Revista Tai Chi Brasil - 31

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REVISTA

DESDE 2009

Tai Chi Brasil

Edição nº 31 - Distribuição on-line gratuita e dirigida

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“Anos de prática intensa me deram uma boa compreensão dos dez princípios básicos do Taiji postulados por Yang Cheng Fu e pela primeira vez em minha vida eu me sentia saudável e à vontade.” Mestra Shen Hai Min


Novo Blog Tai Chi Chuan e Chi Kung

www.centroemharmonia.com.br centroemharmonia

Yang Yazhong

Prof. Castro Júnior Lançou recentemente seu blog “Zhong Centro em Harmonia”, com informações e links muito úteis aos que apreciam a arte do Tai Chi Chuan, a cultura, a língua e o pensamento chineses. Em 2014, foi reconhecido na China como discípulo do mestre Song Bin, 5a geração da Família Yang de Tai Chi Chuan, discípulo do Gran Mestre Yang Zhenduo. Retornou ao Brasil em junho de 2015, iniciando de forma ativa seus esforços no ensino e propagação do Tai Chi Chuan e da cultura chinesa pelo país, com intenção de difundir o Tai Chi Chuan por toda a América Latina. Atualmente prof. Castro Junior reside na cidade de São Paulo e viaja pelo Brasil dando palestras, cursos e seminários. 2 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br


EDITORIAL

Tai Chi - Será que entendo a essência do que pratico?

Tai Chi Chuan Taijiquan

Praticar uma arte como o Tai Chi vai muito além de apenas mexer os braços, os punhos e as pernas. Há todo um contexto histórico, filosófico e ético em suas raízes. O cuidado em prover essa linda “árvore” com terra boa e água pura é escolha de cada praticante. Cedo ou tarde, certamente, os frutos virão.

CAPA Mestra Shen Hai Min Foto: Acervo Chang Maia

O desejo de viver em harmonia, em consonância com a natureza, associado ao respeito aos seus semelhantes, sem sombra de dúvida, é um primoroso alento para a evolução de um indivíduo que, em essência, faz parte de uma coletividade.

Nessa edição, adeptos do Tai Chi Chuan compartilham um belo exemplo de quem intensamente viveu essa arte: a mestra Shen Hai Min. Vale a pena conferir!

Ler, refletir e meditar sobre o Tai Chi faz muito bem! Praticar então... sem palavras.

Levis Litz O Editor

Aos leitores da RTCB

Papel ou digital? A opção é sua! Visite a nossa página na internet em www. RevistaTaiChiBrasil.com.br. Você poderá ler a versão digital na tela do seu computador ou então baixar gratuitamente para ler mais tarde. Se preferir a versão em papel, basta baixar (fazer um “download”) e imprimir. Essa opção é a preferida de alguns colecionadores. A escolha é sua!

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EXPEDIENTE

Cenas & Momentos Bastidores

Em visita à Câmara de Comércio Brasil - China ... o editor da Revista Tai Chi Brasil foi recebido no dia 11 de outubro pelo Sr. Mário Virmond e o presidente da Câmara de Comércio, Sr. Tony - Chiu Cheng Yen.

Dia de Atelier Aberto ... a renomada artista plástica Dani Henning abre seu atelier ao público e compartilha o espaço para divulgação do Tai Chi.

Revista

Tai Chi Brasil www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

Curitiba - Paraná - Brasil Edição nº 31 | Novembro / 2018 ® Todos os direitos reservados Registro nº 401.197 / 2009 4° ofício de registro de documentos

Editor: Levis Litz

CNPJ: 20.259.228/0001-08

Capa Mestra Shen Hai Min Foto/Divulgação: Acervo Chang Maia Revisão Valesca Giordano Colaboraram voluntariamente nesta edição Ana Munhoz (Curitiba, PR) Chang Maia (Rio de Janeiro, RJ) Estevam Ribeiro (Rio de Janeiro, RJ) Marcelo Cardozo Demarco (Rio de Janeiro, RJ) Marcello Giffonni (Belo Horizonte, MG) Marcus Maia (Rio de Janeiro, RJ) Matheus Oliva da Costa (São Paulo, SP) Agradecimentos Câmara de Comércio Brasil - China Tony - Chiu Cheng Yen (Curitiba, PR) Arthur Dalmaso (São Paulo, SP) Castro Junior (São Paulo, SP) Claudio Montenegro (Joinville, SC) Dani Henning (Curitiba, PR)

Equilibrius (Ribeirão Preto, SP) Grupo Tai Chi Curitiba (Curitiba, PR) Mário Virmond (Curitiba, PR) Neusa Ramalho Silvério Niall O’Floinn (Galway, Irlanda) Rodrigo Leitão (Estância Velha, RS) Shen Hai Min (Hangzhou, China) Zhong Centro em Harmonia (São Paulo, SP) Revista Tai Chi Brasil revistataichibrasil@hotmail.com www.RevistaTaiChiBrasil.com.br Jornalista responsável Levis Litz - mtb 3865/15/52v pr LevisLitz@TaiChiCuritiba.com.br LevisLitz@hotmail.com www.TaiChiCuritiba.com.br www.FotoseRumos.com

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A Revista Tai Chi Brasil é um publicação de distribuição on-line gratuita e dirigida. Todos os textos e fotos aqui publicadas são colaborações concedidas de forma voluntária e gratuitas. Imagens com pouca definição são de responsabilidade de seus autores. Não é de responsabilidade desta publicação os artigos de opinião, fotos de divulgação, anúncios e também as opiniões emitidas em entrevistas e depoimentos, por não representarem, necessariamente, o pensamento do editor. Por questões de espaço, objetividade e clareza, a equipe editorial reserva-se o direito de resumir os textos recebidos e editar as imagens. A menção do conteúdo da RTCB pode ser feita desde que informada e citada a fonte.

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SUMÁRIO

14 MATÉRIA

Mestra Shen Hai Ming 03 __ Editorial

Tai Chi - Será que entendo a essência do que pratico?

