ANAISDASCAP MUNDO POR VIR
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Unidade São Gabriel
VII SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA Belo Horizonte, 5 de setembro de 2015
ANAIS DA SCAP MUNDO POR VIR
Belo Horizonte 2015
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Semana de Ciência, Arte e Política (7. : 2015. : Belo Horizonte, MG) S471a Anais da SCAP: Mundo por vir / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte, 2015. 65 p.: il. ISSN: 978-85-8239-041-2 1. Globalização. 2. Religião e sociologia. 3. Recursos naturais - Conservação. 4. Aquecimento global. 5. Família - Aspectos morais e éticos. 6. Refugiados. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.
CDU: 338.98
7
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EXPEDIENTE
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Organização e Edição:
Prof. Mozahir Salomão Bruck Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:
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Guilherme Dardanhan
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Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero
Coordenadora de Pesquisa da PUC Minas São Gabriel:
Prof.ª Aline Mendes Aguiar
Coordenador da Pastoral Universitária da PUC Minas São Gabriel:
Frei Mário da Paixão Taurinho
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EDITORIAL
Na Semana de Ciência, Arte
mundo que norteavam nossas
e Política – SCAP – a Unidade
vidas não nos oferecem mais as
São Gabriel da PUC Minas reúne
respostas. Estamos, hoje, com
todos os cursos e setores para a
dificuldade de fornecer uma
realização de um grande evento,
representação do mundo que
cujo objetivo principal é a formação
abarque experiências antigas e
geral do corpo discente. A partir
novas. Mas, assim como o jornalista
da indissociabilidade do ensino,
Adauto Novaes, acreditamos que as
pesquisa e extensão, o evento
crises são “constituídas de múltiplas
busca proporcionar por meio da
concepções que se rivalizam e que
interdisciplinaridade debates acerca
dão vigor dialógico às sociedades,
de questões contemporâneas.
excitam o sensível e o inteligível”. Elas podem desvelar o que estava oculto e apontar para o novo. Essa
O tema central e título da sétima
crise mundial nos convoca a rever
edição é Mundo Por Vir. Com esta
valores e conceitos que implicam
temática, a VII SCAP buscou uma
a sobrevivência da espécie e do
transversalidade para refletir sobre a
planeta. As luzes vermelhas se
questão: o que há de comum entre
acenderam. Seremos capazes de
a crise ambiental, o aquecimento
conter nosso impulso consumista
global, o esgotamento dos recursos
e rever nossa lógica predatória?
naturais, a globalização, a adesão de
Surgirão novos paradigmas
jovens ao estado islâmico, as novas
econômicos e socioculturais dessa
configurações do núcleo familiar,
crise?
o conflito na Síria, a corrupção, o consumo e a ética? O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Vivemos numa época em que
Danowski que escreveram sobre
concepções políticas, ideias,
o fim do mundo afirmam que há
formas de existência e visões de
muitos mundos no mundo. Como
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eles, acreditamos que temos
Unidade São Gabriel, ficando
muito que aprender com os povos
documentada nestes Anais: Mundo
menores que resistem em um
Por Vir; constituídos numa profícua
mundo empobrecido que nem é o
reflexão crítica a partir de artigos,
deles. Assim a VII SCAP propôs-se
ideias e ensaios fotográficos. Nesta
a discutir os lugares de resistência
edição, os Anais contam com a
e sua potência para novos
valorosa contribuição da Associação
agenciamentos. E surpreendeu-se
dos Repórteres Fotográficos e
com os acontecimentos no país e no
Cinematográficos de Minas Gerais
mundo tão concernentes aos temas
– Arfoc MG - responsável pela
debatidos.
curadoria das fotografias produzidas sobre a tragédia de Mariana e também a participação do fotógrafo
A Semana de Ciência, Arte e
e professor da PUC Minas Max
Política, em sua sétima edição,
Perdigão, com um ensaio fotográfico
apresenta-se como importante
sobre Miguel Burnier, distrito de
responsabilidade sociocultural e
Ouro Preto em Minas Gerais.
tarefa acadêmica da PUC Minas
Leiam e reflitam.
Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel
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ÍNDICE
EDITORIAL
Cláudio Listher Marques Bahia
Elisa C. O. Rezende Quintero 10
DESLOCAMENTO FORÇADO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: UM DESAFIO GLOBAL COM REPERCUSSÕES LOCAIS
Luiz Fernando Godinho 16
NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES: ÉTICA E MORAL
UTOPIA E ESPAÇO URBANO: PENSAR O “MUNDO POR VIR” A PARTIR DA CRÍTICA RADICAL DO PRESENTE
APRENDER A VER O MUNDO E PRODUZIR A VERDADE
Rodrigo Cunha
Marcus Gustavo Pires de Melo
José de Anchieta
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DESLOCAMENTO FORÇADO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: um desafio global com repercussões locais Luiz Fernando Godinho 1
Os sentimentos de excitação e
e com a missão de falar sobre a
ansiedade me dominavam naquela
maior tragédia humanitária dos
noite do dia 31 de agosto de
nossos tempos, mesclando fatos,
2015. Mais de duas décadas após
estatísticas e conceitos filosóficos
deixar os bancos da Pontifícia
motivados pelo tema da SCAP:
Universidade Católica de Minas
“O Mundo Por Vir”.
Gerais com um diploma de jornalista embaixo do braço, estava de volta à
Já no auditório, revisava
universidade para abrir a VII Semana
mentalmente minha apresentação e
de Ciência, Arte e Política (SCAP),
me fazia perguntas numa tentativa
na Unidade São Gabriel. Agora,
de antecipar-me à plateia. Seriam os
como funcionário da Agência da
atuais 20 milhões de refugiados do
ONU para Refugiados (ACNUR)
planeta resultado de uma desordem
1
Porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil. Jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Mestre em Globalização e Desenvolvimento pela Universidade de Westminster, em Londres (UK). Trabalha no ACNUR desde 2006 e já atuou em operações humanitárias no Brasil, Colômbia e Equador. É membro da Equipe de Emergência do ACNUR e, em 2014, trabalhou por três meses na Etiópia, na resposta à crise de refugiados do Sudão do Sul.
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mundial que não conseguimos
4 quilômetros, em meio a
mais analisar por meio dos ideais
turbulentas águas do Mediterrâneo e
e visões de mundo que costumam
ao custo de US$ 4.400,00.
nortear nossas vidas? A atual crise
A viagem era mais uma etapa da
de refugiados – a maior, desde a II
triste trajetória da família Kurdi,
Guerra Mundial – seria a confirmação
obrigada a deixar sua cidade natal
de uma sociedade disfuncional que
de Korbane por causa da guerra na
sucumbirá em meio a outras crises,
Síria e das atrocidades cometidas lá
como o aquecimento global, o
pelo Estado Islâmico. O objetivo final
esgotamento dos recursos naturais,
da família, ao deixar a Turquia, era de
o terrorismo e a ética perversa da
alguma maneira chegar ao Canadá,
corrupção? Ou podemos, em meio a
onde já viviam alguns familiares.
este caos, encontrar um fio condutor que viabilize o diálogo e indique
Menos de 24 horas após a abertura
saídas para o labirinto no qual nos
da VII SCAP, Abdullah e sua família
metemos?
– o pequeno Aylan (de 03 anos), seu irmão Galip (de 5 anos) e sua
Todas essas ideias (e algumas
mãe, Rehan Kurdi (de 35 anos) –
outras) rodeavam minha cabeça
subiram na embarcação. Outros dois
e, creio, estavam no menu de
refugiados estavam com eles.
perguntas do público. Mas o que ninguém sabia é que, a mais de
Após se distanciarem uns 500
10 mil quilômetros de distância da
metros da costa, ondas violentas
Unidade São Gabriel, uma família
atingiram o bote, que começou
de refugiados sírios – entre milhares
a se encher de água. O “capitão”
de outras – vivendo na Turquia
abandonou a embarcação.
finalizava os preparativos de uma
Com os pés molhados, os que
viagem cujo final trágico mudaria
ficaram entraram em pânico à
de vez a percepção do mundo
medida que a água subia. Alguns
sobre o drama daqueles forçados a
ficaram de pé, e o bote virou.
se deslocar por causa de guerras,
Abudllah segurava sua mulher,
conflitos e perseguições.
mas as mãos dos seus filhos se soltaram das suas. Todos gritavam
Naquela mesma noite, na península
na escuridão, e Abdullah já não
de Bodrun (sudoeste da Turquia), o
conseguia que sua esposa e seus
sírio Abdullah Kurdi acertava com
filhos ouvissem sua voz.
uma dupla de traficantes de pessoas
Na manhã do dia 02 de setembro,
os detalhes para que ele e sua
o mundo acordou com a tenebrosa
família fossem levados à ilha grega
imagem do pequeno Aylan sem vida,
de Kos – um trajeto de apenas
adernado na mesma praia da qual
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havia partido, com sua bermudinha
Mesmo que com uma grande
azul, uma camisa vermelha e
dose de hipocrisia, a opinião
sapatinhos de velcro. Sua irmã e seu
pública internacional foi obrigada
irmão também morreram.
a reconhecer a dimensão desta crise – embora com um foco ainda
As discussões travadas na
concentrado na realidade europeia,
palestra de abertura da VII
como se a situação no chamado
SCAP anteciparam, ainda que
Velho Continente não fosse a
involuntariamente, o debate que
consequência direta de problemas
inundaria os meios de comunicação,
que ocorrem há mais tempo e mais
as redes sociais e a comunidade
intensamente em outras partes do
internacional após a divulgação
mundo, especialmente o Oriente
da foto de Aylan Kurdi afogado
Médio e a África.
no litoral turco: a atual crise de refugiados é uma tragédia
Mais do que isso, a personalização
humanitária, os países precisam
da atual crise de refugiados na
ter maior responsabilidade na
imagem de Aylan equacionou uma
proteção às vítimas de conflitos e a
situação que ainda deixava muitos
comunidade internacional se mostra
de nós em um campo abstrato:
incapaz de prevenir e solucionar os
passamos a perceber claramente
conflitos armados que forçam as
um problema envolvendo grandes
pessoas a se deslocarem em busca
números por meio de um evento
de refúgio.
singular e individual. De uma hora para outra, nos demos conta de
A grande contribuição da divulgação
que os refugiados existem, que
da foto de Aylan foi dar visibilidade
estão mais próximos da nossa
a um problema que vem atingindo
realidade do que imaginávamos e
a humanidade há muito tempo: o
que são pessoas como você e eu:
deslocamento forçado de pessoas
têm sonhos, aspirações e foram
devido a guerras, conflitos e
obrigadas a deixar para trás seu país
perseguições. As estatísticas globais
e uma vida cotidiana com rotinas
compiladas pelo ACNUR são muito
banais tais como trabalhar, levar
claras e revelam que nunca houve
e buscar filhos na escola, praticar
tanta gente obrigada a deixar
esportes, interagir com amigos e
seus locais de origem por estas
familiares, viajar e se divertir.
causas. São cerca de 60 milhões de pessoas, sendo que 20 milhões delas
A perenidade da atual crise de
cruzaram uma fronteira internacional
refugiados nos leva a reflexões
em busca de proteção – e por isso
diárias que estiveram no cerne da
são definidas como refugiadas.
VII SCAP. Apesar da ausência de
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uma visão homogênea da sociedade
Se a comunidade internacional
e da prática em torno de conceitos
não tiver a capacidade de
universalmente aceitos como
encontrar soluções negociadas
sendo certo ou errado, as crises
para os conflitos existentes, o fato
contemporâneas têm o lado positivo
causador do deslocamento forçado
de permitir o embate de múltiplas
de pessoas ao redor do mundo
concepções e promover o diálogo,
continuará acontecendo.
na esperança de que algo novo
E os milhões gastos atualmente com
possa surgir.
operações humanitárias servirão apenas para amenizar a situação das
Embora esta possa ser uma
vítimas destes conflitos.
visão holística e filosófica para o significado da palavra “crise”,
Os refugiados precisam de
a sua face mais perversa (a das
ferramentas que permitam a eles
crises humanitárias) se revela
reconstruir suas vidas, de preferência
quando consideramos que as crises
em igualdades de condições com
são produto da falta de diálogo,
os nacionais dos países onde se
da intolerância, da incapacidade de
encontram. Se considerarmos que
prevenir e solucionar conflitos que
menos de 1% dos refugiados do
se abatem sobre uma população
mundo conseguiu voltar para casa
civil desprotegida, comprometendo
em 2014, a grande maioria deles
sua segurança, sobrevivência,
ficará por anos e décadas no exílio.
sustentabilidade e suas perspectivas.
E se são limitados a exercer o direito ao trabalho, certamente serão
Neste sentido, pudemos verificar
obrigados a buscar meios de vida na
durante a VII SCAP que as crises
economia informal, se submetendo a
humanitárias podem ser vistas como
condições inapropriadas de trabalho,
“uma das faces do fim do mundo”,
exploração sexual, trabalho infantil e
pois as guerras são a negação da
outros abusos.
humanidade, o lado sujo da ciência, da política e do conhecimento
Outro ponto abordado durante a
humano.
VII SCAP – a resposta do Brasil a este cenário de crise – também
Mas é preciso avançar e não focar
parece muito adequado à discussão
no problema, e sim nas soluções.
sobre a atual crise de refugiados.
Assim, devemos buscar uma
O país é signatário das principais
resposta que vá além da tradicional
convenções da ONU sobre o
ajuda humanitária com um viés
tema, além de instrumentos legais
assistencialista. A resposta para a
regionais, e tem dado um exemplo a
crise é política, e não humanitária.
ser seguido em todo o mundo.
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No momento em que barreiras são
que podem criar oportunidade de
erguidas para aqueles que querem
crescimento nas sociedades que
apenas preservar sua vida, o Brasil
os acolhem, desde que tenham as
mantém suas fronteiras abertas aos
devidas condições de desenvolver
que buscam refúgio. Além disso,
suas potencialidades e perseguir
franqueia os benefícios das políticas
suas aspirações.
públicas universais - como saúde, educação e habitação –
Precisamos, a cada dia, descartar
a esta população, o que facilita em
aquela imagem clichê dos refugiados
muito o processo de integração
como receptores passivos de ajuda
econômica e social. Certamente,
humanitária, sentados e com as
há muito a melhorar e tanto o Poder
mãos estendidas. Estas são imagens
Público como a sociedade civil estão
que refletem circunstâncias impostas
trabalhando neste sentido.
aos refugiados e reforçadas por uma resposta incompetente por
Olhando em retrospectiva, tenho a
parte da comunidade internacional.
sensação de que consegui domar
Como você e eu, os refugiados são
a excitação e a ansiedade que
empresários, artistas, professores,
me dominavam naquela noite de
engenheiros – trabalhadores de
agosto de 2015 e entabular uma
todos os tipos. São crianças que
profícua discussão com a audiência
querem brincar, explorar e ter a
da cerimônia de abertura da VII
oportunidade de um futuro seguro.
SCAP. Eu me senti acolhido, como se
São todas e todos uma rica fonte
estivesse voltando para casa.
de capital humano que precisa ser devidamente cultivada.
Não encontramos respostas a todas as questões que foram colocadas,
Se algumas dúvidas ainda nos
mas ficou claro que como parte de
angustiam, talvez esta seja a hora de
uma sociedade global, devemos
fazer com este incômodo nos motive
atuar para que a crise dos refugiados
a reverter as crises que nos afligem
sirva para apontar caminhos em
e que afetam a sociedade em seus
um mundo conturbado e dominado
diferentes níveis. Teremos sempre a
por becos que parecem sem saída.
chance de reagir com ideias e ações
Em sua dimensão individual, os
que vão além do choque e
refugiados devem ser vistos como
do desespero.
pessoas que têm a contribuir e
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NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES: ética e moral Rodrigo da Cunha Pereira1
Os movimentos sociais, políticos
algumas das diversas formatações
e econômicos do século XX,
familiares do século XXI. Estará a
associados à evolução do
família em desordem?
conhecimento científico e ao fenômeno da globalização,
Essas variadas formas e
provocaram mudanças profundas
representações sociais da família2,
na estrutura da família e nos
consequências das novas relações
ordenamentos jurídicos de todo
econômicas e sociais, remetem
o mundo ocidental. Casamentos,
os operadores do Direito a uma
uniões estáveis, famílias
reflexão e a um desafio para uma
desconstituídas, recompostas,
nova organização jurídica, cujos
monoparentais, nucleares,
pilares de sustentação sejam a
binucleares, homoafetivas, famílias
ética, a liberdade dos sujeitos e
geradas por inseminações artificiais,
o afeto como valores e princípios
simultâneas, multiparentais,
jurídicos, acima de valores morais
poliafetiva, eudemonista,
estigmatizantes. Quer queiramos
anaparental, mosaico, socioafetiva,
ou não, gostemos ou não, novas
famílias de rua e na rua, eis aí
estruturas parentais e conjugais
1
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFAM e advogado, autor de várias obras em Direito de Família e Psicanálise, inclusive do Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado (Saraiva).
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estão em curso. E o Direito não pode
e psiquicamente, e determina sua
fechar os olhos, excluir ou condenar
estrutura psíquica.
