.
constam estudos preliminares, com estrategistas, planejadores,
Assim, as eleições de 2018 consolidaram
conhecimentos e tecnologias até
um simulacro democrático.
militares de última geração: a chamada ciberguerra19.
CRÍTICAS AO PARTIDO DOS TRABALHADORES
Mesmo antes de iniciar a disputa presidencial, o então candidato do
Não há como desconsiderar nesse
Partido Social Liberal (PSL) já tinha
processo de erosão da democracia
mais de 18 milhões de seguidores
brasileira os equívocos cometidos
nas mídias sociais.
pelas esquerdas e, em especial, pelo
A estratégia de campanha do
PT durante os 13 anos à frente do
partido associava o PT como o único
18 Trata-se de uma estratégia de disputa que combina elementos de uma guerra militar, com métodos como fake news, guerra informacional, intervenções alheias ao processo democrático, entre outras estratégias de ataque ao adversário político. 19 Esse tipo de estratégia belicosa mescla recursos de inteligência artificial, pregação religiosa de base teocrática, disseminação de fake News em massa, promessas de purificação e limpeza da sociedade com a eliminação daqueles que são escolhidos como os “inimigos” [estrangeiros, imigrantes, venezuelanos, pobres, negros, petistas etc.], desmoralização do sistema e do Estado de Direito e, por fim, a criminalização da política.
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partido responsável pela corrupção e
dos linguistas mais importantes
pela crise econômica. Para agradar a
da contemporaneidade, resumiu
direita e setores ultraconservadores,
o que se esperaria de um partido
criticava a “imprensa comunista”, o
que nasceu para representar os
sistema de cotas e políticas de ações
interesses dos trabalhadores
afirmativas; atacava a comunidade
brasileiros:
LGBT, os “vagabundos” do bolsafamília, os “comunistas” infiltrados nas Universidades. Também há críticas ao PT em relação ao descolamento da burocracia e suas elites partidárias das bases da sociedade e, até mesmo, do sindicalismo. Segundo Frei Betto, com o tempo, o PT deixou de valorizar o “trabalho da formiga” e passou a entoar o “canto da cigarra” e o projeto de Brasil deu lugar ao (projeto) de poder: Se o PT pretende se refundar, terá que abandonar a postura altiva de cigarra e voltar a pisar no chão duro do povo brasileiro, esse imenso formigueiro que, hoje, tem mais acesso a bens materiais, como carro e telefone celular, mas nem tanto a bens espirituais: consciência crítica, organização política e compromisso com a conquista de “outros mundos possíveis”.20
Já o filósofo norte-americano
Eles tiveram tremendas oportunidades. Algumas foram usadas em benefício da população, outras foram perdidas. É preciso perguntar por que isso ocorreu, e fazer isso publicamente. E realizar reformas internas que impeçam que aconteça outra vez. (...) Se o PT reconquistar o poder político - ou mesmo se não chegar lá, de uma forma ou de outra -, uma grande tarefa que deve enfrentar é de estabelecer uma espécie de comissão da verdade para olhar com honestidade para o que ocorreu. Olhar com franqueza para as oportunidades que perderam. Isso teria um grande significado.21
OS RESULTADOS DAS URNAS Do rescaldo da onda mudancista22 do processo eleitoral surgiu um presidente de ultradireita, “filho” da velha política que se apresentou como o “novo”, eleito com mais de 57 milhões de votos.
Noam Chomsky, considerado um 20 BETTO, F. A fábula petista. 21 PT deveria realizar ‘comissão da verdade’ para examinar seus erros. 22 “A onda mudancista de natureza antissistêmica foi consequência da profunda crise política, econômica, social moral que atingiu o sistema político e os partidos que dele faziam parte como protagonistas desde a Constituição de 1988. O PT, mesmo tendo sido tirado do poder por um golpe, fazia parte desse sistema, tendo governando o país por 13 anos e alguns meses. Em boa medida, tanto no primeiro quanto no segundo turno, foi apontado como o principal responsável pela crise do sistema.” (FORNAZIERI, Aldo).
97
Governadores eleitos de estados
Há quem tenha esperança que
importantes, como Minas Gerais,
o Poder Judiciário poderá ser o
Rio de Janeiro e São Paulo seguem
equilíbrio à onda conservadora e de
a mesma cartilha do chefe do
direita no Executivo e Legislativo
Executivo Federal. Um Congresso
federais, à medida que resguardará
ainda mais conservador que o
a defesa dos direitos e garantias
eleito em 2014 (responsável pelo
da Constituição de 1988. Vamos
impeachment de Dilma Rousseff)
conferir...
surgiu das urnas, com o aumento expressivo das bancadas militar e
É preciso registrar a votação
neopentecostal. O perfil do “novo”
expressiva que o nordeste
Congresso brasileiro é: homens
brasileiro confiou aos partidos
brancos, com curso superior, com
mais identificados com políticas
alta renda econômica e de direita.
de proteção, defesa e promoção
Certamente, não coincide com
dos direitos humanos. Muito
o perfil mediano da sociedade
provavelmente, o Nordeste se
brasileira.
constituirá como um foco de resistência às políticas ultraliberais e
Quanto ao Judiciário, declarações
será um contrapeso importantíssimo
como a do presidente do STF, Dias
para o enfrentamento da onda
Toffoli, afirmando que a ditadura
ultraconservadora observada no Sul,
militar foi um “movimento” podem
Sudeste e Centro-Oeste brasileiros.
indicar um possível alinhamento dos três poderes a partir de 2019.
Certamente, o resultado, eleitoral no Nordeste está relacionado,
A “velha” noção de freios e
também, à fidelização do eleitorado
contrapesos que deveria pautar
dessa região ao ex-presidente Lula -
uma república alicerçada em
expurgado do processo eleitoral por
três poderes independentes e
uma condenação muito contestada
autônomos nunca esteve tão
por muitos juristas e estudiosos
fragilizada.
do fenômeno político e que está
23
23 Segundo Montesquieu, “quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. 2000, p. 167).
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99
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sendo objeto de análise em tribunais
As cenas de barbárie e violência
internacionais de proteção aos
protagonizadas país afora contra
direitos humanos, como a Corte
militantes sociais, explicitando
Interamericana de Direitos Humanos.
a violência política (que sempre existiu, mas parecia contida),
Também é positiva a votação de
mostram que a pulsão pela morte se
Fernando Haddad no segundo turno,
espraiou pelo país, mesmo antes do
alcançado mais de 47 milhões de
início da disputa eleitoral.
votos, a demonstrar que existe um grande contingente de eleitores se
É preciso muito trabalho de
posicionando claramente contra o
educação política e cidadã para
governo de Bolsonaro.
fortalecer os impulsos pela vida. Faz-se necessário enfrentar a pulsão
Muito preocupante é o fato de a
de morte e canalizar a agressividade
alienação eleitoral (abstenções,
difusa de setores autoritários para
brancos e nulos) ter superado a casa
ser utilizada em prol da vida, da
dos 40 milhões de eleitores.
justiça, da igualdade, da democracia
Ou seja, quase um terço dos
e dos direitos humanos.
eleitores “lavaram as mãos” no processo eleitoral. Mais um fator
Igualmente, é necessário enfrentar
a evidenciar a fragilidade da
esse “demônio oculto” do ódio,
democracia representativa.
da vingança e da violência.
EROS E TÂNATOS
E AGORA?
Amor e ódio, sexualidade e
É importante refletir, à guisa de uma
agressividade, vida e morte são
conclusão parcial e incompleta,
forças que habitam o ser humano e
que as eleições de 2018 fecharam
estão presentes no cotidiano, tanto
um ciclo de ampliação de políticas
nos conflitos mais banais quanto
de direitos humanos e da tentativa
nas mais mórbidas disputas da
de consolidação de um estado
humanidade. Esses opostos estão
de bem-estar social no Brasil,
misturados, amalgamados em tudo o
inaugurado com a Constituição
que fazemos, pensamos e sentimos.
Federal de 1988, e abriram um novo ciclo, que provavelmente
Nas eleições de 2018 percebemos
será marcado pela voracidade no
pulsões pela vida e pulsões pela
desmonte do estado social, restrição
morte.
de direitos, controle e perseguição a movimentos e lideranças sociais,
101
eclesiais e culturais e implementação
em certa medida, os estereótipos
de políticas que visam ao
de um ditador populista, o mais
incremento da “economia que mata”.
preocupante é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições
Também há que se reconhecer que
sociais e políticas quando (elas)
os eleitores de Bolsonaro não são
se tornam homogêneas. E o
um grupo homogêneo. Há, pelos
alinhamento dos poderes da
menos, três grandes agrupamentos:
República a ideais autoritários
cidadãos frustrados com as
podem indicar essa tenebrosa
políticas anteriores que prometiam
perspectiva.
um novo patamar de vida e, com as decepções advindas com o
Ademais, o ultraliberalismo é
desemprego, a crise econômica
uma forma contemporânea do
e a precariedade das políticas
totalitarismo: tudo é pensado como
públicas rejeitam tudo o que
se fosse uma empresa privada,
representa o establishment e não
inclusive o Estado. Elegem-se
vislumbraram outra opção eleitoral
gestores como governantes e
senão a radicalização política; os
prima-se pela meritocracia, num
antiesquerdistas e, principalmente,
país marcado por profundas
os antipetistas (e tudo o que,
desigualdades, o que torna qualquer
simbolicamente, representa o PT)
competição um jogo de cartas
e um grupo minoritário que flerta,
marcadas.
sem constrangimento e pudor, com práticas e governos fascistas.
Ora, se o Estado e as instituições públicas são empresas, como será
No espectro político-institucional
possível lidar com os conflitos,
há imensos desafios para o campo
a diversidade e a exclusão social,
democrático e popular pela frente.
por exemplo?
Entre os principais desafios, a formação de uma ampla aliança
No campo religioso há que se
de centro-esquerda democrática
destacar que os segmentos
para enfrentar, com uma oposição
neopentecostais dentro do
consistente, um governo de viés
protestantismo e do catolicismo
nitidamente autoritário.
continuam ativos e usam a estratégia de guerrilha para a defesa
É preciso registrar que o governo
de uma cosmovisão fundamentada
Bolsonaro surge, também, como
em valores conservadores e
uma ameaça totalitária.
reacionários. Continuarão atacando
Além de Bolsonaro personificar,
os segmentos identificados com
102
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104
ações sociopolíticas transformadoras
informação voltada aos segmentos
e disputarão, cada vez mais, as
sociais de base. Sites, blogs e redes
narrativas sobre o significado
sociais se tornaram importantes
do cristianismo em tempos de
mecanismos de mobilização e
adensamento da exclusão, das fakes
resistência política.
News, dos discursos de ódio e da violência - em nome da moral e dos
Os partidos de esquerda,
bons costumes da família tradicional.
tendencialmente ensimesmados
São visões de mundo e valores que
em seus microuniversos políticos,
não podem ser desprezados, porque
foram provocados ao diálogo e
significam, para esses segmentos,
têm buscado construir consensos
o fundamento de sua fé (por mais
importantes em torno de projetos
que se possa questionar e negar tais
comuns para o país. Dos setores de
fundamentos). Alguns desses grupos
esquerda nasceram e consolidaram
engrossam o coro de segmentos
as frentes Brasil Popular e Povo
ultraconservadores do catolicismo
Sem Medo que se constituem em
nos ataques ao Papa Francisco.
mecanismos potentes de formação política, construção coletiva de
Porém, é preciso registrar muitos
plataformas programáticas, além de
sinais de esperança. Há um
atuarem na organização e formação
ressurgimento potente de vários
das bases sociais.
movimentos sociais no campo dos direitos humanos, principalmente
Muitos dos discursos anticorrupção
ligados às questões de gênero
foram desmascarados e desnudaram
(feministas e LGBT+), étnicos
o caráter moralista, autoritário e
(movimentos negros) e geracionais
classista de segmentos que não têm
(juventudes). Esses movimentos
nenhum compromisso com a ética
lideram importante resistência
pública e só se preocupam com a
democrática e denunciam as feições
defesa de privilégios.
machista, racista, homofóbica e velhaca da ordem social e política
As eleições de 2018 também
brasileira contemporânea.
lançaram luz sobre os interesses de movimentos religiosos
Uma potente polifonia jornalística
ultraconservadores que se espraiam
e comunicacional está a contrapor
pelo país. Está cada vez mais
com qualidade e profundidade a
cristalina a participação de líderes
mídia empresarial, articulando parte
religiosos que usam da boa-fé do
da opinião pública progressista
povo para manipular e enganar a
e, também, a divulgar e produzir
população. Nunca se percebeu com
105
tanta clarividência que há falsários,
política; unificar as lutas sociais
“sepulcros caiados” e enganadores
e criar novos mecanismos de
que se escondem sob o manto da
informação e formação alternativos
religião para manter o povo alienado
aos oligopólios da mídia.
