ANAISDASCAP CARTOGRAFIA DAS URGÊNCIAS
Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)
XI SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL
ANAIS DA SCAP Cartografia das Urgências
PUC-MG Belo Horizonte 2019
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EXPEDIENTE
Organização e Edição:
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:
Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez
Mário Francisco Ianni Viggiano
Revisão:
Fotografias:
Affonso Uchôa e Desali, Guima Romeiro, Priscila Musa, Rafael Barros e Simone Cortezão.
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Grão-chanceler:
Reitor:
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Chefia de Gabinete da Reitoria:
Prof. Paulo Roberto de Sousa
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Pró-reitor Adjunto
da PUC Minas São Gabriel:
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Diretor Acadêmico:
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia
Coordenadora de Extensão:
Coordenador de Pesquisa:
Coordenadora da
Pastoral Universitária:
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva
Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues
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ÍNDICE
EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12
DIANTE DA MAIS RADICAL Sérgio de Castro 18 ALTERIDADE
PLANTAR CIDADES E CONSTRUIR FLORESTAS
CAVA FUNDA
SALVE RAINHAS DE NGOMA: Contramestiçagem, etnografia e cinema no Reino Treze de Maio
SANGUE DE BAIRRO
Wellington Cançado 31
Simone Cortezão
54
Junia Torres 73
Affonso Uchôa e Desali 99
12
EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Política
Quatro ensaístas e cinco fotógrafos
da PUC Minas São Gabriel, em 2019,
participam destes Anais. O texto que
escolheu o cinema como ponto
abre a publicação é do psicanalista
de partida para uma cartografia
Sergio de Castro.
das urgências, de forma a
Diante da mais radical alteridade,
indagarmos sobre as narrativas que
Castro comenta o filme Piripkura,
o transcendem, as formas de vida,
sobre a história de Packyî e
as relações subjetivas, o Brasil e o
Tamandúa, dois índios nômades que
mundo. O evento apresentou quatro
vivem nus com um facão,
filmes na programação: Piripkura ,
um machado cego e uma tocha
A Rainha Nzinga Chegou2, Navios de
no meio de uma área protegida
1
Terra e Retratos de Identificação .
da Floresta Amazônica, cercada
E elegeu como o centro da reflexão
por madeireiros, garimpeiros e
as garantias de vida,
fazendeiros. Eles são sobreviventes
e a sobrevivência de outras formas
do Povo Piripkura – povo borboleta.
de vida, a partir de quatro eixos
O autor chama a atenção para a
norteadores: a sociedade,
riqueza e sofisticação simbólica das
os saberes, o lugar e a vida.
culturas indígenas que têm sido
Os eixos foram delineados do
exterminadas em nome de uma
ponto de vista do humano,
política que visa o “progresso” sob
reconhecendo ainda que todos os
um único ponto de vista, onde o
seres vivos devam ser considerados
outro, o diferente, não é tolerado.
3
4
em uma reflexão sobre a vida e a sobrevivência. O cinema abriu uma passagem nesta reflexão. Ao pensar com os filmes, exercitamos um deslocamento de nosso olhar, sensibilizando nossos corpos de espectadores para outras possibilidades. Um devir-outro.
No ensaio Plantar Cidades e Construir Florestas, Wellington Cançado traz uma reflexão acerca do projeto nacional de modelo “urbano-rodoviarista, financistaimobiliária, neoextrativista e antiindustrial” que ao mesmo tempo em que nos revela sobre o passado
1
Filme de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge. Brasil, 2017, cor, 82 minutos.
2
Filme de Júnia Torres e Isabel Casimira Gasparino. Brasil/Angola, 2018, cor, 73 minutos.
3
Filme de Simone Cortezão. Brasil, 2017, cor, 70 minutos.
4
Filme de Anita Leandro. Brasil, 2014, cor, 71 minutos.
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deste país, impede “um outro devir-
planeta. Da janela de sua casa,
Brasil”.
Guima Romeiro observa a grande
Simone Cortezão relata em Cava Funda uma travessia na paisagem distópica das terras devastadas pela mineração, resultado do modelo neoextrativista. “E é na dinâmica do mercado de ações, planilhas, abstrações e das ficções econômicas que o mundo fóssil que está abaixo de nossos pés é especulado, com o uso intensivo dos combustíveis fósseis e da mineração, colocado à venda e em negociação.” Júnia Torres apresenta em Salve Rainhas de ngoma: contramestiçagem, etnografia e cinema no Reino Treze de Maio a sociocosmologia singular nas “formas complexas de organização majoritariamente negras” dos reinados que “seguem povoando, ressoando e colorindo o asfalto cinza da metrópole, com seus fardamentos, indumentárias rituais, cantos, danças, rezas, promovendo uma musicalidade dissonante e polifônica”.
metrópole. Em seu confinamento involuntário, ele produziu de seu celular o ensaio fotográfico P&B destes Anais. A pandemia, assim como as outras crises enfrentadas, é resultado da ação humana regida pela lógica da aceleração e do consumo. A paisagem sem vida da mineração, capturada pelas lentes de Simone Cortezão, é um testemunho de que precisamos parar de agredir o planeta. E, por fim, devemos nos inspirar na vitalidade das resistências presentes nos povos sobreviventes como nos mostra as fotografias de Priscila Musa e Rafael Barros do Reinado Treze de Maio. Os Anais da SCAP: Cartografia das Urgências é um convite a pensarmos criticamente sobre nossos modos de vida e buscarmos outros modos de ser e estar no mundo que garantam a continuidade da vida humana neste planeta. Leiam e reflitam.
Encerrando estes Anais, Affonso Uchôa e Desali retratam o bairro Conjunto Nacional, em Contagem. Um olhar aproximado da periferia que revela outras subjetividades. Durante o processo de produção desta publicação, fomos atropelados
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel
pela pandemia de Covid-19,
Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
transmitida pelo novo coronavírus
Coordenadora de Extensão
(SARS-CoV-2), que parou o
da PUC Minas São Gabriel
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DIANTE DA MAIS RADICAL ALTERIDADE Sérgio de Castro1
O belíssimo documentário Piripkura
em nosso país – uma miríade
nos coloca, abruptamente, diante da
de etnias, de línguas – mais de
mais radical alteridade. De imediato,
duzentas, só em território brasileiro
o que me veio à cabeça na primeira
–, que até o século XVI não teve
vez que o assisti foi uma observação
nenhum contato com os povos e,
feita pelo antropólogo Eduardo
especialmente, com a civilização
Viveiros de Castro, numa entrevista
europeia. Mais de 15.000 anos
concedida a mim e a uma colega
de isolamento radical com relação
do Rio de Janeiro, em março de
à civilização à qual pertencemos,
2016. Disse então Viveiros de Castro:
a saber, a europeia. Para esse
“Um europeu da Escandinávia é
mesmo antropólogo (mas não só
muito mais parecido e próximo
para ele), somos – os brasileiros que
de um nativo da África Central do
chegaram ao Brasil após a chamada
que um indígena da Amazônia de
descoberta – europeus. Quer dizer,
um brasileiro de um grande centro
nós nos situamos – e a grande
urbano do Brasil”. Em seguida, ele
maioria da população mundial –
esclareceu a afirmação: há milênios,
no esteio cultural de um processo
entre Europa e África, há toda sorte
que se inicia muito remotamente
de trocas e influências mútuas.
na história – ou pré-história da
De trocas comerciais ao
humanidade –, mas que ganha
colonialismo, são populações que
a orientação e a força atuais da
convivem, com maior ou menor
Europa renascentista. A famosa
distância, desde eras muito remotas.
frase de Galileu Galilei, o célebre
No caso da população indígena
astrônomo e matemático florentino,
americana, tal afirmação não pode
“A natureza está escrita em
ser feita. Há ali – ou temos aqui,
linguagem matemática”, marco
1
Psicanalista. Diretor Geral da Escola Brasileira de Psicanálise.
19
20
do que chamamos na psicanálise
que podemos localizar e, até certo
de discurso da ciência, poderá ser
ponto, entender. Um primeiro ponto
tomada aqui como uma referência
apresentado pelo antropólogo:
para nós. Os povos europeus,
vários povos pré-históricos que
como disse aquele dia Viveiros de
não aderiram à chamada revolução
Castro, serão os que tomaram tal
agrícola, no entanto, a conheceram.
perspectiva como uma espécie
Muitos mantinham relações de troca
de filtro, ou de óculos através dos
e escambo com culturas que a
quais enxergamos e pensamos o
praticavam. Mesmo na América do
mundo e a vida. Não importa onde
Sul, povos como os Incas e alguns
eles estejam. Claramente – e daí
ainda mais antigos desenvolveram
nossa enorme estranheza –, esse
sofisticados sistemas de agricultura
não é o caminho seguido pelos
com complexos sistemas de irrigação
simpaticíssimos Tamandúa e seu tio
que dominavam com mestria.
Pacúi, nem por seu povo, nem por
Outros povos amazônicos nunca
inúmeros – ainda que francamente
escolheram a agricultura, ainda que
minoritários – outros povos e etnias
a conhecessem. Esse é um ponto
presentes ainda hoje no mundo.
muito importante para nós hoje aqui, porque ele põe em questão a ideia
O que podemos pensar sobre isso?
muito difundida de que somente
Claude Lévi-Strauss, o grande
haveria um ideal social, do qual
antropólogo franco-belga que
todos os povos comungariam ou
desenvolveu, nos anos 1930,
desejariam comungar. Nele, o ideal
boa parte de sua pesquisa de campo
do progresso, quer dizer, um tipo
no Brasil, indica origens muito mais
de desenvolvimento que conduziria
antigas – pré-históricas –, quando
todos mais ou menos no mesmo
certas escolhas teriam sido feitas.
sentido ou direção, parece ser seu
“Escolhas” é o termo usado pelo
elemento principal. Isso nos levaria a
antropólogo então, quando certos
pensar que o povo de Tamandúa
povos pré-históricos, os nômades,
e Pacúi, com o passar do tempo –
por exemplo, preferiram prosseguir
mil anos que fossem –, faria
como coletores/caçadores,
descobertas parecidas com as que
ao invés de optarem pela agricultura.
outras culturas fizeram há milhares
Tais escolhas, que certamente
de anos, promoveria sua pequena
comportam algo de insondável para
revolução agrícola e abandonaria
nós e mesmo para os povos que a
seus atrasados hábitos de povo
fizeram, seguiram também critérios
coletor e caçador.
2
2
LÉVI-STRAUSS, C. N’existe-t-il qu’un type de développement? In: ___. Nous sommes tous des cannibales. Paris: Seuil, 2013. p. 163.
21
22
4
https://www.indiosonline.net/ e http://www.webindigena.org/ Acesso em 19/05/2019.