à invisibilidade essas novas relações 3
que vêm se formando como
A família transcende à própria
expressão de afeto e da liberdade.
historicidade, pois suas formas de constituição são variáveis, de acordo
A psicanálise e a antropologia já
com o momento histórico, social e
demonstraram que a família não é
geográfico. A riqueza dela se deve
um fato da natureza, mas da cultura;
ao mesmo tempo à ancoragem
por isso, a eterna mutação. E assim,
em uma função simbólica e na
por ser um elemento muito mais
multiplicidade das recomposições
cultural do que natural e biológico,
possíveis. Por isso, haverá sempre,
ela está sempre se reinventando.
de uma forma ou de outra, algum
Aliás, se não se reinventasse já teria
tipo de núcleo familiar que fará a
acabado. A família é locus formador
passagem da criança do mundo
e estruturador do sujeito. É ali
biológico, instintual, para o mundo
que ele se desenvolve, biológica
social.
2 (...) o que significa situar a existência de novos paradigmas nas relações intrafamiliares, com os mais inusitados arranjos entre os entes que formam a família do século XXI (...) STJ, REsp 933355 / SP, RElª Minª Nancy Andrighi, 3ª Turma, pub. 11/04/2008. Em complementação ao raciocínio: (...) As uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm tornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses. - Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. (STJ, REsp 1157273 / RN, RElª Minª. Nancy Andrighi, 3ª Turma, pub. 07/06/2010). 3 (...) Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. (...) Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro. (...) (TJMG, Apelação Cível nº 1.0017.05.016882-6/003, Relª. Des. ª Maria Elza, public. 10/12/2008).
29
A partir da compreensão de que
da felicidade. Consequentemente
a família é um núcleo estruturante
surgem as famílias mosaicos, isto
do sujeito, e o que interessa na
é, casamentos e uniões estáveis
vida é nos tornarmos sujeito, uma
de pessoas que tiveram vínculos
simples lógica nos conduzirá à
conjugais anteriores trazendo os
conclusão de que não faz diferença
respectivos filhos e tendo filhos
para um ordenamento jurídico,
nessa nova união. Se a família
pautado na ética, a maneira como
passou a ser regida pelo princípio
a família se constitui. O importante
da afetividade, o tripé que sempre
é saber se ela é capaz de ser
esteou o Direito de Família, sexo,
fundante e estruturante da pessoa
casamento e reprodução, se
para torná-la um sujeito. Aí está
desatrelou. O casamento deixou
a essência da família e, por isso, a
de ser legitimador das relações
transhistoricidade. Fora daí serão
sexuais e os processos reprodutivos
variações em torno de um mesmo
ganharam outra dimensão com
tema. A multiplicidade de formas
a evolução biotecnológica. A
de família, aparentemente tão
sexualidade foi libertada pela
assustadoras e desorganizadoras
psicanálise, ao trazê-la para
das relações sociais, na verdade é o
a compreensão de que ela é
retrato da vida como ela é, e como
muito mais da ordem do desejo
as famílias vêm se adaptando à
que da genitalidade, como era
realidade. Até mesmo as crianças de
compreendida pelo Direito. E
rua e na rua reinventam os núcleos
assim, a livre expressão do afeto
familiares, reproduzindo e instituindo
e da sexualidade, autorizadas
lugares paternos e maternos.
pelos princípios constitucionais da dignidade, responsabilidade,
Para se entender o Direito de Família
pluralidade das formas de família,
contemporâneo é necessário separar
reconhece e legitima outras
dois tipos de formações familiares:
formas de famílias conjugais para
família parental e família conjugal.
além do casamento. As relações homoafetivas ganham legitimidade
Nas famílias conjugais a grande
e quebrou-se o monopólio do
reformulação se deu no século
casamento heteroafetivo. A
passado quando surgiu o casamento
jurisprudência e a doutrina,
por amor. A partir daí ela ficou
ao ponderarem o princípio da
menos hierarquizada e perdeu a
monogamia com o de dignidade
preponderância patrimonialista.
humana, prescreveram que não se
Como o amor às vezes acaba,
pode repetir as injustiças históricas
surge o divórcio. Afinal, casa-se
de ilegitimação de pessoas e
para ser feliz e separa-se em busca
famílias. E assim não se pode
30
condenar as famílias simultâneas
em bancos de sêmen e óvulos,
ou paralelas à invisibilidade e não
independentemente de ter parceiro
atribuir-lhes direitos.
ou não. Ficou mais fácil ter filhos, e cada vez mais desatrelado de uma
A Emenda Constitucional 66/10,
relação conjugal ou sexual.
proposta pelo IBDFAM, ajudou a consolidar os princípios da liberdade,
Uma nova revolução no Direito de
autonomia e responsabilidade das
Família está surgindo e situa-se na
famílias conjugais. Ela simplificou
categoria da família parental.
o divórcio, eliminando prazos e
São as parcerias de paternidade.
o inútil instituto de separação
Há pessoas que não estão
judicial. Com isso, acabou com a
interessadas em constituir uma
discussão de culpa, um dos maiores
família conjugal, ou em ter uma
sinais de atraso do ordenamento
relação amorosa ou sexual,
jurídico brasileiro. Procurar um
mas apenas uma família parental.
culpado pelo fim da conjugalidade é
Pelas redes sociais e sites de
prolongar o sofrimento e estimular
“parentalidade compartilhada”
a litigiosidade. Não há culpados ou
já tem sido comum homens e
inocentes. Por isso, substituímos
mulheres encontrarem alguém
o discurso da culpa pelo da
para compartilhar a paternidade e
responsabilidade.
maternidade, sem estabelecerem uma relação amorosa ou sexual.
Na família parental novas estruturas
No Brasil, já se materializava essa
também estão em curso, e não há
ideia, em pequena escala, por meio
mais filhos ilegítimos (Art. 227§ CR).
de contratos de geração de filhos.
As famílias monoparentais, isto é,
Se nas décadas anteriores já se
qualquer dos pais que viva com seus
constituíam as famílias parentais,
descendentes (Art. 226 § CR) já não
com as dificuldades e limitações da
escandalizam as tradicionais famílias.
criança não conhecer o doador do
Com os avanços da biotecnologia,
material genético, agora se faz um
o ato reprodutivo ficou desatrelado
upgrade nessas famílias parentais.
da sexualidade e também da
Seja lá como for, estamos diante de
conjugalidade. A partir da década de
um novo marco revolucionário na
1980, quem não pudesse ter filhos,
história das famílias, assim como
e não quisesse adotar, já poderia
foi revolucionário o casamento
recorrer às técnicas de inseminações
por amor, que destituiu a lógica
artificiais, útero de substituição
patrimonialista nas relações de
terceirizando gravidez (barriga de
família.
aluguel), busca de material genético
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Essas novas representações sociais da família, conjugais e parentais, podem causar uma grande estranheza, e certamente há quem pense que isso é o fim da família, como se falou em 1977 com a introdução do divórcio no Brasil. Para os pessimistas que acham que a família está em desordem ou crise, basta distinguir ética de moral, religião e Direito e constatarão que essas desordens não são novas, apenas se manifestam de formas inovadoras. A família foi, é e continuará sendo o núcleo básico e essencial de toda e qualquer sociedade e será sempre invocada e reivindicada como o único valor seguro. De uma forma ou de outra, ela é sonhada, amada e desejada por todas as pessoas indistintamente, de todas as idades, de todas as orientações sexuais, de todas as classes sociais.
34
UTOPIA E ESPAÇO URBANO: pensar o “mundo por vir” a partir da crítica radical do presente1 Marcos Gustavo Pires de Melo2
1 BREVE INTRODUÇÃO:
Arte e Política. O tema “Mundo por
vir”, a meu ver, não poderia ser mais
DIZER O MUNDO POR VIR
convidativo. Produzir um ensaio Parece-me oportuno iniciar o
para representar o que disse e o que
texto dizendo, por um lado, da sua
penso sobre o tema em um evento
natureza essencialmente ensaística
com essa temática é mais do que
e, por outro, sobre sua origem
simples capricho ou eventualidade,
derivada de uma apresentação
é uma escolha deliberada que
sobre o fenômeno da urbanização
me ajuda a compor o quadro
realizada na Unidade São Gabriel
argumentativo que se segue.
da PUC Minas, em agosto de 2015,
Espero que ao final essa escolha
em virtude da Semana de Ciência,
fique mais clara.
1
Este texto foi produzido a partir da apresentação oral realizada na SCAP 2015 na PUC Minas São Gabriel em uma mesa intitulada “O fenômeno da urbanização no Brasil”. O conteúdo do presente texto procura reproduzir o essencial dessa fala, incorporar questões surgidas durante o debate, mas também incorporar outras dimensões da problemática então abordada. No entanto, procura não extrapolar em demasiado a referenciada apresentação visto que seu escopo é o registro das discussões então desenvolvidas.
2 Graduado em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciência Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG) e mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (IGC/UFMG).
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36
Explicitar a origem oral do texto me
Ainda segundo Konder, a afirmação
permite um desvio tanto no formato
do discurso propriamente
quanto no conteúdo em relação
acadêmico, durante a Idade Média,
ao que normalmente encontramos
assumiu a forma do tratado,
diante dos chamados “artigos
mas é com Montaigne que o
acadêmicos”, tão cheios de normas
ensaio aparece como uma forma
rígidas e estruturas predeterminadas
alternativa. Para além da curiosidade
que os identificam e os legitimam –
histórica, importa-me destacar que
muito embora não possa me furtar
o ensaio enquadra-se num tipo
(talvez por força do hábito) a utilizar
de discurso marcado mais pelas
algumas delas.
incertezas do que pelas certezas,
Essa origem falada também me
mais pela recusa de conformação
permite defender um modo de dizer
do que pela adequação a um
que, por vezes, pode soar como
determinado padrão. O ensaio é uma
pouco rigoroso ou empiricamente
preparação, uma tentativa que, no
pouco fundamentado, mas que
entanto, não pretende por um ponto
guarda íntima relação com a
final à questão, dar o acabamento
vontade de construir outro lugar de
final; “[...] o ensaio assimila algo da
fala, outra possibilidade e posição de
liberdade de expressão aprendida na
narrativa (o que também evoca ao
arte, porém não é, a rigor,
gênero do ensaio). Isso me permite
um gênero artístico”.5 Nada disso
sugerir que este texto não se trata
significa, no entanto, falta de
somente de um discurso sobre a
método, de fundamentação ou de
utopia, mas, ele próprio, um exercício
rigor. Mas indica sim um espaço
utópico.
de experimentação, de suspensão temporária de certos padrões que
Explico-me um pouco mais, embora
parecem nos impedir de dizer aquilo
brevemente. Leandro Konder3 nos
que queremos dizer.
chama a atenção para o fato de que,
Significa, também, e talvez seja de
apesar de sua natureza humana e,
modo mais sintético, que o ensaio
portanto, falível, “[...] a fala atribuída
se presta menos à demonstração e
à Ciência sofra um processo de
mais à provocação. Nesse sentido,
fetichização, que a autoridade da
o ensaio pode ser defendido como
Ciência se torne intolerante, que
um gênero próprio a certo tipo de
a linguagem da Ciência assuma
utopia que defenderei aqui; como
por vezes um tom peremptório,
disse: utópico em seu conteúdo e
categórico, conclusivo”.
em sua forma.
4
3 KONDER (2005). 4 KONDER, 2005, p. 41. 5 KONDER, 2005, p. 44.
37
É curioso, no entanto, que a utopia,
construir uma imagem do futuro que
hoje e talvez sempre, ocupe uma
é uma reprodução mais ou menos
posição no mínimo ambivalente na
melhorada (progresso) ou mais ou
sociedade contemporânea.
menos ampliada (desenvolvimento)
Os limites do possível parecem cada
do presente, seja através de uma
vez mais alargados, especialmente
evolução técnico-científica, seja pela
quando consideramos as
realização ideal (ou idealista) da
possibilidades de realização técnica
organização social contemporânea.
e científica, mas ao mesmo tempo
Dentro dessa chave interpretativa,
ainda nos defrontamos com o uso
o mundo do “por vir” pode ainda ser
do termo “utopia” em um sentido
construído por meio da eliminação
pejorativo que indica algo irreal,
de elementos que impedem que o
irrealizável, algo que remete aos
presente funcione perfeitamente ou
inocentes e aos sonhadores sem
por meio da adição de apêndices
qualquer comprometimento com a
que “azeitem” o sistema atual que
realidade. Ser realista é o antídoto
passa então a ser equilibrado ou
da utopia e, de fato, mesmo nas
a estar apontado para a direção
alas políticas mais progressistas,
correta. Em geral, tratar-se-ia
utopia e ciência constituem um
apenas de uma correção de rumo,
par dicotômico. Dessa dualidade
ou desobstrução, de um processo já
podemos derivar maneiras através
em rumo (por mais fantásticas que
das quais pensamos o “mundo
pareçam as imagens apresentadas
por vir”, o “mundo de amanhã”.
desse futuro de perfeição).
Nesse registro, qual mundo está
Trata-se, para retomar as palavras
por vir certamente não é uma
de Boaventura de Sousa Santos6,
questão banal e nossa resposta,
de uma ampliação homogênea do
curiosamente, revela muito mais
futuro baseada em uma redução das
nossas considerações sobre o
possibilidades e epistemologias do
presente e suas condições de
presente.
prática, do que propriamente nossa visão do futuro. Isso nos ajuda a
Outra possibilidade utópica é
deslocar a questão da utopia,
aquela que deriva de uma crítica
que substancialmente e
radical do presente, de uma análise
tradicionalmente está ligada ao
crítica das (im)possibilidades
futuro, para destacar a dimensão
desse presente e do anúncio de
presente.
superação. A utopia aqui não está ligada à construção de sistemas,
Assim, por exemplo, podemos 6 SANTOS (2007).
de imagens ou da proposição de
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39
40
um programa bem definido de
Marx critica a utopia que não
soluções “práticas” para os principais
possui um senso de historicidade
desafios sociais contemporâneos.
das relações sociais e que, por
Não que essa forma de utopia
isso, não consegue penetrar na
esteja desinteressada pela solução
fonte daquilo mesmo que pretende
concreta das contradições da
superar, acabando por reproduzir
sociedade atual, mas porque propõe
o núcleo do que procura negar9,
um deslocamento da própria
ainda que superficialmente se
maneira de por as questões através
apresente com outra forma. O que
da postura crítica.7
está em jogo é uma utopia que se baseia na subversão da realidade
Aqui podemos propor uma
existente, subversão esta que deve
concepção de utopia que nasce
afetar a totalidade das esferas
justamente da crítica marxista à
sociais. A crítica, tanto de formas
própria utopia de sua época, ou seja,
utópicas conservadoras quanto do
a crítica de Karl Marx ao socialismo
real que pretende silenciar outras
utópico. Segundo Miguel Abensour ,
possibilidades utópicas, é o caminho
não é possível compreender a crítica
para explorar essa outra dimensão
de Marx se operarmos dentro da
da utopia.
8
oposição entre ciência e utopia, ou entre fantasia e realidade.
Saímos do campo da urgência
A crítica de Marx deriva, na verdade,
prática (não que essa seja menos
da produção de uma teoria da
importante, porque afinal de
história própria (cujo alicerce é a
contas é preciso viver o cotidiano,
crítica ao idealismo alemão) e da
por mais sufocante que ele seja),
afirmação de uma crítica radical dos
para o campo da experimentação,
fundamentos da sociedade burguesa
da ruptura, de novos modos
opondo, desde os textos da
de fazer e ser. Essa perspectiva
juventude, uma emancipação parcial
de futuro, na verdade, reflete
(meramente política) à emancipação
uma visão do presente – da sua
humana (social).
inevitabilidade ou não, o que
7 A própria adjetivação de crítica também mereceria alguma qualificação. Quase toda postura política hoje se diz crítica de algo; ser crítico aparenta ser uma forma de se adquirir legitimidade face ao confronto político com outra posição. A crítica aqui posta não é aquela que se restringe à oposição ou aquela que profere um julgamento externo, mas sim aquela que se põe como crítica radical, ou seja, aquela que procura ir à raiz dos problemas, que não se atém à superficialidade dos fenômenos e se interroga sobre as razões profundas da reprodução das contradições sociais. 8 ABENSOUR (1990).
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consideramos ser da natureza
existente nos discursos sobre
humana e o que consideramos ser
as contradições da sociedade
historicamente construído, do que
contemporânea, o que, por sua
pode ser superado, do possível e do
vez, não deixa de ter um impacto
impossível.
sobre a constituição dos próprios sujeitos. Essas narrativas também
O que está em jogo aqui nesse texto
definem nossa posição no mundo
é, portanto, e conferindo sentido
e nossas possibilidades e modos
às divagações anteriores sobre
de afetá-lo. Nesse sentido, gostaria
forma e conteúdo, uma análise das
de demarcar, desde já, que esse
formas sociais e das narrativas que
texto aponta para a dimensão
conferem legitimidade às falas e aos
política da nossa realidade, que
lugares de fala. Trata-se, portanto,
difere substancialmente de uma
de colocar em questão as narrativas
problemática submetida às questões
tradicionais e costumeiras sobre o
do sistema político ou da ciência
presente e sua transformação, sobre
política.
a possibilidade e impossibilidade
9 Miguel Abensour explica pormenorizadamente o que Marx critica como utópico (num sentido pejorativo): “Desde o início, Marx critica a utopia de um ponto de vista revolucionário: a seus olhos, a qualificação de utopia cabe a todo projeto parcial que ataca apenas as determinações secundárias de um fenômeno e deixa subsistir a essência. Aquilo que distingue para Marx a utopia não é o “demais”, o excesso, o extremismo, mas antes o “insuficiente”. Para fugir aos perigos dessa formulação quantitativa, o próprio da utopia não é sua heterogeneidade em relação à ordem existente, mas, ao contrário, sua homogeneidade. Marx designa como utópico todo projeto político-social que peque por defeito de radicalidade, e permaneça volens nolens no interior dos limites da própria ordem que pretende transformar. O projeto utópico não visa a uma transformação radical da sociedade, ele “deixa em pé os pilares da casa”: ele só efetua uma revolução parcial e não ataca os fundamentos da sociedade burguesa. Mais precisamente, segundo Marx, pode-se considerar utópica a vontade de transformar ou de suprimir apenas as formas fenomenais do capitalismo, deixando intacta a essência do capital.” (ABENSOUR, 1990, p. 32). Mais adiante, no entanto, ele adverte: “Daí a distinção cardeal, aparente e escandalosamente ignorada pela maior parte dos intérpretes, entre as utopias inventivas, criadoras, sob muitos aspectos, revolucionárias, e as utopias repetitivas, reprodutoras da sociedade burguesa. Essa linha divisória indica que a estrutura mesma da crítica, sua significação e a relação entre a teoria revolucionária e a utopia variam radicalmente segundo se considere uma utopia que seja apenas a sombra da sociedade existente ou, ao contrário, uma utopia que ofereça a expressão imaginativa de um mundo novo” (ABENSOUR, 1990, p. 33). Nunca é demais frisar, no entanto, que essa utopia imaginativa só pode nascer de uma crítica radical do presente e não somente da pura vontade idealista dos sujeitos – e de fato, põem em questão os próprios sujeitos, conforme argumentarei mais adiante.