04 __ Expediente

09

Cenas & Momentos Bastidores

08 __ Comentários & Opiniões

Leitores Tai Chi em revista por aí

09 __ Rádio Corredor

Nas ondas do Yin Yang

10 __

10

Ilustração Por Estevam Ribeiro

14 __ Matéria

Mestra Shen Hai Min

31 __

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Artigo Xíngyì quán


LITERATURA - Em inglês

Chen Taijiquan: Masters and Methods by Davidine Siaw-Voon Sim, David Gaffney

Chen Xiaoxing Wang Xian Feng Zhiqiang Chen Xiaowang Chen Zhenglei Chen Yu Zhu Tiancai Yu Gongbao

Entrevistas, insights e conselhos de treinamento dos principais mestres do Tai Chi Chuan do estilo Chen... Agosto 2018

Disponível na Amazon.com


MENSAGENS TAI CHI EM REVISTA POR AÍ Desde 2009... Que há muita gente lendo a Revista Tai Chi Brasil por aí... Isso tem!

Memória | Homenagem Capa da Edição nº 04 - Março de 2010 Tai Chi Chuan - Saúde e longevidade

Comentários & Opiniões . Sobre a maior dificuldade para um praticante

“Manter os ombros baixos, a coluna alongada o tempo todo, o pescoço também alongado, a respiração suave e a mente presente e tranquila.”

Quanta coisa já foi publicada, quantas dicas, curiosidades, matérias, fotografias, artigos... a boa notícia é que sempre poderemos reler qualquer edição. Seja digital, nas folhas de papel ou na tela de um computador... Se você é um desses admiradores do nosso trabalho, escreva para nós, comente, compartilhe... Participe! RevistaTaiChiBrasil@hotmail.com ou LevisLitz@hotmail.com

Arthur Dalmaso. Professor Tai Chi Chuan Yang. São Paulo, SP

“A maior dificuldade está em encontrar o equilíbrio para aperfeiçoar e desfrutar dos benefícios dessa pática de saúde Yin/yang. No meu aprendizado descobri que a transferência do peso da perna esquerda para direita, é uma chave para encontra o Tao! E vice e versa: da perna direita para a esquerda!”

Neusa Ramalho Silvério

“Acredito que cada um tenha dificuldades diferentes e muitas vezes descobri-las já é meio caminho andado para superá-las. No meu caso, o maior desafio é a continuidade. Flexibilidade, coordenação, postura, marcialidade, concentração, tudo se treina e se aprende, mas a continuidade, aquela motivação de treinar com o máximo de dedicação, diariamente, essa, sim, é difícil de conquistar. O professor Estevam Ribeiro, com o qual me formei em 2011, costuma frisar que é melhor treinar cinco minutos por dia do que cinco horas em um único dia da semana. Quando estamos no início da nossa história com o Tai Chi Chuan, em um momento de evolução rápida, é fácil fazer isso. A vontade de treinar está presente porque estamos percebendo o crescimento diariamente. Mas com o passar dos anos e uma dedicação consistente fica cada vez mais difícil alcançar esses momentos de grandes aprendizados facilmente perceptíveis. Nos primeiros meses, talvez até os dois ou três primeiros anos, o salto de desenvolvimento é muito grande, mas naturalmente, com o passar do tempo, vamos nos encaminhando para um período em que a prática parece não evoluir e, algumas vezes, até parece perder o sentido. Quando passo por esses momentos, sou muito agradecido aos meus alunos, pois sei que talvez teria deixado a prática um pouco de lado não fosse o compromisso de dar aulas e me aperfeiçoar para elas. Meu principal objeto de estudo, desde 2009, quando acabei de aprendê-la, é a Lao Jia e nela foco quase 100% da minha prática. Contudo, nos momentos de desânimo por conta dessas fases de pouca evolução perceptível, me afasto um pouco da prática com ela para “retomar o fôlego”. Quando isso acontece, direciono minha prática a outros treinos como o da espada, do guan dao, dos sabres, da Pao Chui ou até os mais básicos como zhan zhuang e chan si gong. Às vezes procuro parceiros para estudar um pouco mais sobre Tui Shou, Sanshou ou até mesmo sobre as aplicações. Esses são os artifícios que encontrei para seguir, firme e consistente, na prática. O fato é que muitas vezes a aparente estagnação chega e devemos seguir firmes no propósito de evoluir, pois quanto mais tempo permanecemos persistentes nesses momentos, maior será a satisfação do nosso salto evolutivo.”

Rodrigo Leitão. Professor Estilo Chen Atualmente mora e dá aulas em Estância Velha, RS

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Ana Munhoz, educadora física trabalha com atividade física para idosos em Curitiba

. Sobre a Revista Tai Chi Brasil “Parabéns pelo lindo trabalho.” Juarez Gurdjieff - Pedra Branca, SC “Estou maravilhado com o conteúdo.” Alberto Resende Monteiro - Caçapava, SP “Que linda revista!” Li Qingyun - Florianópolis, SC


RÁDIO CORREDOR

Nas ondas do A EQUILIBRIUS Centro Yang Chengfu de Tai Chi Chuan de Ribeirão Preto – Brasil celebra seu vigésimo aniversário. Para marcar essa passagem especial, em seu informativo de novembro, relembra seus anos de atividades. Parabéns!

Yin e Yang The 2019 International Tai Chi Chuan Symposium

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25 a 29 de maio de 2019

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Ilustração por Estevam Ribeiro

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Mestra Shen Hai Min

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MATÉRIA

Shen Hai Min “Quando você verdadeiramente aprende algo, você se dá conta de quão pouco você sabe”.

Quando eu já estava com 27 anos, um médico sênior, praticante de medicina tradicional chinesa, diagnosticou a minha doença como uma deficiência de energia vital no sangue e senilidade prematura. Ele me disse: “as medicações só conseguem melhorar a sua saúde até um certo ponto. Além disso, para piorar, o único exercício que você faz na vida é caminhar para hospitais e de volta para sua cama!”. Esse médico me apresentou a alguns pacientes crônicos que estavam, de fato, conseguindo se livrar de seus sofrimentos através da prática de Taijiquan, o que me encorajou muito.