23
Ora, é também Lévi-Strauss quem
um equilíbrio populacional e uma
afirmará que há diversos tipos de
relação com o trabalho que sequer
evolução. A dos povos caçadores e
concebemos. Por exemplo, o tempo
coletores, ele chamará de evolução
dedicado à caça e à coleta de outros
regressiva. Ela teria uma direção
alimentos, numa dieta extremamente
inteiramente diferente das que
diversificada e rica em proteínas
conhecemos em nosso hegemônico
e vitaminas, além de muito menos
padrão cultural. A ideia de progresso
calórica do que a dos povos que
será inteiramente alheia a essas
se dedicaram à agricultura, somado
outras escolhas feitas por tais povos.
ao tempo dedicado a cozinhá-los e
O erro que se comete aqui é então
à fabricação de utensílios utilizados
supor que tal ideal, o de progresso,
– cestas, equipamento de caça
repito, seja universal ou desejável
e outros – não ultrapassa nunca
para e por todos. Ou mesmo, o que
quatro horas de trabalho diárias.
seria um equívoco ainda maior, que
O restante do tempo é dedicado a
certas escolhas sejam superiores
rituais e festas, ou simplesmente ao
a outras. Claro que não estou
que chamamos de lazer.
sugerindo aqui que tentemos viver
Ou ainda, questões que nos afligem
como Tamandúa e seu tio.
diariamente – por exemplo, como
É verdadeiramente impossível para
orientar um filho ou uma filha
nós, além de, por certo, não parecer
adolescente até a idade adulta,
desejável a quase ninguém.
como se conduzir como pai ou mãe,
Mas essas outras vias, consequências
como tratar o tio ou o cunhado,
de escolhas remotas e que se
enfim, uma série de questões
mantêm, preservam em si alguns
sobre as quais se recorre em nossa
tipos de saber que só recentemente
modernidade, entre outros,
nossa civilização europeia conseguiu
ao analista – são ali tratadas a partir
vislumbrar. Por exemplo, tais
de referências simbólicas estáveis
sociedades e grupos sabem manter
que aquelas culturas oferecem.
com seu entorno, com o chamado
Por isso, podemos falar de culturas
meio ambiente, uma relação de
simbolicamente complexas e
equilíbrio e estabilidade da qual
sofisticadas, em muitos aspectos
nós nunca sequer chegamos perto.
mais do que a nossa inclusive.
Se nossas sociedades vivem de
Claro também que não é o que
crise em crise, de desigualdade
vemos na situação de Tamandúa e
em desigualdade, elas souberam,
seu tio Pacúi. Eles são sobreviventes
através de suas regras sociais e
de uma tentativa de extermínio,
sistemas metafísicos complexos (que
durante a qual perderam quase tudo,
só no século passado começamos
inclusive seus hábitos e recursos
a entender um pouco mais), manter
culturais.
24
O que é que a psicanálise tem a ver
tentamos manter distante Freud
com isso tudo? Ora, a psicanálise
chamará de inconsciente!
surge no mundo, há mais de cem
Mais ainda: em seus fundamentos,
anos, a partir de uma constatação
ele abrigará algo de estranho e
muito estranha e que podemos,
mesmo abjeto para cada um de
em muitos aspectos, aproximar
nós, um resto que não será nunca
do que acabei de falar. Qual é a
erradicado inteiramente,
descoberta fundamental de Freud,
nem inteiramente significado.
seu fundador? A de que não somos senhores absolutos de nós mesmos. Quer dizer, a descoberta de que trazemos em nós elementos, posições, preferências, prazeres e desprazeres que desconhecemos inteiramente. E, atenção, preferências, afetos e tendências que nos são desconhecidas exatamente por não serem propriamente admiráveis ou modelos de virtudes. Um ato falho, por exemplo. Foi Freud quem, nos primórdios da psicanálise, nos chamou a atenção para eles. De repente, numa situação pública, um orador que queria elogiar alguémcomete essa falha de dirigir àquele que ele tinha a intenção de
A psicanálise nos permite, portanto, constatar que habita em nós a mais radical alteridade e que há várias maneiras de se lidar com ela. Claro que a que nos permite a experiência de uma análise pessoal será a de sabermos algo dessa abjeção que nos habita. Ela, até certo ponto, perde seu ímpeto, uma vez que, pela via da palavra, a frequentemos. E as várias maneiras de lidar com isso, que chamamos a partir do psicanalista francês Jacques Lacan de real, vão definir as várias patologias psíquicas, que irão das neuroses às psicoses.
elogiar, um adjetivo inteiramente
Não estamos, porém, impedidos,
desqualificativo.
como Freud o fez em alguns de seus trabalhos, de localizar, em um
Todo mundo ri porque todo mundo
plano político e social mais amplo,
hoje, a partir das descobertas de
maneiras distintas de se lidar com
Freud, sabe que um ato falho revela
esse resto abjeto presente em cada
algo de uma verdade para aquele
um de nós. As políticas chamadas,
que o comete que nem mesmo a
por exemplo, de higienistas partirão
pessoa que o cometeu sabia!
sempre da pressuposição de que a
Ou seja, a psicanálise nos ensina que
sujeira do mundo está nos outros –
temos um Outro em nós mesmos
em um determinado grupo social,
que desconhecemos e queremos,
em uma determinada religião,
inclusive, manter distante.
em determinados costumes,
A esse Outro em nós mesmos que
em determinados cheiros – e que
25
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caberia aos detentores do poder
políticas, ainda que não declaradas,
político promover operações de
de extermínio, pode ser um passo.
limpeza e assepsia. Estará aí, por
Ou passo algum, como assistimos
exemplo, um fundamento do
e ouvimos no testemunho de Rita,
racismo: situo em um outro –
irmã de Pacúi, sobre o que se passou
um negro, um judeu, um índio,
com seu pequeno e frágil grupo
mas também, de certa forma,
étnico. Tudo isso movido por uma
um homossexual, uma mulher –
ganância que o Estado brasileiro
todas as imundícies que, na verdade,
atual parece só fazer por estimular,
estão na base e nos fundamentos
encontrando sempre justificativas
– que desconheço e quero continuar
na superioridade de suas crenças,
desconhecendo – que constituem
no progresso a que, enfim, vai ser
minha própria subjetividade.
levado aos índios, nas facilidades que
Percebem que pode haver aí,
a vida civilizada ofereceria... Motivos
em políticas que pretendam levar o
para perpetrar nos diferentes,
progresso e valores universais (quer
nos grupos que de alguma forma
dizer, os mesmos valores, os mesmos
encarnam uma alteridade mais
ideais, que seriam, em tese, aplicáveis
radical, motivos para oferecer a eles
a todos os seres humanos),
a possibilidade de aderirem ao nosso
um entendimento e uma maneira
caótico modelo civilizacional ou se
de fazer política que pode ser
exporem a um furor dedicado hoje
extremamente perigosa? E perigosa,
em dia aos diferentes, nesse mundo
exatamente, para os que não se
onde a extrema-direita continua
encaixarem em tais ideais. A partir
ganhando espaço, quando a morte
daí (de convicções que se pretendam
e o extermínio aparecem como
universais, por exemplo), algumas
possibilidades reais.
pessoas, eventualmente detentores do poder com uma mentalidade
A recusa radical, reafirmada após
tacanha, se permitirão afirmar que
cada tentativa de aproximação e
sua religião é a melhor, que sua cor é
que repercute uma recusa ancestral,
superior e, às vezes, como há tantos
milenar, que nos levaria a misteriosos
exemplos na história, que o que não
recônditos do Neolítico, e que
anda bem no mundo, o que não anda
Tamandúa, seu tio Pacúi, seu povo
bem no país, o que não anda bem
e tantos outros povos praticam ou
em tal atividade econômica se deve...
tentam praticar, quando não resulta, portanto, em seu extermínio, deveria
Bem, retomemos o belo
nos levar a refletir um pouquinho que
documentário... se deve ao índio,
fosse sobre a possibilidade de tornar
que, além de indolente, atravanca
digna a alteridade que cada um de
o progresso do país... Daí para
nós, antes de mais nada, porta em si.
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PLANTAR CIDADES, CONSTRUIR FLORESTAS Wellington Cançado1
Enquanto milhares de pessoas saíam às
Às margens do rio Xingu, em plena
ruas nas principais capitais brasileiras
floresta, os munduruku exigiam a
em junho de 2013, naquela que se
suspensão da construção de Belo
tornaria uma das maiores manifestações
Monte e de todos os empreendimentos
populares da história do país, a 55
na Amazônia até que o processo de
quilômetros da cidade de Altamira,
consulta prévia aos povos tradicionais,
no Pará, 140 indígenas munduruku
previsto na Convenção 169 da
ocupavam, na madrugada do dia 28 do
Organização Internacional do Trabalho
mesmo mês, o canteiro de obras da Usina
(OIT) em vigor no Brasil na forma do
Hidrelétrica de Belo Monte.
Decreto n.º 143 desde 2004, fosse posto em prática.
Nas capitais, os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o
Na Avenida Paulista, eixo simbólico da
aumento da tarifa do transporte público
pujança econômica e da urbanidade
teriam as pautas ampliadas rapidamente
cosmopolita brasileira, a forte repressão
– contra a “cura gay” e desapropriações
aos protestos desencadearia uma
de vilas e favelas para os projetos de
cascata de manifestações Brasil afora
infraestrutura da Copa de 2014, pelo fim
como reação à violência policial, mas
da corrupção, pela desmilitarização da
também aos impactos do Programa
polícia, pela saúde e educação públicas
de Aceleração do Crescimento (PAC)
“padrão FIFA”, entre tantas outras.
do Governo Federal, que fizeram as já
1
Arquiteto, professor da Escola de Arquitetura e Design da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG e editor da revista PISEAGRAMA (piseagrama.org).
32
poluídas, violentas, congestionadas e
incompletos ou nem mesmo iniciados.
segregadas cidades, ainda mais inóspitas. O desabafo do anônimo operário de Belo Monte, a terceira maior hidrelétrica
Belo Monte durante a espera de 12 horas
do mundo, a “menina dos olhos” da
na fila para receber o salário mensal
então presidenta Dilma Roussef,
na cidade de Altamira, a mais impactada
apesar dos impactos socioambientais
pela construção da usina e hoje a mais
devastadores para beiradeiros, indígenas
violenta do Brasil, bem poderia ter sido
e pescadores da Amazônia e de sua
proferido em tantas outras cidades
contestada eficácia na geração da
do país: “aqui não é cidade…
energia projetada, seguiria sendo
é matadouro!”
2
autoritariamente construída, mesmo com percalços, interrupções e ocupações. “Uma operação de guerra”, como bem definiria Marcos Sordi, diretor do Consórcio Construtor de Belo Monte.
Como catalisador da insurgência indígena no coração da floresta e do altermundismo espontâneo no centro das cidades, subjaz um modelo de desenvolvimento predatório e
Enquanto nas cidades outra operação
excludente que desde os primórdios
de guerra era planejada às pressas
da modernização do país engendra
nos gabinetes oficiais para conter os
uma espécie singular de modernidade
protestos, os 25 mil trabalhadores
periférica. A persistência de tal projeto
lotados nos quatro canteiros de obras
nacional desenvolvimentista,
de Belo Monte ficariam sob a guarda
agora em sua versão urbano-rodoviarista,
ostensiva da Força Nacional durante
financista-imobiliária, neoextrativista
todo o período de construção. Passados
e anti-industrial, nos diz muito sobre o
cinco anos das manifestações de
nosso passado, ao mesmo tempo em
junho, a urbanidade incipiente segue
que reiteradamente interdita um outro
degradando-se nas cidades e, dois anos
devir-Brasil.
após a inauguração da usina, a paisagem arruinada às margens do Xingu compõese de restos de materiais, sucatas e
A ode ao pioneirismo, ao bandeirantismo,
equipamentos abandonados enquanto
ao desbravamento, à marcha para o
ações mitigadoras, compensatórias
Oeste e à “tomada de posse do território
e reflorestamentos previstos no
nos moldes da tradição colonial”3
licenciamento ambiental seguem
reafirmaria o caráter (auto) colonial4 do
2
A batalha de Belo Monte: Parte II – Altamira. TV Folha #97, 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=oNU0s-DK2Tw.
3
Lucio Costa (1995), Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das artes, p. 285.
33
34
6
Cf. CHAUÍ, M., 2012.
35
projeto moderno brasileiro. Mas uma vez
positivista que floresce no Brasil com a
rediagramados o autoritarismo,
incumbência de uma ampla e disciplinada
o antropocentrismo e também sua
“reconstrução geográfica”.
face etno-ecocida, tal projeto ganharia o mundo e seria exaustivamente
Afinal, plantar, nesses termos,
reproduzido localmente ao nível local sob
é primordialmente um gesto humanista e
a forma de uma inteligência cartesiana
uma convicção antinatural que emana do
genuinamente brasileira5.