42
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45
O julgamento de Sócrates que o
às normas e aos modos de fala
condenou à morte talvez seja o
daquele espaço. A advertência
evento mais emblemático da História
pode ser interpretada como uma
da democracia grega.10
ressalva contra o monopólio da
Muito pode ser ressaltado a partir
representação do mundo, ou seja,
dele, incluindo aqui as vicissitudes
como uma legitimação de outros
da democracia, destacadas
lugares de falas, de outros modos de
tanto pelos seguidores do nobre
ver o mundo e, consequentemente,
filósofo quanto por analistas mais
de outros sujeitos sociais.
contemporâneos. O que aqui me interessa é que no primeiro capítulo
O julgamento da racionalidade de
d´Apologia11, dedicado ao momento
uma fala ou de uma representação
de sua defesa, Sócrates, antes
do mundo são antes questões
mesmo de se ater ao conteúdo das
do campo da política do que do
acusações, procura convencer a
campo de uma suposta objetividade
plateia que o escuta – e o julga –
científica. O que falar, como falar
de que sua fala, apesar de não se
e quem pode falar o que, quando
enquadrar nos padrões da oratória
e de que modo são construções
do tribunal, é legítima.
sociais, políticas, históricas que, além de normatizar a maneira
Sócrates anuncia que se defenderá
considerada “legítima” de ver, falar
a sua maneira, tal como tinha feito
e atuar sobre o mundo, também
durante toda a vida nas feiras e
marginaliza outros lugares, outros
em outros locais públicos, e que,
modos de fala e, consequentemente,
apesar disso, não dirá nada além da
outros sujeitos. O silenciamento
verdade – porque a verdade foi o
da racionalidade de fala é uma
que ele sempre havia vivido – e que
das faces da negação da condição
a verdade será sua defesa. Podemos
de sujeito. Desse modo, o que o
dizer que Sócrates se apresentaria
não-sujeito vê, sente, diz e faz nos
e se defenderia concretamente
aparece como irracional, bárbaro,
tal como havia o feito durante
desnecessário ou, no limite,
toda a vida e não se submeteria
inexistente.
10 Gostaria de reconhecer e destacar aqui que o professor Sérgio Manuel Merêncio Martins foi quem primeiro me chamou a atenção, a partir dos seus estudos sobre a obra de Michel Foucault, para essa passagem do julgamento de Sócrates e para sua importância na análise da relação entre a legitimidade dos discursos e a legitimidade dos sujeitos de fala. Evidentemente que a interpretação desdobrada dessa indicação, bem como a ausência do estudo do próprio Foucault, é de minha inteira responsabilidade. 11 PLATÃO (1987).
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49
Não se trata apenas de um
Podemos agora propor uma
problema do uso das palavras
transposição dessa discussão para
ou dos conceitos corretos, como
a temática da urbanização, das
se tudo se reduzisse a uma mera
narrativas urbanas, dos sujeitos
disputa retórica que carecesse
urbanos e das mediações na
de um acordo prévio sobre os
produção do espaço urbano – em
significantes. Necessário atentar aqui
especial o Estado e o planejamento.
para a advertência de Jorge Larrosa
O desafio desse texto passa a
Bondía para quem “[...] as palavras
ser colocar, da maneira mais
produzem sentido, criam realidade e,
coerente possível, a problemática
às vezes, funcionam como potentes
urbana16 contemporânea em uma
mecanismos de subjetivação”.
dupla dimensão: utópica e crítica.
Dessa forma: “[...] também tem a ver
De maneira simples, este texto
com as palavras o modo como nos
põe em questão as narrativas
colocamos diante de nós mesmos,
convencionais sobre a questão
diante dos outros e diante do mundo
urbana – especialmente os efeitos
em que vivemos. E o modo como
sobre a determinação dos sujeitos
agimos em relação a tudo isso”.14
– procurando reafirmar o papel
E, portanto, “[...] a luta pelas
emancipador e utópico da crítica.
palavras, pelo significado e
Dentro dessa pretensão, demasiada
pelo controle das palavras, pela
ambiciosa, não é possível ir além do
imposição de certas palavras e pelo
que o destaque de alguns elementos
silenciamento de outras palavras
que, no entanto, já nos permitem
são lutas em que se joga algo mais
alterar sensivelmente o quadro de
do que simplesmente palavras, algo
discussão no qual se desenvolvem
mais que somente palavras”. Quanto
as principais disputas pela cidade
a isso, nada mais posso acrescentar.
contemporânea.
2 NARRATIVAS URBANAS:
Comecemos por sugerir que o
NECESSIDADE CRÍTICA,
espaço urbano é um campo de
POSSIBILIDADE UTÓPICA
expressão das contradições ligadas
12
13
à sociabilidade e à reprodução 12 13 14 15 16
BONDÍA (2002). BONDÍA, 2002, p. 20-21. BONDÍA, 2002, p. 21. BONDÍA, 2002, p. 21. Adota-se aqui a noção de “problemática” em acordo com pelo menos duas opções oferecidas por Claude Rafestin (1993), mas majoritariamente em acordo com a segunda: (a) um conjunto de problemas próprios a um tema; (b) modo próprio (perspectiva) de colocar um conjunto de problemas relativos a uma questão em particular.
50
do modo de produção capitalista
nosso imaginário (socialmente
(é sua dimensão espacial por
construído) quando falamos em
excelência), mas, ao mesmo tempo
utopias urbanas.19 A construção
e, por esse mesmo motivo, é
dessas cidades-modelo, entretanto,
também um campo de atividades
dependeria, na maioria dos casos,
criadoras, de produção de possíveis
de uma boa dose de vontade
heterogeneidades. O espaço
de sujeitos bem-intencionados
urbano afirma-se, dessa forma, como
e tecnicamente competentes
possibilidade utópica.
para solucionar nossos principais
17
dilemas. O desconforto não reside Apesar da depreciação
propriamente na existência das
contemporânea do pensamento
imagens, não reside tanto no efeito
utópico , a junção entre espaço
de deslumbramento e otimismo
urbano e utopia não é nenhuma
que elas geram, como se tratasse
novidade. A tragédia e o fenômeno
de um julgamento sobre a validade
urbano atingiu tal dimensão que
ou não das cidades serem desta ou
quase cotidianamente somos
doutra forma; o problema reside no
defrontados com imagens
que essas imagens nos escondem,
luminosas, tecnológicas e
deixam de explicitar, ou mesmo
harmônicas das cidades modernas,
mostram justamente com a intenção
sustentáveis e inclusivas do futuro.
de ocultar (exercendo assim um
O futuro hoje, mais do que nunca, é
papel ideológico).
18
representado em termos urbanos: prédios verdes com plantações
Dito de outra forma, a questão
em todos os andares, sistemas
não é tanto acreditar ou não que
de transporte rápido e eficientes
seja possível construir uma cidade
sob trilhos magnéticos, paisagens
ecologicamente sustentável,
biotecnológicas que combinam
altamente tecnológica, lúdica,
alta tecnologia e natureza, cidades
cultural, com serviços ao alcance
que brotam no meio do deserto,
de todos; a questão é o quanto
amplos espaços públicos e de lazer:
essas imagens nos permitem ou
todas essas imagens compõem
não efetivamente penetrar nas (im)
17 Podemos pensar essa capacidade de produção de heterogeneidades do espaço urbano a partir, por exemplo, do trabalho de Jane Jacobs (1970) que defende que as próprias impraticabilidades e possibilidades advindas da aglomeração urbana são responsáveis pela incrível capacidade criativa dos citadinos. Numa perspectiva diferente – e com a qual me alinho – Henri Lefebvre (1999) acredita na simultaneidade como próprio à forma urbana e na capacidade da produção de diferença (em oposição à diversidade própria do mundo das mercadorias) a partir da crítica da alienação da produção capitalista do espaço urbano.
51
possibilidades de sua realização.
urbanização e sobre os problemas
A questão é o quanto elas podem,
urbanos pode servir muito mais
na verdade, se tornar obstáculos
para tornar invisíveis não só as
que nos impedem de enxergar as
causas das questões urbanas, mas,
possibilidades da efetivação de uma
também, e como consequência,
sociedade urbana emancipada ao
para tornar invisível a existência de
colonizar justamente nossas formas
determinados sujeitos, para negar
de ler o presente e sonhar com o
sua condição de sujeitos (por seu
futuro; ao esconder – por detrás de
desvio da norma) ou mesmo para
propostas técnicas ou voluntaristas
colonizá-los no seu saber e fazer,
– a necessidade de superação de
lhes impondo as normas que devem
uma estrutura responsável pela
obedecer para que possam ser
reprodução das principais mazelas
mesmo reconhecidos como sujeitos.
urbanas. Uma determinada narrativa sobre a cidade, sobre o processo de
Podemos tornar isso um tanto
18 Parece-me evidente que essa depreciação deve ser compreendida dentro do esforço discursivo de legitimação de uma posição, e a consequente deslegitimação da posição oposta, através de um ocultamento da dimensão política do projeto defendido. Nesse sentido, utópico adquire o sentido, já aqui destacado, de irreal, de demanda impossível de ser realizada. Por isso, a qualificação do projeto político adversário como utópico encerra a discussão antes mesmo da entrada na arena da deliberação comum. Ao mesmo tempo, o projeto político dito “realista” procura esconder os próprios traços de incerteza, de contradição e, portanto, de indeterminação, ou seja, procura esconder a própria utopia e/ou as bases utópicas. Assim, não seria exagero dizer que aquele que defende que o amanhã provavelmente será uma expansão harmoniosa do hoje (e que a isso estamos fadados), se baseia numa utopia porque ignora as forças contrárias e as contradições que agem para que a reprodução do hoje seja, no mínimo, cercada de incertezas; ou aquele que crê que num amanhã diferente, mas ignora também as condições materiais e objetivas que concorrem para realização desse amanhã diferenciado também possui uma postura utópica, pecando, nesse caso, pela adesão a um idealismo injustificado (em seu sentido filosófico e não no sentido cotidiano que o aproxima do sentido pejorativo de utópico). Interessa sempre frisar como o conceito de utopia baseado na crítica radical do presente aqui proposto opera dentro de uma inversão dessas posturas pretensamente “realistas”, uma vez que se baseia não no ocultamento ou na esterilização da ação política, mas justamente na evidenciação e na proposta de superação das contradições postas. Não há fuga da realidade – seja pelo seu viés “realista” ou pelo seu viés “idealista” –, mas um confronto pleno com ela e que visa a transformação a partir das próprias contradições e possibilidades concretas. A crítica pretende justamente compreender essas contradições e evidenciar essas possibilidades que, apesar de concretas, podem (e são) ocultadas até mesmo por posturas “realistas” em torno da questão.
52
53
54
mais claro ao analisar como
na estrutura padrão, desde que
determinadas narrativas sobre a
fosse possível a atuação das forças
questão urbana são responsáveis
naturais de organização urbana.
por determinados diagnósticos e por
Uma versão contemporânea dessas
determinadas propostas de solução
formulações pode ser vista nas
que condicionam os modos de ser,
teorias de localização habitacional
estar e atuar na produção do espaço
intraurbanas que acreditam que as
urbano.
decisões de onde morar são fruto da maximização das preferências
A teoria convencional sobre
individuais de cada habitante
as cidades – conhecida como
sujeitas a modelos de equilíbrio
sociologia urbana da Escola de
de maximização das utilidades
Chicago
individuais.22 O que afeta a decisão
20
– foi responsável por
desenvolver uma narrativa –
é somente as preferências e as
caricaturalmente falando – que via
restrições orçamentárias. Fora isso,
a organização do espaço urbano
a escolha é considerada livre. Não
a exemplo de um ecossistema
há questões estruturais e a condição
equilibrado, como fruto das
dos sujeitos é fruto unicamente da
características próprias de cada tipo
própria escolha individual.
de agrupamento humano.21 Os desvios, nesse caso os
No Brasil, durante a década de
imigrantes, eram interpretados como
1950 e 1960, narrativas semelhantes
temporários e seriam incorporados
diziam que as favelas eram desvios
19 Não seria exagerado dizer que a mesma visão da tragédia urbana também é a fonte das principais distopias apocalípticas das cidades do futuro, mas, infelizmente, neste texto não será possível fazer a análise das principais distopias urbanas, muito embora sua crítica pudesse nos conduzir por caminhos semelhantes aos aqui tratados. Parece-me um tanto claro, no entanto, que as distopias e utopias urbanas – entendendo aqui a “utopia” ainda dentro dos limites estreitos dos seus sentidos rotineiros – diferem, na verdade, em relação a sua visão do presente: uma privilegia as possibilidades, projetando o futuro como uma evolução gradual do presente; enquanto a outra procura expor a crueza da realidade (muitas vezes ocultadas pelas próprias utopias) apelando para um superdimensionamento das mazelas contemporâneas. Como veremos, não há porque acreditar que aqui existe uma escolha moral entre uma visão dita “otimista” e outra “pessimista”; trata-se, na verdade, de reivindicar uma nova possibilidade de leitura do concreto – nas suas dimensões do presente e do futuro. 20 GOTTDIENER (2010). 21 GOTTDIENER (2010). 22 Para uma apresentação sintética desse tipo de argumento ver BASSET & SHORT (1980).
55
temporários da urbanização
seriam reproduzidos com o tempo,
brasileira, frutos de vícios a serem
como eram funcionais e integrantes
superados pelo desenvolvimento e
do considerado “moderno”,
modernização do país, um atraso a
“formal”. Assim, por exemplo,
ser ultrapassado pela incorporação
Lúcio Kowarick25, no seu clássico
paulatina ao modo padrão de
texto sobre a espoliação urbana
urbanização. Nessa narrativa as
da década de 1970, argumentou
favelas eram, no limite, um problema
que a produção de favelas não era
ecológico e foram tratadas – como
uma excrescência do modelo de
ainda por vezes o são – como tal:
crescimento econômico brasileiro
removidas da paisagem. Essa visão
da época, mas parte fundamental
é baseada naquilo que Francisco
dele ao permitir o rebaixamento dos
de Oliveira – assim como Milton
custos de reprodução da força de
Santos 24 – consagrou, em sua
trabalho através da moradia precária
crítica, como uma visão dualista
autoconstruída, explicitando uma
do fenômeno – uma vez que
das contradições urbanas do modelo
pressupunha que o “atrasado” e
de desenvolvimento econômico
o “desenvolvido” funcionavam a
brasileiro da época. A exclusão,
partir de duas lógicas distintas e
nesse caso, não era conjuntural, mas
desconexas.
estrutural.26 Se antes os favelados
23
não eram propriamente sujeitos, A concepção dualista previa que
mas apenas desvios à espera da
setores atrasados da economia
normatização, desvios à espera
seriam gradativamente incorporados
de integração para enfim receber
aos setores modernos num processo
a condição de sujeitos formais, se
de homogeneização social. No fim,
antes sua condição de não-sujeitos
tudo seria um desvio temporário,
era transitória, agora ela se afirma
uma anomalia passageira. A crítica
como estrutural e, sem pressupor
da razão dualista, pelo contrário,
uma ruptura radical com o presente,
enfatizou que todos esses “atrasos”,
permanente.
não somente permaneceriam e 23 OLIVEIRA (2003). 24 SANTOS (2008). 25 KOWARICK (1979). 26 Num exercício semelhante Milton Santos (2008) demonstrou como os setores ditos informais (circuito inferior) das economias urbanas periféricas eram parte articulada dos circuitos de circulação e reprodução dos capitais considerados modernos (circuito superior) e que entre ambos existia uma lógica não somente de dependência mútua como também de complementariedade – compondo um sistema particular do capitalismo periférico.