Adágio chinês Como eu comecei a praticar Taijiquan1 Quando a minha mãe ficou grávida de mim, ela sentia um medo terrível das dores do parto. Então, ela decidiu envolver sua barriga com um longo tecido de seda bem apertado para que o bebê não crescesse muito e ela não viesse a sentir as dores que imaginava. Ela veio a ter um parto indolor, mas eu nasci fraca e doente. Minhas primeiras lembranças são de constante insônia, dores de cabeça fortes, tontura e falta de apetite. Essa fraqueza natural, tratada inadequadamente me deixou vulnerável a todos os tipos de doenças: icterícia aguda, hepatite, apendicite, inflamação estomacal, nefrite, artrite, desinteria e malária me acometeram uma depois da outra, incessantemente, minha saúde só piorando a cada dia. Eu tinha febre crônica e não conseguia manter nenhum emprego. Sempre buscando de alguma forma me curar, eu me sentia permanentemente mal e preocupada e ía a hospitais quase todos os dias, muitas vezes me consultando com médicos em três clínicas diferentes no mesmo dia. 1 Traduzido do texto em inglês, versão do original em chinês, escrito por ela, publicado na newsletter Slow Motion, da National Tai Chi Chuan Association. 14 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

A jovem Shen Hai Min Eu não podia aprender e praticar Taiji em casa sozinha. Eu tinha que caminhar até um parque onde havia grupos de prática, mas só essa caminhada já era extenuante para mim. Apesar disso, eu insisti e decidi levar comigo um banquinho, alternando trechos de caminhada com momentos de descanso sentada. No início, eu encontrei no parque um grupo de idosos que apenas ficavam batendo suas mãos repetidamente nas pernas, braços, pulsos e mãos. Essa prática era simples de seguir e eu, então, me juntei a eles. Após alguns dias, no entanto, eu comecei a perceber que nada acontecia, além disso e, assim, eu acabei perdendo o interesse. Eu lembrava do que o médico havia me dito e estava determinada a encontrar um professor de


Taiji. Eu não sabia nada sobre Taiji naquela época e não tinha a menor ideia de como ou onde eu poderia encontrar um professor. Mas, um dia, por acaso, me aconteceu de ver um mestre ensinando a um grupo no parque. Seus gestos eram calmos e vagarosos o que me pareceu apropriado à minha condição física e a prática deles era semelhante ao que eu já tinha visto sobre Taiji. Eu passei a observar atentamente aquela prática durante vários dias e, à medida em que meu interesse se aprofundava, eu fui começando a imitar o Taiji que eles estavam fazendo. Alguns dias mais tarde, uma pessoa percebeu meu interesse e me apresentou ao mestre, que era Cheng Shonghai, aluno do mestre Nin Chongming, um discípulo brilhante do falecido mestre Yang Cheng Fu. No início, a prática do Taiji era difícil e dolorosa. A artrite fazia com que certos movimentos fossem uma verdadeira tortura. Minhas pernas doíam e tremiam tanto, que eu mal conseguia subir os degraus da minha casa, depois do treino. Sempre que a minha vontade começava a fraquejar, eu me lembrava das palavras do médico. O exercício era a única esperança para me livrar de uma vida de fraqueza e doença. Na busca de uma melhora mais rápida, eu praticava Taiji constantemente. Depois de alguns meses, meu sono já apresentava melhoras e meu apetite aumentava! Definitivamente, eu me sentia melhor. No entanto, quando eu fui ao hospital para fazer os exames, observei decepcionada que alguns indicadores patológicos haviam piorado. Os índices de albumina e as taxas de sedimentação de eritrócitos haviam aumentado e o funcionamento de meu coração estava pior do que antes. Por sorte, um dos médicos, que era praticante de Taiji, me tranquilizou, dizendo que o meu sistema estava apenas se reajustando vagarosamente às minhas novas condições de vida mais ativa e que os resultados de aparente piora na saúde seriam temporários. Ele me garantiu que eu iria melhorando gradualmente se persistisse na prática e procurasse descansar e relaxar após os treinos. Assim, como eu percebia muita melhora em minha resistência, na minha mente e nas minhas emoções, eu me decidi a persistir nas práticas, em qualquer tempo, fizesse chuva ou sol, vento ou neve. O Mestre Cheng era um professor rigoroso que exigia precisão em cada movimento. Esse espírito era tudo

o que eu precisava. Eu prestava sempre muita atenção em suas aulas e palestras, observava suas demonstrações atentamente e praticava os movimentos repetidamente, buscando tanto agradar o professor, quanto a mim mesma. A cada dia, meu Taiji melhorava sensivelmente, mas alguns dos movimentos eram quase impossíveis de realizar para mim, por causa da artrite. A mais difícil de todas, lembro, era a postura “chicote simples agachado”, em que tinha que manter a espinha alinhada. A dor nas juntas me forçava a manter o traseiro arrebitado para cima o que não se conformava aos padrões exigidos. Muito frustrada, eu praticava em casa, com uma corda atando a minha perna a uma mesa, que usava como suporte, enquanto vagarosamente procurava agachar. Um dia, eu já me sentia bem satisfeita com a minha engenhosidade, quando a mesa virou e eu fui atirada ao chão! Logo que caí, ao invés de me lamentar, eu me levantei e amarrei a corda a uma janela, o que funcionou muito bem. Depois de muitas tentativas e erros, eu consegui, enfim, fazer o movimento corretamente! Vários anos de prática intensa me deram uma boa compreensão dos dez princípios básicos do Taiji postulados por Yang Cheng Fu e pela primeira vez em minha vida eu me sentia saudável e à vontade. Um checkup detalhado demonstrou que todos os indicadores patológicos tinham, agora, se tornado normais e minha febre permanente havia desaparecido! Eu me sentia orgulhosa de minha vitória sobre a doença e meus companheiros de prática me parabenizavam. As boas notícias sobre a minha incrível história de superação já se espalhavam através da comunidade de artes marciais na China, pelos ginásios e parques. A mídia soube de minha história e logo passei a receber convites para me apresentar diante de plateias em grandes eventos, tendo início, então, a fase pública de minha carreira nas artes marciais. Comecei a ser cercada por pessoas querendo estudar comigo. Mas até então eu só tinha estudado Tai Ji com o objetivo de curar minhas doenças e ficar em forma, sem qualquer preocupação em me tornar uma professora. Eu até imaginava que eu poderia prejudicar os iniciantes porque minha técnica não tinha sido desenvolvida com o propósito de ensinar e o meu conhecimento teórico era apenas superficial. Tentando não ter que lidar com as pessoas que queriam estudar comigo, resolvi deixar o parque onde vinha treinando há tantos www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 15