e na condição de miséria e pobreza. Por fim, um projeto de Nação As “reformas” encabeçadas pelo
democrática de fato, para além
governo neoliberal de Michel Temer
de democracia formal, significa a
mostraram à opinião pública que os
defesa intransigente dos direitos
verdadeiros ganhadores de rupturas
e conquistas advindos com a
democráticas são os banqueiros,
Constituição Federal de 1988,
os latifundiários, os especuladores e
principalmente na perspectiva da
rentistas e que governos neoliberais
construção de um estado social,
e ultraliberais só servem para
baseado nos pressupostos dos
contrariar interesses do povo, da
direitos humanos.
nação e da democracia, a favor do sistema financeiro local e global. Está claro, também, que as elites agrárias e empresariais que ainda dominam o Brasil e respaldam o atual governo (herdeiras da cultura colonial e submissas historicamente à burguesia mundial, sem projeto nacional e alheias aos interesses do país) carregam a tradição elitista, racista, etnocêntrica, patriarcal e violadora dos direitos humanos. São os filhotes da Casa Grande. O caminho para a reconquista da democracia real é longo. Aos setores democráticos é preciso evitar ilusões messiânicas; atuar em diversas frentes na consolidação de um projeto nacional inclusivo e democrático. Retomar as ações estratégicas de organizações de base, trabalhando a formação
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A DEMOCRACIA EM QUESTÃO: pontos e contrapontos João Carlos Lino Gomes1 Pe. Márcio Antônio de Paiva2
1 INTRODUÇÃO Pensar a democracia hoje é repensar
seguida, mas o cidadão comum fica
os caminhos trilhados pela política
a mercê dos que detêm o poder
na modernidade e discutir os
econômico.
descaminhos de uma sociedade ocidental que, apesar das inegáveis
Nesse sentido, faz-se necessária
conquistas no plano material, se vê
uma investigação que, sem negar as
dominada por uma economia muitas
conquistas do projeto democrático,
vezes antropofágica, excluiu uma
verifique até que ponto ele foi
imensa parcela da população mundial
corrompido por experiências internas
dos benefícios criados pelo progresso
ou externas à democracia de modo
material, além de ter construído uma
que o lugar da maioria que produz o
paradoxal democracia oligárquica,
poder possa ser resgatado. Usaremos,
onde a formalidade democrática é
para tanto, algumas reflexões de
1
Diploma de Estudios Avanzados en Filosofia, Tecnología y Sociedad pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Filosofia (UFMG). Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS), do Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) e da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). http://lattes.cnpq.br/9793347048061591
2
Doutor em Filosofia pela Pontificia Università Gregoriana (1998). Professor adjunto IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. http://lattes.cnpq.br/8132958863250237
114
115
116
Hannah Arendt para discutir esta
político a partir da modernidade.
questão já que a autora, conhecida por suas análises acerca dos totalitarismos nazista e stalinista, já
1
SOB O HORIZONTE DA TOTALIDADE
apontava que algumas das práticas totalitárias destas experiências
É característica da modernidade
históricas poderiam ser apropriadas
a ideia de história acompanhada
pelas democracias no seu esforço de
da noção de progresso e
manter a ordem a qualquer preço.
superação, superação da tradição
Como contraponto, trazemos algumas
e autoafirmação do sujeito. A
contribuições de Emmanuel Lévinas,
autonomia do sujeito o torna não
que sentiu na própria pele os horrores
somente o lugar, mas o critério da
do totalitarismo, o qual iluminará a
verdade, entretanto, privado de
reflexão com suas célebres reflexões
tradição. Nessa perspectiva, “êxito” é
acerca da alteridade, da pluralidade e
a única coisa que conta na história e
do sentido ético que, segundo ele, não
se constitui como “verdadeiro Deus”
vem do contexto cultural.
radicalmente secularizado. Com a secularização, as verdades e os
Para Lévinas, o pluralismo não é
valores, como a natureza e a política,
mais entendido numericamente
já não são expressão direta de uma
na perspectiva da pluralidade
vontade divina (PAIVA; TOMÉ, 2014).
sociocultural, mas um pluralismo embasado noutra lógica: a via da
Ora, a obra de Hannah Arendt é uma
alteridade. Portanto, um pluralismo
das mais desafiadoras, no campo
nem de sobreposição, nem violento.
da Filosofia Política, produzidas no
Em outros termos, pode-se dizer que
século XX, sendo que uma das suas
o autêntico pluralismo se dá a partir
preocupações mais instigantes é a
do outro. Assim esperamos lançar
perda da tradição do pensamento
luzes para o debate contemporâneo
político ocidental que, para ela,
e abrir algum caminho para repensar
cobre um universo que abrange
os atuais paradoxos da democracia.
de Platão a Marx, e o consequente
Arendt e Lévinas são judeus, ambos
desmoronamento das nossas
sofreram os horrores da Segunda
referências para pensar com rigor
Guerra mundial, como estudantes
algumas das experiências cruciais
aprenderam muito com Heidegger,
que vivemos no século XX tais como
lutaram contra as tendências
o totalitarismo, o consumismo e o
opressivas na política – daí nossa
desgaste da ideia de democracia
aproximação dos dois filósofos,
que, em última instância,
mesmo cientes da grande diferença
contribuíram para a destruição do
entre eles, como entre o ético e o
espaço público político.
117
Para a pensadora, este espaço
ser pensadas pela tradição do
é constituído pela ação humana
pensamento político ocidental
e sua capacidade de produzir
(ARENDT, 1989, p. 442-464).
constantemente novos começos. Por
Enfrentou-se, então, o seguinte
outro lado, Lévinas acusa o século
problema: acreditou-se, no ocidente,
XX dos horrores da guerra, do
que não seria possível experimentar
culminar do pensamento ocidental
realidades que estivessem fora da
no totalitarismo, que anulou a
nossa capacidade de pensá-las.
diferença e o outro na lógica da dominação (LÉVINAS, 1980,
No entanto, os regimes totalitários
Prefácio).
(que Hannah Arendt identifica no nazismo e no stalinismo) se
Arendt, ao tentar compreender a
constituíram em si mesmos como
importância que o espaço público
sistemas que desafiaram a nossa
político teve no ocidente, afirma que
capacidade para pensá-los porque
a tradição filosófica ocidental, ao
realizaram experiências que
fazer da contemplação, na Grécia
escaparam à nossa capacidade de
antiga, a esfera fundamental da vida
compreensão imediata. É como
humana, diluiu a importância que
afirma Lévinas, o totalitarismo que
a polis atribuía à atividade política
gera a guerra nos faz inaptos a
e estabeleceu um preconceito
qualquer atividade de julgamento
com relação a esta que se tornou
e pensamento. Por isso mesmo, o
determinante para a tradição do
pensador judeu desfere uma crítica
pensamento no ocidente. Mas,
radical à ontologia como lógica da
apesar disso, criou-se uma tradição,
guerra.
ou seja, mesmo com o rebaixamento da política, juntamente com outras
Isso colocou para a cultura ocidental
atividades da vida ativa (a vida do
uma dura realidade: descobrimos
agir), o ocidente conseguiu criar
que nós, seres humanos, somos
referenciais que de alguma forma
capazes de fazer coisas que não
orientaram a experiência humana
conseguimos pensar e, mais do que
durante séculos.
isso, podemos fazer coisas sem pensar e isto não diminui a eficácia
Mas esta tradição começou a
das ações realizadas sob este
se romper no século XIX e os
prisma. Na terceira parte do seu livro
regimes totalitários do século XX
sobre o totalitarismo, Hannah Arendt
produziram a sua total dissolução.
coloca como epígrafe um verso do
Isso aconteceu na medida em que o
poeta David Rousset que diz “os
totalitarismo efetivou experiências
homens normais não sabem que
que simplesmente não puderam
tudo é possível”.
118
119
120
Ou seja, os homens normais –
um lugar no mundo, de não mais
e a maioria dos seres humanos
conseguirem se compreender
na sua experiência cotidiana se
dentro das prerrogativas que
inscreve nesta categoria – por mais
tradicionalmente atribuímos ao
que possam abrir algum espaço
ser humano e, portanto, de não
em sua vida para pensar o absurdo,
poderem fundar, através da ação e
não conseguem pensar a absoluta
do discurso, o espaço da pluralidade,
dissolução de todo e qualquer
onde se age em comum sem perder
parâmetro legal, moral e político;
a própria singularidade. Isto é
enfim, não conseguem pensar a
possível porque, neste espaço, as
total ausência de sentido, porque
pessoas, apesar de agirem juntas,
a dissolução absoluta do sentido
têm condições de se distinguir, não
destrói até mesmo a concepção de
se confundindo com uma massa
absurdo que produzimos a partir de
informe (ARENDT, 2010, p.61).
certas condições de normalidade. As palavras de Lévinas fazem pensar
Hannah Arendt identifica como um
pela sua contundência:
dos elementos potencializadores
O estado de guerra suspende a moral; despoja as instituições e as obrigações eternas da sua eternidade, por seguinte, anula, no provisório, os imperativos incondicionais. Projeta antecipadamente a sua sombra sobre os atos dos homens. A guerra não se classifica apenas-com a maior entre as provas de que vive a moral. Torna-a irrisória. A arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra – a política – impõe-se, então, como o próprio exercício da razão. A política opõe-se à moral, como a filosofia à ingenuidade (LEVINAS. 1980, p.9).
O totalitarismo rompeu com o mínimo horizonte de significado3 e, ao fazê-lo, criou nos seres humanos a impressão de não terem mais 3
do totalitarismo o fato de que, na modernidade, o espaço público político ter sido destruído com o avanço da cultura moderna e sua matriz, ao mesmo tempo, individualista e societária. Segundo a autora, nos tempos modernos, assistimos a uma perda do mundo e isso se explica pelo surgimento de uma nova esfera na experiência humana em que a satisfação das necessidades para a manutenção da vida biológica e a luta pelos interesses privados produziram uma constante diminuição da esfera política que, por exemplo, para os gregos antigos, era de suma importância, já que estes,
Em Lévinas, encontramos a célebre reflexão em torno da crise de sentido em Humanismo do outro homem, obra em que ele fala de um sentido único – o ético – que brota da própria condição humana, como arcaico e imemorial. Veja-se: PAIVA, M. A.; TOMÉ, M. E. F. Proximidade segundo Lévinas: uma lógica para além do relativismo. Filosofia Unisinos. Maio-Agosto 2014, 15(2), p. 116-129, (doi: 10.4013/fsu.2014.152.03).
121
ao inventarem a política, passaram
teriam tempo para o exercício da
a fazer uma distinção entre aquilo
verdadeira liberdade que, conforme
que próprio do ser humano na sua
Hannah Arendt, na Grécia Antiga
particularidade (idion) e aquilo que
se definia como libertação das
ele partilha com a comunidade
necessidades para poder se dedicar
(ARENDT, 2010, p.28-29).
à vida política (ARENDT, 2010, p.3839).
De qualquer forma, Arendt e Lévinas combatem o totalitarismo,
Mas a morte de Sócrates pela
seja pela acusando a lógica do
democracia ateniense instaura,
Mesmo, o eu penso, o sujeito
na leitura arendtiana, uma forma
epistêmico, que reduz o outro a si
diferente de o ocidente ler a vida
mesmo instaurando a violência na
política fortemente influenciada pelo
seara social; seja pela constatação
enfoque que a filosofia passa a dar
da perda do espaço público
para esta. Platão, por exemplo, no
político como autêntico lugar da
livro A República, interdita como
democracia.
vida humana plena não só a vida dos negócios propriamente dita, mas a
2
ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE
própria vida política. A partir deste momento, a vida por excelência passa a ser a do filósofo
Segundo Arendt, os gregos
e tanto a vida dos negócios quanto
estabeleciam uma clara distinção
a vida política passaram a ser lidas
entre a vida privada da casa, onde
do ponto de vista do seu olhar
os homens satisfaziam as suas
contemplativo. Essa experiência
necessidades materiais, e a esfera
com a política orientou a cultura
pública da pólis, onde exerciam sua
ocidental até a idade média.
liberdade decidindo os destinos da cidade ao exercitar o discurso e a
A modernidade, com a criação
ação entre iguais. Isso significava
da economia de mercado, muda
que, no espaço político, todos
radicalmente a relação entre vida
tinham as mesmas possibilidades
ativa e vida contemplativa, tal como
de se distinguir, de atualizar suas
colocada pela filosofia grega.
potencialidades como cidadãos.