56
57
Anuncia-se então a possibilidade
em duas leituras bem distintas
– e mesmo a necessidade – de
da realidade urbana: uma que
uma narrativa crítica da cidade
não enxerga as contradições da
baseada que explicite a disputa
produção do espaço capitalista ou
contraditória entre interesses e que
que crê na sua mudança superficial,
coloque os excluídos não como
sem a devida superação das suas
sujeitos subordinados a um processo
determinações fundamentais; e
homogêneo de equilíbrio no qual
outra que se baseia na compreensão
todos aparecem como iguais, mas
dessas contradições e aponta
como um sujeito que se define a
para a necessidade da crítica e
partir da exclusão que lhe é imposta
transformação radical da totalidade
e cuja luta contra essa exclusão
social – incluindo aqui o difícil
não pode se dar sob a regência das
processo de transformação do
normas da estrutura que definem a
próprio modo de ser dos sujeitos no
própria exclusão.
mundo.27
Uma narrativa da cidade baseada
3 MEDIAÇÕES URBANAS:
em contradições politiza a
ESTADO, DIREITO,
questão, ou seja, a produção do
PLANEJAMENTO E A
espaço urbano não é uma questão
CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS
meramente técnica, mas política.
URBANOS 28
Não existe uma solução de equilíbrio, porque não existem somente
Podemos agora analisar outra
conflitos, mas contradições. Existe
narrativa urbana, mais concreta
uma disputa entre sujeitos que se
e contemporânea da realidade
afirmam justamente no momento
brasileira. Trata-se da narrativa
em que negam outros sujeitos,
acerca do planejamento urbano e do
outros direitos, outras formas de ser
processo de democratização recente
do mundo.
com o capítulo da Reforma Urbana de 1988 e a aprovação do Estatuto
Esse silenciamento, por vezes,
da Cidade em 2001.29 Essa narrativa,
não é puro e simples. Por vezes
na verdade, baseia-se em outra, mais
ele se dá através da imposição de
ampla, que diz respeito às relações
subjetividades, normas, lugares de
entre Estado e sociedade civil como
fala e de mediações as quais os
polos distintos da representação
atores devem se submeter para
do interesse comum, por um lado,
entrar em uma esfera de discussão
e do interesse particular, por outro.
de maneira considerada “legítima”.
A democracia, nessa narrativa, é
As duas utopias que se anunciam
entendida como uma modalidade
em disputa baseiam-se, portanto,
da relação entre esses dois polos
58
e o Direito como um mediador
Além de outra versão, um tanto
necessário não só na relação entre
mais sofisticada, da postura dualista
indivíduo e Estado, mas também
já mencionada (e padecendo de
entre os indivíduos.
falhas semelhantes), existem dois
27 Acredito que é fundamental aqui a advertência feita pelo professor Alysson Mascaro durante palestra intitulada “Responsabilidade civil do Estado e movimentos sociais” proferida no Tribunal de Justiça de São Paulo, na Escola Paulista de Magistratura em evento realizado no dia 1º de outubro de 2014 acerca da transformação dos sujeitos implícita no processo de emancipação social. Esclarece ele que a transformação da sociedade inclui, necessariamente, uma transformação das subjetividades e dos marcadores sociais tradicionais que usamos tanto para nos relacionarmos com os outros quanto para identificarmos nossa posição dentro da sociedade. A transformação da sociedade inclui o desaparecimento de determinados lugares sociais, de determinadas subjetividades, cabendo aos sujeitos o desafio de se adaptar e/ou criar novas subjetividades melhor adequadas para as novas relações sociais que pretendem construir. Assim, por exemplo, Mascaro vai dizer que a superação do Direito é também a superação da figura do jurista, a superação do machismo é a superação da figura do “macho” e, eu adicionaria, a superação da economia política é também a superação da figura do economista. A superação do modo de produção capitalista inclui também a superação de uma série de marcadores sociais que nos dizem o que podemos fazer, como podemos fazer, quanto o meu trabalho vale, etc. A destituição desses marcadores não é um processo simples, pois envolve a destituição de subjetividades com as quais nos acostumamos a ver e medir o mundo. Mesmo para aqueles que se encontram excluídos dessa ordem, é custoso conseguir imaginar o mundo sob outros parâmetros. A superação do capitalismo, nesse sentido, não deve ser vista apenas como a superação da figura do capitalista, mas, também, e principalmente, pela superação do proletário como aquele que só tem a força de trabalho para vender a fim de sobreviver. Outras relações demandam outras subjetividades e a superação do modo de produção não deixa de ser uma superação de nós mesmos. 28 Essa seção possui um desenvolvimento muito menor do que merecia e muitas questões aqui abordadas não poderão ir além da provocação. Isso se justifica pelas razões já apresentadas na introdução desse texto. No entanto, não posso deixar de recomendar tanto as leituras que fundamentam a posição aqui defendida como aquelas que possam esclarecer, ao leitor interessado no assunto, certos pontos da argumentação, muito embora não tenha nenhuma pretensão de esgotar a literatura sobre o assunto. Assim, para uma síntese panorâmica das teorias do Estado capitalista e das discussões que as envolvem ver Mollo (2001) ou Clark & Dear (1981). Sobre a crítica do Estado e uma primeira aproximação da problemática derivacionista – com a qual me alinho em grande medida – ver, principalmente, Mascaro (2013). Sobre elementos da crítica do Direito e do sujeito jurídico, ver Pachukanis (1988) e Alves (2015), para um interessante desenvolvimento recente acerca do “comum”. Para os desenvolvimentos seminais da ideia do Estado como uma abstração dos sujeitos reais ver Marx (2010a, 2010b). Outros desenvolvimentos próprios sobre a questão das abstrações da forma política e da forma jurídica podem ser encontrados em Melo (2014, 2015).
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pressupostos dessa narrativa, dos
tinha como objetivo combater a
quais partem majoritariamente as
prática da especulação com a terra
discussões sobre a democratização
urbana – que onerava o poder
do planejamento urbano no
público ao deixar ociosas terras com
Brasil, que podem ser colocados
infraestrutura urbana já instalada
em questão quando estamos
– submetendo-a, sob a pena de
preocupados com as subjetividades
desapropriação, a exercer uma
impostas e consideradas legítimas
função social. Com isso, procurou-
quando se discute as questões
se hierarquizar e harmonizar o
urbanas e o futuro das cidades,
interesse privado com o interesse
ou seja, quando queremos
público, utilizando-se da figura do
compreender como os sujeitos
Estado e da mediação do Direito.
precisam se apresentar diante do
Caberia ao planejamento – o mais
processo de produção do espaço
democraticamente possível –
para serem considerados como
determinar quais terras deveriam
sujeitos. De maneira curta esses
exercer quais funções e ao poder
pressupostos são: (a) o Direito é um
público fiscalizar e punir. Existira
mediador neutro e impessoal que
assim uma prevalência do interesse
regula as relações sociais de maneira
público que limitaria o interesse
imparcial e justa; (b) o Estado é o
privado sobre a terra urbana através
espaço da construção e da proteção
da figura do Estado.
do interesse coletivo que supera e não se restringe à representação
Percebe-se assim a criação de um
dos interesses particulares – e essa
dualismo, entre interesse privado
função é tão melhor desempenhada
e interesse público (teoricamente
quanto mais o Estado for
distinguíveis), no qual o interesse
democrático.
público seria regido por uma racionalidade política superior, em
Tomemos a discussão acerca da
prol do bem coletivo, ou como uma
função social da propriedade.
razão técnica, mas sempre na figura
Grande parte do movimento
do Estado como grande guardião.
nacional pela reforma urbana
Comum, público e Estado coincidem
pautou-se (e ainda se pauta) numa
nessa narrativa. É interessante
relativização da propriedade privada
notar como ela é adotada tanto
do solo urbano condicionando-a
pelo ideário político ligado a uma
à função social. Essa relativização
tecnocracia-centralizadora quanto
29 O resgate pormenorizado dessa história não cabe no escopo desse texto, mas pode ser encontrado no trabalho de Silva (2003). Uma avaliação mais recente pode ser vista em Fernandes (2013).
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como pela esquerda intelectual
de um Estado capitalista; ou que
urbana que polarizou os movimentos
não se trata de um Direito, mas de
sociais urbanos da década de 1980
um Direito burguês. Nesse sentido,
– através da ideia de recuperação de
o chamado “interesse público”
mais-valias fundiárias.
estaria primariamente submetido às necessidades de reprodução
De certa forma, ainda é consensual
tanto do capital em particular
a necessidade de um controle,
quanto do modo de produção em
exercido pelo Estado, das forças
sua totalidade. Dizer que o Estado
de mercado responsáveis pela
é capitalista, muito embora seja
produção do espaço urbano, criando
verdade, não resolve por completo
expectativas que esse controle (por
a questão, pois não explicita
um lado mais técnico, e, por outro,
exatamente como o Estado (ou o
mais democrático e participativo)
Direito) mantém, ao mesmo tempo,
fosse suficiente para o combate à
um caráter pretensamente universal
segregação e às mazelas urbanas.
e uma realidade capitalista. Ou
Não por acaso, a redemocratização
seja, muito embora se possa dizer
do Estado brasileiro foi um período
que o Estado é capitalista porque
de grandes esperanças para os
age concretamente em nome de
pensadores que defendiam uma
interesses particulares que reforçam
distribuição e um acesso mais justos
a valorização ampliada do valor
às amenidades urbanas.
– e no caso do Estado brasileiro chegamos a situações limites como
A realidade permanece outra.30
na frase de Marx e Engels em que
Já se tornou clichê entre os
“O executivo no Estado moderno
teóricos da esquerda encerrar
não é senão um comitê para gerir
essa questão simplesmente com
os negócios comuns de toda a
a afirmação de que não se trata
classe burguesa”31 não parece de
simplesmente de um Estado, mas
toda desprovida de realidade –
30 Após quase 15 anos da aprovação de um moderno marco legal para a intervenção do Estado na produção do espaço urbano – que é o Estatuto das Cidades – e de importantes avanços jurídicos e políticos, ainda avançamos muito pouco e observamos cada vez mais o que alguns descreveriam como “maus usos” dos instrumentos – concedendo a estes uma neutralidade técnica. Certamente existem inúmeros fatores que contribuem para isso. Alguns autores insistem na necessidade de uma força social que pressione o poder público à “correta” utilização do avançado marco jurídico, outros destacam a baixa capacidade técnica de municípios para aplicação dos instrumentos, outros ainda irão propor revisões no próprio arcabouço jurídico de modo a melhorá-lo e torná-lo mais adequado à realidade brasileira. Sem dúvida todas são questões pertinentes, mas pretendo pressionar o argumento em outra direção.
63
isso não nos diz muito nem sobre
Novamente aqui a ambição é
o processo de reprodução dessa
grande, mas gostaria de sugerir
lógica sob uma forma reificada
brevemente, embora incisivamente
(que nos faz acreditar que o fato do
e dentro dos limites desse texto,
Estado ser capitalista é um resultado
que a própria natureza do Estado
conjuntural das forças políticas,
e do processo de constituição das
reforçando a pretensa universalidade
subjetividades políticas modernas
ideal) e muito menos sobre a
consideradas legítimas para a
subjetividade política imposta por
constituição desse “interesse
essa forma social – que é minha
público” são responsáveis por
principal preocupação aqui.
isso. Ou seja, esse é um problema estrutural do Estado, mas que é
O objetivo é tentar compreender
funcional à reprodução do modo
– sem abrir mão da natureza
de produção capitalista, de maneira
capitalista do Estado, mas
que a superação dessa condição
procurando justamente esmiuçá-
não deixa de se confundir com uma
la – como, sob a forma política
crítica social mais profunda e radical
moderna, os sujeitos se apresentam
e nem com um projeto político
e interagem na esfera pública e
emancipador mais amplo.
produzem certo tipo de “interesse público” que só idealmente
Para facilitar a resposta, o
pode levar essa nomenclatura.
problema pode ser colocado da
Mais do que isso, por que esse
seguinte maneira: como formar
“interesse público” meramente
um “interesse público consensual”
ideal permanece legítimo e não
em uma sociedade cuja marca
altera a natureza mesmo quando,
é a contradição? Ou seja, numa
na concretude, percebemos o
sociedade em que a afirmação
beneficiamento de certos grupos
da ordem material é baseada na
e lógicas que reproduzem a
exclusão de determinados sujeitos,
exclusão socioespacial. Por fim,
como é possível que se possa
ou dito de outro modo, por que
advogar em prol do surgimento
os sujeitos excluídos encontram
de uma razão pública? O Estado
tanta dificuldade em trazer suas
moderno responde a essa pergunta
demandas reais para a esfera pública
de uma maneira muito específica:
e fazer com que parte do “interesse
através da abstração das condições
público” coincida com a superação
reais dos sujeitos, esse é o segredo
da sua condição sempre reposta de
do Estado.
exclusão? 31 MARX; ENGELS, 2005, p. 42.
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É nesse processo que ele pode dizer da igualdade de todos os cidadãos (e aqui temos uma transformação importante, a transformação do sujeito social em sujeito político) e a partir daí, a partir desse ponto de vista, pode advogar uma razão política superior e consensual entre
existam politicamente é que eles sejam invisíveis: isto é, que eles encontrem um símbolo ideológico viável no espaço político que os escamoteie e negue. Todavia, uma vez que os interesses sociais assumem uma forma-política, eles passam a existir conforme os princípios e a lógica desse espaço.32
todos, fruto de um acordo entre iguais, livre da força e da opressão.
No planejamento, esse processo
Para entrar na discussão pública o
de abstração aparece sob outras
sujeito não pode aparecer tal como
formas reificadas: os sujeitos
ele é, mas deve pagar um pedágio
concretos são substituídos por
e se submeter às subjetividades
relações entre lugares (centro/
políticas abstratas, deve se despir da
periferia, centralidades, espaços
sua concretude. As particularidades
de revitalização), as relações
reais, as determinações particulares
socioespaciais que remetem à
e concretas dos sujeitos estão, por
totalidade social são reduzidas
definição, excluídas da racionalidade
a categorias técnicas absolutas
que determina o chamado “interesse
(zoneamentos, coeficientes de
público”, são consideradas ilegítimas
aproveitamento). Ou seja, as
na ótica e na racionalidade própria
relações espaciais entre sujeitos
do Estado. Assim, os sujeitos
concretos são substituídas e,
concretos não aparecem no Estado
portanto, mistificadas em sua
senão sob uma forma reificada:
natureza, por relações entre
Nesse contexto, poderíamos dizer então dos interesses econômicos das classes, que o seu espaço de aparecimento (o seu “teatro”, para manter a metáfora) é igualmente o espaço do seu desaparecimento – ou mais propriamente, dos seus aparecimentos sob uma forma reificada: partidos políticos sem base social, políticos que representam a si mesmos, ações legislativas compreendidas em função de seus próprios fins etc. Logo, a condição para que os interesses econômicos das classes
32 CODATO, 2011, p. 158.
categorias espaciais reificadas e as soluções para os problemas são postas como solução para o espaço. A relação estrutural entre a constituição de uma favela ao lado de um condomínio fechado de luxo – que remete à totalidade da produção do espaço urbano capitalista – é substituída por um zoneamento residencial que é vizinho de uma Zona Especial de
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Interesse Social. A contradição é
A negação do cidadão abstrato,
esterilizada e aparece sob a forma
no entanto, pressupõe a crítica da
de um conflito que poderia ser
ordem cuja continuidade depende
resolvido numa discussão bem
da existência e da imposição dessa
comportada e racional sobre os
subjetividade reificadora para se
limites de ambas as zonas. Qualquer
afirmar e se manter. Nesse momento
discussão sobre a dinâmica da
final do ensaio-provocador aqui
produção de um espaço urbano que
apresentado, gostaria de tecer
pressupõe a exclusão permanece
breves comentários sobre a
fora dessa arena, bem como os
aproximação entre uma atividade
sujeitos que procurem colocar a
política – que envolve a crítica
questão nesses termos.
radical do presente –, uma concepção renovada de democracia
É preciso aparecer com certa
e a tão famigerada insurgência. Para
roupagem abstrata para ser legítimo
fazê-lo, vou me apoiar e desdobrar
de fala – e deve se falar nos termos
o argumento a partir da construção
corretos, pois só assim os “cidadãos
teórica proposta por Jacques
livres e iguais” podem constituir
Rancière. 33
um “interesse público” livre das interferências particulares e manter
A essa altura deve estar claro que
o teatro que, na verdade, possibilita
a insurgência é fruto do caráter
ideologicamente a reprodução
contraditório de uma ordem que
da exclusão estrutural. Tratar a
não consegue se afirmar sem
cidade como uma questão política
determinar a exclusão de parte
é reconhecer que por detrás da
de um grupo social. Ou seja, a
produção que se apresenta como
insurgência, como reação a essa
técnica, inevitável, legal, existe um
exclusão estrutural, também não é
conflito de classes contraditórias.
conjuntural. A insurgência, como um grito contra essa ordem excludente
4 DA NEGAÇÃO DO SUJEITO
e não somente um grito contra o
REAL À INSURGÊNCIA COMO
fenômeno da exclusão, não ressoa e
ATO POLÍTICO DEMOCRÁTICO
não encontra momento de resolução nem através da política moderna (na
O cidadão abstrato não nos serve.
figura do Estado e do Direito) nem
Não nos serve porque impede
na figura da democracia moderna
que as contradições da produção
(também subordinada às abstrações
do espaço urbano apareçam
impostas pela esfera política).
politicamente como contradições. 33 RANCIÈRE (1996).