anos e ía de bicicleta para parques distantes, treinando em um lugar diferente a cada dia. Apesar disso, mais e mais pessoas desejosas de aprender Taiji me encontravam e pediam de todo o coração que as ajudasse e ensinasse. Eu, então, me lembrei das minhas primeiras aspirações para aprender Taiji e me dei conta de que, de fato, eu poderia vir a ser útil para as pessoas. Quando eu finalmente decidi que não procuraria alunos, mas que passaria a atender e ser útil a todos os que me pedissem ajuda, a minha carreira de Taiji atingiu uma nova fase. Um antigo adágio chinês diz: “Quando você verdadeiramente aprende algo, você se dá conta de quão pouco você sabe”. Eu comecei, então, a perceber que a minha inexperiência e o meu conhecimento superficial haviam se tornado obstáculos ao meu progresso e criavam dificuldades para o aperfeiçoamento dos meus movimentos. Por outro lado, mais e mais pessoas continuavam a me procurar para aprender e pareciam satisfeitas com a seriedade da minha abordagem. Ainda assim, frequentemente eu sentia que me faltavam palavras para me expressar de modo mais completo e exato, o que me tornou ainda mais consciente das minhas limitações. Estas percepções acabaram por me mostrar como avançar. Os anos de prática de Taiji tinham me ajudado a conhecer um pouco sobre as origens e as diferentes escolas de Taiji, principalmente sobre o estilo Yang. Na China continental, o Mestre Fu Zhong Wen era considerado o herdeiro genuíno e legítimo do Taiji Yang. Eu, então, fiquei determinada a estudar com ele. Por sorte, eu tinha um colega de artes marciais famoso e que vinha a ser um amigo antigo do Mestre Fu e ele conseguiu marcar um primeiro encontro entre nós. O Mestre Fu já era bem conhecido através de toda a China, e mesmo no mundo, pela pureza de sua forma e pelas suas invencíveis habilidades marciais. Ele era também famoso por sua ser um professor em nível de excelência e por sua compaixão, sempre disposto a ajudar os novatos e recém-chegados. Em nosso primeiro encontro, ele se empenhou enormemente para aferir a extensão de meus conhecimentos e habilidades. Ele me arguiu a respeito de diferentes movimentos. Eu dava sempre respostas sérias e, afortunadamente, obtinha comentários positivos. Deste 16 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

dia em diante eu passei a progredir na arte do Taiji sob a orientação pessoal do Mestre Fu.

O Mestre Fu adotava uma abordagem séria e

rigorosa em suas aulas. Após observar cada um de meus movimentos e gestos, ele indicava certos pontos chave e certos requisitos concretos para, então, demonstrá-los para mim. Eu ía refinando assim cada um de meus movimentos. Depois de algum tempo, ele passou a anotar os meus erros e a me indicar detalhadamente como corrigi-los. Ele insistia até que estivesse completamente satisfeito com a minha performance.

O Mestre Fu prestava atenção não apenas à

forma externa do Taiji, mas também para a forma interna, buscando atingir o equilíbrio perfeito entre o interno e o externo, a firmeza e a suavidade. Um dia, ele assistia a uma demonstração de uma delegação de praticantes de Taiji japoneses. Após uma mulher fazer uma boa apresentação, o Mestre Fu me pediu que fizesse comentários. Eu respondi que achava que sua forma não estava de acordo com os requisitos. “Sim!”, ele replicou, “ela não pratica os movimentos de passos sólidos. Sua movimentação de pernas deveria ser mais enraizada e estável”. Ele então passava a detalhar as questões teóricas e aplicadas envolvidas. Eu tive muita sorte em ter muitas aulas como esta.

Mestra Shen Hai Min e seu instrumento predileto: a espada


Depois de estudar sequências de mãos vazias, eu me voltei para o estudo das formas de espada e de sabre do estilo Yang. Lembro-me que Mestre Fu tinha uma velha espada de dois quilos que estava enferrujada pelos anos sem uso, mas, para me ensinar, ele decidiu comprar uma espada nova. Um dia, Mestre Fu me pediu para encontrá-lo em um restaurante islâmico. Quando eu cheguei, eu fiquei surpresa em ver que estavam com ele oito de seus discípulos sêniores. Após comermos, fomos ao estúdio fotográfico Wangkai, onde o Mestre e eu fomos fotografados juntos. Tratava-se de uma cerimônia de iniciação ao discipulado que tinha sido estabelecida pelo Mestre Yang Cheng Fu. Eu fiquei emocionada. Tornei-me, então, membro da Yong Nian Taiji Society, fundada na cidade natal da família Yang. Em seguida, fui apresentada por Mestre Fu também ao Mestre Yang Zhen Dou, o terceiro filho do Mestre Yang Cheng Fu, que também me deu muitas aulas e com quem sempre me correspondi para discutir muitas questões sobre Taiji. No ano de 1981, eu me sagrei campeã de Taiji, no Primeiro Campeonato de Taiji de Zheijiang. No meu coração, sempre senti que todas as honras se devem aos Mestres Cheng, Fu e Yang, pela formação de excelência que deles recebi.

de meu tornozelo haviam se tornado ossificadas. Eu não

A vida tem muitos momentos difíceis. Um dia,

que eu reavaliasse as minhas chances de recuperação. No

praticando em dupla, com entusiasmo, eu sofri uma

meu caso, nem havia erro de junção da fratura, apenas a

queda, fraturando seriamente o meu calcanhar esquerdo

ossificação das juntas, que impedia a movimentação do

e chegando a romper os ligamentos. Várias tentativas de

pé. Eu acreditei que conseguiria desfazer a ossificação,

imobilização em gesso fracassaram e tiveram de optar

tornando as juntas flexíveis novamente, se insistisse no

por imobilização com molde de aço. Eu fiquei muito

exercício. Então eu me decidi. Eu não aceitaria a derrota.

preocupada com as consequências dessa queda para o meu futuro. Embora imobilizada, eu continuei sempre a praticar ainda que os movimentos estivessem agora restritos à

conseguia sequer tocar o calcanhar no chão sem sentir uma dor excruciante e, para me locomover, precisei usar muletas. Tornou-se impossível para mim praticar o Taiji. Todos os anos de estudo e prática, todos os ensinamentos de meus mestres, todo o incentivo de meus alunos e companheiros de prática pareciam ter ido por água abaixo, irremediavelmente. Eu fui tomada pela angústia. Um dia, no entanto, eu me lembrei do caso ocorrido com o Grande Mestre da Ópera de Pequim, Gai Trao Tran, também famoso por sua arte marcial. Quando ele era jovem, havia fraturado uma perna e, por um erro médico, os ossos foram juntados fora de lugar, o que afetou enormemente tanto o seu desempenho no palco, quanto a sua prática marcial. O Mestre Gai considerava a sua arte mais importante do que a sua vida e tomou a decisão corajosa de quebrar novamente a perna para, então, juntar os ossos corretamente. Um famoso médico, então, conseguiu rejuntar o osso da perna apropriadamente e, após um período intenso de exercícios fisioterápicos, o Mestre Gai pôde retornar aos palcos, voltando a fazer grandes contribuições à Ópera nos anos seguintes. Essa recordação foi fundamental para