A ascensão da economia permite
A casa, a vida privada, era um
que a satisfação das necessidades
espaço fundamental na medida
seja retirada da esfera privada e
em que, sem ela, os homens-
passe a ocupar a esfera pública e
cidadãos teriam de empregar parte
é assim que se institui a esfera do
de seu tempo satisfazendo suas
social. Esta funciona como uma
necessidades materiais e, assim, não
espécie de ampliação do universo
122
123
124
doméstico e, ao invadir o espaço público antes ocupado pela política, reduz a experiência humana à pura satisfação das próprias necessidades.
que encaro a partir do meu egoísmo. A alteridade de outrem está nele e não em relação a mim, revela-se, mas é a partir de mim e não por comparação com o outro que eu lá chego. (LÉVINAS, 1980, p. 106).
No social, na sociedade, não existe
Se a modernidade faz desaparecer
espaço para que as pessoas possam
a pluralidade, abre-se a porta para
se distinguir, pois todos são
o totalitarismo que nossos filósofos
uniformizados na medida em que,
tanto combatem. Para Lévinas, na
apesar de lutarem por interesses
maioria das vezes a inspiração do
privados, estes se reduzem à
pluralismo numérico é totalitária,
manutenção da vida biológica e
cada diferente usa a tendência a
esta obedece a certos padrões que
não reconhecer o outro como outro,
valem para todos os seres humanos
anulando-o na consciência do sujeito
(ARENDT, 2010, p.55-56). Não há,
epistêmico. O social esvazia tanto
então, espaço para a diferença, logo,
a esfera privada, pois faz com que
também desaparece a pluralidade
ela perca sua importância para a
que, como já afirmamos, Hannah
sustentação da vida biológica e para
Arendt identifica como uma das
nossa proteção contra a invasão
características fundamentais da
da nossa privacidade pela esfera
política.
pública, quanto a esfera política no que diz respeito à possibilidade
Aqui faz-se necessária uma pequena
de uma vida efetivamente voltada
digressão em torno do que Lévinas
para o estabelecimento de relações
entende como verdadeira e
propriamente humanas (ARENDT,
autêntica pluralidade. Muitas vezes
2010, p.47).
a consideração numérica não basta para garantir o pluralismo, pois
No livro A condição humana, Hannah
pode-se usar a mesma lógica que
Arendt afirma que a ascensão do
anula a diferença: pela violência, pela
social, num primeiro momento,
massificação ou pelo totalitarismo.
significa a vitória do homo faber,
Por isso, há uma inovação
que ela define como o homem
interessante em Lévinas, segundo o
como construtor do mundo, ou
qual
seja, como produtor de objetos O pluralismo não é uma multiplicidade numérica [...]. O pluralismo supõe uma alteridade radical do outro que não concebo simplesmente em relação a mim, mas
duráveis para serem utilizados pelas pessoas. Para a autora, o feito mais marcante do homo faber foi o telescópio de Galileu que mostrou como o ser humano pode perscrutar
125
o universo com um objeto feito
um ser incapaz, em função do seu
por suas próprias mãos e colocou
isolamento, de participar livremente
sob suspeita tanto os olhos do
dos destinos da sociedade4.
corpo, reafirmando a desconfiança
As massas se constituíram, no fim
dos filósofos com relação aos
do século XIX e início do século
sentidos, quanto os olhos do
XX, como consequência da crise
espírito, questionando desta forma a
da sociedade de classes que gerou
acuidade do próprio olhar filosófico
na Europa um grande número de
que vê essências mas não descobre
indivíduos que não conseguiam
novos mundos. Assim:
encontrar um lugar numa sociedade
Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem, o telescópio, que realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a ativa interferência do homo faber, da atividade de fazer e de fabricar [making and fabricating]. Em outras palavras, o homem estava enganado somente enquanto acreditava que a realidade e a verdade se revelariam aos seus sentidos e à sua razão, bastando para tanto que ele permanecesse fiel ao que via com os olhos do corpo e da mente. (ARENDT, 2010, p.342).
Mas a vitória do homo faber é, de certa forma, momentânea, pois, no mundo contemporâneo, com o aparecimento da sociedade de massas, assistimos à ascensão, juntamente com a sociedade de consumo, do homem da massa,
que assistia ao crescimento de economias transnacionais e à implementação da produção de bens supérfluos onde a produção passou a se justificar em função do consumo e não mais do uso. Hannah Arendt escreve: O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto. (ARENDT, 1989, p.361).
Com todas essas mudanças o ocidente tornou-se palco para
4 Para Lévinas, cabe ressaltar aqui, não há uma noção abstrata de sujeito humano pensante ou racional como contraponto ao sujeito das massas. A subjetividade de que trata é aquela encarnada. Por isso, pode-se afirmar, com Lévinas, que o homem só será o bem supremo, cujos direitos devem ser salvaguardados, a partir do outro. Contrariamente ao totalitarismo que vê no outro e no diferente um inimigo. Não é uma noção abstrata “homem” que está na base do humanismo, é o Outro, e o outro encarnado. Aqui deve ser acrescentado também o préoriginário da alteridade que garante a pluralidade e um lugar ao sol nas democracias. Portanto, é a partir do cenário da existência, da intriga social, que se constrói a ética e a política.
126
127
128
a vitória do animal laborans.
sensação de que isto lhe dá certo
Este, contrariamente ao homo
apego à realidade.
faber, está reduzido à função de consumir e representa a dimensão
O animal laborans tornou-se a marca
humana em que estamos presos
do nosso tempo na medida em
ao ciclo biológico e repetitivo da
que a maioria dos seres humanos
manutenção da vida. Na cultura do
está presa hoje à luta pela própria
consumo tudo se torna supérfluo,
sobrevivência e não ao esforço pela
pois as coisas não são feitas para
preservação do mundo. Ele também
durar e, portanto, carecem de
se faz presente na experiência do
substância. Neste modelo de cultura,
nosso tempo em que se acredita
o próprio homem torna-se supérfluo,
que tudo que é criado deve ser
pois se torna um ser superficial
consumido. Assim, cremos que
e descartável. Ele não vive a
os dois livros de Hannah Arendt
experiência do pluralismo e sim a da
podem ser melhor articulados
massificação.
quando os compreendemos como fazendo parte de uma temática que
3 CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE
perpassa a sua obra, qual seja: a perda do espaço público-político e a consequente impossibilidade
Embora Origens do totalitarismo
de que os seres humanos possam
e A condição humana sejam livros
aparecer (o espaço político, para
diferentes, escritos em épocas
nossa autora, é o espaço da
diferentes, acreditamos que o
aparência) como seres criadores e
homem da massa, que no primeiro
instauradores do novo e do sentido
livro é aquele que é manipulado
(ARENDT, 2010, p.227-228).
pelo totalitarismo e assim se torna uma peça-chave para este sistema,
Há uma grande distância
se identifica com o ser humano
nesse aspecto entre Lévinas e
reduzido ao animal laborans (cuja
Arendt. Embora estejam ambos
compreensão a autora considera
preocupados com a crise de sentido,
fundamental para a investigação
o filósofo critica a multiplicidade
da destruição do espaço político
cultural como fonte única e legítima
em nossa modernidade),
de significação.
particularmente no que diz respeito
Mesmo que represente uma luta
ao seu sentimento de ser supérfluo,
contra o colonialismo cultural
de estar sobrando no mundo e ter
de algum povo ou de uma
que consumir (mesmo que não
determinada cultura, a dependência
tenha muitas vezes as condições
da significação, da multiplicidade
ideais para o consumo) para ter a
cultural, levou ultimamente não só
129
ao relativismo e à dispersão das
não pode ser inventariado na
significações, mas à indiferença,
interioridade de um pensamento,
à desorientação, aos valores e
no sujeito.
deuses culturalizados que, ao contrário do bem que é universal,
Pelo contrário, o próprio
estão assentados todos juntos sobre
pensamento insere-se na cultura,
a base comum das necessidades,
através do gesto verbal do corpo
dentro da totalidade do ser.
que o precede e o supera. Assim, ele chega a afirmar o sentido único
Aí tanto os deuses como os valores
perdido: o rosto é o lugar onde se
são dados pelo homem a si mesmo
manifesta a significação original,
e, por isso mesmo, já estão mortos.
que comanda e ordena o agir moral.
A verdadeira multiplicidade que
Sua apresentação não é a da esfera
não multiplica as significações e
da percepção, do conhecimento
reúne na paz – é a relação face-
ou da compreensão, mas sim
a-face que revela a multiplicidade
significação ética.
originária – começa na separação entre absolutos e na consideração
Essa significação não faz parte de
da transcendência do outro .
um contexto histórico-cultural, nem
O animal laborans não tem, em
de um processo de identificação do
função de estar preso ao ciclo
sujeito racional, como responsável
repetitivo da vida, a dimensão do
e criador de normas morais. “[...]
novo, e não busca o sentido, pelo
A significação situa-se na ética,
fato de que vive preso ao imediato
pressuposto de toda cultura e de
do aqui agora.
toda significação. A moral não
5
pertence à Cultura: é ela que permite O projeto intelectual de Hannah
julgá-la, que descobre a dimensão
Arendt se constitui como uma crítica
da altura” (LÉVINAS, 1993, p.67).
à modernidade entendida como uma
Portanto, para o pensador judeu,
experiência histórica onde,
existe um arquétipo imemorial ético
de uma exaltação do utilitarismo,
que é a responsabilidade pelo outro,
que produziu um primeiro impacto
fonte da justiça e da democracia.
no espaço público político,
Diz o filósofo:
chegamos à sociedade de massas que perde tanto a dimensão da utilidade quanto a do sentido. O sentido, de acordo com Lévinas,
Em toda sua análise da linguagem, a filosofia contemporânea insiste, certamente com razão, sobre sua estrutura hermenêutica e sobre o esforço cultural do ser encarnado que
5 Cf. SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Vozes, 1984. p.236.
130
131
132
se exprime. Não se terá esquecido uma terceira dimensão, isto é, a direção para Outrem, que não é somente o colaborador e o vizinho de nossa obra cultural de expressão ou o cliente de nossa produção artística, mas o interlocutor: aquele para quem a expressão exprime, para quem a celebração celebra, e que é, ao mesmo tempo, termo de uma orientação e significação primeira? (LÉVINAS, 1993, p. 49-50).
Quando Hannah Arendt faz referências à forma como os gregos compreendiam a política antes do advento da filosofia, é menos por um suposto hábito saudosista de uma mente conservadora e mais por ver ali uma experiência que mostra, à maneira de um exemplo, que o mundo no qual vivemos, tal como se constituiu a partir de condições históricas específicas, não pode se colocar como a verdade final do homem já que um dia fomos capazes de viver num espaço público político e isto mostra, para a autora, que a experiência da pluralidade existe potencialmente em nós. E quem sabe, a diferença e a pluralidade têm como desafio o reconhecimento da ética como Filosofia primeira, diria Lévinas. A sociedade de massas implica, no quadro das reflexões de Arendt, na diluição da ideia de mundo tão cara ao projeto do homo faber. Paradoxalmente, ela causa a própria perda da identidade dos seres humanos justamente na medida em
que tenta torná-los absolutamente idênticos, desconsiderando aquelas diferenças que, em um espaço público marcado pelo livre uso da palavra e da ação, possibilitariam a troca de experiências e pontos de vista entre os indivíduos. A democracia da sociedade de massas é falaciosa justamente na medida em que destrói a pluralidade que viabiliza e justifica que cada ser humano singular encontre, no espaço público, a oportunidade de tecer relações com outros indivíduos que também desejem se interrelacionar. A sociedade de massas, que é um registro contundente da vitória do animal laborans, por estar reduzida ao círculo vicioso do trabalho-consumo, eleva o transitório, o fútil e o supérfluo em níveis nunca antes vistos no ocidente. Para Hannah Arendt, um mundo entregue ao animal laborans seria praticamente destruído pela ânsia devoradora deste. A autora demonstra que, de certa forma, há uma amostra disto na economia do desperdício, típica do século XX, onde tudo é devorado e abandonado quase ao mesmo tempo em que surgiu no mundo. Uma vida neste mundo ainda seria vida, mas não seria humana (ARENDT, 2010, p. 166). Sociedade das massas, na linguagem
133
levinasiana, é a vitória da ontologia
Aceitando as análises de Hannah
sobre a ética, é dominação. Portanto
Arendt, quando ela nos mostra
a saída só pode ser em direção ao
que em um verdadeiro espaço
humanismo do outro homem.
político os seres humanos se comunicam através da palavra e
Por este viés, podemos
da ação, podemos concluir que
compreender mais claramente o
o espaço público invadido pelo
porquê da superfluidade do ser
social, por seres humanos sem uma
humano no mundo massificado.
vida privada que, preservada da
Segundo Hannah Arendt, possuir
voracidade do consumo se coloque
uma vida privada é importante
como um pano de fundo para a
não só para satisfazer nossas
aparição pública dos indivíduos,
necessidades, mas também para que
só permite uma comunicação
esta vida nos proteja da aparição
através de imagens que não
absoluta que carrega o perigo de
necessariamente têm um correlato
nos tornar seres sem profundidade,
exterior a elas ou de linguagens que
sem algo que, justamente porque
podem até transmitir mensagens
não aparece, sustenta nosso
coerentes, mas que não levam em
aparecer.
consideração a questão do sentido, do significado (ARENDT, 2010, p.87).