69
A insurgência não pode ser resolvida
o “comum”, o “público” que
por uma simples inclusão à ordem
aparece de forma tão majestosa
existente, pois essa inclusão é
nos discursos políticos, não
estruturalmente, e por definição,
é exatamente nem realmente
impossível. Nesse sentido a
“todos” nem “nós”. O insurgente
insurgência é uma crítica não só
é a lembrança de que, no real,
às formas políticas modernas, mas
alguém está sistematicamente e
também à própria democracia
estruturalmente excluído. É um
moderna; essa crítica pode ser
desafio à fábula consensual.
resumida da seguinte maneira:
Que os insurgentes a cada momento
nossos regimes só conseguem se
tenham ou não plena consciência de
definir como democráticos porque
tudo isso, é outra questão –
são baseados em uma igualdade
que não terei tempo de desenvolver,
e em uma liberdade abstratas,
mas arrisco dizer que os
apoiadas na figura política do
movimentos sociais urbanos à
cidadão, enquanto na materialidade
esquerda recentes, desde 2013,
se reproduz a desigualdade e a falta
já começam a resgatar a crítica
de liberdade das classes.
do Estado como elemento de dominação e não de emancipação,
A insurgência, no meu modo de ver,
difundindo uma saída que seja não
é o momento em que esses atores
somente por fora do Estado como
subordinados, esses sujeitos feitos
também contra o Estado.
invisíveis ou sobre os quais são impostas subjetividades que não os
A grande dificuldade das
representam (que não dão vazão ao
insurgências, nunca é bastante
que demandam) afirmam presença
frisar, é que sua demanda não pode
e exigem condição de existência.
ser atendida satisfatoriamente
Hoje, cada vez mais, essa exigência
pelos meios que existem e por isso
tem não só como palco, mas
elas continuam – e continuarão –
também como objetivo, o próprio
acontecendo. Não são demandas
espaço urbano. A insurgência se
que podem simplesmente serem
dá contra uma exclusão que se
absorvidas pela estrutura, porque a
efetiva no/pelo espaço urbano, uma
própria lógica da estrutura real,
exclusão produzida pela própria
o movimento concreto dessa ordem
lógica da produção do espaço
é que define sua exclusão. É aqui
urbano capitalista.
que o insurgente se aproxima de um sentido um tanto esquecido de
O insurgente é a voz que diz
demos, o sujeito da democracia,
que o “todos”, o “povo”, o “nós”,
que Rancière recupera tão bem34 ao
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lembrar que a democracia é, antes
de questionamento do próprio modo
de tudo, um escândalo contra a
de ser da comunidade grega que
visão de que é natural a existência
definia sua exclusão.
de títulos para governar.
35
Rancière vai propor uma A democracia grega foi marcada
ressignificação da política, a partir
justamente pela negação de que
da noção de dissenso, que se
exista uma ordem natural de
desprende dos sistemas políticos e
governo, transformando a questão
enfatiza como político justamente
do poder em algo a ser socialmente
os momentos de ruptura que separa
discutido e determinado. Pode-
duas ordens distintas, dois modos
se dizer que nossa democracia
possíveis de ser da sociedade:
também se caracteriza pela
A política não é em primeiro lugar a maneira como os indivíduos e grupos em geral combinam seus interesses e seus sentimentos. É antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível.37
ausência de títulos para governar, porque teoricamente não existe nenhum obstáculo à apresentação de candidaturas. Mas é importante observar que o movimento de questionamento dos títulos políticos para governar, na Grécia antiga, equivalia a um questionamento da estrutura social como um todo – uma vez que na Grécia antiga não existia essa separação entre ordem política e ordem econômica, ambas se equivaliam36. Ou seja, por detrás do questionamento do demos existe
Ele então sugere outro lugar ao que tradicionalmente entendemos como política, produzindo um quadro conceitual útil (de diferenciação entre política e polícia) para as últimas considerações deste texto:
um movimento político mais amplo
Minha hipótese supõe portanto uma reformulação do conceito
34 “O demos não é apenas a parte que se identifica ao todo. É parte que se identifica ao todo exatamente em nome da injustiça que lhe é feita pela “outra” parte: por aqueles que são alguma coisa, que têm propriedades e títulos para governar” (RANCIÈRE, 1996, p. 371). 35 Apesar da democracia moderna não possuir formalmente títulos naturais para governar – como a monarquia ou a aristocracia – sabemos que ela está assentada em uma determinação concreta (o modo de produção capitalista) que possui títulos materiais para governar (o capital, a capacidade de comandar o movimento das mercadorias) e que afronta e nega essa determinação formal (abstrata). 36 Sobre essa separação, ver Mascaro (2013). 37 RANCIÈRE, 1996, p. 368.
73
de política em relação às noções habitualmente aceitas. Estas designam com a palavra política o conjunto de processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar a esse conjunto de processos um outro nome. Proponho chama-lo de polícia, ampliando portanto o sentido habitual dessa noção, dandolhe também um sentido neutro, não pejorativo, ao considerar as funções de vigilância e de repressão habitualmente associadas a essa palavra como formas particulares de um ordem muito mais geral que é a da distribuição sensível dos corpos em comunidade.38
A polícia não se resume simplesmente às atividades de gestão e comando, mas também à definição do campo no qual esse poder se exerce e define o que é possível ou impossível, quem é competente ou não. Ou seja, determina as possibilidades de ação de uma determinada sociedade, bem como a posição de seus membros. A perturbação dessa ordem (através do dissenso) é o que caracteriza a prática da política que, a exemplo do demos e dos insurgentes, é aquela que opõe ao recorte do mundo sensível atual um outro modo de 38 RANCIÈRE, 1996, p. 372. 39 ABENSOUR (1998).
ser possível de sociedade na qual a exclusão em questão não mais exista, de modo a interromper uma “lógica de dominação supostamente natural, vivida como natural”. Mas isso demanda uma mudança que altera estruturalmente ambos os lados: dos excludentes e dos excluídos; nada pode permanecer o mesmo, sob a pena de nada efetivamente mudar. Aqui posso me permitir retomar: a atividade política é um momento utópico que nasce da negação crítica radical do presente. E, se entendermos a democracia como um movimento de inclusão política concreta (e não meramente abstrata) daqueles antes estruturalmente excluídos, nada mais democrático do que o movimento insurgente de crítica da ordem e das subjetividades excludentes do Estado e do Direito modernos. A democracia, na sua forma insurgente, é contra o Estado.39 5 PROVOCAÇÃO FINAL:
TRAGÉDIA URBANA, UTOPIA
E EMANCIPAÇÃO
Posso agora concluir sugerindo o que já anunciei antes, mas agora de outra forma. Gostaria que a seguinte provocação permanecesse não como verdade acabada e absoluta, mas como contraponto importante
74
a ser sempre considerado: o
forma de ver e intervir no mundo
planejamento urbano é uma
que distorce nossa compreensão
racionalidade policial (derivada da
do fundamental da problemática
racionalidade policial do Estado e
urbana: não só a pobreza e a
do Direito), ou seja, é responsável
exclusão na sua manifestação
por um determinado recorte sensível
espacial mais nua e crua de amplas
do mundo urbano, uma maneira de
parcelas da população (o que talvez
organizar, ordenar, diagnosticar as
não passe de um sintoma), mas de
questões urbanas, dizer do possível
uma miséria urbana mais profunda e
e do impossível das possibilidades
que diz respeito a todos nós.
da cidade. Uma exclusão urbana que não Tudo isso blindado por um
se limita simplesmente à falta de
saber competente técnico e
infraestrutura urbana, à falta de
jurídico, legitimado por um ideal
moradia, ao morar distante, ao não
republicano do bem comum, mas
ter acesso às amenidades culturais
que, na sua realidade material,
e de lazer etc. Certamente envolve
não controla e nem questiona os
tudo isso. Mas uma exclusão urbana
principais processos de produção
que talvez seja mais bem entendida
do espaço urbano que definem a
através do conceito filosófico de
exclusão. No fundo, ele autoriza
alienação – efetivado na sociedade
uma forma possível de produção
capitalista através do fenômeno do
do espaço – que é historicamente
fetichismo da mercadoria. A questão
determinada e específica – como
é que os homens são alijados de
a única possível, ao mesmo tempo
uma mediação importante deles
em que desautoriza e deslegitima
com o mundo e deles uns com os
outros modos possíveis de
outros.
produção e apropriação da cidade, especialmente aqueles que podem
A questão é que a cidade, que
ser particularmente perturbadoras
pode ser obra e potência de
da produção e circulação de
criação do homem, a maneira
mercadorias da/na cidade.
pela qual o homem se põe no mundo, se encontra capturada pela
Por esse motivo talvez seja relevante
lógica da produção e circulação
considerar o planejamento não
da mercadoria. O planejamento,
como panaceia para os problemas
ao reificar o espaço e ao tornar
urbanos – e essa é, normalmente,
invisíveis outras possibilidades de
nossa primeira impressão,
produção do espaço urbano, só
nossa primeira demanda: “mais
reforça essa tendência.
planejamento” –, mas como uma
75
Nesse sentido, só para recuperar
fazendo do futuro das cidades, num
rapidamente o pensamento de
sentido ontológico, o nosso próprio.
Henri Lefebvre
Assim, a questão da problemática
40
(que é um nome
essencial para toda discussão do
urbana não pode ser desconectada
urbano contemporâneo), a cidade
da questão geral da emancipação
se transforma em produto e não
humana – tanto na forma quanto
em obra. À semelhança do que
no conteúdo; não se tratando de
acontece com o trabalho, a cidade
uma questão da superficialidade
– mediação fundamental entre os
do fenômeno espacial, mas uma
homens e o mundo, realização social
ligada à essência das relações
coletiva por excelência – encontra-se
socioespaciais. Somente nesses
subordinada à lógica da mercadoria
termos – que assumem as
e à exclusão inerente a esta; não
contradições e o desafio imposto
sob o controle e para realização dos
por elas – podemos reconhecer
homens, mas controlando-os como
concretamente, utopicamente,
uma força externa a eles. A miséria
radicalmente e urbanamente
urbana – em dimensões diferentes
imaginada a questão do “mundo
– atinge também aqueles que
por vir”.
teoricamente fazem parte da cidade,
40 A referência um tanto apressada, e no apagar das luzes, ao filósofo francês Henri Lefebvre não deve enganar o leitor. Ainda que não explicitamente citado – uma vez que a apresentação de sua obra demandaria um esforço que excederia em muito o escopo desse texto – o pensamento de Lefebvre percorre toda a problemática aqui tratada. Dos muitos aspectos da sua obra – incluindo a elaboração de sua teoria da produção do espaço (LEFEBVRE, 1993) – gostaria de aqui destacar que Lefebvre (1999, 2001) é responsável pelo desenvolvimento de uma teoria revolucionária urbana que, a partir da crítica da redução da problemática urbana levada a cabo pelas ciências parcelares e pelo urbanismo, propunha o urbano tanto como realidade fenomênica (produto da industrialização capitalista) quanto como possibilidade utópica, como virtualidade a ser construída. Acreditava, assim que o urbano poderia ser meio (através das suas possibilidades de encontro e simultaneidade) e finalidade de um projeto emancipador renovado que incluía a crítica da vida cotidiana, a crítica do Estado, a crítica da alienação e a crítica do capital. Nesse sentido, a própria possibilidade de se pensar o urbano como utopia que nasce da crítica radical remete, primeiramente e explicitamente, ao pensamento lefebvriano (e eu não gostaria que fosse interpretado de outra forma).
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APRENDER A VER O MUNDO E PRODUZIR A VERDADE José de Anchieta Corrêa1
INTRODUÇÃO
Surge, então, a necessidade do homem de nossos dias
O homem contemporâneo assiste
de reaprender a ver o mundo
a uma verdadeira mudança em sua
para tornar-se um homem
vida, tanto na produção do saber
contemporâneo. Sujeito capaz de
quanto na construção de si mesmo
entender seu tempo e trabalhar em
como sujeito. Necessita reaprender
busca de respostas às questões por
a ver o mundo e produzir a
ele colocadas.
verdade. Mudança em grande parte promovida pelo avanço das ciências,
A rigor, não é mais possível repetir
seja no domínio da natureza, seja
ideias do passado, ideias que, se
no domínio da vida pessoal e
permitiram a compreensão de
social. Mudanças que criam novos
outros tempos, hoje já não são
conceitos e produzem novos objetos
mais vigentes. Modos de pensar e
e utensílios. Tal situação provoca
ver o mundo, recebidos através de
o nascimento ou a mudança de
uma tradição concebida como uma
valores e comportamentos humanos
herança cultura H a ser conservada
já estabelecidos.
e repetida, mesmo que não mais
1
Doutor em filosofia pela Universidade de Louvain, Bélgica. Professor de Filosofia da UFMG, aposentado. Primeiro Presidente do DCE da PUC Minas.
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respondesse às exigências e às
segundo a qual existe uma realidade
questões do novo tempo. Todavia,
exterior, determinada, independente
o termo latino tradere - tradição
do conhecimento que dela se possa
- nos remete muito mais ao ato
ter. Nessa perspectiva realista,
de entrega do saber antigo para
o conhecimento verdadeiro estava
transformação, do que convite à
inscrito nas coisas e resultaria da
repetição e manutenção desse saber.
correspondência entre nossos juízos e essa realidade. Semelhante modo
O saber, fato histórico e contingente,
de produzir a verdade permanece,
necessita estar sempre em aberto,
está presente em nossos dias,
sempre sujeito a retificações,
quando buscamos conhecer a
reclamando ser re-inventado a cada
resistência do aço, ou avaliar a
momento histórico. As verdades
pressão arterial de um paciente.
ditas eternas, mesmo as de origem religiosa, por sua vez, não se
No advento do Renascimento
apresentam congeladas, mas vivas
(séculos XV e XVI), inaugura-se
animam em direção a qual se deve
outro modo de pensar o mundo
caminhar, sujeitas, pois, a assumir
que tem na destruição galileana
a marcha dos passos requeridos
do Cosmos e no aparecimento da
por esse caminho. As verdades,
inteligibilidade mecanicista sua
nascidas em um tempo, são assim
expressão mais relevante.
contaminadas pelas vicissitudes
Ocorre então uma inversão da
da história, interpeladas pelas
perspectiva realista.
vicissitudes e pelas perguntas
A problemática da produção da
que os novos tempos colocam
verdade vai se mover não em torno
para o homem. A tal ponto que a
do objeto, mas em torno do próprio
própria palavra “verdade” assume
sujeito do conhecimento.
conotações diversas através dos
Em um sentido ontológico,
tempos.
tal inversão equivale à redução da matéria ao pensamento ou ao
Entre os gregos, na Antiguidade,
espírito. Nos tempos que sucedem
para falar da verdade se dizia
ao Renascimento, o modo de pensar
aletheia significando o ato de
o mundo e a si mesmo está centrado
descobrir, tirar o véu das coisas para
no principio cartesiano do “penso,
encontrar o significado nelas inscrito.
logo sou”.
Estamos, pois, em um tempo sob o primado do mundo e das coisas
Agora o mundo está dentro de nós.
diante de nós.
A verdade, então, reside no interior
Com razão, a concepção filosófica
do homem. É uma construção
dominante é o realismo, teoria
do espírito. Daí a prevalência do
85
conhecimento independente da
complexos conhecimentos físico-
experiência sensível. Não se trata
matemáticos, sua alegria não teria
mais de um desvelamento das
medida, ele morreria pela segunda
coisas, de uma aletheia, mas de
vez.
produzir pelo espírito, pela razão, a verdade. Agora para falar da
O fim do século XIX vai abrir
verdade se diz verum facere.
caminho para um novo tempo
Traduzindo literalmente tem-se
que se chamará Modernidade.
“fazer a verdade”, verificação através
Em síntese, isso se dará com o
de conhecimentos a priori, ou seja,
aparecimento dos chamados
independentes da experiência
mestres da suspeita: Freud, Marx
sensível, tais como os raciocínios
e Nietzsche. Pensadores que vão
matemáticos. Esse processo ou
colocar em xeque as certezas do
método será essencial na construção
racionalismo e inaugurar um novo
e no progresso do saber científico. O
tempo. Freud, pela descoberta
critério de verdade, o conhecimento
da instância do inconsciente,
do mundo e das coisas, será
demonstrando que “o lugar onde
obtido, preferencialmente, através
o eu pensa estar, lá ele não está”,
de análises e/ou avaliações
precisando, pois, se dar conta dos
matemáticas.
conteúdos não presentes no campo atual da consciência.
Tal procedimento, sob a forma de dados matemáticos e estatísticos,
Marx, levantando a suspeita de que
tenderá a dominar também o
a razão humana só pode atingir a
mundo dos comportamentos e atos
verdade dando conta do fato de que
humanos. Nesse campo, todavia,
a origem das ideias estaria relativa
mostrará toda sua fragilidade.
na base material da sociedade,
Essa concepção filosófica do
isto é, dependeria das estruturas
mundo e do conhecimento vai se
econômicas e das relações de
chamar Idealismo. A crença no
produção.
valor e na certeza desse modo de conhecimento e produção da
Nietzsche, fazendo imperar o
verdade é tamanha que o filósofo e
relativismo na produção da verdade
cientista Blaise Pascal (1623-1662),
com seu famoso aforismo:
autor dos famosos Pensamentos,
“não existem fatos, mas
escreverá estar convicto de que
interpretações”. Agora, na
pelo “espírito irei até as estrelas”.
modernidade, o mundo não se
Vivesse ele em nossos dias, quando
apresenta diante de nós, nem muito
o homem pousou na lua sustentado
menos dentro de nós, mas o mundo
pelo exercício da razão, usando seus
está ao redor de nós. Não há como
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olhá-lo de frente, objetivamente,
com os quais trabalha a psiquiatria
como diante de nosso nariz.