“plano”, e seu sentido de “cultivo de viveiro” se faz necessário dada nossa vocação
Pouco antes da inauguração de Brasília,
como “civilização-oásis”8 com cidades-
expressão máxima dessa utopia do
incubadoras plantadas sobre o território.
superprogresso, Mário Pedrosa viria a
O descolamento deliberado de tais cidades
escrever que na falta de um país “nascido
projetadas em relação ao contexto de (im)
naturalmente” e diante de uma “terra
plantação, nos remete imediatamente aos motivos edênicos, aos mitos da natureza
virgem esparsamente povoada por selvagens nômades na Idade da Pedra” ,
virgem e do infinito território vazio,
era inexorável a intervenção humana contra
fundantes do Brasil. Mas também ao ímpeto
a natureza. E “é por isso que somos um
purificador9 dos modernos e aos dualismos
país que começou por plantar cidades”7,
estruturantes da suposta singularidade
concluiria. A ambiguidade desconcertante
qualitativa de sua antropologia assimétrica:
do paradoxo aparente, na qual plantar
natural-artificial, sujeito-objeto, humano-
cidades e ser contra o natural coexistem
não humano, primitivo-civilizado,
pacificamente, revela particularidades
espontâneo-projetado, cidade-floresta.
6
importantes do mononaturalismo
Nesse contexto, a sanha antropocêntrica
4
Para o historiador norte-americano e biógrafo da escritora Clarisse Lispector, Benjamim Moser, a construção do Brasil moderno é regida por um “autoimperialismo”. “O Brasil sempre foi um lugar a ser conquistado. O que era realmente estranho era que o Brasil não estava destinado a ser conquistado por forasteiros, mas pelos próprios brasileiros”. (Benjamim Moser [2016], Autoimperialismo: três ensaios sobre o Brasil. São Paulo: Planeta, p.100.). Adotamos a noção de “autocolonização” em lugar de “autoimperialismo” em consonância com os autores e o pensamento ligado ao “giro decolonial”.
5
Max Bense (2009), Inteligência Brasileira. Uma reflexão cartesiana. São Paulo: Cosac Naify.
6
Mário Pedrosa, “A cidade nova” (1959), in Maria da Silveira Lobo e Roberto Segre (orgs) (2009), Cidade Nova: Síntese da Artes/ Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, p. 29.
7 Idem. 8 Mário Pedrosa (2015), Arquitetura: ensaios críticos. Organização, prefácio e notas de Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac Naify, p. 132. 9 Bruno Latour (1994), Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34.
36
37
38
e tecnofílica manifestada pelos designers,
epicentro de uma região de monocultivo
arquitetos e urbanistas modernos de
de algodão e da pecuária extensiva para
expurgar todos os aspectos orgânicos e
a Companhia Colonizadora e Imobiliária
espontâneos da vida, vai desenvolver em
Dourados; da Vila Serra do Navio de
solo brasileiro um repertório realmente
Oswaldo Bratke (1956-61), construída
original de novas formas de colonização
no Amapá como núcleo urbano anexo
das forças naturais – humanas e não
à empresa mineradora de manganês
humanas –, encontrando na grande
Icomi; do canteiro de Jupiá e do núcleo
demanda por cidades construídas
habitacional para técnicos e engenheiros
“do nada”, possibilidades exploratórias
de Ilha Solteira coordenados por Ernest
e radicais de planejamento, ordenação
Mange (1957-60) às margens da Usina
e racionalização. Ao longo do século
de Urubupungá no Rio Paraná em São
XX foram inúmeras as cidades novas
Paulo; e de Caraíba, projetada por
que pulularam nos sertões e florestas,
Joaquim Guedes (1976-82) no interior da
deixando rastros importantes para uma
Bahia para uma empresa de extração de
espécie de arqueologia da irradiação do
minérios de cobre.
desenvolvimento econômico-territorial através do urbanismo no Brasil, nas suas
Mas apesar do otimismo “operativo”
vertentes de “síntese das artes” e “design
da historiografia moderna em considerar
total”. Surgidas principalmente a partir
tais projetos urbanos como verdadeiras
de demandas privadas de empresas
cidades funcionalistas nos trópicos, as
extrativistas-exportadoras – mineração,
designações comuns de cidade-operária,
pecuária, monocultivo intensivo – ou
cidade-empresa, cidade-mineradora e
em momentos de intensa participação
cidade-barrageira ocultam o “impasse
estatal na economia, como os núcleos
de atribuir o estatuto de cidade a um
urbanos e canteiros de obras para
lugar privado, destituído das condições e
hidrelétricas e siderurgias, tais cidades
atributos indispensáveis a uma verdadeira
são depositárias de importantes estratos
vida urbana”.10 Afinal, se as cidades
da geo-lógica moderna – ainda por
estiveram historicamente implicadas com
serem criticamente escavados –, com
a vida pública, em tais núcleos a tarefa
marcações cruciais das relações entre o
primeira “seria educar o trabalhador,
planejamento, a vida pública e os bens
até então rural, às peculiaridades da
comuns na modernização do país.
produção em série”, enquanto o exercício
É o caso das cidades de Angélica,
da democracia e da cidadania, na prática,
projetada por Jorge Wilheim (1954-61)
era delimitado e cerceado pelas regras
no Mato Grosso do Sul e construída no
empresariais. Daí seu caráter iminente de
10 Telma de B. Correia, “Da vila operária a cidade companhia: as aglomerações criadas por empresas no vocabulário especializado e vernacular” (2001), Revista brasileira de estudos urbanos e regionais. São Paulo, n.º 4, pp. 83-98, 91.
39
40
41
“reformatório social”.11
clássico das possibilidades de design total levado a cabo no coração da
Entretanto, a recorrência do repertório
floresta tropical e reverenciado pelas
arquitetônico e urbanístico moderno em
adaptações climáticas e por uma certa
consonância com o purismo corbusiano
regionalização extemporânea do design,
e o consequente aspecto alienígena
formas de domesticidade e intimidade
dos núcleos em relação ao ambiente
tradicionais (como dormir em redes)
nativo, acabariam, com raras exceções ,
seriam substituídas por hábitos urbanos,
por dissimular a reprodução direta
da mesma forma que o novo mobiliário,
da segregação histórica dos centros
mesmo tendo sido produzido in loco
urbanos, além da rígida hierarquização
especialmente para a vila, imporia
social por classes praticada no interior
arranjos de relações familiares e de
das empresas.
vizinhança completamente estranhos aos
12
habitantes. Com o cotidiano ditado pelo trabalho, pela uniformização dos costumes,
Nesses paradigmáticos “urbanismos sem
por toques de recolher e pela
cidade”, plantados como colônias de
penalização do dissenso sob normas
exploração avançadas, o desimpedimento
de convívio restritivas, a vida coletiva
da terra com a derrubada da floresta
se desenrolaria prioritariamente nos
seria impreterivelmente o marco zero,
interiores planejados – clubes, refeitórios,
não somente do início da ocupação,
cinemas e igrejas –, uma vez que os
mas logo, das formas de monocultivo
espaços públicos seriam marcados pelo
intensivo13, dos jardins exóticos semeados
controle das mantenedoras,
sobre as roças caboclas e dos novos
pela vigilância mútua e pela dispersão
hábitos de alimentação, descarte, uso de
programada. A privatização dos espaços,
recursos e lógicas de consumo a serem
dos gestos e desejos dos habitantes se
importados dos centros urbanos.
estenderia, ainda, ao cerceamento do contato com extracomunitários. Na Vila Serra do Navio, um exemplar
É contra o amplo espectro de
11 Mônica J. de Camargo (1997), Company Town: núcleos urbanísticos do Amapá. Trabalho Programado (Mestrado em História da Arquitetura) – FAU/USP, São Paulo, p. 79. 12 Em Caraíba, Joaquim Guedes, diante de tal impasse, mas entendendo que não seria possível resolvê-lo de dentro da arquitetura, optaria por um desenho em que as diversas hierarquias – operários, técnicos e engenheiros – estariam misturadas ao longo de toda a cidade, ao invés de circunscritas a zonas específicas (Rogério Penna Quintanilha [2016], As cidades que criamos: a arquitetura de cidades novas a partir da experiência da caraíba de Joaquim Guedes. Tese de Doutorado. São Paulo: FAU-USP). 13 Luis Arnaldo Porto (2013), Notas de terras disciplinadas. Manuscrito.
42
hibridismos, vernáculos, organicidades e
desenvolvida e deformada, produto
vitalidades que escapam ao dogmático
de um crescimento caótico e não
grid normativo e que contracolonizam14
planejado”16. E para essa selva, ambiente
o mundo como indesejadas “ervas
completamente artificializado e urbano,
daninhas”, que seria travada a luta dos
os designers conceberiam uma estratégia
modernos: os índios, os quilombolas, os
de reorganização exaustiva dos signos
favelados, os ambulantes, os mendigos,
e artefatos, eliminando os vestígios de
mas também os animais, as plantas e
espontaneidade, falta de planejamento
toda a intrincada rede simbiótica de
e desordem: letreiros, placas, postes,
humanos e não humanos que pulsa à
setas, cartazes, sinais de trânsito e os
margem do plano civilizatório.
demais elementos gráficos e mobiliários acumulados sem qualquer projeto ou
Não é por acaso que, para a construção
intencionalidade integradora.
dos mais emblemáticos espaços da nossa
No projeto de Cauduro Martino,
pertinaz modernidade, o expediente da
a obsessão sistêmica com o controle
tabula rasa é reiteradamente acionado:
e com a racionalização completa do
dos núcleos urbanos na floresta a Belo
cotidiano se revelaria um último suspiro
Monte, da capital no Planalto Central
do potencial totalizante do design
às mini-Brasílias por toda a parte, do
moderno no Brasil e da intransigente
Aterro-Parque do Flamengo no Rio de
inteligência projetual que o sustentava.
Janeiro e respectivo desmonte do Morro de Santo Antônio ao Parque Olímpico
Já a selva, mais do que uma metáfora
com a destruição da Vila Autódromo.
da negatividade ontológica do selvagem
Do redesenho viário da Nova Paulista
em relação à civilização urbana, tão
na década de 1970 ao recentíssimo
recorrente quanto a vontade de
marketing rodoviarista do “Acelera, SP”.15
exterminá-la, se revelaria um sintoma dos dualismos estruturais modernos – e
Sobre a cumeeira paulistana, João
ainda bastante atuantes –, derivados em
Carlos Cauduro e Ludovico Martino
grande medida não somente da ideia de
escreveriam em 1973, ocasião do projeto
uma terra vasta a ser colonizada e de
de comunicação visual e mobiliário
um desprezo estrutural pela vida, mas
para a Avenida Paulista: “a cena urbana
também da profunda hierarquização
que nos envolve é uma selva super
dessa sociedade escravocrata e etnocida.
14 Antônio Bispo dos Santos (2015), Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCT/ UNB/CNPq/MCTI. 15 O slogan “Acelera, SP” foi utilizado durante a campanha eleitoral pelo então candidato do PSDB João Doria à Prefeitura Municipal de São Paulo. Doria foi eleito em 2016 e após 15 meses no cargo renunciou, para disputar a vaga de Governador do Estado de São Paulo, contrariando a promessa de campanha de que seria Prefeito da cidade até o último dia do mandato. 16 Celso Longo (2014), Design Total – Cauduro Martino. São Paulo: Cosac Naify, p. 5.