Meu novo regime de exercícios começou com

corridas bem curtas, mas intensas. Apesar da dor, eu

parte superior do corpo, na intenção de que a circulação

corria na ponta dos dedos. Eu relaxava a sola dos pés e,

da energia vital e do sangue contribuíssem para a cura. O

gradualmente, a corrida se tornava mais fácil. Em seguida,

médico me confortava, dizendo que eu não precisava me

eu voltei a praticar o Taiji, mas a mudança de peso de um

preocupar, pois estaria bem em alguns meses. Mas um

pé a outro, que no Taiji é prolongada e vagarosa, fazia

outro paciente me contou ter ouvido o médico comentar

que os ossos dos pés se movessem em direções opostas,

com as enfermeiras que eu era idosa e, como a fratura era

o que me causava uma dor extrema. Os movimentos mais

séria, eu ficaria aleijada, mesmo que eu me recuperasse.

difíceis me faziam suar muito e até chorar. Vendo minha

Essas palavras foram devastadoras para mim, foram como

dor e ouvindo meus gemidos, minha família ficou alarmada,

trovão em meus ouvidos. Em desespero, cheguei a rasgar

me pedindo que parasse os treinos, que só fariam minha

todas as minhas roupas de treino. Após dois meses, quando

situação piorar. Para não preocupá-los mais, eu passei a

o molde de aço foi retirado, diagnosticou-se que as juntas

acordar às 3:30 da madrugada, saindo silenciosamente www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 17


“Como a minha história de vida demonstra, o Taiji não é apenas uma arte marcial, mas também previne e trata diversas doenças, mantendo o corpo forte e saudável.” de bicicleta para treinar em um parque mais afastado, retornando à casa antes que todos despertassem. Durante todo esse período, o Mestre Yang Zhen Duo me mandava sempre cartas de encorajamento, oferecendo conselhos. Entre outros, ele me aconselhou a também praticar “Mind Boxing”, em que se prende o ar dentro do corpo e, assim, trabalha-se a união da mente e da respiração. Eu segui seus conselhos, o que me trouxe muitos benefícios. Não só meu tornozelo se recuperou, como minha respiração tornouse mais profunda e suave, contribuindo para aperfeiçoar imensamente o meu Taiji.

Essa minha luta com esse ferimento durou oito

meses. Quando retornei ao hospital, após esse período, os médicos e enfermeiras que haviam me tratado encararam a minha cura como se tivesse sido um milagre. Com relação ao meu Taiji, eu descobri que, embora algumas de minhas habilidades tivessem retrocedido um pouco, meus movimentos haviam se reajustado perfeitamente às novas condições. Em outubro de 1982, eu fui convidada pelo Comitê de Esportes de minha cidade a retornar às práticas na condição de treinadora e técnica. Nessa nova fase, eu venci diversos campeonatos de Taiji de mãos vazias e com a espada em Zeijang em 1986, 1987 e 1988, recebendo do governo da China os títulos de Técnica de Excelência e Treinador Nacional de Primeira Classe. 18 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

Em 1991, por razões familiares, eu emigrei para

os Estados Unidos e me estabeleci na cidade de Monterey Park, ao leste de Los Angeles, na Califórnia, onde eu tive a grata surpresa de descobrir que a arte do Taiji é muito popular e valorizada por muita gente, fora da China! Com a intenção de fazer amigos no novo país por meio do nosso amor comum pelo Taiji, eu tive a oportunidade de conhecer, ensinar e aprender com muitos praticantes e mestres na minha região. Com a ajuda desses amigos, eu participei de algumas atividades de Taiji. Em maio de 1992, eu ganhei o primeiro lugar na competição de Taiji com espada, no San Francisco Tiger Claw Spring Sports and Taiji Tournament. Meses depois, eu também recebi prêmios, demonstrando Taiji de mãos vazias e com a espada no Los Angeles Hai Hua Cup Invitation Tournament.

Como a minha história de vida demonstra, o Taiji

não é apenas uma arte marcial, mas também previne e trata diversas doenças, mantendo o corpo forte e saudável. A vida é um processo de transformação constante. Os jovens precisam fortalecer seu corpo e aprimorar suas funções vitais. As pessoas de meia idade precisam fortalecer suas funções vitais e se resguardar da senilidade. Os idosos precisam manter suas funções vitais e viver mais tempo com qualidade. A arte do Taiji, com seus princípios únicos, tem demonstrado, comprovadamente, efeitos positivos em todas essas faixas etárias. Desenvolvendo tanto a força interna, quanto a externa, a substância e a suavidade, o Taiji é capaz de curar muitas doenças crônicas. A vida existe em movimento.


A mestra Shen Hai Min chega aos Estados Unidos

Marcus Maia

nas proximidades de Los Angeles e logo começou a praticar no Garvey Park, perto da pequena casa onde veio a residir. Seu estilo preciso e sua radiante simpatia logo chamaram a atenção dos praticantes locais de Taiji e, quando a conhecemos, em dezembro de 1991, ela já tinha alguns alunos da comunidade asiática de Monterey Park, a quem estava ensinando a forma longa tradicional do estilo Yang, em 85 posturas que, mais tarde, viemos a saber ser a forma original codificada por Yang Chen Fu, que seu mestre Fu Zhong Wen procurava manter intacta. A primeira vez que a vi foi em uma manhã clara e fria de dezembro, quando fui ao Garvey Park, levado por Dan Paik, um dos diretores da National Tai Chi Chuan Association - NTCCA. Dan era, nesta ocasião, o entusiasmado diretor dos treinos de Taiji que acontecem no Bronson Park, em Hollywood, desde 1968, quando Marshall Ho’o estabeleceu ali práticas gratuitas regulares, nas manhãs de sábado.