– maníaco, obsessivo, depressivo,
Nem deduzi-lo como dentro de nós,
catatônico, esquizofrênico,
como pura representação,
homossexual, histérico – são
ou segundo nossas interpretações.
categorias buscando dizer, no campo pulsional, de como todo
Agora é preciso por nosso espírito
homem é feito. Importa o que você
e nosso corpo em movimento,
faz dessa ordem pulsional presente
aceitar o perspectivismo de toda
em todo homem.
visão, recusar todo dogmatismo diante da pluralidade e diversidade
Como o húmus da terra, ela é
das ideias. É tempo de trabalhar
possibilidade inesgotável, capaz de
em busca de uma síntese dialética.
surpreender o jardineiro a cada dia.
Humildade e competência são agora,
A ele cabe escolher seu canteiro de
sobretudo, qualidades requeridas
flores e de espinhos, sem arrancar
pelo cientista em seu trabalho de
todos os espinhos para com eles não
conhecer o mundo. O homem não é
arrancar as flores. Afinal, os espinhos
mais senhor em seu império, tendo
sempre surpreendem, servirão
que respeitar o outro e as leis do
para alguma coisa. Maníacos,
próprio mundo. Somos, então, parte
uns adoecem, outros, tornam-se
do mundo, temos de dar conta de
importantes pesquisadores. Uns
nossa presença nele e das múltiplas
suportam a adversidade, outros
implicações e responsabilidades que
caem na depressão. Uns têm crises,
essa presença implica.
outros fazem de sua histeria arte ou dão vazão a sua raiva em face às
A verdade nesse contexto,
contrariedades do mundo. A ordem
no que diz respeito à vida humana,
pulsional não se comporta como um
será concebida como tarefa.
dado biológico bruto. Há sempre na
Cabe ao homem assumir seu
ordem pulsional certa plasticidade.
destino. Afrontar as dificuldades na
A ordem pulsional não comporta
tarefa de se construir como sujeito,
também como um decreto que
ser de linguagem e de desejo.
ameaça o homem que confirme o
Ser em face de outros sujeitos,
juízo despreocupado e alegre da
sabendo que diz e dá a dizer e que
Gabriela da novela de Jorge Amado:
a expressão fundamental do ato de
“eu nasci assim, eu sou assim,
desejar é desejar o desejo do outro.
Gabriela.” Raciocínio e/ou atitude
Construção do sujeito que deve ser
muito usados para se desculpar ou
a função primeira da educação e
justificar comportamentos desejados
móvel de sua busca por toda sorte
ou não.
de terapias e/ análises. Os conceitos
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Na verdade, semelhante raciocínio
que nasci e vim ao mundo.
denota uma atitude conformista
Todo aquele, que é da verdade,
e irresponsável. Uma mentira para
ouve a minha voz”. Perguntou-
si mesmo. Conceber a verdade
lhe Pilatos: “o que é a verdade?”
concebida como tarefa tanto no
Jesus nada respondeu, pois, Ele é
plano pessoal quanto social requer
a verdade. Temos aí outro sentido
trabalho continuado, perseverança e
de como se manifesta a verdade,
continuada retificação de decisões e
pela presença. Presença inteira
caminhos. No plano pessoal, isso não
naquele que a manifesta. Verdade
se faz sem a escuta de si mesmo,
como presentificação. Quando
determinação e discernimento no
digo “eu te amo”, ou quando sinto
conhecimento e busca de realizar
ódio, se é verdade, sou inteiro no
seus desejos. No plano social, requer
amor ou no ódio. Mais que pelas
escuta do outro, aceitação das
palavras, a verdade em nosso corpo
diferenças, banimento de toda forma
se manifesta por inteiro. Tal como
de discriminação e preconceito.
os filósofos dizem do ser, há, pois,
Busca através de instâncias colegiais,
muitas maneiras de dizer verdade.
em todos os níveis, de ideários ou objetivos comuns. Tarefa que no
2 OUTRO PROBLEMA
Ocidente é chamada de processo
– A RELAÇÃO DA ALMA
democrático.
E DO CORPO
Em ambos os casos, é preciso
As diferentes respostas dadas
agir avesso aos dogmatismos,
através das idades da cultura a
suspendendo juízos já prontos e
esse problema vão nos ajudar na
acolhendo novas perguntas em
compreensão histórica atual acerca
busca de encontrar respostas para
da exigência em ser um homem
velhos ou novos problemas.
contemporâneo.
Tarefa nunca acabada, mas que nos
Trata-se, pois, de conhecer, através
ajudam a construir um lugar para
das diferentes idades da razão
bem viver em sociedade; em outros
ocidental, as diferentes soluções
termos, nos ajudam a construir a
dadas ao problema da relação da
cidade dos homens.
alma e do corpo ou do espírito e da matéria.
Outro modo de conceber a verdade nos é dado no diálogo que Pilatos
Na Antiguidade desde sempre
mantém com Jesus. Pilatos pergunta
se distinguia a existência de duas
a Jesus “és tu o rei dos Judeus?”
naturezas diferentes: o espírito
Respondeu Jesus: “sim eu sou rei.
e a matéria, a alma e o corpo.
É para dar testemunho da verdade
No homem, essas naturezas
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mesmo separadas coexistiam e se
No pós-Renascimento, essa relação
comportavam como um dentro e
entre o corpo e o espírito deixa de
um fora. O problema central seria
ser problematizada tal como era
então de conceber como se dava
na Antiguidade, na medida em que
essa coabitação, como dependiam
o ser homem é concebido como
uma da outra ou se o espírito era ou
da ordem do espírito. O corpo
não anterior e preexistia a matéria.
era concebido apenas como um
Esse corte entre as duas naturezas
invólucro desse espírito. Descartes
era sempre problematizado pelos
(1596-1650), escrevendo a sua noiva
filósofos da Antiguidade.
uma carta de amor (!) começa por dizer “moi, ou mon esprit”,
Em um dos seus mais importantes
ou seja, “eu, ou meu espírito”. Onde
livros o De anima, Aristóteles expõe
o corpo nesse amor? Estabelece-se,
e analisa todas as contribuições
então uma verdadeira e definitiva
acerca do tema que lhe são
oposição na relação corpo e
anteriores. Entretanto, nos deixa
espírito. Kant (1724-1804), séculos
sem saber ao certo se, para ele, a
depois, tal qual um novo e definitivo
alma era imortal ou não. Isso porque
Descartes, decretará não haver nada
os manuscritos que chegaram até
em comum entre a sensibilidade
nós, ora afirmam que sim, ora que
e o entendimento, pondo a nu
não. No texto grego, sendo o grego,
a dicotomia entre o corpo e a
como o latim, uma língua declinável,
consciência.
importa levar em conta a desinência das palavras para compreender sua
Na modernidade. Vai demorar
situação na frase.
muito tempo ainda para que a filosofia tenha condições de
As cópias dos textos Sobre a alma
realizar a superação desse decreto
ou o De anima, que chegaram até
kantiano e recuperar as origens
nós, apresentam diferenças quanto
dessa equação. Hegel (1770-
à desinência da palavra usada para
1831) já havia denunciado que o
dizer “separado”, ora significando “
desprezo das origens é terreno
é separada”, ora, “foi separada”.
fértil para as ilusões, lembrando
Isso resulta do fato de que
que a consciência e o saber não
os copistas medievais eram
teriam verdadeira unidade senão
especialistas em filosofia e não em
quando toda dicotomia entre a
grego, ou vice-versa. É preciso levar
consciência e o saber não fosse, ao
em conta que, normalmente, no
nível da totalidade, impiedosamente
correr da escrita se tem o hábito de
recusada. Essa tarefa prossegue
não registrar claramente o fim das
quando a filosofia reaproximar a
palavras.
consciência do discurso.
93
É Edmund Husserl (1859-1938)
principal da filosofia.
quem empreenderá esse trabalho através de remanejamento radical
Através das reflexões de Hegel,
da noção de percepção, uma
Husserl e Heidegger estão dadas
vez despsicologisada e liberada
as premissas para Merleau-Ponty
da distinção entre o sensível e o
(1908-1961) cunhar a noção de
intelectual.
corpo-próprio ou corpo-sujeito, longe do logos clássico, do Eu
A função axial da percepção será
penso cartesiano, identificando o
então ser a relação entre o sujeito
comportamento ao discurso.
consciente e a realidade.
Toda ênfase é dada agora ao tema
Essa relação define a percepção
da encarnação, modo essencial
como essa própria relação.
de ser do homem. O exercício
Heidegger (1889-1976), por sua
da filosofia se fará, então, sob
vez, introduzirá a noção de ser-
o primado do sensível “mundo
no-mundo – Dasein. Através desse
mais velho que o universo do
conceito Dasein - Ser-aí -,
pensamento”. Modo de pensar
que melhor seria traduzido por
avesso às velhas e arraigadas
presença, opera-se uma mudança
antinomias construídas a partir da
em nossa compreensão da realidade
oposição sujeito-objeto.
que deixa de ser exterior a aquilo que é temporal.
O discurso se apresenta agora
Toda temporalização deriva do
sempre como meu-discurso,
Dasein que é a temporalização
significando recusar separar o
originária. No Sein und Zeit – Ser
exercício da linguagem da tensão
e Tempo – o termo consciência –
entre a língua e o sujeito que
Bewusstzein – é quase ausente.
fala. Todo o enigma está, pois, no
Em seu lugar o Dasein se apresenta
sensível, “nesta tele-visão que no
como abertura, revelação ou luz
mais privado de nossa vida nos
natural. Ocorre assim uma perda
torna simultâneos com os outros e
do primado e dos privilégios
com o mundo”, como nos dirá no
do conhecimento, através
prefácio dos Sinais. Por essa via só
da identificação do Ser-aí ao
se pode compreender o homem e o
discurso. O logos, então, é agora
mundo a partir de sua facticidade,
secundariamente conceitualizador e
obrigando assim passar o processo
judicativo e não há transparência do
histórico por sua mesa de trabalho.
discurso para o Ser-aí que o tem. Daí a necessidade de uma
Numa conferência na Universidade
hermenêutica do discurso.
de Louvain, na Bélgica, Merleau-
A interpretação torna-se a tarefa
Ponty radicaliza seu pensamento
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96
afirmando que “não há natureza
Cada homem individualmente
humana na qual se possa repousar.”
responde por seu destino, por sua
Proposição muito difícil de ser aceita
vida e sabe bem quão verdadeira é
dado que o arraigado emprego do
a afirmação do filósofo “eu sou eu e
conceito de “natureza” para falar do
minha circunstância”. A educação,
homem, seja nas ciências humanas,
a cultura, o apego a princípios
seja na teologia. O termo natureza
éticos, o exercício de sua liberdade,
tem origem na filosofia grega e seu
a consciência e resposta a seus
uso ultrapassa os tempos até nossos
desejos, ou seja, a responsabilidade
dias. Natureza, physis em grego,
por seus atos são os elementos
melhor seria traduzida por “fundo
que definem o modo de ser e
donde as coisas emergem”, teria
o agir humanos. Modo de ser e
por sinônimo “essência”, “conjunto
agir humanos que permanecem
de propriedades que define uma
sempre e ao mesmo tempo como
coisa”. Descartes se autodefine:
possibilidade de ser outra coisa que
“sou uma substância cuja essência
ele não é. Por outra via de raciocínio
ou natureza é pensar”. Na ética
e retomando considerações
estoica e epicurista, a natureza
anteriores, a formulação do simples
é o fundamento dos princípios
juízo universal dizendo que todo
morais. Todavia, esse modo de
alemão, todo brasileiro, ou todo
pensar é desmentido pelo mundo
negro é isso ou aquilo é logicamente
contemporâneo tanto no mundo
falsa.
da ciência, quanto na antropologia filosófica. Na biologia, François
Tal juízo, em termos lógicos, significa
Jacob, prêmio Nobel de Fisiologia
dizer que todo A é B. O que é uma
e Medicina em 1965, baseado em
falácia. Todavia, a afirmação de que
suas pesquisas, em seu livro A lógica
tenho uma natureza, que minha
da vida, afirma que “a lógica da
natureza é essa, para justificar
vida consiste em saltos, rupturas e
dificuldades de mudança, ou para
acasos”. Por exemplo, não crê mais
se desculpar de atos perversos ou
que se possa atribuir uma natureza
modos de ser indesejados, seja
má e perversa aos alemães pelo
por vergonha, ou seja, pensando
fato da existência de Hitler e seus
enganar a si mesmo e aos outros, é
comparsas. Também não se pode
sempre um recurso fácil e enganoso,
atribuir a todos os alemães uma
muito usado contra a si mesmo e
natureza boa pelo fato da existência
contra todas as evidências.
de tantos gênios nas ciências e nas artes nascidos na Alemanha.
Hoje, mais do que nunca, quando a questão do gênero está na ordem
97
do dia, importa, pois, escutar, refletir
ao mundo que o viu nascer e onde
e tirar as consequências dessa
cuida de sua vida. Incapazes, pois,
afirmação de Merleau-Ponty:
de assumirem a questão da verdade
“não há natureza humana na qual se
como tarefa irrecusável. Tarefa sua
possa repousar”.
e da sociedade. Nada fazendo para superar as oposições oriundas
Merleau-Ponty é, assim, por
das antigas leituras idealistas
excelência, um contemporâneo de
ou empiristas, se condenando a
seu tempo: “homem resoluto que
permanecer no vazio da repetição
elevava a recusa obstinada do ‘sim
da tradição.
ou não’ à dignidade do ato filosófico por excelência”, nas palavras de
3 AS MUDANÇAS NA RELAÇÃO
Alphonse De Walhens.
HOMEM VERSUS MUNDO
OU SUBVERSÃO DA
RELAÇÃO SUJEITO
Entretanto, muitos homens continuam a professar o dualismo entre a alma e o corpo, presos nas
No mundo contemporâneo, no
antinomias entre a consciência e
âmbito das ciências, opera-se uma
os sentidos, entre a intenção e o
mudança radical na relação do
gesto. Realizando uma separação
homem com o mundo e na relação
entre o pensamento e o discurso
sujeito-objeto na produção do saber.
proferido, a maneira do aluno em
Mudanças espetaculares face às
exame, justificando sua ignorância:
idades anteriores da cultura. Pode-se
“professor eu sei, todavia não sei
mesmo falar de uma subversão da
dizer”, como se o pensamento
relação sujeito-objeto.
não passasse pela língua. Ou se o advogado defendendo o réu:
Na Antiguidade, o mundo se
“matou por amor”.
comportava como um Cosmos, bem ordenado e físico, onde tudo
Ambos recusam se responsabilizar
encontrava seu lugar. A Terra
por seus atos e professam uma
ocupava o centro desse Universo.
divisão de seu corpo entre um
Estava o mundo diante de nós.
dentro e um fora, incapazes de
O mundo era concebido como uma
escutar o sábio dizer de Freud,
realidade dada aos sentidos.
“o mais íntimo de mim mesmo
Um verdadeiro objeto, ou seja, algo
é minha pele”. São incapazes de
diante de meu nariz. O homem não
conceber que sou meu-corpo,
dominava a natureza.
unidade e fundamento de meus atos.
Foi Copérnico (1473-1543) o primeiro
Incapazes ainda de ver e aceitar o
a abrir uma brecha nesse sistema de
pertencimento do corpo-próprio
pensamento, ao fazer uma descrição
98
clara e pormenorizada da rotação da
dessa revolução ao Pensamento
Terra em torno do eixo do sol e do
Antigo é tamanha que só resta ao
movimento de translação em torno
poder vigente – a Igreja - condená-lo
de um Sol fixo. Entretanto, suas
como alguém roubando o fogo da
razões para iniciar essa revolução
sabedoria divina sobre o mundo.
foram mais filosóficas e estéticas que propriamente científicas.