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44
45
Sociedade cujo desígnio parece ser
e aumentemos sem pudor as cifras de
inequivocamente avançar sobre a
removidos e lucros, e a história
natureza e para a qual as relações de
será atualíssima!
dominação são absolutamente naturais. A construção do Aterro-Parque no É nesse sentido que a erradicação
Flamengo19, propiciada pelo monte
de uma das primeiras favelas do Rio
desterritorializado, seria oportunidade única no contexto brasileiro de
de Janeiro caracterizada “como um ‘desmonte’ ao invés de uma ‘remoção’”
manipulação radical da natureza
é bastante reveladora do pacote de
em escala geográfica numa cidade
apagamentos e substituições implicado
historicamente consolidada: para cada
no processo de modernização das
metro cúbico de terra arrasada no morro,
cidades e do país – revolucionário
um volume igual de terra criada na orla.
tecnicamente, inventivo formalmente e
E seria nessa paisagem erigida sobre
brutalmente arcaico em termos sociais.
o mar, com 1,2 milhões de quilômetros
Os 7.500 habitantes expulsos e os
quadrados e quase 20 mil árvores
1.500 barracos demolidos pela icônica
plantadas20, que os sentidos “clássicos”
escavadeira, “monstro moderno” que ao
de plantar cidades e da reconstrução
fim derrotaria o “gigante de terra”, seriam
geográfica acabariam por ganhar
meros danos colaterais de um progresso
conotações mais complexas –
que prometia “três mil veículos por hora
e promissoras.
17
em pista de alta velocidade”18 no aterro da zona sul. Os efeitos “benignos” da
Se o urbanismo do Aterro-Parque não
remoção dos moradores e da abertura do
deixa de ser uma ferramenta a serviço
centro da cidade pelo aplainamento da
do rentismo da terra, da exclusão
montanha seriam medidos pelos enormes
planejada e do elitismo disfarçado de
ganhos imobiliários da operação.
técnica neutra e positiva, a intrusão
Avancemos 60 anos, ampliemos o mapa
entrópica trazida pela instabilidade e
17 Mauro Amoroso (2009), “A favela faltou na foto: a cobertura do desmonte do Santo Antônio pelas lentes do Correio da Manhã”, Revista Cantareira – Revista Discente do Departamento de História da UFF, Niterói, 1(1), p. 3. Disponível em http://www.historia.uff.br/cantareira/v3/wpcontent/uploads/2013/05/e14a01.pdf 18 Como na manchete do Correio da Manhã de 6 de dezembro de 1958 (ibidem, p. 18). 19 Idealizado por Lota de Macedo Soares, coordenado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, com projeto paisagístico de Roberto Burle Marx, e realizado durante a gestão do então Governador da Guanabara Carlos Lacerda, foi inaugurado em 1965. 20 O segundo maior plantio da história da cidade depois da Floresta da Tijuca, hoje Parque Nacional da Tijuca, na qual foram plantadas 100 mil árvores no período de 1861 a 1874, altura em que o Major Gomes Archer foi incumbido pelo Imperador D. Pedro II do replantio das inúmeras chácaras devastadas pelo monocultivo do café e cujo assoreamento ameaçava o abastecimento de água da cidade.
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imprevisibilidade da natureza recriada
“Sugerindo uma imagem do design que
no Flamengo desloca, mesmo que só
é menos sobre planning e mais sobre
potencialmente, a dialética construção-
planting”25, poderíamos dizer, tomando
destruição que lhe é intrínseca.
emprestada a assertiva de Paulo
A natureza da nova orla insinua um
Tavares no contexto das “ruínas vivas da
redirecionamento, também potencial,
Amazônia”. Amazônia, lugar de onde,
dos aspectos construtivos do urbanismo
aliás, emergiria nas últimas décadas uma
em direção à criação das condições
concepção de floresta diametralmente
de possibilidade de um sistema de
oposta à natureza a-histórica, edênica e
existência . Pela via do paisagismo
selvagem dos modernos. Uma floresta
pictórico de Roberto Burle Marx –
que “deixa de ser uma desordem
mesmo que ainda nos termos naturalistas
terrestre” para ser “um novo mundo
– a monológica do plantation, típica
planetário, tão rico quanto o nosso e que
do urbanismo brasileiro, vislumbra
o teria substituído”, como disse um dia
timidamente se ecologizar.
Lévi-Strauss, em passagem pelos Tristes
21
trópicos26. E uma vez estabelecidas relações ecológicas inéditas22 no cerne da
Mas enquanto para os profetas da
modernização, linhas de fuga para
modernidade bandeirante construir
uma modernidade alternativa, prenhe
florestas no Brasil segue sendo um
de possibilidades de “retificação de
projeto de “minorias com projetos
um destino de destruição” e de
ideológicos irreais”27, para os tantos
“renaturalização extensiva do território”24,
indígenas que sempre resistiram à
são insinuadas através de um outro
violência colonial-modernizadora,
acordo entre a arquitetura, o urbanismo e
para quem tudo sempre foi fabricado,
a natureza.
plantado e cuidado”28, a ideia da floresta
23
21 Vera Beatriz Siqueira (2001), Burle Marx. São Paulo: Cosac Naify, p.37. 22 Ibidem, p. 38. 23 Ibidem, p. 23. 24 Roberto Monte-Mór, “Urbanização, sustentabilidade, desenvolvimento: complexidades e diversidades contemporâneas na produção do espaço urbano” (2015), in Geraldo Magela Costa, Heloísa Soares de Moura Costa e Roberto Luís de Melo Monte-Mór (orgs.), Teorias e Práticas Urbanas – Condições para a sociedade urbana. Belo Horizonte/MG: C/Arte, pp. 55-69. 25 Paulo Tavares, In the forest ruins. Disponível em www.e-flux.com/architecture/superhumanity/ 68688/in-the-forest-ruins. 26 Claude Lévi-Strauss (1996), Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, p. 323. 27 Frase pronunciada por Gleisi Hoffman em 2015, então Ministra da Casa Civil do Governo Dilma Roussef, durante audiência na Comissão da Agricultura da Câmara dos Deputados, em referência a grupos críticos ao modelo de implementação da usina de Belo Monte.
47
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construída não é nada extraordinária.
analogias com as modelares Cidades-
Pesquisas recentes
Jardim de Ebenezer Howard.
29
a partir de ruínas,
geoglifos e análise de estratificação da floresta no Xingu – não muito distante
Se as ideias e os lugares estiveram em
da desolação de Belo Monte – viriam
constante desacordo no Brasil, com os
a mostrar que a floresta não é passiva
lugares invariavelmente subjugados às
e muito menos “natural”, mas sim uma
ideias, uma das possibilidades que 2013
forma de urbanização de outra natureza,
nos lega, na efetiva confluência entre
“um artefato extensivo projetado em
a insurgência urbana cosmopolita e as
reciprocidade pelos indígenas juntamente
cosmopolíticas afroindígenas contra o
com os seus coinquilinos não humanos”30.
desenvolvimentismo autocolonizador, é exatamente a potência latescente33
E, no intento claro de estabelecer
– como das plantas tropicais
uma simetria entre extramodernos e
simultaneamente exuberantes e
modernos articulando novas “ideias
camufladas na mata – do reenvolvimento
sobre o lugar”31, a essa paisagem
entre as ideias e os lugares: em um
multiespécie extensa e complexa, os
“fazer mundo” no qual plantar cidades
pesquisadores não hesitaram em chamar
e construir florestas seja um projeto
de urbanismo , valendo-se inclusive de
comum.
32
28 Els. Lagrou (2007), A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks. 29 Anna Roosevelt (2013), The Amazon and the Anthropocene: 13,000 years of human influence in a tropical rainforest. Elsevier: Anthropocene 4, pp. 69-87. Disponível em http://dx.doi.org/10.1016/j. ancene.2014.05.001. 30 Wellington Cançado (2017), O que diriam as árvores? Belo Horizonte: Piseagrama, n.º 11, pp. 118125. 31 Em 1992, Eduardo Viveiros de Castro escreveria: “A ‘ecologia’, é certo é um discurso importado – como, de resto, o resto. Esqueça-se o clichê marxista sobre as ideias fora do lugar, em si mesmo um pouco deslocado e anacrônico. O próprio discurso ambientalista, sua novidade específica, está em ser uma ideia sobre o lugar. (Ricardo Azambuja Arnt [1992], Um artificio orgânico: transição na Amazônia e ambientalismo (1985-1990). Rio de Janeiro: Rocco, p. 16). Em 2015, o autor retomaria o debate sobre “as ideias fora do lugar”, como no já clássico ensaio de Roberto Schwarz de 1992: “Davi Kopenawa ajuda-nos a pôr no devido lugar as famosas ‘ideias fora do lugar, porque o seu é um discurso sobre o lugar, e porque o seu enunciador sabe qual é, onde é, o que é o seu lugar”. Ou, ele continua: “uma teoria sobre o que é estar em seu lugar, no mundo como casa, abrigo e ambiente”. (Davi Kopenawa; Bruce Albert [2015], A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 15-16). 32 Michael Heckenberger; Afukaka Kuikuro (2003), “Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland?”, Science Magazine, 301(5640), pp. 1710-1714. Disponível em www.sciencemag.org/ cgi/content/full/301/5640/1710/DC1. 33 Pietro Maria Bardi (1964), The Tropical Gardens of Roberto Burle Marx. Amsterdam: Colibris, pp. 14-15.
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CAVA FUNDA1 Simone Cortezão2
A TERRA
acompanhássemos a traseira de grandes caminhões carregados de material estéril por longas distâncias.
Estava na estrada havia menos de
Quando vazios, os caminhões
um mês. Passava por cidades onde
corriam e a carroceria fazia um
a feiura é coberta com uma espessa
barulho agudo e ensurdecedor.
camada de poeira e as árvores que
Quando os caminhões estavam
encobrem a grande cava já estão
carregados, uma lentidão pairava
amarronzadas. Ao longe, durante
sob as estradas. As sobras ditas
toda a tarde, seguiam com barulhos
estéreis, que são a terra em si,
de escavadeiras, caminhões, alarmes
e por vezes ainda mais lentos,
e buzinas. Na rodovia, uma nuvem
se carregavam de minério de ferro.
de poeira fica suspensa a pelo menos cinquenta centímetros de
Ao longo da rodovia dezenas de
altura. Os caminhões com as mais
caminhões ficam à espera das
diversas localidades. Durante a
cargas. Pequenos bares definhados
viagem, tudo ficava completamente
e sujos que servem como ponto
embaçado pela poeira, junto com
de apoio aos caminhoneiros são
o sol a pino, o dia seco e o calor
a pausa comum nessas paisagens
escaldante. Formava-se aquela
econômicas, normalmente
paisagem econômica em trânsito.
desencapadas e velozes. Lugares onde as estradas são feitas e
O carro só funcionava com duas
desfeitas pelo trânsito contínuo.
marchas, o que fazia com que
Assim, foram longos meses como
1
O ensaio Cava Funda apresentado nestes Anais é um fragmento do capítulo Cava Funda da tese defendida por Simone Cortezão intitulada Terras Remotas: as zonas de ressaca e as ficções econômicas (UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
2
Simone Cortezão é cineasta, artista visual, pesquisadora e professora do IFMG.
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viajante, onde as matérias, o subsolo
acontecer. Era perto das 17 horas,
vendido circula das mais diversas
e o calor de 40 graus de muitos
maneiras: por canos, caminhões,
dias seguidos sem chuva. Ao ligar
esteiras, trens, até chegar nos
a TV, imagens da cidade mineira
grandes navios.
de Bento Rodrigues soterrada pela lama. Naquela tarde, uma avalanche
Naquele ponto, os mapas
de lama ainda continuava a tomar
geográficos e geológicos se fundiam
cada canto de vale por onde
e se desfaziam. Ali, a referência
pudesse passar. Com o sol a pico e
geológica solta sob a superfície
sem nuvens de chuva, as imagens
em deslocalização constante pelos
pareciam saídas de algum filme com
fluxos das matérias para a venda
distopias futuras como Mad Max.
e as sobras que conformam novas
A terrível realidade que o filme Mad
montanhas chamadas de pilhas.