A própria luz que percebemos no mundo nos permite enxergar em
4 EPÍLOGO
função da escuridão que constitui uma espécie de pano de fundo sem
Assim, para nós, acima de tudo
o qual teríamos uma claridade tão
é de fundamental importância
absoluta que simplesmente nos
compreender como Hannah Arendt
impediria de ver. A ascensão do
diagnostica na cultura do supérfluo,
animal laborans e a concomitante
do banal, a diluição de todo e
constituição da sociedade de massas
qualquer sentido, ao mesmo tempo
opera uma espécie de iluminação
que é importante entender que, para
total sobre nossas vidas.
Lévinas, a perda de sentido acontece na pluralidade numérica dos
Na medida em que o social invade
contextos. Se a ascensão do homo
o privado, este se torna algo de
faber, ao reduzir tudo à sua utilidade,
interesse público e deixa de fazer o
trouxe problemas para a busca do
papel daquele pano de fundo que,
sentido – ao trocar a pergunta pelo
de alguma forma, deveria sustentar a
em nome de quê pela pergunta
nossa aparição no espaço público.
sobre o para que – a ascensão do animal laborans destrói o espaço
134
135
136
para perguntas na medida em que
Hannah Arendt identifica filosofia
a palavra que tanto traduz como
e metafisica e, em função desta
doa o sentido é, como já dissemos,
identificação, critica as pretensões
substituída pela imagem vazia
do filósofo de ditar normas
ou pelas linguagens formalizadas
transcendentes para a política,
(ARENDT, 2010, p.192).
ela questiona as tentativas do pensamento ocidental de
Nessa perspectiva, um dos
fundamentar os valores morais a
maiores desafios da democracia
partir de uma esfera absoluta e
contemporânea é justamente
transcendente.
resgatar o sentido, e diríamos ainda mais, o sentido da alteridade do
Este suposto caráter absoluto dos
outro numa cultura da diferença,
valores foi duramente colocado
na direção da revalorização do
à prova em alguns momentos de
espaço público da política. Se com
horror do século XX (as duas guerras
Arendt aprendemos que somos
mundiais, por exemplo) e, apesar
seres de ação e de linguagem, logo
da morte e violência perpetradas,
somos responsáveis pelo horizonte
o mundo não desabou sobre os
saudável da vida política, desde
seres humanos que promoveram a
que lutemos contra a massificação
barbárie, para demonstrar que estes
instaurada; com Lévinas somos
tinham quebrado leis morais que
convidados a redescobrir o
sustentariam absolutamente o agir
originário ético – responsabilidade
humano.
e justiça – como fonte de toda vida ativa no mundo e superação dos
Seres supérfluos, sem identidade,
totalitarismos.
podem mudar de valores sem nenhuma culpa em sua consciência,
É também neste quadro que
pois não conseguem mais remeter
acreditamos ser possível perceber o
a nenhuma experiência de sentido.
impacto sobre a reflexão acerca da
Só lhes resta se apegar ao processo
moral do pensamento de Hannah
repetitivo da satisfação das
Arendt. A autora não nos deixou
necessidades. Já para o filósofo
uma ética sistematizada e não
lituano, o pensamento primeiro é a
são raras as passagens em que
ética, não concebida como valores
ela demonstra claramente a sua
universais ou transcendentes, aliás
desconfiança com relação à tradição
este é um ponto de proximidade
moral do ocidente (ARENDT, 2004,
entre os dois pensadores.
p.118). O movimento levinasiano parte Assim, da mesma forma que
da humanidade do homem, da
137
vida encarnada, até encontrar-se
já tinha sofrido o seu primeiro
no vestígio de Deus, mas ele não
grande golpe quando a fabricação
apresenta uma ética constituída,
mostrou a sua força na construção
senão uma matriz pré-originária,
de instrumentos extremamente
uma lógica, a da proximidade.
eficazes para a construção de um
Portanto, dizer que a ética é filosofia
mundo que, enquanto obra humana,
primeira significa apenas reconhecer
podia ser objetivamente conhecido
que o tecido do real é ético, algo de
pelo homem. Mas apesar deste
que a modernidade se encontra bem
primeiro golpe sofrido por ela,
distante.
ainda restou para o ser humano um mundo – cada vez mais despido de
Em Hannah Arendt não há uma
significado, mas um mundo. Com a
negação da importância da moral
ascensão da sociedade de massas
enquanto um conjunto de valores
tanto a práxis quanto a poiesis são
produzidos historicamente com a
engolidas pela força paralisadora do
função de criar expectativas entre as
comportamento.
pessoas de certo universo cultural. O que existe em seu pensamento é
Assim, é fundamental para nós a
um questionamento sobre a efetiva
reflexão sobre como uma sociedade
força que a moral tem para impedir
massificada, na medida em que
a instauração da barbárie.
torna tudo supérfluo, torna a moral superficial, vazia.
Esta força que, na tradição cultural
No mundo da moral esvaziada não
do ocidente, foi atribuída ao
deixamos de agir moralmente, mas
suposto caráter transcendente e
este agir torna-se simplesmente
absoluto das regras morais, perdeu
uma formalidade cumprida
sua efetividade quando o ser
mecanicamente por quem quer ser
humano deixou de se reconhecer
aceito minimamente pela sociedade.
em um espaço comum, livremente
Talvez seja isso mesmo que esteja
constituído por sua própria práxis,
acontecendo nas democracias em
entendida aqui como esta forma de
torno do Globo.
ação que, diferentemente da poiesis (da ação fabricação, produção),
Resta-nos, por fim, reconhecer
não deixa um registro objetivo e
e enfrentar os desafios que a
durável da sua realização, sendo que
democracia tem diante de si,
seu sentido só revela no momento
se quiser sobreviver e reinventar.
mesmo da sua realização (ARENDT,
Se na época de Arendt a
2010, p.194-205).
massificação já era uma realidade, hoje é potencializada pelo suporte
A práxis, no mundo do homo faber,
tecnológico, iludindo os indivíduos
138
139
140
em meio a falatórios sem sentido,
o desafio de reconstruir o mínimo de
de levarem uma vida
metavalores – aquele laço metafísico
verdadeiramente autêntica, quando
originário – que une as diferenças,
na verdade a superficialidade
por exemplo, em torno da definição
impera, as polarizações políticas e
do bem comum, da defesa da vida,
religiosas campeiam nas redes e no
do cuidado com o planeta. Sem o
tecido cotidiano da vida, a barbárie
mínimo horizonte metafísico –
bate à nossa porta. Talvez, a cultura
a partir do nosso aqui e do nosso
das massas tenha uma serventia:
agora – nenhuma empresa humana
facilitar o exercício do poder e o
chega a bom termo, antes correm o
uso e abuso dos recursos públicos.
risco de se perderem no universo do
Se para Lévinas, a ontologia gera
sem-sentido e da fugacidade.
violência, há uma saída – tênue que
Por isso mesmo, o presente já é
seja – em direção ao reconhecimento
nosso futuro. E aí vale lembrar o
da ética da alteridade: o acolhimento
poeta:
do outro gera uma cultura de
“O presente é tão grande,
encontro e de paz.
não nos afastemos Não nos afastemos muito,
A humanidade do humano tem ainda
vamos de mãos dadas”.
141
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2010. _________. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras, 1989. _________. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das letras, 2004. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad.: Pergentino Stefano Pivatto (coord), Petrópolis: Vozes, 1997. LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Trad.: Pergentino S. Pivatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 1993. PAIVA, M. A.; TOMÉ, M. E. F. Proximidade segundo Lévinas: uma lógica para além do relativismo. Filosofia Unisinos. Maio-Agosto 2014, 15(2), p. 116-129, (doi: 10.4013/ fsu.2014.152.03). SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Vozes, 1984.
142
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145
TECNOCIÊNCIAS E SUBJETIVIDADES: uma leitura por territórios, fluxos, máquinas e universos Bruno Vasconcelos de Almeida1
O presente artigo trata das relações
subjetividades. O terceiro momento
entre tecnociências e modos
aborda tecnologias específicas,
de produção de subjetividade
evidenciando alguns modos de
desencadeados a partir do encontro
interação entre corpos e máquinas,
entre corpos e máquinas. Do ponto
a saber: interfaces, acoplagens,
de vista metodológico, o trabalho
incorporações e fusões; referentes às
está dividido em quatro momentos.
tecnologias do andar, do pensar e do
O primeiro realiza mapeamento
olhar. Por fim, as linhas antecedentes
provisório dos territórios das
da pesquisa desaguam em alguns
tecnociências e das convergências
problemas da vida contemporânea:
tecnológicas. O segundo investiga
modos de existência, vida psíquica
linhas de conexão entre corpos
transcoletiva e multiplicidades.
e máquinas em obras de Gilbert
De maneira preliminar, pode-se
Simondon, Gilles Deleuze e Alfred
dizer que a ciência moderna operou
North Whitehead, com o objetivo
uma espécie de neutralização dos
de dar consistência a uma questão
modos de afetação entre o homem
capaz de problematizar os fluxos
e a ciência, apartando os processos
entre tecnociências e produção de
que ocorriam no primeiro do
1
Pós-doutor em Filosofia (UFMG, 2016; UFMG, 2014). Doutor e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP, 2010; PUC-SP, 2005). Professor da PUC Minas. Psicólogo e acompanhante terapêutico. Pesquisador do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo (NEPC - FAFICH - UFMG). Membro do grupo de trabalho CLACSO: Espaços Deliberativos e Governança Pública. Membro do GT Filosofia da Técnica e da Tecnologia (ANPOF).
146
modus operandi e das condições
a um ideal utilitarista, levando-a a
sociotécnicas da segunda.
reboque dos fluxos financeiros em
As tecnociências contemporâneas
jogo no capitalismo atual.
fazem exatamente o contrário:
Por outro lado, os modos de
geram processos de atravessamento
produção de si e de invenção do
cada vez mais potentes entre o
humano e do pós-humano são
homem e a ciência, entre o homem
afetados pelas realizações da
e a técnica, entre o homem e a
tecnociência, de uma maneira inédita
tecnologia, mesclando o fazer
com relação a outros momentos
científico com a reinvenção de si,
da história, através de processos
acoplando ou fundindo corpos e
acelerados da abolição de fronteiras
máquinas, achatando os planos de
antes existentes no conhecimento,
diferenciação entre homem, natureza
permitindo a manipulação genética
e máquina e, sobretudo, reduzindo
e outros feitos extraordinários no
os espaços e paisagens da vida
plano da reengenhagem de seres
psíquica a um mínimo existencial
vivos (biodesigns, etc.), tais que
necessário à biopolítica. A vida
tornaram obsoletas as relações entre
tornou-se a base e o objeto da vida
corpos e máquinas estabelecidas em
política. A vida psíquica foi lançada
outros momentos da história.
no espaço do fora, com a radical transformação das subjetividades
A pergunta de matriz socrático-
nos cenários do capitalismo atual.
kantiana, que estamos habituados a fazer de nós mesmos, ao
O projeto Tecnociência e
perguntar o que é o homem em
Subjetividade: corpos e máquinas
sua dualidade de ser natural e ser
no âmbito das convergências
moral, pressupondo a existência de
tecnológicas atuais (UFMG, 2016)
esferas circunscritas ou domínios
investigou modos de produção
demarcáveis, desloca-se para outra:
de subjetividade nas sociedades
o que é que nos tornamos quando
atuais, onde a conjunção ciência e
entramos em relação intensiva
técnica toma de assalto o cotidiano
com os processos da tecnociência
das pessoas. Este artigo é oriundo
e seus efeitos políticos, sociais,
da pesquisa. Por um lado, a noção
econômicos e psíquicos. Em anos
de tecnociência parece indicar
recentes, a agência federal de
um estatuto especial para as
pesquisa dos EUA, a NSF, conhecida
relações entre técnica e ciência,
por seu imenso protagonismo e
com predomínio da primeira sobre
a capacidade de definir os rumos
a segunda. O uso e aplicabilidade
da C&T naquela que ainda é a
de tecnologias nas sociedades
primeira potência econômica do
contemporâneas vinculam a ciência
planeta, repercutindo sobre o resto
147
do mundo, propôs a priorização
documentos como o Converging
das chamadas Tecnologias
Technologies for the European
Convergentes NBIC, formulada no
Knowledge Society – CTEKS.