Por esse caminho, experiências
Exaltava a monarquia centralizada e
físicas virão demonstrar que “todo
presidida pelo Rei Sol.
objeto visto é outro pelo fato dele ser visto”, afirmando e comprovando
Mas é Galileu (1564-1642) quem, de
o perspectivismo de toda visão.
fato, rompe com a representação
Fica assim demonstrada a
do mundo antigo e medieval.
implicação do sujeito que conhece
Fascina-lhe o pensamento da física
ao objeto conhecido. Inicia-se a
regido por premissas matemáticas.
dissolução da antiga dualidade
O concreto não é dado mais
estabelecida entre o sujeito e o
pela representação fundada no
objeto.
senso comum. O concreto, a modo abstrato, se apresenta sob
Mais espetacular ainda serão
uma configuração matemática.
mais tarde as comprovações
O mundo está dentro de nós.
da Física quântica. Heisenberg,
Doravante não há mais ciência
em 1920, formula o princípio da
sem as matemáticas. O espaço
incerteza, segundo o qual não
físico é identificado ao espaço da
podemos determinar, com precisão
geometria euclidiana. Inaugura-
e simultaneamente, a posição e
se um novo tipo de mentalidade
o movimento de uma partícula.
mecanicista. Altera-se, pois, a
Assim o mesmo fenômeno natural
relação do homem com o mundo, e
se manifesta a nós sob formas
do homem consigo mesmo e com
totalmente diferentes e mesmo
Deus. Galileu é responsável pelo
contraditórias entre elas. Um elétron,
nascimento da revolução científica
por exemplo, aparece ora como
que veio resolver os problemas
partícula, ora como onda.
da mecânica e da astronomia
“A realidade científica traz sempre o
mediante um novo método
selo de nosso pensamento... e desta
experimental e matemático. Inaugura
forma todo saber que abraçamos
uma nova imagem do universo –
conceitualmente implica em um
quantitativa e infinitamente extensa
julgamento”. Estamos, pois, diante
- em substituição à velha imagem
de uma verdadeira subversão da
qualitativa, limitada, religiosa,
relação do homem com o mundo
herdada dos gregos. A ameaça
até então vivida pelas gerações
99
100
anteriores. O mundo está ao redor
na produção do saber atingem o ser
de nós.
humano em particular. A primeira descoberta do Código Genético,
Interessante registrar que o Jornal
1973, e a segunda descoberta de
mineiro O Tempo – 02/12/2015 - fez
2013, possibilitaram uma Revolução
a seguinte chamada em primeira
Biológica e Terapêutica em curso
página “Fotografia quântica permite
nos laboratórios e gabinetes de
um novo olhar sobre a realidade”,
pesquisa das chamadas ciências da
registrando a comunicação da
vida, possibilitando aos cientistas
cientista Gabriela Lemos em palestra
conhecer as unidades hereditárias
no projeto Devagar. Diz a cientista:
que determinam as características do indivíduo e por essa via elaborar
pretendo abordar sobre a dualidade onda-partícula na mecânica quântica, usando como exemplo o trabalho com a foto que fiz. A ideia é usar esse princípio para discutir que a realidade, ou melhor, o que é o universo. Essa é uma discussão que vem acontecendo no meio dos físicos e filósofos há muito tempo, mas que a população em geral desconhece. (O TEMPO, 2015, p.19)
A cientista e sua equipe dispararam um feixe de laser verde para um cristal que aniquila um fóton verde do laser e, em seu lugar, cria dois fótons gêmeos: um vermelho e outro infravermelho. O fóton infravermelho é enviado em uma trajetória e atravessa uma placa de silício com a imagem de um gato. Já o fóton vermelho segue um caminho diferente: é refletido em um espelho e enviado para uma câmara
um mapa dos genes humanos. Lembrando sempre que a lógica da vida não comporta a modo de um A que implica B, mas se traduz por saltos, rupturas, descontinuidades e acasos. Tais descobertas aumentam as perspectivas de prevenção de doenças e de ampliação das possibilidades de tratamento resultantes da aplicação terapêutica. Resulta dessa conquista da ciência um aumento de qualidade de vida de grande parte da humanidade. Entretanto, como todos os valores e bens postos à disposição dos homens, essa revolução biológica e terapêutica traz em si, igualmente, a possibilidade reversa de ser portadora não apenas de esperanças e alegrias, mas, igualmente de temores, desconfianças e medos de
fotográfica.
que sua utilização possa ensejar a
Todavia, é na Biologia que, no
violentando sua singularidade,
mundo das ciências, as mudanças
invasão da privacidade da pessoa, desvelando os mistérios de seu
101
corpo e possibilitando a ressurgência
a serviço de todos. Sentimento
de nefastos propósitos de controle
de desilusão agravado, segundo
genético.
o cientista e sociólogo Zigmunt Bauman pela “inquestionável e
A vida, segundo Henry Atlan (1931)
irrestrita prioridade outorgada à
está para sempre entre duas formas
irracionalidade e à cegueira moral da
de mortos entre o cristal e a fumaça
competição do mercado”.
numa criação interrompida do novo, do sentido, do vivo. A meditação
O triunfo do individualismo se faz
sobre o ser vivo ultrapassa a
sentir por toda parte. O privilégio do
biologia, ultrapassa as ciências
indivíduo estabelecido como valor
da natureza, concerne tanto à
supremo domina toda sociedade
experiência da identidade quanto à
dando lugar à “era do vazio” de que
vida e à morte. Pode-se perguntar,
fala Gilles Lipovetsky. Individualismo
então, se estamos diante de
que se afirma ainda mais aliado às
problemas da biologia ou da ética.
delícias do narcisismo. A emergência de uma explosão hedonista aliada
4 UMA VISÃO FENOMENOLÓGICA
ao individualismo põe em questão a
esperança do sujeito em conquistar
DE NOSSO TEMPO
mais autonomia e mais liberdade. O nosso tempo vive sob o signo de uma ética problemática diante da
Sujeitado ao imperativo do mais
morte das ideologias e das utopias
gozar para não mergulhar no
que iluminaram o século passado.
anonimato social, cada pessoa
Tem assim de enfrentar o paradoxo
necessita cada vez mais de criar
do pensamento das sociedades
sua identidade. Na sociedade
pós-modernas que esvaziaram as
de hoje é importante saber que
grandes narrativas totalizantes. Não
identidade não se herda nem social,
se dá mais crédito às concepções
nem biologicamente. Não é algo
que acreditavam numa história em
definido desde sempre, precisa ser
progresso (Hegel), ou na concepção
construída, inventada. O sentido
da existência de uma classe
da vida de cada um e a forma
salvadora (Marx).
de felicidade buscada precisam ser redefinidos a cada passo da
Ao mesmo tempo, a globalização
existência. São tarefas irrecusáveis
da economia sob o signo do
e agravadas num Estado neoliberal,
capitalismo financeiro dá à
em meio a uma era que transitou de
sociedade o sentimento de desilusão
uma sociedade de produção para
ou dúvida quanto à viabilidade de
uma sociedade de consumo.
um projeto global da sociedade
102
103
Um imenso poder científico e
sedutor, o celular é um objeto que
tecnológico advindo das recentes
está ao alcance de um universo
descobertas ocorridas no mundo
cada vez maior de indivíduos de
das ciências da natureza, aliado
nossa sociedade. O uso dele é cada
ao desenvolvimento das ciências
dia mais imperioso e obrigatório,
da computação - resultou em
atingindo democraticamente todas
um progresso acelerado do
as classes econômicas, de tal modo
conhecimento e na construção de
que, a cada dia, viver sem ele se
um mundo de objetos até então
torna mais inconcebível e impossível.
inimagináveis. Em futuro próximo, se projeta Ciências da computação, termo
instalar o celular na pele de todo
usado para descrever o conjunto de
usuário. De posse desse objeto se
conhecimentos relacionados com
acredita ser alguém e ter o mundo
o armazenamento, transmissão,
em suas mãos. Lugar privilegiado
processamento de informações
para confissões obrigatórias e
por meios digitais e tendo nos
íntimas – retratos pessoais e de
computadores o instrumento mais
família – “alterei minha foto de capa”
comum de aplicação e utilização
-, registro da mesa farta do dia, de
dessa revolução. São artefatos
viagens, até relatos mais íntimos
– televisores, celulares e tablets -
de cunho sexual. As redes também
que possibilitam a comunicação à
abrem espaço para convocações e
distância, acesso aos conhecimentos
manifestações de caráter público e
disponíveis e às notícias do mundo.
político. Encontrar amigos é a função
Tudo possível pelo milagre da quase
máxima, não se esquecendo ser
simultaneidade dos tempos e a
meio virtual, cada dia mais usado,
anulação dos espaços. Artefatos
de fazer compras. Tudo possível
que se aperfeiçoam e se renovam
pelo simples ato de conectar ou
a cada dia, oferecendo inusitadas
desconectar. Todavia, fazer amigos,
e inimagináveis oportunidades de
não se trata do estabelecimento de
manipular imagens, informações e
uma relação de amizade tradicional
construir novas realidades.
que, a rigor, é limitada. Uma relação de amizade virtual está sempre
São os celulares, todavia, os
crescendo exponencialmente.
artefatos que proporcionam
Certo, a conversão ao real é sempre
um fabuloso e imenso poder de
possível. Há casos que tais relações
comunicação entre as pessoas,
deram até em casamento.
que mais revolucionam o cotidiano e o modo de vida dos homens
Contudo é tal a compulsão e a
de nosso tempo. De tal forma
necessidade de estar conectado que
104
105
106
essa compulsão termina por negar
promessas de uma festa sem fim
a presença real do outro, mesmo
diante das catástrofes climáticas no
sendo este outro um familiar à mesa
horizonte. Nada mais eloquente para
de refeições. Mais grave ainda é o
falar dessa crença que conhecer, por
uso do celular dirigindo, ou seja,
exemplo, a situação de penúria de
no trânsito. Semelhante infração
muitas comunidades face à escassez
pode provocar acidentes levando a
de água. Situação responsável
perigo a integridade física do outro.
pela falta de alimentos e em
Entretanto, a complexidade desse
consequência, fome nas populações
fenômeno da pós-modernidade,
e levando extensas áreas do planeta
do desenvolvimento, expansão
à desertificação.
e implicações nas redes virtuais, necessitam ser estudado com apuro
Nesses dias, reúne-se em Paris a
e atenção.
Conferência sobre as mudanças climáticas, COP 21 em meio a
5 O PROBLEMA ECOLÓGICO
graves impasses. Os países pobres,
os mais afetados pelas mudanças
NO LIMITE DA
SUPORTABILIDADE
climáticas, querem que os países
ricos assumam sua responsabilidade
DO PLANETA
histórica pelo aquecimento global. Depois de 300 anos de vigência
As negociações avançam muito
da crença na possibilidade de
pouco e um acordo significativo fica
exploração ilimitada dos recursos
cada vez mais difícil.
naturais do ecossistema, chegamos a um momento de exaustão, no
No Brasil o impasse para fazer face
limite da suportabilidade do planeta.
aos danos humanos e ambientais
Tudo começou por volta de 1600,
decorrentes do Desastre do Rio
sob a influência das ideias de Francis
Doce repete a mesma lógica:
Bacon (1561-1626) e Renée Descartes
o capital não assume suas
(1596-1650) que acreditavam que a
responsabilidades, apenas quer
Terra era um ser inerte que poderia
garantir seus lucros e o domínio
ser inteiramente conhecida e suas
sobre as áreas de mineração. O
riquezas exploradas indefinidamente.
problema é tratado reduzindo da verdade dos fatos, segundo a pura
Essa crença, aliada às conquistas da
objetividade física da tragédia,
revolução tecnológica e industrial
lógica que exclui e nega a gravidade
e à voracidade do capitalismo
da tragédia no ecossistema e na vida
financeiro, possibilitou a exploração
de milhares de pessoas.
do planeta de modo agressivo e irresponsável, anulando as
A mais emblemática prova dessa
107
maneira objetiva e redutora é a de
destruindo casas, igrejas, cemitérios,
declarar que a culpa pelo desastre
plantações, roubando a água e o
foi da natureza. Pasmem ouvindo
alimento das famílias a quilômetros
dizer que a causa do acidente foi
morro abaixo, e terminaram por
devida a fraturas decorrentes de
matar um rio – o Rio Doce e seus
um terremoto de baixa intensidade
peixes - tirando o ganha-pão de
que atingiu a região ou culpando
muita gente. A lama atravessou
as chuvas por aumentar o volume
o Estado de Minas até o Espírito
da barragem. Que dona de casa
Santo, arrasando terras e poluindo
aceitaria ou se daria por satisfeita
quilômetros mar adentro.
por ouvir dizer que sua louça foi quebrada devido a um tremor no
Foi um crime humano e ambiental e
apartamento de cima ou devido
como tal deve ser tratado.
à fragilidade do vidro? A verdade
E crime tem ator e/ou atores que
do fato se resumiria, então, para
necessitam ser responsabilizados e
ela a um simples objeto quebrado?
punidos. A verdade dessa história
Ou, pelo contrário, ficaria muito
não se reduz à não existência ou ao
consternada, porque a louça foi
não cumprimento de dispositivos
presente de casamento de uma
legais e técnicos. Também não se
pessoa muito querida e era usada
reduz a ausência de massa crítica
em ocasiões especiais.
que inventasse dispositivos de segurança para que um vazamento
Esse entrelaçamento do objeto e sua
não corresse. (Escandalosa ironia,
significação ou sua contaminação
os alarmes só foram colocados no
pelos laços de uma história familiar
terreno depois do acidente!)
seria fator decisivo da verdade de
É preciso lembrar e considerar que
sua dor. O marido saberia bem que
a terra em que vivemos, planície e
apenas repor o objeto quebrado
montanha, árvores, rios, pássaros e
não resolveria a questão. Vai ter de
animais, afeta nosso corpo e nosso
participar da dor da esposa e tentar
espírito. Assim, estar no conforto
consolá-la.
de nosso quarto ou isolado em uma cela escura de prisão afetam nosso
A verdade do caso de Mariana não
corpo e nosso espírito. O nosso
se reduz a uma rachadura ou outra
modo de ser e existir é totalmente
causa física que fez com que o
diferente em uma e noutra situação.
reservatório se rompesse. Resposta
Habitamos a terra e é ela é nossa
objetiva, que não diz a verdade
casa comum. Entendida assim
do fato. Foram toneladas de lama
nossa percepção, nossa emoção
que arrasaram vilarejos, mataram
a produção da verdade diante da
operários, velhos, moços, crianças,
tragédia de Mariana seria outra.
108
109
110
Estaríamos todos unidos de corpo
é grave o momento por qual passam
e espírito exigindo que os danos
as nações e seus habitantes – o povo
humanos e físicos ocasionados
- nesse início do século XXI.
pelo desastre da Samarco fossem sanados e justiça feita aos cidadãos
A semelhança da lama da barragem
diretamente atingidos pela tragédia.
de Mariana, uma lama fruto da
Por consequência, a recuperação
malversação do dinheiro público, um
da Bacia do Doce seria desde já
roubo vergonhoso ao contribuinte
iniciada. Conscientização e comoção
e a toda Nação, suja e inunda a vida
universal viriam juntas. E por que
política em nossos dias. Escândalo
isso não ocorre? Porque a produção
do Mensalão, escândalo da Petrobrás
da verdade sobre o desastre de
e tantos outros, uma Câmara dos
Mariana se detém ora no objetivo, na
Deputados composta, em sua
natureza, ou na questão jurídica – na
maioria, não por representantes
razão abstrata - acerca da existência
do povo, mas representantes
e observância de leis que deveriam
dos interesses do capital que
existir na regulação da questão
as elegeu. Uma Assembleia, por
ambiental. Todos esses modos de
força e afronta de seu presidente,
produção da verdade – objetivo e
mergulhada em um clima que
racional e jurídico - se movem numa
trabalha para perpetuar essa
estância a qual nos é exterior.
situação. Proprietários de grandes empresas, aliados da classe política,
Produzir a verdade no caso do
igualmente, envolvidos na mais
desastre de Mariana e sua lama
calamitosa corrupção, apropriando
matou operário, matou o Rio
perversa e metodicamente de
Doce, necessita ir além dos modos
recursos públicos. Uma imprensa
anteriores de produção da verdade e
que na sua maioria, mal informa
incluir cada um de nós na produção
e está atrelada também ao poder
desta verdade. A verdade sobre
econômico. A saúde e a educação
a tragédia de Mariana deve ser
são tratadas como setores de
tarefa nossa, mineiros e brasileiros,
segunda categoria. É falar em
destruída que foi parte de nossa
cortes no orçamento, contenção de
casa comum.
despesas e são essas as duas áreas já, muito mal tratadas, as primeiras a
Falta, ainda, para sumariamente
serem atingidas.
dar conta da fenomenologia de nosso tempo, registrar a situação
Desnecessário continuar essa
econômica e política da atual
explanação de nossa triste situação.
conjuntura nacional e internacional,
Urge esperar que a nação acorde,
sem o que seria desconhecer como
reaja depois de tantas revelações
111
da Operação Lava Jato, de tantas
Continental. Travessia que se faz
prisões e processos judiciais. Urge
em grande desespero e com uma
construir uma nova era de respeito
coragem enlouquecida, cientes
aos bens públicos e substituir os
e testemunhos da companhia da
falsos representantes políticos. Que
morte a lhes ceifar vidas. Mais
o povo se levante e tome conta do
terrível ainda é a recepção, ou
futuro de nosso país.
melhor, a rejeição, muitas vezes cruel, da sociedade europeia diante
No que concerne ao panorama
desses imigrantes. A imagem de
mundial, não se pode deixar de
uma criança encontrada morta na
mencionar a permanência e o
praia comoveu o mundo, não foi
aumento dos conflitos, das guerras
suficiente para criar condições para
regionais. Conflitos regionais que
um acolhimento humanitário em
pela sua origem e pelos interesses
decorrência do estabelecimento
financeiros das grandes potências
de uma política justa e solidária.
em jogo, no princípio, no meio
Questões que não poderiam deixar
e no fim, assumem dimensões
de ser, mesmo sumariamente, aqui
internacionais. A violência e a dor
tratadas na busca de aprender a
dos homens envolvidos nesses
olhar o mundo. Todavia, a grandeza
conflitos junto à dor dos civis, das
da dor e da injustiça que pesa sobre
crianças e dos velhos que habitam
esses imigrantes exigem fazê-lo
essas regiões não podem nos
em outro momento. O que não se
deixar indiferentes. Tais fatos nos
pode deixar é de registrar o caráter
convidam a refletir tanto no fato
de que em todos esses conflitos
histórico, quanto no aumento da
e manifestações de ódio religioso
violência entre nós por toda parte.
está inscrito o desprezo pelo outro,
Aumento da violência que sob a
a intolerância pelo diferente e suas
forma do Terrorismo ameaça todos
ideias, em suma, a ausência de
os Estados, fazendo com que as
fraternidade, diálogo e o convívio
motivações políticas e econômicas
entre os homens.
presentes nesses conflitos se juntem motivações de caráter religioso sob
O cerne da questão, o mote central
a forma a mais impiedosa e feroz de
do presente texto é trabalhar para
fanatismo e intolerância.
mostrar que só se pode ver o mundo dele participando. E dizer
Para fugir dessa atmosfera e lugar
a verdade sobre o mundo resulta
de horror, milhares e milhares
primeiro em reconhecer que somos
de homens, mulheres e crianças
parte desse mundo. A vida humana
fogem de seus países em busca
se passa plantada entre relevos,
de paz e refazer a vida na Europa
montanhas e planícies, no meio de
112
113
114
árvores, fontes de água e animais,
cidadãos e os meios de alcançá-los.
numa interação singular com tudo
Registrou a importância singular ao
o que a cerca. Ora sob a luz do sol.
valor da amizade entre os gregos e o
Ora sob as sombras da lua. Esta é
modo de se conduzir na construção
a nossa morada. A verdade sobre
da cidade e de suas leis. Acerca
esse mundo de relações também
do bem e da atividade humana,
não se restringe à ordem conceitual,
buscou critérios para distinguir bem
construções racionais com as quais
e mal em vista de se conduzir na
o homem tenta compreender, medir,
vida, segundo princípios racionais e
avaliar a realidade. Não se reduz
universais.
nem mesmo sob o aparato dos dispositivos jurídicos que funcionam
Terminado seu trabalho, procurou
como formas de dominar o mundo
um nome para designá-lo. Desejava
e o comportamento dos homens.
um nome comum presente na
Produzir a verdade sobre o mundo
vida dos cidadãos gregos, falado
requer que, sendo parte dele, nos
e utilizado por todos. Esse nome
tornemos responsáveis pelo futuro
gerador encontrado foi ethós,
da Terra dos homens.
que tinha duas formas de ser pronunciado e grafado. Escrito
6 A DEMANDA DA ÉTICA
com epsilón ou escrito com eta. Surge a partir desse nome o
Em reação a esse cenário nada
termo étika. No primeiro caso,
animador, por toda parte, ouvem-se
com épsilon, significava solo firme,
os gritos, aumentam os reclamos
morada ou raiz e respondia ao que
pela ética. Mas o que é a ética? Uma
propriamente é do domínio da ética.
panaceia? A instituição de uma
No segundo, com eta, significava
nova ordem? Como ela concerne ao
“comportamento, caráter e costume”
sujeito e ao cidadão? É o que vamos
e corresponde mais propriamente o
examinar.
que chamamos hoje de moral.