Dan estava sempre atento à

cena de Taiji de Los Angeles. Levado por ele, já havíamos conhecido um grupo muito dedicado, em Chinatown, que

praticava

a

sequência

longa

Yang, repetindo-a três vezes, todas as manhãs, em um centro comunitário. No segundo semestre de 1991, chegava à Califórnia uma professora de Taiji Chuan que seria recebida, em fevereiro de 1992, pelos círculos de praticantes de Los Angeles, como uma extraordinary and definitive performer of Taiji form and sword e, posteriormente, em julho desse mesmo ano, veria seu desempenho na forma da espada Yang clássica em 54 posturas, consagrado com o primeiro lugar no Tiger Claw Championship, em São Francisco. Ela se chamava Shen Hai Min, natural de Hangzhou, China. Chegou com muita simplicidade a Monterey Park, uma pequena cidade

Desta vez, no entanto, Dan não poupou elogios, transbordando entusiasmo ao nos convidar para conhecer esta mestra recém-chegada da China que, segundo ele, tinha sido discípula direta de Fu Zhong Wen e que tinha uma forma limpa, encantadora, maravilhosa, fantástica – seus olhos orientais brilhando ao falar dela, sem economizar adjetivos, no estilo bem californiano. www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 19


onde a Grã Mestra foi apresentada ao círculo maior de Taiji da cidade. Foi na noite de sábado, dia primeiro de fevereiro de 1992. A mestra subiu ao palco e apresentou sua arte. E todos viram e reconheceram a grandeza do momento. Após a apresentação, Marshall também subiu ao palco e disse solene: “Agora, vocês vão poder beber da fonte”. Além de nós, muitos dos alunos do grupo de Marshall passaram a frequentar regularmente as aulas de Shen Hai Min, no Garvey Park. Marshall, que criara a NTCCA junto com seu professor Wenshan Huang, em 1962, era considerado o decano dos professores de Taiji Chuan nos Estados Unidos. O principal mestre de Marshall tinha sido aluno de Tung Ying-chieh, um dos alunos sêniores de Yang Cheng Fu. Marshall teve ainda, posteriormente, a oportunidade de estudar durante vários anos, diretamente com Tung Hu Ling, filho de Tung Ying-chieh e se considerava um praticante adepto do estilo Tung de Taiji. Shen Hai Min, por outro lado, havia sido aluna de Fu Zhong Wen, o grande mestre, considerado por muitos o principal aluno de Yang Cheng Fu, com quem Fu Zhong Wen começou a estudar com a idade de nove anos. Muitos dos discípulos de Yang Cheng Fu passaram a desenvolver seus próprios estilos, como foi o caso do estilo Tung. Shen Hai Min gostava de contar que ela, ao modo de seu mestre, tomou para si o objetivo de manter a forma original codificada por Yang Che Fu, o grande mestre dos grandes mestres do estilo Yang. Daí a propriedade de Marshall Ho’o ao se referir que beberíamos da fonte, naquela memorável noite. Pouco mais de um ano após aquele evento, Marshall veio a falecer, aos 83 anos, mas muitos de seus alunos estavam bem entregues à nova mestra, no movimento suave do Taiji.

Mas ela não encantou só a nós. Agora, com

a tradução da Chang, pudemos efetivamente nos comunicar com palavras e a primeira providência do Dan foi a de organizar um banquete de inverno em um grande restaurante chinês de Los Angeles, com um pequeno palco, 20 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

Marcus Maia com Marshall Ho’o no Bronson Park, em Los Angeles, 1992.

Fotos/Divulgação: Acervo Marcus Maia

A Chang tinha compromissos de trabalho na manhã seguinte, mas lá fui eu, na velha van do Dan. Ele, um pouco frustrado, porque a Chang não conseguira vir naquele dia. Lá chegamos e os adjetivos todos não fariam jus ao que vi! Até aquele momento, praticávamos as sequências curta e longa do estilo Yang, a 24 e a 108, que eram ensinadas pelo Marshall e seus alunos sêniores, no Bronson Park. Chegamos um pouco atrasados e ela já praticava com alguns alunos a 85, sua favorita. Literalmente boquiabertos, acompanhamos o desenrolar da sequência, meio que extasiados – os movimentos limpos, suaves, leves, mas substanciais. Ao final da prática, lembro das palavras do Dan: Não te disse?! Viu?! É o aço revestido em algodão de que falava Yang Cheng Fu! Com seus olhinhos vivos, sempre risonha, a grande mestra já tinha nos visto de longe. Nos aproximamos meio que sem jeito e a comunicação foi na língua universal da simpatia – só sorrisos. Alguns dias depois, a Chang pôde vir e aí, sim, a conversa com a mestra começou! Ficamos irremediavelmente encantados e passamos a frequentar os treinos, a princípio só aos fins de semana e, mais adiante, praticamente todos os dias, algumas vezes manhãs e fins de tarde. Estudaríamos com ela, entre dezembro de 1991 e julho de 1994, a forma tradicional longa em 85 posturas, a forma de estilos combinados em 48 posturas, a espada tradicional Yang em 54 posturas e a espada de competição, em 42 posturas. Sua didática era simples, mas poderosa. Suas correções, exatas. E suas demonstrações transcendiam a apreciação meramente visual, para emular sinestesicamente nos alunos a força espiralada do tecer da seda! Lembro dela contando que, uma vez, na China, em uma prática a sós em uma montanha, ela chegara a ouvir o som da energia trafegando e reverberando através de todo o seu corpo, como um zumbido cheio e contínuo. O rufar do tambor de que falava Cheng San Feng! Shen Hai Min é pura mágica! E transformou nossos dias e nossas vidas, durante aqueles dois anos e meio em que convivemos com ela em Los Angeles, evidência viva e cristalina da força emocionante do Chi que transborda de sua pessoa e envolve a todos que a conhecem em um manto suave e feliz.