Simpósio Converging Technologies for Improving Human Performance (2001), discutida e reelaborada em eventos posteriores, abarcando integração da nanotecnologia,
1 MAPA PROVISÓRIO DO PENSAMENTO TECNOCIENTÍFICO (TERRITÓRIOS)
da biotecnologia, das tecnologias da informação e da comunicação
O termo tecnociência, tratado no
e das neurociências. Este conjunto,
singular, ganhou visibilidade a partir
nano-bio-info-cogno, estaria voltado
da década de 1970, por oposição à
para a melhoria da performance
ciência moderna, empreendimento
humana e a pressuposição é que
teórico dissociado das técnicas.
não se trata de um resultado
Ele diz respeito à pesquisa científica,
aleatório, como nas convergências
em especial aquela vinculada a
tradicionais ocorridas no passado
resultados práticos,
e ainda ocorrendo, mas de algo
com aplicabilidade definida,
planejado e intencionalmente
e atrelado aos interesses do setor
buscado. E pergunta-se: quais forças
produtivo e do mercado. De acordo
percorrem esse novo movimento
com Hottois (2008)2, a pesquisa e
convergente? Quais efeitos ele
o desenvolvimento tecnocientíficos
produz nas subjetividades atuais?
comportam uma ausência de
Quais mecanismos são ativados em
hierarquia entre pesquisas e
um plano de interfaces políticas,
invenções, entre teorias e técnicas;
sociais e psíquicas?
eles são produzidos na confluência
De que modos a convergência atual
e emaranhamento de diferentes
dispõe a conectividade corpos
saberes, de maneira dinâmica e
e máquinas? Estas são algumas
ativa. A tecnociência é processo,
perguntas trazidas à tona pelo
ou momento de um processo,
desenvolvimento tecnocientífico
que visa a um modelo hipotético
desde o último quartil do século
e operativo, com consequências
XX, mas especialmente a partir do
econômicas e questionamentos
documento americano de 2001
éticos, políticos e culturais.
citado acima e do posicionamento europeu de 2004, em reuniões
Vale lembrar que uma das linhas
científicas que se desdobraram em
genealógicas para a tecnociência
2 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008.
148
remete à Escola de Alexandria
desejos e novos modos de vida
e a Thales, engenheiro filósofo.
(HOTTOIS, 2008, pp.609-610)7.
Entre outros nomes dessa linhagem, encontram-se os de
Ciência, técnica e tecnologia são
Francis Bacon, Gaston Bachelard
muitas vezes confundidas pelo senso
e Werner Heisenberg (HOTTOIS,
comum. Em uma simplificação,
2013)3. As possibilidades de
a ciência está preocupada com um
investigação acerca da tecnociência
sistema coerente de conhecimentos,
são múltiplas, com inúmeras
voltado para a produção de
personagens e versões conflitantes.
saberes logicamente sustentados
Há trabalhos importantes na
e afeitos ao problema da verdade;
produção de uma leitura crítica
a técnica diz respeito aos recursos
em relação às tecnociências
de que o homem se vale para
(BENSAUDE-VINCENT, 20134;
resolver problemas práticos; já a
KASS, 2008 ; ROSE, 2013 ). Para
tecnologia refere-se à aplicação
um mapeamento contemporâneo
de conhecimentos que tornam
e provisório do problema, optou-
mais eficientes a produção da vida
se pela investigação do conceito
material. Se em outros momentos
em trabalhos de Gilbert Simondon
da história, ciência, técnica e
(1924-1989), Gilbert Hottois (1946),
tecnologia estiveram dissociadas,
Bruno Latour (1947) e Bernard
no contemporâneo a tecnociência,
Stiegler (1952).
estratégia marcada por confluência
5
6
e convergência, opera a mistura das Ao associar tecnociência com
três, em movimentos cada vez mais
pesquisa e desenvolvimento
precisos.
tecnocientíficos, Hottois afirma que estes estão em interação constante
De acordo com Bensaude-Vincent
com o meio simbólico no qual se
(2013)8, a tecnociência provoca
desenvolvem e que os fantasmas e
uma recomposição dos saberes,
desejos mobilizados suscitam outros
transformando o conhecimento em
3
HOTTOIS, Gilbert. Généalogies Philosophique, Politique et Imaginaire de la Technoscience. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2013.
4 BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013. 5 KASS, Leon. Beyond Therapy: biotechnology and the pursuit of happiness. New York: Harper Perennial, 2003. 6 ROSE, Nikolas. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. Tradução Paulo Ferreira Valerio. São Paulo: Paulus, 2013. (Coleção Biopolíticas). 7
HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008.
149
um processo teleológico orientado
A vida, como tal, tornou-se a base
por uma decisão política. Entre seus
e o objeto da vida política, captura
traços característicos, a tecnociência
que se estende da individuação
tem seu foco nos dispositivos
do objeto técnico às dimensões
operacionais, na abolição da
sensíveis dos processos de
distância entre o humano e a
singularização. O interior do corpo
natureza, e na individuação dos
volta a ser espaço de investimento
objetos técnicos.
político, com tecnociências da molecularização e da digitalização;
Esta investigação abordou linhas
a vida psíquica, ao contrário,
de entrelaçamento entre as
é lançada no espaço do fora, com
tecnociências contemporâneas
o fim da intersubjetividade e o
e processos de subjetivação aí
desaparecimento da duração.
gestados. Até um certo ponto,
O problema do fim da psicologia,
a ciência moderna operou uma
ou de sua reinvenção, não é
espécie de neutralização dos modos
objeto deste trabalho, mas sua
de afetação entre o homem e a
problematização se coloca na
ciência, apartando os processos
medida em que estamos tratando
que ocorriam no primeiro, do
de uma subjetividade maquínica
modus operandi e das condições
que abandonou completamente a
sociotécnicas da segunda.
constituição do sujeito em prol de
As tecnociências contemporâneas
modelos ancorados naquilo que
fazem exatamente o contrário:
Simondon chamou de transcoletivo.
geram processos de atravessamento cada vez mais potentes entre o homem e a ciência, entre o homem e a técnica, entre o homem e a tecnologia, mesclando o fazer
1.1 TERRITÓRIOS SIMONDONIANOS (GILBERT SIMONDON – 1924-1989)
científico com a reinvenção de si, acoplando ou fundindo corpos e
A tecnociência para Simondon está
máquinas, achatando os planos
relacionada à técnica. Os atores deste
de diferenciação entre homem,
cenário são inventores, pesquisadores,
natureza e máquina e, sobretudo,
criadores, descobridores,
reduzindo os espaços e paisagens
exploradores, empreendedores
da vida psíquica a um mínimo
(HOTTOIS, 2013, p.48)9. Para o autor,
existencial necessário à biopolítica.
não há oposição entre tecnociência
8
BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013.
9
HOTTOIS, Gilbert. Généalogies Philosophique, Politique et Imaginaire de la Technoscience. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2013.
150
151
152
e cultura. A tecnociência muitas
de aquisição da forma da matéria a
vezes é diabolizada, porque a
partir de um molde que, por sua vez,
cultura disponível não permite
o permitiu observar particularidades
simbolizá-la. Simondon é adepto
da eletrônica e da informação.
de uma religação entre natureza,
É o caso da cristalografia, que lida
humanidades e objetos técnicos.
com o problema dos limites dos
Ele foi um crítico das duas culturas
indivíduos físicos e sua abertura
apontadas por C. P. Snow. Pode-
para a singularidade, e o caso das
se dizer que aproximou filosofia
distâncias entre biologia e física,
da técnica, que é também uma
questão que antecipou a biofísica.
filosofia das tecnociências, filosofia
O personagem conceitual chave aqui
da natureza e ainda antropologia
não é Max Planck, nem Niels Bohr,
filosófica. Trata-se de pensar
nem Albert Einstein, e sim Louis
uma cultura tecnocientífica, com
de Broglie, que estabeleceu que
valorização e autonomia das técnicas,
os elétrons são tanto ondas como
relação marcada por liberdade e
partículas, dependendo do caso,
universalidade. Individuação técnica e
ou melhor, do tipo de individuação,
individuação humana são processos
segundo Simondon (RODRÍGUEZ,
que se misturam no âmbito das
s/d)11.
tecnociências. Em Simondon, as individuações Simondon pensa a questão
psíquica e coletiva não estão
tecnológica no contexto de uma
separadas das individuações vital e
teoria geral do vivo. A filosofia da
física. Os processos de individuação
técnica dele está situada em relação
se constroem incessantemente
aos processos de individuação.
junto aos processos de individuação
Dois de seus livros, de certo modo,
coletiva, em planos de individuação
são complementares: Du Mode
vital e física. Na individuação, os
d’Existence des Objets Techniques
papéis da percepção e da afetividade
e L’individuation à la Lumière des
funcionam como níveis de uma
Notions de Forme et d’Information.
ontogênese coletiva. Indivíduo,
De acordo com Rodríguez (s/d)10,
comunidade e sociedade não se
Simondon se deteve nas tecnologias
distinguem, senão por efeitos de
10 RODRÍGUEZ, Pablo Esteban. Individuar: de cristales, esponjas y afectos. Prólogo. In: SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Tradución Pablo Ires. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2009. 11
RODRÍGUEZ, Pablo Esteban. Individuar: de cristales, esponjas y afectos. Prólogo. In: SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Tradución Pablo Ires. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2009, p. 17.
153
superfície. As individuações para
suas aplicações. Por outro,
Simondon, portanto, se dão através
a tecnociência pode ser associada à
de modificações e passagens
pós-modernidade, e caracteriza-se
transindividuais e transcoletivas.
pelo primado da tecnologia sobre a
Nesse sentido, os territórios
ciência (BENSAUDE-VINCENT, 2013,
simondonianos da individuação
pp.17-18)12. Nos últimos trinta anos,
contemplam igualmente as
o termo ganha uma multiplicidade de
individuações psíquicas e coletivas,
sentidos.
e ao mesmo tempo, as individuações técnicas. As tecnociências contemporâneas compõem igualmente nossos modos atuais de individuar.
1.2 TECNOFOBIA HUMANISTA, TECNOFILIA HUMANISTA E TECNOFILIA EVOLUCIONISTA (GILBERT HOTTOIS – 1946)
O termo “tecnociência” aparece em meados dos anos 70. Ele designa a ciência contemporânea, expressando claramente o contraste com o projeto logoteórico, da ciência antiga, assim como com a representação ainda dominante da ciência moderna, que continua a assimilar esta a um empreendimento fundamentalmente teórico, independente da produção e da ação. (HOTTOIS, 2008, p.608).13
Hottois refere-se à Pesquisa e o Desenvolvimento Tecnocientíficos (PDTC) como uma grande rede que comporta a ausência de
Hottois tem lugar de destaque
hierarquia estável entre pesquisas,
na definição e compreensão da
o emaranhamento dinâmico das
tecnociência contemporânea. Ele
diferentes tecnociências, sua
contextualiza o termo já na década
capacidade dinâmica, ativa e
de 1970, investigando a convergência
produtiva, sua natureza processual,
progressiva entre ciência e tecnologia.
suas consequências econômicas e seus problemas éticos, sociais e
De acordo com Bensaude-Vincent,
políticos. O autor afirma ainda que
há divergência quanto às origens da
a PDTC está em interação constante
tecnociência. Por um lado,
com o meio simbólico e que por isto
o importante texto de Heidegger,
impõe as questões que conectam o
A Questão da Técnica, denunciava
tecnocientífico e a vida.
as orientações da ciência moderna e
12 BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013, pp. 17-18. 13 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008, p. 608.