Max apresenta em seu off inicial nos
As estradas formadas a cada dia
conta sobre os rios contaminados,
são desses lugares que mesmo com
os ossos contaminados, a falta de
mapa não se sabe onde estão.
água; e toda a realidade descrita
Os bares e pequenas vendas
pelo narrador é muito próxima das
definhadas como referências
imagens da montanha que escorria
genéricas são as pausas no fluxo
como lama podre naquela tarde.
contínuo das carretas. Cobertas pela poeira, apagavam ainda
Não havia nenhum repórter em solo,
mais os lugares ou referências
pois tudo era uma grande areia
do mapa. Como uma espécie
movediça. Quilômetros de lama
de temporalidade em crise, de
escorriam por toda a parte. Com as
paisagens e movimentos nevoados
imagens turbulentas e rápidas feitas
que se fazem e desfazem ao
pelo helicóptero, alguns pontos
longo do dia. Como lugares que
brancos que aos poucos apareciam
mesmo abertos e desencapados
davam a escala do desastre. Eram
carregam um sigilo, demarcando e
os caminhões gigantescos de
desmarcando suas fronteiras.
mineração como pequenos pontos brancos em meio à lama.
O HOMEM GEOLÓGICO Algumas horas depois, a agência Quando preparava esse capítulo da
de monitoramento sismológico
pesquisa, já imersa entre os subsolos
anunciava um abalo sísmico no
remexidos e os desertos criados, a
local. Não se sabia se os pequenos
urgência do contexto chegava com
tremores cotidianos das constantes
mais rapidez. O ano de 2015 foi
implosões trincavam aquela lagoa
daqueles anos em que tudo parece
de rejeitos, se foi algum abalo
59
sísmico de terras ainda mais
A espera pela passagem da lama
remotas, se a empresa manipulou
se transformou em um evento.
as informações, ou ainda, se foi
Alguns pela curiosidade, outros
simplesmente o peso de 924 metros
pela preocupação e outros por um
de profundidade de lama, cerca de
evento nunca visto. A lama viscosa,
60 milhões de m3 retidos em uma
após cinco dias, descia mais lenta
lagoa que rompeu a contenção .
que as águas de um rio, com uma
Mas seja qual for tecnicamente o
melancolia do tempo lento, trazendo
motivo, há um impressionante poder
as camadas de uma montanha
da mineração em incidir sobre as
derretida.
3
forças geológicas. No fim da noite, as imagens daquela lama viscosa
A dimensão da natureza transborda
coberta de arsênio, zinco e metais
a escala urbana. Vistas à distância,
pesados percorriam os jornais,
as lagoas de rejeito parecem
TVs e redes sociais. Tão logo, por
pinturas. As cavas como vertigem
sua quantidade, chegaria a outras
pelo buraco aberto são a segunda
cidades e ao Rio Doce, engolindo o
paisagem alterada pelo homem.
que estivesse pela frente.
O que parece feio, por vezes é belo ou até mesmo assustador.
Os dias foram passando e a cada
No entanto, sua dimensão só vem
dia uma nova cidade esperava a
com o acidente. Quando a camada
chegada do mar de lama químico
geológica deixada a céu aberto vem
e fétido que um dia foi montanha.
como lama ou poeira cotidiana, ora
Numa segunda-feira, na cidade
transformada como nuvem, passa a
de Baixo-Guandu, que fica mais
circular todos os dias entre as casas
próxima ao mar, havia uma multidão.
como ar denso de poeira quente no
Poderia ser à espera de um pôr do
tempo seco.
sol, mas sob uma ponte da cidade as pessoas esperavam a chegada da
Plaatjies, morador de Johanesburgo,
lama. Como um evento, a montanha
diz que “os moradores aqui temem o
derretida chegava depois de
vento. Quando ele sopra, partículas
percorrer cerca de 500 km ao longo
finas a partir dos depósitos feitos
do rio.
pela mineração são levadas para o
3
“A comunidade de geólogos que estuda o rompimento está apostando que os abalos sísmicos foram uma consequência do desabamento, e não o contrário”, aponta Pereira. Segundo ele, o excesso de peso sobre o solo provocado pela quantidade da água armazenada nas barragens pode ter provocado uma movimentação de fendas no solo que levaram aos abalos sísmicos. A diretoria da Samarco informou que após o primeiro abalo, às 14h12, a empresa fez uma checagem de segurança, mas nenhum dano foi detectado.
http://www.otempo.com.br/cidades/soma-de-erros-causou-trag%C3%A9dia-1.1160759
60
61
62
ar e depositadas sobre as casas dos
que não possuímos”. Assim, reforça
moradores. Não é nenhuma poeira
o contrato natural como um estado
comum, é o resíduo de décadas de
tácito de relações.
mineração, ele pode conter vestígios de tudo, desde cobre e chumbo ao
Serres reivindica um contrato
cianeto e arsênio. Durante agosto e
com o natural não somente entre
setembro, a poeira é terrível(...). Você
os homens, mas que conceda à
para de limpar o chão depois de um
natureza direitos similares. Ele narra
tempo. Porque é apenas inútil“.
que a dinâmica planetária se tornou
4
violenta e acelerada, desenvolvendo Em 1991, no livro O Contrato Natural,
uma “força geológica”. Então,
Michel Serres diz que a terra nos fala
poderia completar aqui como
em termos de forças, de ligações e
imagem do nosso tempo a formação
alterações, e como uma espécie de
do “homem geológico”. É sobre
Manifesto Serres requer o direito
essa transformação que Dipesh
de um contrato igual a todos5 – o
Chakrabarty, no artigo The Climate
contrato natural. “O estar no mundo
of History, descreve a passagem
transformado em ser equipotente ao
do homem de agente biológico a
mundo. E esta equipotência torna o
força geológica. Assim, o termo
combate duvidoso.” Para Serres, “no
“Antropoceno”, cunhado por Paul
fundo, um contrato é uma tradução
Crutzen7, aponta para uma discussão
jurídica da realidade biológica
geológica. Tal termo começa a
da simbiose. Quem não está na
tomar os textos e artigos, mas,
simbiose é um ser abusivo. [...] um
sobretudo, o interesse crescente
parasita” . Ainda segundo ele, o
no entendimento da violência
reino do ser vivo é um equilíbrio
dessa força geológica. Afinal, é na
movediço, entre o parasitismo e
dinâmica do mercado de ações,
a simbiose. Afinal, “nós estamos
planilhas, abstrações e das ficções
sempre em busca de um equilíbrio
econômicas que o mundo fóssil
6
4
“Residents here fear the wind most. When it blows, fine particles from these man-made dumps are carried up into the air and deposited on to residents’ homes. It is no ordinary dust, either: the residue of decades of mining, it can contain traces of everything from copper and lead to cyanide and arsenic.
5
“During August and September, the dust is terrible. You stop cleaning the floor after a while. It’s just useless,” says Plaatjies.”<http://www.theguardian.com/cities/2015/jul/06/radioactive-cityhow-johannesburgs-townships-are-paying-for-its-mining-past. > Acessado em junho de 2015.
6
“A Terra, na verdade, nos fala em termos de forças, de ligações e de alterações, o que basta para fazer um contrato. Cada um dos parceiros em simbiose deve, de direito, a vida ao outro, sob pena de morte.” (O contrato natural, Michael Serres.)
7 Entrevista dada por Michel Serres no Programa Roda Viva. < https://www.youtube.com/ watch?v=YEPpkGeMuAY> Acessado em novembro de 2016.
63
que está abaixo de nossos pés é
do mundo, a entropia, que em
especulado, com o uso intensivo dos
alguns momentos Robert Smithson
combustíveis fósseis e da mineração,
chama de ruínas do futuro, é para
colocado à venda e em negociação.
ele ficcional. O “panorama zero” ou o momento, ponto entrópico da
Os contextos urbanos
natureza que orientou sua produção,
desconstruídos como instituições
e a ficção, possui o caráter literal que
científicas, zonas francas, plantações
é assimilado pelo artista a partir de
de eucaliptos, prédios abandonados,
uma desintegração de linguagens.
territórios pós-industriais, ruínas,
Smithson nos diz que “busca a
vazios urbanos, áreas mineradas,
ficção que a realidade imitará cedo
áreas de escória, agroindústria,
ou tarde”.
fazem parte de zonas de ressaca de muitas vizinhanças. Não mais as periferias como bordas, mas periferias situadas entre as coisas, numa indefinição de invisibilidades políticas e ambientais. De alguma forma, já vimos essas paisagens produtivas gigantescas como cenários devastados nas distopias projetadas pelo cinema. Por outro lado, elas são reais e presentes, parte de outra ficção: a ficção da economia e dos delírios do sistema onde estamos inseridos, da venda da natureza como produto. A natureza alterada está ali, exatamente fora do centro,
Ouvia o som de pessoas jogando futebol. Hoje a paisagem não é paisagem, mas um tipo de mundo de cartão-postal se autodestruindo por imortalidade falida e grandiosidade opressiva. Pareciam ruínas ao reverso. É o contrário das ruínas românticas, porque as construções não decaem, arruinadas, depois de algum tempo, mas já são ruínas antes de serem construídas. Isso reverte a noção de tempo. Os subúrbios existem mesmo sem passado e sem os grandes eventos da história. Não há passado, apenas o que passa para o futuro. Passaic parece cheia de buracos. Esses buracos são os monumentos, os vácuos, que de certo modo definem os traços de memória de um futuro abandonado. (SMITHSON, 1996: 71-72 (tradução minha))
tanto do centro “mundial” como do centro econômico e na microescala
O DESASTRE
do próprio centro das cidades -, estão e são as zonas de ressaca8.
A tarde está quente, o sol estourado e o ar seco. A pele queima mesmo
Assim, nesse estado sedimentar
com pouco tempo ao sol. A estrada
7
O termo Antropoceno ainda é analisado pela comunidade científica.
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Zonas de Ressaca é um conceito desenvolvido na tese Terras Remotas: as zonas de ressaca e a ficções econômicas (UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Simone Cortezão.
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de chão é longa, com caminhões por
improvável, da grandeza, daquilo
toda parte. Num confim distante
ainda não visto. À medida que
que poderia parecer tranquilo,
caminhava, o sol começava a
as caminhonetes e caminhões
esquentar e aquela imensidão de
circulam por todo lado.
água vermelha e barrenta dava mais sede. A praia totalmente vazia e a
Do alto do morro, Bento Rodrigues
cidade quase fantasma. As poucas
parece um cenário de guerra, ou,
pessoas que circulavam por lá eram
para melhor dizer, de uma ruína
alguns funcionários desinteressados
imediata do futuro. Todas as
da Samarco que durante um longo
imagens vistas durante semanas
tempo permaneciam no restaurante
na TV agora estavam bem perto.
próximo a um posto de gasolina.
Tudo com mais profundidade e,
Alguns ambientalistas, também bem
sobretudo, o que nenhum jornal
poucos, estavam por lá. O tempo do
disse: tinha cheiro. O cheiro de
desastre congelou o lugar em um
morte e de coisa podre em cada
tempo perdido, num esvaziamento
canto daquele lugar desmoronado
e monotonia que apagavam a ação
e arrombado pela lama, que já em
daqueles que por ali circulavam.
excesso começava a aparecer. Do mesmo modo que cada alimento,
Ali ficamos por um dia inteiro para
animal, corpo soterrado e tudo
gravar algumas imagens para o novo
restava do desastre já putrefavam,
filme que estava fazendo. A jornada
o cheiro ardido da lama química
dos poucos ambientalistas parecia
apodrecida sob uma barragem que
longa, como nos diz Smithson.
agora se transformava.