Shen Hai Min na Califórnia

Chang Whan

Primavera Tiger Claw de Artes Marciais na cidade de São Francisco, California, no ano de 1992. Acostumada a participar de torneios e campeonatos na China, Shen lao-shi (teacher Shen) achou que seria um interessante desafio participar de algum evento similar nos EUA, e pediu para que procurássemos saber sobre alguma oportunidade nesse sentido. Assim foi que, surgida a oportunidade, fizemos a sua inscrição e, aproveitando um final de semana, a levamos em uma road trip com as crianças no banco de trás, de Los Angeles a São Francisco. Ela estava radiante com a oportunidade e com o passeio, tendo preparado duas caixas de deliciosos “dumplings” (pastéis cozidos no vapor), que fomos comendo com gosto, durante as cerca de 7 horas de viagem. As competições foram organizadas no ginásio de uma escola em São Francisco, e enquanto aguardávamos a sua vez, observávamos os outros competidores concentrados, aquecendo e treinando

Shen Hai Min na Califórnia, 1993.

nos corredores do lado de fora do ginásio. Estávamos muito animados

Shen Hai Min poderia ser a epítome da máxima “Não se deve julgar o presente pelo embrulho”. Ao vê-la caminhando em um bairro chinês, num subúrbio de Los Angeles, uma senhorinha baixinha, rechonchuda, com suas sacolinhas de verduras, e trajes simples, quem não a conhecesse, não poderia suspeitar que aquele invólucro prosaico contivesse tão extraordinária potência, conhecimento, domínio de técnica, e arte. Simpatia sim, humildade sim, logo se podia notar com breve interação. Com um pouco mais de tempo de convivência, impossível não perceber suas naturais e genuínas qualidades de generosidade e compaixão como ser humano e sensibilidade e perspicácia como professora. Não é de se admirar, portanto, que, por onde passou, conquistou a admiração e o respeito de todos, seja na China, nos EUA ou no Brasil. Foi assim que a desconhecida senhorinha Shen Hai Min, recémchegada nos EUA, conquistou o primeiro lugar pela sua performance impecável da espada Yang tradicional em 54 posturas, no Campeonato de

mas, naturalmente, um pouco ansiosos com a nova situação e o desafio à frente. Ao perguntar-lhe se ela não gostaria de treinar um pouco e repassar as sequências como faziam os outros competidores, com um sorriso, ela respondeu que não era preciso, pois ela já vinha sempre mantendo seu treino normal diário, e se limitou a fazer apenas um breve aquecimento e alongamento. Aí ela já passava para nós, os iniciantes na arte, uma importante lição: manter a constância e a regularidade dos treinos, como um hábito de vida. Um guerreiro não deve esperar a proximidade de www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 21


uma batalha para se preparar. Mais tarde, no seu indefectível uniforme verde água, subiria ao pódio, para a surpresa e admiração dos outros competidores, muitos deles jovens e atléticos grandalhões americanos.

de perceber se a forma era uma forma vazia, ou se tinha substância. A forma que contém substância, tem Jin, energia interna, essencialmente elástica e fluida, que se desenvolve e se cultiva com a prática. Com seu dedinho indicador a girar no ar, Shen lao-shi ensinava que o praticante deve sempre procurar manter o fio da meada do caminho interno do Jin do princípio ao fim, sem interrupção. Com tempo, o grupo de Monterey Park foi aumentando, e muitos alunos atravessavam a cidade para vir treinar com a professora Shen. A todos os

No pódio pela sequência de espada Yang 54, no Campeonato de Primavera Tiger Claw de Artes Marciais na cidade de São Francisco, California, no ano de 1992. Assim como se dá em relação à sua própria aparência externa, o receptáculo de seu poderoso e sutil domínio da arte interna, a professora Shen explicava e reiterava constantemente que na prática do Tai Ji, tão, ou ainda mais importante que o movimento exterior, mais visível, é o movimento interior, menos visível, e que todo movimento deve principiar internamente, a partir do dan tien, o centro vital, para então evoluir para uma manifestação exterior do movimento. O que é visível como movimento externo, resulta de um desencadeamento interno. Seu olho clínico era capaz 22 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

alunos, ela recebia como novos amigos. Costumava dizer, me pedindo para traduzir, “Estou na terra de vocês, eu quero é fazer amizades aqui. Eu ensino Tai Ji Quan para vocês, e vocês me ensinam a falar inglês.” Aos poucos, o idioma novo foi começando a fazer sentido, e assim como ela ria de suas próprias dificuldades e falas atrapalhadas, ela também achava muita graça dos desacertos de seus novos alunos. Com suas risadas espontâneas, ela distensionava seus novos aprendizes, que assim também aprenderam a relaxar e rir de seus próprios erros – algo bem inusitado para os padrões “politicamente corretos” americanos. Não demorou muito para que uma legião de alunos e fãs de todas as idades e procedências internacionais se agregassem ao seu redor. Quem teve a sorte de estudar com a Shen lao-shi, nos breves 5 anos em que viveu na California, sabe que teve o privilégio de ter “bebido da fonte”, como disse o mestre Marshall Ho’o.

“Espaços públicos são muito importantes para atingir pessoas que, muitas vezes, não têm acesso às aulas formais em centros de Tai Chi Chuan.”


Treino no Garvey Park, 1994.

Após o treino no parque, com seus alunos-amigos brasileiros, Marcus Maia, Chang Whan, Begoña Javares e Estevam Ribeiro, além de James, um aluno de Mianmar.

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A Mestra Shen Hai Min no Brasil

Estevam Ribeiro

Sendo discípulo direto do Grão mestre Chen Xiao Wang e tendo aprendido com vários mestres de Taijiquan em diversos países nas últimas quatro décadas, testemunho a mestra Shen Hai Min como a melhor professora e praticante de Taijiquan que eu já conheci, só ficando em segundo lugar para o GM Chen Xiao Wang e mesmo assim em determinados aspectos do Taiji, como a maestria da suavidade e elasticidade interna, Shen Hai Mim é a excelência; ela mesma é uma grande fan de CXW, a quem ela reverencia, no seu inglês básico “You see Chen Xiao Wang playing Taiji, you don’t want to see no one else; se você vê Chen Xiao Wang fazendo Taijiquan, você não quererá ver mais nenhum outro”. Uma maneira simples e direta de dizer o que para ela significava o ideal em termos de Taijiquan mesmo se tratando de um mestre de outro estilo. Shen Hai Min é especialista no estilo Yang tradicional. Gostaria de relatar como conheci a mestra e o que ela representa para mim. Em 1992 durante minhas férias, fomos eu e a professora Begoña Javares, visitar nossos amigos Marcus Maia e Chang Whan em Los Angeles onde estavam estudando. Marcus e Chang também como nós eram amantes do Taijiquan e tinham acabado de descobrir a mestra e me convidaram para conhecê-la. Logo que vi a mestra confesso que não me impressionou, uma senhorinha que me lembrava minha avó, gordinha, simpática, mas não me parecia uma mestra de Taiji. Naquele momento da minha vida eu já tinha 17 anos de taijiquan de estilo Yang e já dava aulas. Havia aprendido com o mestre Hu Hsin Shan, um mestre de grande conhecimento, que incluía no seu currículo estilos externos, Shaolin e Tantui, assim como estilos internos Taijiquan estilo Yang, Xin Yi Quan e Ba Gua Zhang.