154
[...] a PDTC está em interação constante com o meio simbólico (cultural, social, psicológico, institucional etc.) no qual ela se desenvolve e que varia de uma região do mundo para outra. Desejos (fantasmas, esperanças, angústias) estão na origem, e as possibilidades que ela concretiza suscitam outros desejos, fantasmas, esperanças e angústias, assim como novos modos de vida. Essa interação do possível tecnocientífico e da vida simbólica se expressa com frequência sob a forma de doenças, inquietações, questões e problemas éticos. (HOTTOIS, 2008, p.609-610).14
A tecnofobia humanista situa a condição humana como finita e incapaz de ser superada. Ela aponta para os perigos advindos do avanço sobre a natureza e sua superação. A dignidade do ser humano está ligada a um desinvestimento do mundo e a uma valorização dos processos simbólicos em torno do indivíduo. A tecnofilia humanista, por seu turno, valoriza a relação com a técnica, lócus privilegiado de emancipação humana. Trata-se de uma perspectiva que aposta em uma cultura tecnocientífica
1.3 PROCESSOS DA TECNOCIÊNCIA SEGUNDO LATOUR (BRUNO LATOUR – 1947) Bruno Latour utiliza o termo tecnociência em 1983, com o objetivo de evitar a expressão ciência e tecnologia, ou mesmo para produzir uma diferença em relação ao campo tradicional dos estudos sobre ciência e tecnologia (FERREIRA, 2013)15. Ao se colocar a pergunta quem faz ciência, ele rompe com a dicotomia interno/ externo presente nos meios científicos. Latour aponta para as relações entre cientistas que estão nos laboratórios e os demais personagens que estão fora, mas diretamente vinculados ao fazer científico: professores, investidores, políticos, gestores etc. O autor desenvolve sete regras metodológicas que servem como diretrizes para a produção tecnocientífica, a saber:
universal. Já a tecnofilia evolucionista,
- a tecnociência tem uma dimensão
leva em consideração os processos
processual; controvérsias,
de evolução biocósmica; as
discussões e afirmações, podem ou
transformações da vida humana
não resultar em algo novo;
dependem da capacidade de
- uma teoria ou equipamento bem
intervenção no universo (HOTTOIS, 2008).
sucedido depende do julgamento que a sociedade faz de ambos;
14 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008, pp. 609-610. 15 FERREIRA, Rubens. Ciência e Tecnologia no Olhar de Bruno Latour. http:www.uel.br/revistas/ informacao/. 19/09/2016.
155
é esta última quem legitima os
Portanto, tecnociência, de acordo com
produtos da tecnociência na vida
Latour (2011)16, diz respeito ao modus
cotidiana – há uma dependência
operandi da ciência em suas relações
entre ciência e sociedade;
com a sociedade, bem como às
- controvérsias geram representações da natureza, os discursos socialmente validados encerram controvérsias; - a tecnociência impõe a compreensão de um processo dinâmico e sincrônico através de diferentes pesquisas, e mesmo em épocas diferentes;
experiências como observador in loco.
1.4 TECNOCIÊNCIAS, GRAMATIZAÇÃO DA VIDA E PSICOPODER (BERNARD STIEGLER – 1952) De acordo com Stiegler, a tecnociência designa uma época na
- a quinta regra diz respeito ao
qual a ciência devém como função
fato do pesquisador direcionar
da economia. Ciência e técnica não
seu foco para dentro e para fora
estão separadas e ambas são afetadas
do laboratório, identificando os
pelas transformações oriundas de
diferentes atores que fazem ciência
cada uma. A tecnociência é um
– aí surge a noção de rede;
meio da ciência, meio de vida e
- para Latour, o pesquisador em tecnociência deve ater-se ao movimento e extensão da rede, de modo a compreender o que está em jogo e problematizar a linha tênue entre tecnociência e sociedade; - a sétima e última regra
de conhecimento. O meio técnico propicia um instrumento a serviço do saber. A ciência sempre assumiu uma técnica hypomnésica, e, portanto, nunca qualquer técnica pura, ao contrário do que tende a perguntar Platão, e depois dele tudo que se chama metafísica (STIEGLER; PETIT, 2013, p.437)17.
diz respeito aos registros e documentações das pesquisas e
A tecnociência diz respeito ao
aos modos como elas integram
contexto industrial da ciência e
redes de saberes.
aos processos de gramatização.
16 LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução Ivone C. Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 17 La science a toujours supposé une technique hypomnésique, et n’a donc jamais été pure de toute technique, contrairement à ce que tend à poser Platon, et après lui tout ce que l’on appelle la Métaphysique. STIEGLER, Bernard. Pharmacologie du Front National. Suivi du Vocabulaire D’ars Industrialis (Par Victor Petit). Paris: Flammarion, 2013, p. 437.
156
157
158
O autor sustenta que uma das
relacional, acentuando o que
principais atividades científicas
Simondon chamava de um “meio
contemporâneas consiste
técnico-geográfico associado”,
precisamente na gramatização da
reconfigurando o que também
vida; o sequenciamento do DNA,
ele chamava de processos de
por exemplo, é um processo de
individuação psíquica e coletiva,
gramatização do vivo.
e transformando em tecnologias do espírito o que funcionava até então
Por outro lado, o psicopoder que
essencialmente como tecnologias de
opera nas sociedades de controle
controle. (STIEGLER, s/d)18.
tem por função a captação da atenção, sobretudo a partir das psicotecnologias que se desenvolveram com o rádio, com a televisão e com as tecnologias
2
LINHAS E PLANOS ENTRE DELEUZE, WHITEHEAD E SIMONDON (FLUXOS)
numéricas. A tecnociência incide sobre a atenção, como realidade da
Os três autores citados neste
individuação, tal como entendida por
subtítulo possuem uma concepção
Simondon. A destruição da atenção,
específica de ciência, desenvolvida
capacidade de se concentrar sobre
em momentos históricos distintos,
um objeto, é ao mesmo tempo a
e que teve grande importância para
destruição do aparelho psíquico e do
o pensamento e a filosofia, bem
aparelho social. São estes aparelhos
como diferentes desdobramentos
que se agenciam com os aparelhos
em outras áreas do conhecimento.
tecnológicos.
Apesar de suas diferenças, e do
A partir da gramatização da própria
reconhecimento que Deleuze faz
transindividuação psíquica e coletiva,
aos outros dois, valeria perguntar
passa-se das psicotecnologias às
como se coloca o problema das
sociotecnologias.
interfaces entre corpos e máquinas nos três pensadores. Em Deleuze
No contexto tecnocientífico, boa
encontra-se um percurso que vai
parte dos jogos da atenção, sua
das máquinas desejantes ao corpo
captura e destruição, se dá no
sem órgãos, passando pelos mapas
âmbito das redes sociais.
cerebrais; em Simondon encontrase uma evolução concomitante
As tecnologias numéricas formam
dos meios biológicos e dos meios
um novo meio tecnológico, reticular,
técnicos através da qual, corpos
18 STIEGLER, Bernard. O Que Faz Valer a Pena Viver. http://revolucoes.org.br/v1/seminario/ bernard-stiegler/o-que-faz. 30/09/2016.
159
e máquinas ocupam um mesmo
nos processos, indicam uma
plano ontológico; em Whitehead
teoria do desejo produtivo, pleno,
encontra-se um universo conceitual
corporificado e imanentizado.
diferenciado, porém alguns de seus
Um leitor de primeira viagem,
conceitos possam, talvez, indicar
um leitor ingênuo e por isso mesmo
alternativas para a questão corpos e
cheio de virtualidades, poderia
máquinas, conceitos como entidade
pensar que a máquina desejante
atual, entidade real, concrescência e
é uma máquina sociotécnica
objetos eternos).
capaz de desejar outra máquina, um humano ou um animal. E isso,
2.1 DELEUZE, AS MÁQUINAS E O CORPO SEM ÓRGÃOS
certamente, encontra-se no cenário contemporâneo das tecnociências. Pode-se tomar a máquina desejante como máquina que deseja, inscrita
Logo no início de O Anti-Édipo,
no modelo tradicional da ciência,
Deleuze e Guattari dão uma
em uma relação do tipo sujeito
definição para as máquinas
objeto. A máquina deseja, tal
desejantes: elas são máquinas
como na série americana Almost
binárias, com regra binária ou regime
Human ou no vídeo de parceria de
associativo, uma máquina acoplada
Chris Cunningham com a cantora
à outra. A máquina produz fluxos
Björk, intitulado The Erotic Life of
e outra, acoplada, faz cortes nos
Machines.
fluxos; de forma que a máquina desejante é fluxo, corte de fluxo,
Por outro lado, o trabalho de Richard
fluxo, e assim por diante. Há um
Lindner, muito conhecido pela obra
correr ou um escorrer permanente
Boy With Machine, materializa um
nos processos do desejo.
conjunto significativo de relações
Mas porque pensar o desejo como
entre máquinas e humanos no
fluxo, corte de fluxo ou máquina?
contexto da arte pop. O Menino
Sabemos que está em jogo uma
com Máquina mostra uma criança
literalidade que não dá espaços aos
articulada e acoplada ao conjunto
jogos significantes das metáforas.
de uma máquina técnica. Em outros
Pois bem, a ideia do desejo como
trabalhos do pintor e gravurista,
máquina é encarnada e desloca no
encontram-se uma série de
plano ontológico dos encontros,
conexões de máquinas, corpos,
o sentido, a temporalidade e a
grafismos, engenharias, que de certa
encarnação do desejo.
forma, fazem funcionar as máquinas desejantes.
O escorrer, o fluxo, o movimento, os deslizamentos e deslocamentos
As máquinas desejantes levam
160
ao corpo sem órgãos. Deleuze e Guattari afirmam que elas funcionam desarranjadas, desarranjando-se constantemente. O corpo sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inegendrado, o inconsumível20. Uma citação extraída de O AntiÉdipo acerca do corpo sem órgãos, pode ajudar na sua compreensão: Entre as máquinas desejantes e o corpo sem órgãos surge um conflito aparente. Cada conexão de máquinas, cada produção de máquina, cada ruído de máquina se tornou insuportável ao corpo sem órgãos. Sob os órgãos ele sente larvas e vermes repugnantes, a ação de um Deus que o sabota ou estrangula ao organizá-lo. “O corpo é o corpo/ ele está só/ e não precisa de órgão/ o corpo nunca é um organismo/ os organismos são os inimigos do corpo”. Tantos pregos na sua carne, tantos suplícios. Às máquinas-órgãos, o corpo sem órgãos opõe sua superfície deslizante, opaca e tensa. Aos fluxos ligados, conectados e recortados, opõe seu fluido amorfo indiferenciado. Às palavras fonéticas, ele opõe sopros e gritos, que são outros tantos blocos inarticulados. Acreditamos ser este o sentido do recalcamento dito originário: não um “contra investimento”, mas essa repulsão das máquinas desejantes pelo corpo sem órgãos. E é justamente isso que significa a máquina paranoica, a ação invasiva das máquinas desejantes sobre o corpo sem órgãos, e a reação repulsiva do corpo sem órgãos, que as sente globalmente como aparelho de perseguição.
Assim, não podemos seguir Tausk quando ele vê na máquina paranoica uma simples projeção do “próprio corpo” e dos órgãos genitais. A gênese da máquina paranoica ocorre precisamente aqui, na oposição entre o processo de produção das máquinas desejantes e a parada improdutiva do corpo sem órgãos. Dão provas disso o caráter anônimo dessa máquina e a indiferenciação de sua superfície. A projeção só intervém secundariamente, assim como o contra investimento, na medida em que o corpo sem órgãos investe um contra - dentro ou um contra - fora, sob a forma de um órgão perseguidor ou de um agente exterior de perseguição. Mas, em si, a máquina paranoica é uma mutação das máquinas desejantes: resulta da relação das máquinas desejantes com o corpo sem órgãos, na medida em que este já não pode suportá-las. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, pp.2122)21.
As máquinas, segundo Deleuze e Guattari, se engancham no capital. O funcionamento delas depende do capital, como aliás fica bastante evidente no caso das relações entre técnica e ciência, atualmente configurada nas chamadas tecnociências. São três as sínteses que colocam em funcionamento as máquinas desejantes na superfície do corpo sem órgãos: síntese conectiva da produção, síntese disjuntiva do registro e síntese conjuntiva de consumo. A uma parte da energia
20 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.20. 21 Idem, 2010, pp.21-22.