Era como procurar agulha no palheiro. Afinal, a cada trecho
A lama que primeiro abateu o vilarejo de Bento Rodrigues chegaria em Regência. As duas cidades são daqueles lugares distantes, fora do eixo e dos fluxos de circulação. Assim, seguimos até o mar. Não via o mar fazia alguns dias, o último era
percorrido da praia havia dezenas de animais mortos e objetos trazidos pelo rio, no movimento constante da água barrenta. No chão de areia o minério brilhava e cobria como uma primeira camada já espessa se misturando com a areia. Em 1967,
azul e transparente.
em Monuments of Passaic, Robert
A paisagem era apocalíptica.
exemplo do estado entrópico.
De alguma forma, a distância e o incomum da paisagem pareciam conter uma beleza própria, talvez do espanto e da violência do
Smithson encerra o artigo dando o
Gostaria agora de provar a irreversibilidade da eternidade usando uma experiência simples para provar a ideia de entropia: Imaginem uma
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“sand box” dividida metade com areia preta e a outra metade com areia branca. Leve para uma criança brincar no seu interior pedindo-lhe para remexer a areia no sentido dos ponteiros de um relógio até esta se tornar cinzenta. Em seguida peça à criança para remexê-la no sentido inverso. Nunca se conseguirá restaurar a divisão original, mas antes a areia transforma-se num cinzento mais carregado numa maior entropia. (SMITHSON, 2006).
catastrófico entre terra-lama e mar, na irreversibilidade do retorno à uma natureza anterior. Como ele afirma, temos a paisagem entrópica. O vento quente que soprava naquela tarde com o reflexo do minério metal que cobria o chão, não era o resultado de um fracasso, era o previsível daquilo que já está sobre as mesas de cálculos econômicos a grande zona de
A alegoria distópica criada por
ressaca, para onde parte do estouro,
Robert Smithson estava ali em
o excesso da matéria econômica
quilômetros e mais quilômetros
havia escoado.
daquela faixa de areia no encontro
REFERÊNCIAS SMITHSON, R.; FLAM, J. Robert Smithson: the collected writings. Berkeley: University of California Press, 1996. SMITHSON, R. Recorrido por los monumentos de Passaic, Nueva Jersey. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. SERRES, Michel. O contrato Natural. Tradução de Beatriz Sidoux. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991. RAJCHMAN, John. Existe uma inteligência do virtual? In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. SITES THE GUARDIAN. Radioactive city Disponível em:<http://www.theguardian.com/ cities/2015/jul/06/radioactive-city-how-johannesburgs-townships-are-paying-for-itsmining-past. > Acessado em abril de 2020. RODA VIVA. Entrevista dada por Michel Serres no Programa Roda Viva. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=YEPpkGeMuAY> Acessado em abril de 2020.
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SALVE RAINHAS DE NGOMA:
contramestiçagem, etnografia e cinema no Reino Treze de Maio Júnia Torres1
“Antigamente não existia o reinado de Nossa Senhora do Rosário. A gente fala reinado, a gente não fala congado, porque o branco que entrou no nosso meio e tirou nosso nome e chamou de congado, porque o certo mesmo é reinado. Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Antigamente os escravos não tinham o direito de fazer nada, só trabalhar e ficar ali como se fosse animal, não tinha direito a nada. Então o que eles fizeram, criaram o candombe, é só nêgo véio que toca candombe, ainda hoje. O filho de um desses escravos ficava naquela praia, na Luanda, ele viu aquela luzinha lá no fundo, aquela luzinha foi aumentando e formou a imagem. Ele viu aquilo e falou: ‘Ô papai, eu vi uma santinha ali, naquele lugar. Quê isso, meu filho?
1
Eu vi sim, vamo lá pro senhor ver’. O velho viu aquela luzinha lá no fundo, dava a impressão de que ela vinha caminhando pro lado deles, então ele falou pro senhor: ‘O meu filho viu aquela luzinha lá na frente. Que isso?’ Duvidou o Senhor daquela palavra do menino e do pai do menino, que era o nêgo véio. Mas o senhor foi pra ver e viu também e interessou em levar a santinha pro palácio dele. Criou um grupo de gente pra manifestar e a santa vir acompanhando. Levaram banda de música, levaram padre, levaram todo tipo de coisa pra santa vir e a santa não aluiu do lugar onde ela estava. E esse nêgo véio, falou assim: ‘Ô senhor, dá licença? Nós vamos ver se nós traz a nossa santinha’.
Pesquisadora em antropologia e cinema da Instituição Associação Filmes de Quintal, co-diretora do filme A Rainha Nzinga Chegou.
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Aí os nêgo véio fez os candombe, os tamborzinhos deles e vieram cantando pra ela, andando de fasto, sempre olhando pra ela, ela veio acompanhando. Quando chegou lá no palácio, eles colocaram onde o senhor tinha feito e ela não ficou. Ela não ficou. Voltou pro mesmo lugar de antes. Aí o negro já apanhou fé, a fé de Nossa Senhora e teve aquela intuição e foi buscar a santinha, arranjou lá perto deles um quartinho arrumadinho e foi buscar. Ela aceitou e ficou. E veio vindo, veio vindo, veio vindo, ela é a Nossa Senhora do Rosário que nós adoramos até hoje, ela não quis ficar com os senhores. E aí que criou o moçambique, o congo, lá na cidade de Luanda, lugar de marujo. E os brancos criaram o catopê, vilão, cacunda, tudo tem dos brancos pra poder combater os negros, mas não conseguiram. Os negos são vitoriosos, a fé é muito longa e a tradição também é. Aí o Galanga, o Chico Rei veio de lá, da África, veio como escravo para Ouro Preto e criou a festa do Reinado de Ouro Preto. Depois quando os negros vieram, nos tempos da fundação da nova capital, veio junto pra cá os reinados de Nossa Senhora do Rosário, com coroa, capa e bandeira de guia. Veio as espada, os guarda-coroa, rei e rainha que é majestade, vestidos de dignidade” Capitão Hélio (Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário da Vila São Jorge).
Moçambiques ou congos é como se definem a maior parte dos grupos relacionados à tradição dos reinados nesta região da mineração do ouro e do ferro, região central do Estado de Minas Gerais. Ao lado de outros menos numerosos, como os caboclinhos e marujos, compõem
as guardas ou ternos que têm por função proteger, acompanhar, enfeitar, anunciar, reverenciar, guardar e abrir os caminhos para os tronos coroados e suas cortes nas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, documentadas desde o século XVII em Minas. Em Belo Horizonte, expressivo número de reinos e guardas são atuantes em diversas regiões da cidade. Muitas vezes tornados invisíveis, folclorizados e localizados no passado estariam, nessa perspectiva um tanto funesta, fadados a desaparecer. Indiferentes a essa futurologia, os reinados seguem povoando, ressoando e colorindo o asfalto cinza da metrópole, com seus fardamentos, indumentárias rituais, cantos, danças, rezas, promovendo uma musicalidade dissonante e polifônica, executada por instrumentos especiais (gungas, patangomes, caixas). São formas complexas de organização majoritariamente negras que constituem uma sociocosmologia singular. Termos popularizados sobre os reinados desde 1940, tais como congado ou congadas, são recusados por mestres desta tradição por subsumirem diferenciações importantes, recusando tanto uma fusão interna entre as diferenças constitutivas desse universo quanto a fusão externa que lhes é imputada
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ao catolicismo popular, ambas
Estamos face a uma experiência
imprecisões imbuídas e cristalizadas
muito peculiar com o “sagrado”,
em tais denominações que recusam.
a uma memória performada a seu
Os reinados estabelecem, desde
modo, uma constituição de mundo
sua fundação em África (Souza,
singular elaborada pelos reinados.
2002 e Capitão Hélio em relato
Se a história escrita comumente nos
acima reproduzido) relações de
remete aos africanos como povos
proximidade e hibridação e nunca
escravizados, os reinados celebram
apenas de fusão com a religião
- e vivem - tempos de reis, rainhas,
“dominante”, o catolicismo.
guerreiros e chefes de exércitos.
Estabelecem também cruzamentos
Tornam presença os antepassados
com práticas de matrizes africanas
que viveram “o tempo do cativeiro”.
e afro-brasileiras, encontradas
Dançam junto a eles reverenciados
sobretudo na umbanda, posto que
e presentificados em formas de
participam, digamos assim, de um
incorporação sutis e peculiares.
mesmo universo banto, resiliente.
Os de que pertenceram às guardas de antes, em tempos antepassados
Nesse intenso universo de presenças
e que formam a guarda do astral,
cósmicas (Anjos e Oro, 2009),
como diria Rainha Isabel da Guarda
aproximam-se homens e deuses,
Treze de Maio, se tornam presença
vivos e mortos, objetos especiais,
nos corpos dos moçambiqueiros.
plantas, animais: toda uma sorte
“Moçambiqueiro, oi de terra boa,
de seres humanos e não humanos
moçambiqueiro, oi de terra boa,
em estreita convivência. Uma
leva a bandeira e ainda puxa a
situação de mise en présence, ou de
coroa”: como ouvimos no canto
assemblage, se podemos assim dizer,
(ou na toada) dentro das divisões
aos moldes propostos por Stengers
que organizam os cortejos do
(2004). Modos de experimentar,
reinado, os moçambiques são os
constituir, conceber o mundo que
responsáveis por puxar as coroas,
dotam de sentido e significado a
ou seja, conduzir o trono coroado.
vida de seus participantes para
Os congos vêm antes, abrindo,
muito além da visão corrente, da
enfeitando e limpando os caminhos.
história oficial, do estrito mundo do trabalho e da lógica (podemos dizer,
As palavras que ressoam dos cantos
do mito) da mestiçagem, perpetuada
e “embaixadas2” não nos deixam
nos livros didáticos e celebrada por
esquecer: tempos de cativeiro e
nossa indústria cultural.
tempos de reinos distantes.
2 Embaixadas são improvisações cantadas entre capitães de diferentes guardas quando se encontram nos cortejos. Performatizam simbolicamente disputas entre diferentes grupos ou guardas.
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Esse empreendimento que chamamos de um processo de antimestiçagem singular ativado pelos reinados. “Oi no tempo do cativeiro, quando o senhor me batia, eu chamava por Nossa Senhora, aiaiai e as pancada não doía, eu chamava por Nossa Senhora e as pancada não doía”. Pelo intercurso mágico de Manganá, nome também conferido à Senhora do Rosário, elidiam-se as dores das chibatas, quando era convocada, como continua sendo ainda hoje. Durante o ciclo do rosário organizam-se em homenagem a ela, festas e banquetes rituais seguindo a lógica de visitações mútuas, da reciprocidade e da dádiva, que promovem forte circulação de pessoas, elementos, signos, por diferentes regiões e espaços da cidade.
mas a adição de uma socialidade diferente (napë), que permite que os Yanomami do Orinoco se diferenciem dos Yanomami do montante do rio e dos napë da jusante para diferentes efeitos políticos. (...) já a relação yanomami com a cultura criolla envolve uma incorporação da diferença que busca transformar o eu em Outro. Sobre estas bases, podemos, então, chamar apropriadamente essa hibridação de “antimestiçagem”. (Kelly, 2016: 52)
A ideia tal como proposta pelo autor, de mistura não-fusional (Kelly, 2016) nos parece poder oferecer rendimento no contexto dos reinados ao menos em duas “dimensões”: a primeira se relaciona ao exterior e refere-se à não fusão em relação à sociedade includente, negação em se incorporar a uma cultura “mestiça” geral e a fazer parte de um nós indiscernível, de uma espécie de catolicismo negro;
Acreditamos que noções propostas
a segunda observa-se na relação
por José Kelly (2016), embora
que o reinado estabelece com outra
elaboradas a partir de contexto
forma afro-brasileira, a umbanda.
etnográfico bastante diferenciado
A exemplo do Reino Treze de Maio
(entre os Yanomami do Orinoco)
que mantém na mesma sede um
ajudam a pensar processos de
dos mais antigos centros de Belo
sincretismo em novas bases,
Horizonte, o Centro Espírita São
hibridação não fusional que, como
Sebastião, dedicado a Oxossi e que
acreditamos, são experimentadas
possui o registro, alvará fornecido
também em nosso contexto.
pelo Departamento de Polícia à
É preciso já estar claro que a hibridação yanomami é tudo menos mes-tiçagem. Ela não envolve uma fusão consumptiva da diferença, 3
época, mais antigo da cidade3. As atividades do centro têm sessões públicas realizadas semanalmente, com as presenças das entidades
Documento publicado em: MORAIS, Mariana R. “Nas teias do sagrado – Registros da religiosidade afro-brasileira em Belo Horizonte”, Ed. Ampliar, BH, 2010.