A ética nasce em Atenas com
Comumente se emprega “ética” e
Aristóteles (384-322 A.C.). É ele o
“moral” como termos sinônimos
inventor desse conceito e o autor
e assim os dicionários registram.
dessa obra monumental. Aristóteles
Mas aqui importa distingui-los.
assim procedeu reunindo os
A função chave da ética era a
preceitos e princípios vigentes entre
busca do bem entendido como
os gregos na época necessários
felicidade, eudaimonia em grego.
para alcançar uma vida conforme
De tal maneira que Aristóteles
a sabedoria filosófica. Preceitos em
começa o livro da ética afirmando:
busca de justiça e harmonia entre os
“Toda arte e toda investigação e
115
semelhantemente toda ação e toda
significa “costume” em latim, língua
escolha tendem para algum bem ou
romana).
aquilo que assim lhe parece”. Se Sócrates (c.470-399 A.C.), entre
Nesse estado de coisas,
os filósofos gregos, foi quem pautou
o importante é o cumprimento do
sua vida e seus ensinamentos
dever. Assim o adágio romano: “em
sob princípios éticos é, todavia,
Roma, faça como os romanos”.
Aristóteles o fundador da ética
Na ética, a lei emana do próprio
como disciplina filosófica por ele
sujeito da ação. Estamos, pois, no
denominada Ética a Nicômaco.
regime da autonomia, segundo a
Aristóteles trabalha a “ética”
ordem ou o principio do desejar.
submetida a três grandes princípios:
O sujeito ético faz seu o “não”
o bem, a liberdade e a lei.
inscrito na lei, deseja esse “não”, uma vez conforme aos valores e
Note-se, para começar, que assim
aos princípios que defende. Há um
a ética é sempre uma equação
dito popular segundo o qual um
impossível. Tratando-se de
princípio, uma regra ou um preceito,
conjugar isoladamente o “bem” e a
podem ser ditos conforme a lei,
“liberdade”, todos saberiam como
serem legais e, necessariamente
fazê-lo. Do mesmo, se a equação se
não serem morais. O sujeito ético
reduzisse a relação entre o “bem”
sabe mais, sabe que um princípio
e a “lei”, mesmo que a tarefa não
moralmente aceito, em tal tempo e
fosse fácil, seria possível e factível.
tal espaço, pode, todavia, não ser
Todavia, tratando-se de conjugar
ético, uma vez violando os valores
o “bem”, a “liberdade” e a “lei”, se
que o sujeito e sua comunidade
não impossível, será sempre uma
defendem.
equação em aberto, pedindo sempre retificações. É, sobretudo, em
Existem, pois, normas conforme
relação à “lei” que “ética e “moral”
os costumes da época de um
melhor se distinguem. Na moral,
povo e podem ser contrárias aos
a equação entre os três princípios
princípios e a ética que norteia a
é feita segundo a ordem do dever.
vida do sujeito e pela qual pode
Dessa forma a lei vinda do outro,
até dar sua vida. Existem países
estamos, pois, sob o regime da
onde a moral vigente é contrária
heteronímia. Pode-se, então, bem
aos direitos humanos das mulheres,
compreender porque os romanos,
dos homossexuais, dos excluídos
povo conquistador, vivendo sob
de toda sorte. Tal situação é,
um regime autoritário, ao contrário
todavia, contrária aos princípios
da democracia grega, escolheram
éticos estabelecidos pelos Direitos
privilegiar o termo moral (mor, es,
Humanos universais.
116
117
Outro exemplo, tirado do exercício
estabelecido. A moral, por sua vez,
da medicina, esclarece melhor
é uma ação retroativa, visa manter
a diferença entre moralidade e
regras e valores estabelecidos.
eticidade. Ser ético no caso do
Importa ainda dizer que a ética é
médico é ser competente no
sempre uma tarefa societária, pois
cuidar da doença e dos direitos
considera a lei nascida do “não” do
do paciente. Está aí a “raiz de seus
outro e, igualmente, dizendo a meus
atos”, sua morada e seus valores.
direitos enquanto outro de outro.
Os Códigos de Ética Médica,
Não matarás procede do direito de
melhor chamados por Códigos
existência de Abel que não pode ser
Deontológicos (“deontos” em
negado por Caim. É desse outro que
grego significa dever) prescrevem
Abel para Caim, nele reside o “não”
proibições que podem, em casos
matarás que Caim devia respeitar.
especiais, não serem conforme a
A ética não é, pois, uma invenção do
ética do sujeito médico. Exemplo:
indivíduo, mas de sujeitos. Ora só
proibição da eutanásia em paciente
há sujeito em face de outro sujeito
sofrendo de dores extremas, em
ou sujeitos. Concluindo: a ética é
fase terminal, onde há não mais
tarefa social, histórica, inconclusa e
profissionalmente o que fazer.
inventiva.
Diante desse quadro doloroso e limite existem médicos que optam
No mundo contemporâneo, uma
por ajudar o paciente a morrer.
vez que o bem perdeu seu caráter
Entre a ética e a moral não há
ontológico, não se fala mais de
necessariamente conflito, mas
“bem”, mas de valores. E os valores
quando valores maiores estão em
não são apenas valem. E assim
jogo, urge privilegiar e retomar a
“bem” e “mal” na realidade humana
tarefa de reconstruir ou fazer valer
aparecem e se comportam como o
os valores éticos. A ética torna-se
verso e o anverso de uma mesma
assim desconstrutora da moral,
realidade. Importa ao homem
busca fundar novas regras do juízo.
escolher e inventar seu destino. O “bem”, propriamente seria Deus,
É o que acontece hoje diante
o absoluto. Concepção,
das leis que regem o contrato de
que relembra a palavra de
casamento, ou quando os direitos
Agostinho: “o nosso coração estará
das minorias, dos homossexuais
inquieto até repousar em Ti, Senhor”.
e miseráveis não são respeitados.
As pesquisas e os textos atuais em
A ética, também, se deferência
torno da construção da ética se
da moral, por ser uma tarefa
restringem a problemas, tais como a
antecipativa, visando realizar um
“ação comunicativa”, Habermas;
bem desejado ou promover um valor
a “sabedoria do desespero”,
118
Comte-Sponville ou a enfoques
seus empregos de vereador ou
particulares tais como Ética da
deputado, numa palavra,
psicanálise, Lacan e a Ética do
seus interesses pessoais.
Marxismo entre outros. 7 O CAMINHO Sem dúvida, na vida social e política
PARA TORNAR-SE SUJEITO
é importante o respeito à moral vigente, as leis positivas que regem
O comum é tratar o cidadão como
a sociedade e o convívio entre os
indivíduo, conceito que serve bem,
cidadãos. Leis que partem de uma
sobretudo, quando se trata de
instância exterior ao sujeito da
estatísticas. Todavia, na realidade,
ação. Todavia, se o sujeito não a
nenhum homem é um indivíduo, isto
faz suas não deseja esse “não”, que
é, indiviso em si e separado de tudo
vem da sociedade, inscrito nas leis.
mais. Somos um nó de relações e só
Ele poderá negar cumprir com os
as relações contam para o homem.
deveres e burlar o preceito legal
Somos, por definição, um ser social
expresso na lei, como comumente
e mesmo na vida pessoal sabemos
acontece mesmo entre os autores e
bem que somos muitos. Na maior
guardiães das leis.
parte do tempo estamos divididos entre nossas opiniões, entre nossos
Desta forma, se o sujeito faz
desejos.
seus os preceitos morais, estará procedendo como um sujeito
O poeta árabe diz com precisão:
ético que deseja o “não”, os limites
“eu me olhei e me vi multidão”.
inscritos nos deveres morais.
Na verdade, a questão fundamental
Ser ético é responder sempre
para o homem é tornar-se sujeito,
a pergunta: que mundo, que
aí está a dignidade do ser humano.
sociedade queremos para nós e
Entretanto, muitos homens,
para nossos descendentes, e que
sobretudo na sociedade capitalista,
responsabilidades estamos dispostos
não têm condições de se tornarem
a assumir em vista de realizá-lo.
sujeitos. Trata-se, como diz o
Essa pergunta é endereçada a todo
poeta-cantor, de “gente que não
sujeito, a todo cidadão, professor,
vive, apenas aguenta.” Entretanto
empresário, operário, soldado e,
são para estes – marginais, pobres,
sobretudo, aos políticos. Entretanto,
homossexuais e negros - indivíduos
as elites políticas, entre nós, com
– que as prescrições morais são
raras exceções, jamais colocam essa
mais exigidas. A luta pelos direitos
pergunta que julgam ideológica,
humanos, a luta para dar pão, casa e
preocupadas que estão em manter
emprego e, em consequência,
119
dar condições a essa gente de
linguagem, enquanto que é essa que
tornar-se sujeito é exigência maior
o rege”. Tornar-se sujeito é reafirmar
de nossos dias.
sua autonomia, exercendo sua liberdade, sendo fiel ao seu desejo.
Escandaloso é ver que aqueles que,
É exercer sua sociabilidade
possuindo riquezas e posses, acesso
praticando o convívio e preservando
a todos os bens da sociedade –
sempre sua dignidade.
conforto, saúde, lazer, acesso aos bens culturais - nem sempre se
8 REFLEXÕES FINAIS
tornam sujeitos, quando recusam a participar ativamente da vida em
Face aos desafios do tempo
sociedade e, se o fazem, só fazem
presente, podemos perguntar:
segundo seus interesses. Vivem na
caminhamos em direção a
quietude de suas mansões cercados
possibilidades catastróficas?
por seguranças físicas e sociais.
Ou é preciso confiar na presença
Não se nasce sujeito. Conferir CPF
do inesperado e do improvável na
ao recém-nascido não faz dele
história da humanidade?
um sujeito, apenas um indivíduo registrado na Receita Federal.
Nos últimos tempos assistimos vários movimentos populares que
Tornar-se sujeito é uma dura tarefa
demonstram que os cidadãos estão
que seguirá pela vida toda. Ser
tomando consciência das nefastas
sujeito é ser capaz de ascender
consequências de uma política
à ordem da linguagem, dizer
econômica orientada para defesa
e re-significar sua finitude, sua
do capital e do lucro a qualquer
vulnerabilidade, sua demanda de
preço, causando uma tremenda
alegria e sua dor. Ser sujeito é sair da
desigualdade social que maltrata
posição cômoda e ilusória de gritar
os pobres e os mais desfavorecidos
ou chorar “eu nasci assim, eu sou
do mundo atual. 15% da população
assim”, “o culpado foram meus pais
mundial vivem abaixo da linha de
ou minha genética”, “sou um pobre
pobreza, enquanto 1% possui mais
coitado”. Ser sujeito é respeitar seus
de 40% da riqueza do planeta.
limites, respeitar o “não” que vem
Dado escandaloso que requer
do outro, pelo simples fato de ser
indignação e grito a favor da
outro, princípio fundante de toda lei.
mudança do sistema financeiro
É pensar e agir para além de todo
que rege a economia que domina o
dogmatismo, é ser aberto ao diálogo
mundo. As reações a essa situação
à mudança. Com razão escreve
começam a surgir com força por
Heidegger: “o homem se comporta
toda parte.
como se fosse ele o criador da
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A forma de luta desencadeada pela
ensinamento de Jesus, o Bom Pastor,
revolução árabe com a estratégica e
fundado na misericórdia e no amor.
vitoriosa ocupação da Praça Tahir se
Através da publicação da encíclica
alastrou primeiro no mundo árabe,
Laudato Si (Louvado sejas) sobre o
alcançando depois a Europa e os
cuidado com a casa comum.
EUA. O Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e Ocupar Wall Street nos
Já de início, Francisco declara
EUA são eloquentes e promissores
que “nada nesse mundo nos é
exemplos desse desejo de mudança.
indiferente”. E continua com clareza e rigor afirmando que o objetivo
No Brasil, no segundo semestre
(da Encíclica) não é recolher
de 2014, os estudantes também
informações e ou satisfazer nossa
vieram à rua reclamando mudanças,
curiosidade, mas tomar dolorosa
denunciando as desigualdades
consciência, ousar transformar
sociais. Esses movimentos,
em sofrimento pessoal aquilo
esse acordar dos homens
que acontece ao mundo e, assim,
contemporâneos mesmo não tendo
reconhecer a contribuição que cada
ainda alcançado seus objetivos,
um pode lhe dar.
barrados pelas forças de direita, são sinal de esperança.
Propósito e modo de ver o mundo
À pergunta se estamos caminhando
que fazem do Papa um homem
em direção a probabilidades
contemporâneo por excelência.
catastróficas, temos o direito de
Apoiado em dados das ciências
responder apoiado nesse acordar da
e em fatos comprovados, alerta
consciência mundial que a presença
o mundo para “o que está
do inesperado e do improvável não
acontecendo em nossa casa”:
deixou de frequentar a história da
poluição e mudanças climáticas,
humanidade.
perda da biodiversidade a deterioração da qualidade de
De nossos dias, na pessoa e nas
vida humana e degradação
ações do Papa Francisco, nos vem
social, desigualdade planetária
a confirmação alvissareira desse
e globalização do paradigma
inesperado, desse improvável que
tecnocrático, entre outros. Não
nos visita. No governo da Igreja,
se esquece de tratar da fraqueza
com sabedoria e alegria, não se
das reações da sociedade e da
deixa ficar preso às controvérsias
diversidade de opiniões sobre
paralisantes que opõem o pastor
tais problemas. Denunciando as
e o teólogo. E assim procede, não
gravíssimas desigualdades de nossa
apenas para cuidar da unidade
sociedade e, em consequência, a
da Igreja, mas para ser fiel ao
grave dívida social para com os
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mais pobres, fala sobre a gravidade
“os conhecimentos fragmentários e
dos problemas e a urgência em lhes
isolados podem tornar-se uma forma
fazer face.
de ignorância”, propõe uma Ecologia Integral. Novidade que apela para
Acerca do problema da água
uma reformulação da concepção
adverte: ‘’privatizar esse recurso
atual do modo de ser do homem,
escasso, tornando-o mercadoria
dando lugar a uma nova ontologia
sujeita às leis do mercado, agravará
antropológica. Aponta para algumas
mais ainda a desigualdade, será
linhas de orientação e ação e para
fonte de guerras e irá agravar em
a necessidade de uma educação e
muito a situação dos pobres”. Critica
espiritualidade ecológicas.
a “cultura do descarte” e o acúmulo de lixo no planeta e suas graves
Reclama o exercício de uma
consequências para os ecossistemas
consciência basilar que “permitiria
e, em particular, para saúde dos
o desenvolvimento de novas
mais pobres. Não esquece a crise
convicções, novas atitudes e novos
causada pela questão dos imigrantes
modos de vida”. E conclui: “depois
na Europa. “É trágico o aumento do
dessa longa reflexão jubilosa e ao
número de emigrantes em fuga da
mesmo tempo dramática, proponho
miséria agravada pela degradação
duas orações: uma que podemos
ambiental, sem reconhecimento de
partilhar com todos que acreditam
sua categoria de refugiado pelas
num Deus criador onipotente e
convenções internacionais”.
outra, para pedir que nós cristãos saibamos assumir os compromissos
Com inusitada clareza, dado que
para com a criação que o Evangelho
tudo está interligado e ciente de que
de Jesus nos propõe”.
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