161
transformada na produção desejante
agenciam multiplicidades de
dá-se o nome de numen, que por sua
sentidos, estendendo-se do campo
vez se distribui no processo.
sóciotécnico ao campo do desejo e da pulsão. Deleuze e Guattari
Deleuze e Guattari afirmam que o
indicam a existência de máquinas
esquizofrênico passa de um código
técnicas, máquinas sociais, máquinas
a outro, que ele embaralha todos os
psíquicas, máquinas literárias,
códigos. Código delirante e código
entre outras.
desejante são termos conceitos que remetem ao funcionamento
Deleuze, leitor de Simondon, acolhe
maquínico. Por outro lado, Deleuze e
as ressonâncias do princípio da
Guattari tomam de Duchamp e Michel
individuação de Simondon em sua
Carrouges o curioso termo “máquinas
obra. Simondon tinha amor pelas
celibatárias”, isto é, máquinas
máquinas. O modo de produção
fantásticas presentes na literatura de
dos objetos técnicos e a filosofia
escritores como Kafka, Roussel, Jarry,
das máquinas, articuladas à tese da
Poe, Villiers, e outros, bem como no
individuação, permitiram a Deleuze
próprio trabalho de Duchamp.
recolocar os problemas das três
...Empreguemos o nome de máquina celibatária para designar essa máquina que sucede à máquina paranoica e à máquina miraculante, formando uma nova aliança entre as máquinas desejantes e o corpo sem órgãos, em prol do nascimento de uma humanidade nova ou de um organismo glorioso. Isso equivale a dizer que o sujeito é produzido como um resto, ao lado das máquinas desejantes, ou que ele próprio se confunde com essa terceira máquina produtora e com a reconciliação residual que ela opera: síntese conjuntiva de consumo, sob a forma maravilhosa de um ‘Então era isso!’. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.32).22
Pode-se afirmar que os conceitos de máquina e de corpo sem órgãos, presentes em O Anti-Édipo,
22 Idem, p.32.
sínteses, bem como pensar as lógicas desejantes a partir das ideias de fluxo e corte de fluxo. A questão das máquinas excede toda a mecânica. A máquina abstrata, por exemplo, é definida por Deleuze e Guattari como conjunto de matérias e funções: Isto se vê claramente num plano tecnológico: um tal plano não é composto simplesmente por substâncias formadas, alumínio, plástico, fio elétrico, etc., nem por formas organizadoras, programa, protótipos, etc., mas por um conjunto de matérias não formadas que só apresentam graus de intensidade (resistência, condutibilidade, aquecimento, estiramento, velocidade ou retardamento, indução, transdução...), e funções
162
163
164
diagramáticas que só apresentam equações diferenciais ou, mais geralmente, tensores. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.227)23
As categorias se dividem em três modalidades: categorias do último, categorias de existência e categorias de explicação. As categorias
2.2 AS TECNOLOGIAS NAS PAISAGENS CONCEITUAIS WHITEHEADIANAS
do último são três: criatividade
Alfred North Whitehead (1861 – 1947)
atuais; preensões ou fatos
construiu um poderoso esquema categorial no âmbito de uma ontologia e uma metafísica próprias, que lhe possibilitou pensar uma filosofia do organismo, a realidade como processo, a questão da mudança e da continuidade na perspectiva dos devires, a ordem e o conhecimento da natureza, o espaço e o tempo, e a ideia de Deus como chave
(creativity), muitos (many) e um (one). As categorias de existência são oito: entidades atuais ou ocasiões concretos de realidade; nexos ou realidades públicas; formas subjetivas ou realidades privadas; objetos eternos ou potenciais puros para a determinação específica do fato, ou ainda formas de definição; proposições ou realidades em determinação potencial, ou potenciais impuros para a determinação específica de realidades, ou ainda teorias;
explicativa da natureza.
multiplicidades, ou disjunções puras
O esquema categorial é composto
ou modos de sínteses ou entidades
dos seguintes eixos: noções divergentes e fundamentais ao esquema categorial, categorias do último, categorias de existência, categorias de explicação e obrigações categoriais. As noções divergentes e fundamentais ao esquema categorial são quatro, a saber: entidade atual ou ocasião atual, preensão, nexo ou realidade pública e princípio ontológico.
de entidades diversas; e contrastes, em uma preensão única. As categorias de explicação são vinte e sete, as obrigações categoriais são nove; todas estão descritas no opus magnum de Whitehead. Após contextualizar o esquema categorial whiteheadiano, pode-se perguntar onde entra a questão tecnológica. De acordo com Ferré
23 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.227 (Coleção TRANS).
165
(2004)24, o ponto principal é a relação entre tecnologia e liberdade.
2.3 APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS
Ela propicia ao homem a possibilidade de se livrar de
Em Simondon pode-se encontrar
trabalhos forçados e propicia
a evolução concomitante dos
igualmente uma liberdade cívica
meios biológicos e dos meios
e social. A liberdade de ação é a
técnicos, através dos quais, corpos
primeira necessidade humana.
e máquinas ocupariam um mesmo plano ontológico. Há todo um
De acordo com Ferré25, Whitehead
conjunto de tipologias maquínicas
afirma que os seres humanos
na Filosofia da Tecnologia de raiz
percebem as tecnologias de seu
francesa. Jacques Lafitte (1884
tempo como senseless agencies.
– 1966) divide as máquinas em
À razão de Platão, se contrapõe a
passivas, ativas e reflexas. Raymond
razão de Ulysses, isto é, a prática
Ruyer (1902 – 1987) caracteriza sua
técnica. Esta por sua vez gera
tipologia em máquinas de cálculo,
desenvolvimento tecnológico,
máquinas de raciocínio, máquinas
mistura da razão prática com a razão
de indução e máquinas de auto
especulativa. Para o autor,
regulação. Gilbert Simondon, por
a tecnologia é uma força histórica.
sua vez, em elementos, indivíduos e conjuntos técnicos26.
Há inúmeras possibilidades para se pensar a questão tecnológica
No esboço conceitual de
no âmbito do esquema categorial
aproximação entre Simondon,
de Whitehead. A questão corpos e
Whitehead e Deleuze, pode-se
máquinas, como dito acima, pode
detectar linhas conceituais de
valer-se de conceitos como entidade
convergência, tal como estabelecido
atual, entidade real, concrescência e
no quadro a seguir:
objetos eternos.
24 FERRÉ, Frederick. Whitehead and Technology. In: POLANOWSKI, Janusz e SHERBURNE, Donald. Whitehead’s Philosophy: points of connection. New York: State University of New York Press, 2004. 25 Idem, 2004, p.199. 26 ILIADIS, Andrew. Mechanology: Machine Typologies and the Birth of Philosophy of Technology in France (1932-1958). Disponível em: www.systema-journal.org/article/view/398/333. Acesso em: 18/11/2016.
166
PLANO DE APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS
3 O PROBLEMA CORPOS E MÁQUINAS (MÁQUINAS)
é a relação de menor intensidade, e a fusão, a de maior intensidade. A interface evidencia-se quando interagimos com máquinas e objetos
3.1
CORPOS E MÁQUINAS NO ÂMBITO DAS CONVERGÊNCIAS TECNOLÓGICAS ATUAIS
técnicos. O cotidiano de boa parte da população contém a questão das interfaces. As acoplagens, por seu turno, caracterizam-se por um processo de cyborguização do
No âmbito das convergências
humano; é o caso, por exemplo, dos
tecnológicas atuais, propomos
chips, sobretudo cerebrais, e dos
considerar quadro formatos para as
microadesivos. Já as incorporações,
relações entre corpos e máquinas,
evidenciam-se nos casos das
a saber: interfaces, acoplagens,
próteses e dos tecidos orgânicos.
incorporações e fusões. A interface
Por último, as fusões; elas consistem
167
do grau mais elevado das relações
a dia de pessoas idosas em países
entre corpos e máquinas; no
como o Japão. Os aviões, desde os
momento, trata-se da possibilidade
irmãos Wright e de Alberto Santos
do encontro completo entre
Dumont, modificaram as lógicas dos
corpos e máquinas, das máquinas
transportes humano e de carga, por
humanizadas ou dos corpos
todo o planeta.
maquínicos. Devires maquínicos a
Os celulares, inicialmente
romper completamente as barreiras
objetos para conversação, hoje
entre natureza e cultura, entre sujeito
são multifuncionais e alteraram
e objeto, entre vida e morte.
significativamente a sociabilidade
Em jogo nos quatro formatos,
humana.
a questão do trânsito entre o lógico e o sensível. As interfaces e as
Um caso especial de interface corpo
acoplagens mantêm o predomínio
máquina é a prática ainda incipiente
do lógico. As incorporações e fusões
da estimulação transcraniana por
caminham para o predomínio do
corrente contínua (ETCC), que
sensível. No momento em que a
consiste na aplicação de uma
máquina for capaz de sentir,
pequena corrente elétrica na cabeça
o processo estará completo.
para estimular áreas específicas
É possível pensar que a humanização
do cérebro27. Com uma origem
das máquinas e o maquinismo
que remonta aos terríveis ECTs
dos humanos andem na mesma
(eletroconvulsoterapias), o ETCC
velocidade e em sentidos contrários.
se utiliza de pequena dosagem da ordem de um ou dois mil
O caso das interfaces entre corpos e
amperes. A estimulação ativa o
máquinas está presente, por exemplo,
cérebro criando uma sensação de
na relação que estabelecemos
vivacidade e melhora dos focos
com computadores, robôs, aviões,
atencionais. Nesse caso, a discussão
celulares e outros objetos técnicos.
gira em torno da melhora da função
Os computadores modificaram
cognitiva por estimulação elétrica,
a lógica da transmissão de
ao mesmo tempo em que entra
informações. De tecnologia militar,
em concorrência com a indústria
está presente no cotidiano e nos
farmacêutica, no tocante à produção
domicílios, mundo de telas a se
de metilfenidato, estimulante leve
multiplicar por todos os espaços e
do sistema nervoso central, de larga
tempos. Os robôs, de uso industrial,
utilização social, como no caso do
passaram a ocupar igualmente o
uso da ritalina para tratamento do
cenário doméstico, como é o caso
transtorno do déficit de atenção e
daqueles que acompanham o dia
hiperatividade (TDAH).
168
169
170
As acoplagens, por seu turno,
As incorporações podem ser
envolvem algum tipo de colagem,
exemplificadas com próteses
introdução ou implantação
corporais e tecidos orgânicos.
de objetos técnicos no corpo
Tome-se o caso da modelo e atleta
humano. É o caso dos biochips,
Aimee Mullins, que nasceu com um
implantados sob a pele da mão,
problema raro na formação óssea
que utilizam tecnologia RFID, isto é,
das pernas e teve que amputá-las
identificação por radiofrequência.
com apenas um ano de idade.
O biochip permite abrir portas,
Quebrou recordes do atletismo na
catracas, disponibilizar dados em
paraolimpíada de Atlanta (1996) e
casos de acidentes, mas precisa
fez uma das aberturas dançantes
estar conectado com bases
da paraolimpíada do Rio de Janeiro
transmissoras . Do ponto de vista
(2016). Foi modelo e trabalha junto à
político, as acoplagens ajudam a
indústria de próteses; é uma espécie
problematizar a questão do controle
de ativista da transformação de
dos corpos, ela gera a sensação de
discursos e imagens da deficiência
controle por parte de usuário,
em discursos e imagens da
e ao mesmo tempo, lança a questão
vantagem competitiva,
do controle externo, por algo
das potencialidades performáticas
ou alguém externo a uma dada
dos corpos. O corpo orgânico
situação. Microadesivos presos às
incorpora a perna protética30.
orelhas promovem algo parecido:
Igualmente pode-se considerar
através de um eletrodo auricular,
incorporações, os implantes de
um conjunto de sensores EEG
tecidos orgânicos como pele,
captura os sinais cerebrais através
cartilagem, olhos, rins, dentes,
da orelha do usuário; a conexão com
bexiga, coração, fígado.
28
um computador foi testada com utilização de fios e com previsão
Por último, as fusões, sonho pós-
para wireless, o sinal é captado e
humanista e transhumanista de
amplificado pelo computador, que
recriação maquínica completa do
o interpreta através de algoritmos;
orgânico, máquinas capazes de
o computador é controlado pelo
sentir, pensar, viver, espécie de
pensamento do usuário .
criação total do homem, presente
29
28 Ver:http://delltecnologiasdofuturo.ig.com.br/para-empresa/brasileiro-implanta-biochip-nocorpo/. 29 Ver:http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2015/06/14/interna_tecnologia,657975/ microadesivos-presos-a-orelha-permitem-controle-de-dispositivos-eletro.shtml 30 Ver: https://www.ted.com/talks/aimee_mullins_prosthetic_aesthetics?language=pt-br e http:// www.deficienteciente.com.br/2010/08/exemplo-de-superacao-aimee-mullins.html.
171
nas artes, sobretudo na literatura
por câmeras de vigilância urbanas,
e no cinema de ficção científica.
é bem provável que estas mesmas
Um exemplo é o caso do artista
câmeras modifiquem o movimento
Stelarc, pseudônimo de Stelios
do corpo humano. Da mesma
Arcadiou, nascido no Chipre, autor
forma, o pensamento é afetado pela
de diferentes obras e performances
disponibilidade das informações
nas quais experimenta-se a extensão
na rede mundial de computadores.
robótica do corpo humano.