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dos pretos e pretas velhas, além da
guardas; ora orixás, pretos-velhos,
realização das tradicionais festas
exus, boiadeiros, caboclos, que as
regulares da casa, celebradas para
rainhas evitam frontalmente misturar
Oxossi e Senhor Ogum e festa de
em sua festa e devoção à Senhora
Cosme e Damião com seus erês.
Manganá (embora procedimentos de
Não cabe fazer aqui uma etnografia
tradição umbandista para proteção
mais detalhada da umbanda da casa,
antecedam a festa do reinado) e se
mas trazemos essa breve descrição
proíbam cantigas que atravessem
para nosso argumento de que a
de um universo a outro de forma
antimestiçagem seja pertinente para
veemente, como pude testemunhar.
pensarmos relações não só externas, digamos, com o catolicismo, mas
Tal dimensão interna da
também as que se estabelecem
relação propomos denominar
internamente com demais formas
como antimestiçagem e, de
de religiosidade de matriz africana.
contramestiçagem, apenas para fins
A casa da rainha da Treze de Maio
de diferenciação de dois processos
e rainha conga do Estado de Minas
simultâneos aqui observados,
Gerais é a mesma dos santos ou das
propomos chamar a dimensão
espiritualidades amigas herdadas
externa relativa ao catolicismo.
de Dona Cassemira, fundadora do
Importante é que ambas se
reino e benzedeira de grande fama,
configuram como contraposições à
conhecida como Preta Velha, que
visão que insiste em professar um
atuava como parteira incorporada
sincretismo fusional aos reinados
em suas entidades espirituais.
pelos não iniciados, subsumidos
Assim, tanto as celebrações do
muitas vezes a uma espécie singular
reinado quanto as práticas da
de catolicismo negro. Até mesmo
umbanda, mas cada qual a seu
potenciais aliados têm muitas
tempo, sem misturar as coisas,
vezes se recusado a reconhecer
encontraram e continuam a
os reinados como religião de
encontrar, abrigo neste reino que
matriz africana, o que tem deixado
também pode ser terreiro, basta
tais grupos alijados de políticas
saber a hora e as funções corretas,
públicas direcionadas aos povos e
tarefa para as especialistas,
comunidades de terreiro. Pudemos
mormente as rainhas, ensinarem.
verificar isso em pesquisa que visou
É notável como o mesmo espaço
o mapeamento por parte de órgãos
se transforma quando investido
governamentais federais (Secretaria
das diferentes presenças: ora os
Especial de Promoção de Políticas
cortejos do reinado, com seus
de Igualdade Racial e Ministério do
tronos coroados representando
Desenvolvimento Social) na Região
santos populares hibridizados e suas
Metropolitana de Belo Horizonte,
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tendo os reinados negros ficado
ouvida. Mas, por que razão Senhora
“de fora”. E qual a argumentação?
do Rosário não teria ficado com os
Não foram considerados religiões de
brancos? Eles trouxeram banda de
matriz africana. Demasiadamente
música (instrumentos melódicos
sincretizados ao catolicismo. Essa
sofisticados versus instrumentos
visão tão amplamente difundida é
percussivos dos negros),
reducionista e redutora e deixa de
construíram palácios de ouro (tais
lado a complexidade dos fenômenos
como as igrejas barrocas), mas ela
de hibridação e resistência, podemos
não ficou. Mudando a perspectiva,
dizer, de anti e contramestiçagem
mudamos a pergunta: teria a santa
sofisticadas envolvidas nessa criação
escolhido ir com os primeiros
e recriação da afirmação negra dos
negros do rosário? Quem vive com
reinados. Visão simplista cristalizada
o povo reinadeiro sabe que nesse
nos textos dos folcloristas e que a
universo de presença de intensas
academia em alguns estudos
forças cósmicas, sempre a nos impor
perpetua.
desígnios bem acima de nós, a ideia de escolhas e decisões individuais
Gostaria de desenvolver, em
que orientam as ações pode ser
contraposição, uma intuição que
praticamente impensável, ou no
aponta para a afirmação de formas
mínimo relativizada. Na narrativa,
de antimestiçagem particulares dos
a Virgem veio pelos tambores,
reinados, a partir, digamos,
ela veio pelo poder do tambor do
de seus próprios termos. Voltemos à
candombe. Ela sorriu de dentro das
narrativa fundadora, ou à história do
águas ao ver os negros dançarem
tempo do cativeiro, como preferem
para ela na beira da praia, como
dizer seus componentes: Senhora
nos ensina Capitã Pedrina,
do Rosário, Mãe dos pretinhos
do Moçambique de Oliveira.
do rosário (autodenominação
Nas palavras da rainha Isabel:
presente em inúmeras cantigas e
ela aceitou ficar com eles. A santa
evidentemente “contramestiça”
(sua imagem, força cósmica) saiu
posto a afirmação étnico-racial
das águas por meio de gestos
do termo) também chamada
específicos, de um grupo específico.
Manganá ou Ndamba Berê Berê
Foram os moçambiqueiros, pretos-
(termos igualmente “não mestiços”,
velhos, que lograram tirá-la do
denominações em línguas banto
mar. Em uma ação que inverte a
guardadas para serem “ativadas”
relação de poder vigente, pois são
em ocasiões especiais) ficou com
os escravos e não os senhores que
os negros, na senzala. Manganá não
logram tirar a Virgem das águas.
foi para a igreja de ouro construída
Os antigos escravos o fizeram
pelos brancos, história tantas vezes
entoando palavras e sons proferidos
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por instrumentos especiais tocados
humana, que agem ou funcionam
por pessoas especiais (no sentido
como pessoas ao ativarem relações
também de sua localização em
sociais (Mauss, 2003). Mediador
um grupo específico dentro do
entre relações e mundos, ngoma,
universo mais amplo dos reinados).
mana ou axé específico dos reinados
Os tambores ou tambus (tambores)
é o que emana dos tambores
do candombe são três (como na
sagrados, dos bastões dos capitães,
formação de outras práticas de
das coroas e espadas das rainhas.
religiões de matrizes afro): Santana,
É também a força que faz com
Santaninha e Jeremias. Sentada
que os velhos moçambiqueiros
no Santana, segundo versão muito
possam cantar, dançar durante dias
difundida, a imagem saiu do mar
consecutivos, percorrendo grandes
indo com os negros para a senzala,
distâncias em honra à Senhora do
tornando-se sua protetora perpétua,
Rosário, como ouvimos. É uma
em uma reversibilidade inegável da
energia que anima presenças.
ordem vigente.
Como mana, hau, axé, proponho que a noção de ngoma também
Assim, a Virgem teria saído
seja intraduzível e conceitual na
das águas uma vez encantada
medida em que condensa ideias,
(enfeitiçada) pelo poder do
ações, relações entre ideias e ações.
ngoma dos tambores sagrados do
Essa relação, passagem do objeto
candombe (diferentes dos tambores
ao que não é da ordem do real, pois
comuns tais objetos rituais ainda
que conceito, nos parece caber
hoje são tratados como se tratam
aqui inteiramente para noção de
entidades espirituais com oferendas,
ngoma, assim como cabe o trecho
café, bebida, velas). “Ei chora ngoma!
de Mauss: “A noção de mana não é
Ei ngoma chora”, ouvimos no canto.
da ordem do real, mas da ordem do
Ngoma, para os não iniciados quer
pensamento que, mesmo quando
dizer instrumento percussivo como
se pensa ele próprio, nunca pensa
encontramos em dicionários de
senão um objeto” (Mauss, 2003:41).
termos banto. Porém, depois de vivenciar, filmar, participar de várias
Assim, concebemos a narrativa do
atualizações rituais, de ganhar um
mito fundador como narração de um
cargo na guarda, pude perceber que
empreendimento de incorporação
ngoma é também tambor, mas em
de Nossa Senhora, símbolo máximo
torno ao termo circulam significados
do catolicismo branco pelo universo
muito mais complexos. No (ou na)
simbólico e ritual negro, africano,
ngoma está envolvida a agência
banto. O reinado pode ser vivido
de objetos e forças especiais, que
e pensado, ao contrário do que diz
atuam como mediadores de agência
o senso comum, não apenas
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como adesão ou sincretismo ao catolicismo, mas como fonte de afirmação de uma ontologia negra, de grande eficácia pela proximidade estabelecida com a religião dominante, o catolicismo, operando um encantamento ou enfeitiçamento em seu campo. Eficácia por acontecer de certa forma no interior de supostos veículos da purificação moderna (Latour) acionando uma cosmologia específica ou uma cosmopolítica especial entre diferentes seres. Neste, o intercurso metamorfoseante entre mulheres/homens, deuses, espíritos, envolve além de objetos especiais, como tambores, também forças da natureza, elementos como tempestades, raios e trovões, manifestados na coroação de uma rainha, como veremos. Quando a minha mãe fundou essa guarda, tinha uma polêmica. Eles não aceitavam de mulher ter uma guarda. O nome dela lá no Diretório Central, que foi formado antes da Federação dos Congados, era Bárbara Heliodora, porque ela foi a única heroína que conseguiu fundar uma guarda sendo mulher, pelo esforço que ela fez, que ela quis fazer. Eu acompanhei ela em todos os lugares que ela ia, ou como princesa, ou como mucama, dama de companhia (...) Ela era rainha da cidade de Belo Horizonte e, depois disso, foi eleita Rainha Conga do Estado de Minas Gerais, o que ela foi até os últimos dias da sua existência. Daí pra frente, eu tive que assumir o cargo, como eu era filha única, a obrigação era minha, assumir aquilo que ela tanto quis fazer. Todo 13 de maio tem festa de Nossa Senhora do
Rosário. Uma Guarda com sessenta e sete anos e nunca parou um ano. A minha mãe iniciou com seis meses de idade, ela foi princesa e o lugar da festa se chamava Angola, tem essa região até hoje, lá pros lados de Betim. Depois ela teve uma visão que era pra formar a guarda e então ela formou. Ela contou que estava na nossa casa, uma casa pequena, com muito mato muito morro, ela morava aqui praticamente sozinha. Ela contava que um dia, ela estava precisando das coisas, porque dois filhos pra criar sozinha, não é fácil. Então ela tava sentada na porta da sala e que de repente, apareceu uma guarda de congo e uma de moçambique conversando com ela, falaram que tinha a missão de ser rainha e que era pra formar uma guarda que falasse sobre a escravidão, provavelmente eram os antepassados dela, que sem dúvida foram muitos escravos e índios pegos a laço. Era assim que ela contava. Eles coroaram ela, os antepassados, coroaram ela e a mim. E ao Ephigênio, meu irmão, deram um bastão de capitão. Mas então ela falou: como eu vou fazer isso, fundar uma guarda? Então, ela fez com a ajuda deles, dos antepassados, e ela conseguiu tudo o que ela precisava. Isso foi em 1944” (Rainha Isabel Cassimira das Dôres Gasparino).
A Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio fundada e até hoje sediada no bairro Concórdia em Belo Horizonte, há mais de 70 anos é chefiada por mulheres, mesmo tendo em vista as interdições de gênero que caracterizam os moçambiques. Fundada, como ouvimos acima, no intercurso com os antepassados. É esta comunidade que pertenceu
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e pertence à Rainha Conga do
ficamos alguns poucos a comentar
estado, uma das mais reconhecidas
os acontecimentos. Era Isabel
autoridades na tradição dos reinados
mãe abrindo o novo reinado que
negros de Nossa Senhora do Rosário
se iniciava, lavando, abençoando,
e no campo afro-descendente
celebrando como Iansã, senhora dos
em Minas. A Rainha Conga é a
raios e trovões, o reinado de sua
autoridade máxima no reinado e
filha que, por meio dessa agência
representante - como dizia a própria
simbólica e particular, ela havia
rainha, ou presentificação de Nossa
iniciado.
Senhora do Rosário e de rainhas míticas de outrora, como a Rainha
Como nos ensina a nova rainha,
Nzinga, personagem emblemática
Belinha, recusando uma concepção
das histórias de resistência ao
linear de tempo, aqui não caberia
domínio colonial português em
falar em regresso, mas em raízes
África (no antigo Reino do Congo,
ativadas, fundamentos: “fortalecer
que hoje engloba Angola). Histórias
raízes profundas que são minha avó,
e memórias que chegam até nossos
das quais sua mãe era o tronco e
dias pela tradição oral e musical
sua geração a semente” (palavras
dos que se denominam como
proferidas em seu discurso de
seus descendentes, ritualizadas,
coroação). A analogia pode guardar
atualizadas e celebradas nas
relações mais sutis que não se dão
festividades do Rosário.
somente no campo da metáfora, mas da metamorfose. Havia uma
Na coroação da nova rainha da
gameleira no terreiro associada à
Guarda Treze de Maio, a tempestade
fundadora, Dona Cassimira, assim
se anunciou e por fim caiu na exata
como se percebe um complexo de
hora do subimento do mastro,
agências específicas das plantas
às seis da tarde, momento
que cercam toda a casa, a cozinha,
condensado do rito, quando
e assentamentos, enfim, todas as
os elementos cósmicos se
edificações que compõem o terreiro-
manifestaram. Nos olhares e na
reino que fazem parte deste mundo
energia que circulava, soubemos que
próprio constituído. Nossos tátas,
a tempestade era a manifestação da
nossos ancestrais estão conosco.
antepassada,
Podemos fazer confluir a essa
a rainha-mãe que agora, habitante
afirmação a expressão de I. Stengers
do reino de Aruanda onde vivem os
em Reclaiming Animism (2012),
mortos, seria substituída pela filha
citando uma moral imperativa:
primogênita no cargo.
“thou shalt not regress”, a qual
A tempestade era mesmo ela, como
responde: não se trata de regresso,
pudemos ouvir ao final, quando
de ressurreição do passado, mas de
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afetação do presente, de reativação,
fizemos a trajetória completa:
de tornar ativa uma força.
de uma certa recusa à câmera no princípio, passando à solicitação
Nessa dialética entre o mundo
para que eu filmasse ocasiões
do “desenvolvimento” e o dos
especiais (notava-se uma direção
antepassados ou da “tradição”,
da Rainha Isabel Casimira, sempre
os desafios do reinado são imensos.
mais interessada na participação dos
Estamos tratando de reelaborações
reinos e guardas visitantes, focada
contínuas, hibridações que recusam
na alteridade). Seguiram-se depois
fusões, empreendimentos complexos
trocas de projetos fílmicos com
de manutenção de alteridades e
integrantes do reino, montagens
coletividades, de fontes de memória,
compartilhadas e experiências de
subjetivação, afirmação negra e
realização conjuntas, como a do
outros processos.
filme A Rainha Nzinga Chegou,
Formas de expressão, conhecimento,
finalizado em 2019 e cuja direção
de constituição do mundo.
é assinada por Isabel Casimira
As origens remontam há séculos
Gasparino, a rainha Belinha e por
passados, onde encontramos as
mim. (Este foi o documentário
primeiras descrições de cortejos de
apresentado e comentado pelas
reis e rainhas, com suas guardas,
diretoras na Semana de Ciência, Arte
séquitos e cortes em adoração a
e Política da PUC Minas São Gabriel,
uma santa católica introduzida em
em 2019).
Angola pela devoção de uma rainha portuguesa. Hoje, em Angola, país
A Rainha Nzinga Chegou, inclui
da África Central, não encontramos
uma viagem a diversas regiões de
mais as manifestações dos reinados
Angola, com Isabel Casimira filha
negros. Tambus, gungas e demais
(a rainha Belinha, atual Rainha
instrumentos sagrados vimos apenas
Conga do Estado de Minas Gerais) e
nos museus. Tal Angola “mítica”
o capitão da Guarda de Moçambique
(r)existe no mundo constituído pelos
Treze de Maio, Antônio Cassimiro,
reinados, em Minas, onde devoção,
seu irmão. Dona Isabel, sua mãe
adoração e encantamento puderam
“tinha ido na frente, nos esperar em
ser faces da mesma moeda.
Angola”, como me disse Margarida, sua segunda filha. Ela partiu
A partir de 2004 iniciei a
pouco mais de um mês antes de
documentação, por meio fílmico,
nossa programada viagem e esse
de festividades, visitas, rituais
filme tornou-se, também, nossa
e editamos junto a integrantes
homenagem a esta inesquecível
do Reino Treze de Maio três
rainha.
documentários. Com o audiovisual,
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Valer-nos dos recursos audiovisuais
Partimos do rastro deixado pela
nos permitiu experimentar a
proposição enunciada por Isabelle
construção de uma etnografia
Stengers (2007): “a obrigação
e de seus resultados de forma
de se tomar o cosmos alheio em
efetivamente mais simétrica com
toda sua aspereza e singularidade
os componentes do Reino Treze de
e de se tirar as consequências –
Maio e me fez estar presente em
políticas, teóricas, existenciais – dos
diferentes ocasiões no tempo.
efeitos imprevisíveis desta dupla
Toda essa preocupação
entre-captura”. Proposição por
epistemológica, estética e,
nós experimentada sobretudo pela
sobretudo ética, ancorada em uma
intermediação do cinema nessa
revisão da oposição hierárquica
etnografia e cientes, de saída,
clássica entre sujeito e objeto do
de uma irredutível assimetria
conhecimento é a base da longa
também dupla, entre saberes
e profícua trajetória e legado de
e cosmos, os da pesquisa e da
Jean Rouch, para quem o cinema
antropologia, e os do reinado
deixaria de ser um conhecimento de
que sempre guardarão para nós
poucos, para se tornar um veículo
opacidade, na medida em que
de comunicação passível de ser
vislumbram o que não totalmente
apropriado pelas comunidades
alcançamos. Assimetria, portanto,
filmadas (Sztutman, 2009).
de parte a parte, se assim pode-
O que, felizmente, tem acontecido
se pensar. Porém, tenho buscado
cada vez mais radicalmente no
durante esse longo tempo, ainda que
sentido da autorrepresentação.
tateante, construir conexões entre
Os ventos da história estão
formas diversas de pensamento:
fazendo virar as folhas, como
o que podemos chamar do regime
diria Dona Isabel. Percebo hoje
de saberes específicos mobilizado
que a introdução das filmagens e
pelos reinados e o produzido
posteriores processos colaborativos
pela etnografia (e pelo cinema),
de edição e autoria tornaram-se
por tentativas de acoplamentos,
menos a descrição de uma dada
simbioses e construção de
realidade social ou a documentação
proximidades possíveis.
de formas de expressão a qual se poderia posteriormente recorrer como um caderno de campo filmado e, mais, a possibilidade de criação de um diálogo e de realizações comuns com componentes do reino, potencializados pelo documentário.
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REFERÊNCIAS
ANJOS, José Carlos e ORO, Pedro. Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre - Sincretismo entre Maria e Iemanjá, 2009. CASSIMIRO, Margarida Gasparino. Louvação à Nossa Senhora do Rosário. In CAIXETA R. e TUGNY, R. (orgs.) Músicas Africanas e Indígenas no Brasil, Ed UFMG, 2006. KELLY, José. Sobre a Antimestiçagem, Ed. Cultura e Barbárie, Desterro, 2016. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos, ensaio de antropologia simétrica, ed. 34, Rio de Janeiro,1991. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 [1925]. STENGERS, Isabelle. The Cosmopolitical Proposal, _ FR_CUT_üa, 1.10.2004 __________________. Reclaim Animism, 2012, http://www.e-flux.com/journal/ reclaiming-animism/ SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. SZTUTMAN, Renato. “A utopia reversa de Jean Rouch: de ‘Os mestres loucos’ a ‘Pouco a pouco’”. Devires (UFMG), v. 6, p. 108-125, 2009.
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SANGUE DE BAIRRO Affonso Uchôa e Desali
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SANGUE DE BAIRRO1 Affonso Uchôa e Desali2
Sangue de Bairro é a série
apresenta alguma dignidade
fotográfica que nós, Affonso Uchôa
ou potência fora do discurso que
e Desali, realizamos no lugar onde
o fotógrafo deseja construir.
crescemos e moramos: o Bairro Nacional, em Contagem –
Em Sangue de Bairro retratamos a
Minas Gerais.
realidade periférica desde um olhar mais aproximado.
O Bairro Nacional é uma “quebrada”,
Em nossa experiência, percebemos
um bairro de periferia.
que a vida na quebrada é complexa
Na história das imagens brasileiras,
e diversa: mais mosaico do que
os espaços pobres sempre sofreram
plano. A série se dedicou a registrar
com uma representação que
a amplitude dos sentimentos do
oscilava entre o “charme exótico”
Bairro Nacional.
e o paternalismo.
Nas imagens há momentos de
Produzidas em geral por pessoas
intimidade e retratos do cotidiano,
de classe média ou da elite,
assim como também instantes de
boa parte das imagens dos
euforia e êxtase.
despossuídos brasileiros focou na
O universo da série transita por
denúncia social ou no pitoresco,
retratos tomados à luz de um
ignorando a complexidade das
prosaico fim de tarde e segue
pessoas e dos lugares retratados.
até instantâneos de convívio com
O pobre nessas imagens raramente
as drogas e a violência.
1
A série de fotografia Sangue de Bairro esteve exposta na PUC Minas São Gabriel durante a programação da XI SCAP.
2
Affonso Uchôa é cineasta, fotógrafo, montador e diretor. Desali é artista plástico, seu trabalho transita entre a pintura, a fotografia, a ação performativa e o vídeo.
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Na nossa série buscamos uma
Sangue de Bairro traduz em imagens
representação da periferia mais
a melodia da vida na periferia, que
ampla e sem julgamentos.
ressoa em Contagem, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo e em
A série atualiza um tradicional
todo lugar de excluídos mundo
princípio fotográfico:
afora. O Sangue de Bairro corre nas
a imagem é a revelação de um
veias de toda quebrada.
estado do mundo. Nesse caso, de um lugar específico do mundo. A série é devotada a capturar a existência fulgurante dos lugares, corpos e instantes do Bairro Nacional. Sangue de Bairro se origina da deriva pelo mundo em busca de um esplendor que transforme uma presença em imagem. Buscamos, nessa série, encarar uma questão fundamental da linguagem fotográfica: o jogo entre quem retrata e quem posa. O jovem deitado em posição frágil na cama e a jovem mulher preparando seu cachimbo de crack expõem seus momentos e segredos mais íntimos para a gente. Ao mesmo tempo, nós também deixamos aberta a possibilidade de uma participação mais ativa dos retratados, para que eles ofereçam para câmera a sua performance ou sua consciência da pose. Acima de tudo, sentimos que está nas fotos a força e dignidade da gente do Bairro Nacional. Corpos e vidas pobres, invisibilizados e esquecidos na sociedade, também apresentam força incomum e a nossa imagem é testemunha da sua potência.
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Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos, apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor, nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica da PUC Minas e da Reitoria.
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