O olhar altera o que é visto, em consonância com as alterações de
Trata-se de experimentar tecnologias
intensidade do olhar de quem olha.
completamente integradas ao
Do ponto de vista da experiência,
corpo, como sua suspensão
acredita-se que as tecnologias
através de ganchos, sua conexão
do andar, do pensar e do olhar
por estimuladores eletrônicos de
engendram novas possibilidades de
músculos conectados à internet,
subjetivação. Contudo, vale perguntar:
sua terceira mão e terceiro braço
qual a natureza destas modificações,
robóticos, uma máquina de andar
em que elas se diferenciam de
pneumática semelhante a uma
dispositivos anteriores e posteriores,
aranha, e ainda o implante de uma
quais os efeitos psíquicos, coletivos
orelha em seu braço esquerdo,
e políticos que as novas tecnologias
através de cirurgia.
mobilizam no cenário de aceleração da
31
vida cotidiana, onde máquinas estão
3.2
CORPOS E MÁQUINAS EM TECNOLOGIAS DO PENSAR, DO ANDAR E DO OLHAR
acopladas aos organismos, e espaços e tempos são reinvestidos pela tecnociência? Nesse trabalho investigamos três
Nesta pesquisa, trata-se de perguntar
questões em torno das tecnologias
pelas tecnologias do pensar, como por
do pensar: a inteligência artificial,
exemplo computadores; tecnologias
a questão do corpo no âmbito das
do andar, como próteses e tecidos
tecnologias digitais e as máquinas
orgânicos; ou ainda tecnologias do
espirituais. A inteligência artificial
olhar, como câmeras de vigilância;
consiste no esforço de se produzir
modificam as composições homens
uma inteligência similar à humana,
máquinas. Como elas afetam a
através de softwares, sistemas e
subjetividade? Elas engendram,
dispositivos computacionais.
produzem, reinventam modos de
Trata-se de máquinas com capacidade
vida. Se o corpo humano é vigiado
de raciocínio, de aprendizagem,
31 Ver: http://stelarc.org/?catID=20247.
172
de reconhecimento de padrões e
[...] as máquinas tecnológicas de
de inferências. Do ponto de vista
informação e de comunicação
histórico, a IA, como é popularmente
operam no núcleo da subjetividade
reconhecida, tem entre seus
humana, não apenas no seio das
idealizadores, nomes como os de Alan
suas memórias, da sua inteligência,
Turing, Herbert Simon, Allen Newell,
mas também da sua sensibilidade,
John McCarthy, Warren McCulloch,
dos seus efeitos, dos seus fantasmas
Walter Pitts e Marvin Minsky.
inconscientes.
A inteligência artificial forte considera
É preciso perguntar de qual corpo se
que é possível criar uma máquina
fala quando ele é pensado a partir de
consciente e que os sistemas artificiais
tecnologias digitais. Esboça-se aqui
podem replicar uma mentalidade
apenas a perspectiva de que o corpo
humana. Na perspectiva da pesquisa,
é experimentado de maneira inédita
a questão da inteligência artificial
quando de sua completa virtualização
coloca em jogo os aspectos interativos
e que não é possível estabelecer
entre corpos e máquinas, em especial
paralelos com a organicidade.
a aprendizagem. Se os sistemas binários e lógicos serão capazes de
As máquinas espirituais, objeto de
produzir um ser maquínico autônomo,
estudo de Ray Kurzweil33, estudioso
não se pode ter certeza, mas há uma
da tecnologia, combina uma curiosa
evolução interessante do problema
fusão entre sensibilidade humana
no âmbito da inteligência artificial
e inteligência artificial, através
experimental, através de abordagens
da robótica e da implantação de
conexionistas e de sistemas neurais.
nanobots no sistema nervoso. Para o autor, a distinção entre o humano e a
Computadores e redes móveis
máquina tende a tornar-se imprecisa,
impactaram os relacionamentos
e os resultados da tecnocientificização
humanos nos últimos anos. Parte
sinalizam maior capacidade de
significativa das comunicações
memória, informações mais rápidas
humanas em diferentes áreas
e diretas, e ainda a produção da
da existência tornou obsoleta a
consciência na máquina. As máquinas
presença do corpo humano em seus
espirituais seriam o resultado dessa
processos. As tecnologias digitais que
indiferenciação, ou mesmo fusão,
transformam linguagens em números
entre o pensamento humano e o
ou códigos facilitaram o intercâmbio
pensamento maquínico.
virtual. De acordo com Guattari32, 32 GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2006, p.14. 33 KURZWEIL, Ray. A Era das Máquinas Espirituais. Tradução Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2007.
173
As tecnologias do andar referem-se
são avaliados: tamanho do passo,
inicialmente aos projetos voltados para
velocidade, postura, silhueta da pessoa
a possibilidade de paraplégicos ou
etc. Tecnologia de controle explícita,
tetraplégicos voltarem a andar através
o sistema se utiliza de câmeras
da utilização de um exoesqueleto
comuns de vigilância das ruas de
movimentado pelo cérebro do
Tóquio para identificação das pessoas.
sujeito que o veste. Uma das grandes
O programa tanto pode ser utilizado
pesquisas que trabalham com a ideia
na busca de pessoas identificadas ou
é a de Miguel Nicolelis, que dirige o
na procura por desaparecidos.
Duke’s Center for Neuroengineering
Trata-se de uma cartografia do
e o Instituto Internacional de
movimento humano para fins de
Neurociências de Natal Edmond e
controle. Contudo, seu uso poderia
Lily Safra. Nicolelis trabalha com a
ter outros destinos, como no campo
perspectiva de união entre o cérebro
da saúde, em especial na fisioterapia.
e a máquina. O projeto Walk Again
34
viabilizou que um tetraplégico pudesse
As tecnologias do olhar, por sua
dar o pontapé inicial da Copa do
vez, apresentam longa história de
Mundo no Brasil. Comandos cerebrais
seus desenvolvimentos na história
de um paciente são captados por
ocidental, desde o panóptico
eletrodos e retransmitidos para
de Bentham ao atual jogo de
um equipamento tecnológico
entretenimento conhecido como
computadorizado. Este conta com
Pokémon Go. De grande aplicação
dispositivos que devolvem à pessoa
nos sistemas de vigilância, militar
a informação de pisar no chão,
e civil, as tecnologias do olhar
através de sinais vibratórios no braço.
se distribuem pelas sociedades,
Primeiro a experiência foi realizada
impactando a comunicação e a
em laboratório, em uma espécie de
transmissão de textos e imagens.
caminhada virtual; e posteriormente,
Contudo, o regime de visibilidade,
utilizado o exoesqueleto para passos
como diria Foucault, o regime das
reais. Outro exemplo é a pesquisa do
imagens, em grau acentuado de
Museu de Ciências e Tecnologias de
profusão, parece entrar em conflito
Tóquio35, sob responsabilidade do
com os regimes de memória.
professor Yasushi Yagi, que produz
Se o armazenamento pode ser
em uma passarela, registros do
melhorado pelo aumento de sua
movimento corporal ou do modo
capacidade, por outro lado, seu
de andar das pessoas. Oito pontos
manejo humano parece cada vez
34 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=1IEIzyaG108. 35 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/10/japoneses-criam-metodo-para-identificarpessoas-pelo-jeito-de-andar.html.
174
175
176
mais se circunscrever a bolhas digitais, como é o caso do Facebook. O corpo real dá lugar ao corpo performático, circunscrito nos
4 VIDA NO UNIVERSO, VIDA PSÍQUICA E VIDA NA LITERATURA (UNIVERSOS)
registros de curtir e compartilhar. O plano de mútua afetação entre Outro exemplo de tecnologia do
tecnociências e subjetividades
olhar é o sistema de segurança
materializa-se em desdobramentos
por câmeras nos centros urbanos
em diferentes áreas e campos.
de cidades brasileiras. Ele produz
Do ponto de vista da individuação
o curioso efeito de empurrar para
psíquica e transcoletiva, anotamos
outras áreas das cidades, grupos
quatro desses desdobramentos:
populacionais específicos. Mesmo
o desaparecimento da interioridade
quando o sistema parece prover a
e o fim do “eu”, a redução
sensação de segurança, ele promove
das margens da experiência
uma captura de imagens que torna
intersubjetiva, a exterioridade
ainda mais vulnerável pessoas e
completa e a conexão permanente
grupos. O monitoramento eletrônico
e, por fim, a produção de um corpo
dos espaços públicos produz
vibrátil virtual. A experiência interior
movimentos e comportamentos
e a constituição de “eus”, gestadas
específicos, que respondem às
na modernidade, parece dar lugar
expectativas do controle público
a uma vida experimentada apenas
ou privado. Não há tecnologia sem
no exterior, em um fora completo
impacto social e subjetivo. Do objeto
caracterizado por conexões em
técnico mais simples e funcional
tempo integral. Os processos das
aos atuais sistemas de controle por
tecnociências geraram diferentes
imagens, temos um longo percurso
reações entre tecnofóbicas e
que modificou a relação do homem
tecnofílicas, gramatização da vida e
com o ambiente, com a natureza,
captura pelo conexionismo global.
com a técnica e consigo próprio.
O primeiro e o terceiro
É nos âmbitos ético, comum e
desdobramento estão interligados
democrático, que algumas dessas
na medida em que o terceiro invade
transformações necessitam ser
o primeiro. Do ponto de vista
pensadas.
relacional, nota-se uma redução dos espaços daquilo que configurou, no mesmo período, a experiência da intersubjetividade. A indiferenciação ontológica entre homens, corpos e máquinas teve,
177
por um lado, o aspecto positivo do
tecnociências concentra a feroz
descentramento de si, e por outro,
disputa das vantagens econômicas,
a supervalorização dos
por outro lado, ele coloca
determinantes técnicos da
interessantes problemas sobre
existência. O corpo interativo das
a existência, a sobrevivência e a
relações corpos e máquinas, que
capacidade de re-fabricar o humano,
se manifesta no conexionismo
redesenhar o corpo, reinventar a
generalizado, contém potências
subjetividade. Nesse sentido, a arte
de variação e recriação, nos jogos
faz algo parecido, quando investiga
de virtualização e atualização,
as forças e as formas em jogo na
que se estabelecem nos cenários
fabricação do humano,
contemporâneos. Pode-se falar de
do corpo e da subjetividade.
um corpo vibrátil virtual?
Campo de afetação e linhas que se
A expressão remete ao conceito
cruzam permanentemente,
estabelecido por Rolnik (2006),
e que colocam a todo momento
onde ele apreende a alteridade em
questões políticas e éticas,
sua condição de campo de forças
deixando ao pensamento o desafio
vivas que se afetam, presentes
de problematizar os cenários
através das sensações, e na qual o
tecnocientíficos do presente.
outro faz parte de nós mesmos. Os quatro desdobramentos acima dizem respeito à vida psíquica, com consequências políticas, culturais, sociais, econômicas etc. No processo de misturas e transformações por que passam as sociedades atuais, a fabricação da vida psíquica não se faz sem os modos intensivos de afetação que a vinculam com a ciência e a arte, melhor dizendo, com as tecnociências e com as diferentes expressões do campo estético. No limite das questões tecnocientíficas está o problema da vida no universo; e em um dos limites da arte, estão os problemas da expressão, do imaginário e da escrita. Se o mundo prático das
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VERSOS DE LIBERDADE E VENTURA DE SER Breno Brede1
CANCELADO O VERSO
Cancelado o verso Em tempo de palavras magras Os famintos se esquecem da fome De tão áridos os corações O próprio o medo some No silêncio da torra o verbo se racha Onde brotava rima, nem sentido resta Essa ordenha mísera que agora lê É o restante de um sonho distante A semear corações férteis pensantes E também o desjejum de um poeta retirante.
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Artista gráfico, multimídia e poeta.
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SEM TÍTULO Esse coração danado que tem a gente, Se dana a descobrir a diferença entre seus pares e um estranho. Já é muito difícil saber quem eu sou. Saber quem é o outro seguramente seria um luxo, uma ousadia. Narciso sabia muito bem... a definição de intruso, qualquer um que não eu. Qualquer outro ser que não eu, um estranho, um desconhecido que insiste em se intrometer no meu pequeno mundo. Assim, o que dá razão à convivência com o outro? O amor, diriam os mais corajosos... Um elo mágico para o que nunca pareceu dar certo, conviver com o outro. Amor… Esse conceito virtual. [alguém já o viu?] Mas e quando você olha pro seu par e se surpreende com uma intriga mental, aquela pergunta narcísica, “quem é”? Que pensamento perturbador e inconveniente. É um indício? A evidência de um fato? Certamente uma prova clara para os descrentes… o desamor. Isso explica muita coisa, pois o desamor poderia justificar o ódio. Mas e para os que creem? Nunca ousariam colocar o amor em suspeição. A pergunta que para seus opositores seria uma conclusão, para os que creem não passa de uma intriga. Uma charada, no entanto, em que a matemática não se aplica.
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Por que é sempre mais difícil para os devotos? Desses, os mais otimistas diriam que é um amor bem verdadeiro aceitar alguém que não é você. O que é amar um desconhecido? De repente é fé. Fé se dedica ao divino, diriam os descrentes. Mas o que eles sabem sobre fé? Essa fé, humildemente descoberta por este devoto que vos escreve, é a fé dedicada ao outro. Otimistas chamariam de amor.
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Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos,
apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa
ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor,
nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica
da PUC Minas e da Reitoria.
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