Mestre Hu Hsin Shan 24 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

Além disso, enquanto comissário de bordo internacional, ao chegar em qualquer cidade eu sempre procurava nas listas amarelas as academias onde era ensinado Taiji e ia visitá-las, o que me permitiu conhecer vários outros estilos, assim como novos amigos neste mundo do Taiji. Apesar do Taiji ser uma arte suave, era raro encontrar mulheres na posição de mestres; e menos ainda uma senhora de aparência tão simples; portanto ela viria me surpreender da melhor maneira. Feitas as apresentações, como de praxe, ela me perguntou se eu fazia Taiji e me pediu para demonstrar. Eu apresentei a forma simplificada do mestre Hu. Ela gostou e elogiou dizendo que os princípios e a base estavam corretos, e que eu poderia melhorar. Ela me convidou para acompanhar a aula. Ela começou com um aquecimento que também não me impressionou no começo, parecia uma simplificação dos Qigongs que o mestre Hu usava, e que demandavam mais da elasticidade de cada um. Este aquecimento que ela usava era nada mais, nada menos que o Lian gong de 18 terapias, aquecimento que utilizo até hoje nas minhas aulas e que no final dos anos noventa chegaria ao Brasil através da Lucia Lee discípula do mestre Liu Pai Lin. Prática que teve muito sucesso em São Paulo e em todo o Brasil. Após o aquecimento ela começou a forma longa tradicional do estilo Yang. A forma Yang que Shen Hai Min ensina é a da linhagem de seu mestre Fu Zhong Wen.

Shen Hai Min e seu mestre Fu Zhong Wen


dos moradores são chineses do norte da China. Neste parque, havia vários professores e mestres ensinando todo o tipo de kung fu. Todos os dias de manhã, mas principalmente nos fins de semana via-se de tudo, Bagua, XinYi, Shaolin, vários tipos de qigongs, igual aos parques na China. Uma das coisas que me chamaram a atenção foi o fato de três dos professores chineses que já tinham suas turmas neste mesmo parque, virem ter aulas com a professora Shen Hai Min de espada Taiji que era sua especialidade. Logo percebi que não estava na presença de uma mestra comum. Shen Hai Min não gostava que a chamassem de mestra, mas sim de professora (Laoshi) ensinava mestres de taiji, alguns mais velhos que ela. Não é comum professores homens aprenderem com professoras mulheres e ainda por cima mais jovens.

Fu Zhong Wen ao lado do seu mestre Yang Cheng Fu Fu Zhong Wen foi o famoso discípulo e sobrinho de Yang Cheng Fu, portanto duas gerações após o criador. Para minha satisfação era quase igual à forma que o mestre Hu nos havia ensinado, com exceção de duas posturas, que acredito eu, foram acrescentadas pelo mestre Hu e a transição entre algumas posturas, como entre o chicote e mão nas nuvens. No entanto havia algo a mais, que me tocou de maneira surpreendente. Aquela senhora que me lembrava minha avó, quando na frente do grupo ergueu os braços para começar a forma, me trouxe a nítida sensação que eu só tinha experimentado como surfista; era como se uma grande onda se formasse no mar, a ponto de se elevar acima da linha do horizonte e todos do grupo (umas trinta pessoas) acompanhassem esse movimento invisível, mas plenamente presente. Pela primeira vez eu experimentei esta harmonia de um mestre através de seu grupo, o que os clássicos definem como um só JIN (expressão do Qi, energia) do começo ao fim da forma. Este princípio a ser cultivado individualmente nem sempre é experimentado em grupo, mas naquele momento, estava sendo vivenciado por todo o grupo e transbordava da Mestra. Ao acabar a forma entendi que ela estava num nível acima de qualidade do que eu tinha experimentado até então com o Taijiquan ​ Shen Hai Min ensinava num parque nos arredores de Los Angeles no condado de Monterey Park, uma grande Chinatown, onde a maioria

Quando voltei das férias, no mesmo ano de 1992 aproveitei uma licença sem vencimentos para ter um ano sabático, morando em LA e estudando Taijiquan com Shen Hai Min. Foi uma virada na minha vida. Foi o meu primeiro e definitivo salto qualitativo na arte do Taijiquan, a este salto se seguiriam dois outros, minha ida para Hong Kong um ano depois em 1993 onde eu aprenderia o estilo Chen com os mestres Chan Sok Kei e Chan Shek Oh, e em 1994 meu primeiro contato com meu mestre Chen Xiao Wang, ambos já relatados em números anteriores da Revista Tai Chi Brasil. Shen Hai Min foi a mestra que me fez perceber a dimensão Yin do Taiji de uma maneira simples e ao mesmo tempo profunda. Nunca vou esquecer suas aulas de observação do Taiji onde ela nos ajudava a construir uma apreciação justa do que era um Taiji de qualidade. Depois de um ano estudando com a mestra, voltei ao Brasil para retornar em 1995 para LA; desta vez fiquei 4 meses estudando regularmente com Shen Hai Min; foi quando convidei a mestra par vir ao Brasil. Ela aceitou e então começamos, eu Marcus Maia, Chang Whan e Begoña Javares hoje todos professores representantes do Taijiquan estilo Yang tradicional conforme ensinado www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 25


por Shen Hai Mim, a preparar o que viria a ser o primeiro workshop com nossa querida mestra no nosso país. Em abril de 1996 eu e a professora Begoña Javares recebemos a mestra Shen Hai Min para realizar um seminário em Petrópolis no Rio de Janeiro. Era a primeira vez que um mestre do estilo Yang de segunda geração da linhagem direta de Yang Cheng Fu vinha ensinar no Brasil. A mestra Shen Hai Min escolheu como matéria duas formas standard, compiladas pelo governo chinês as quais a mestra usava com os alunos iniciantes, antes de ensinar as formas tradicionais, eram a forma de mãos combinada dos 5 estilos principais de 48 posturas, e a forma de espada de 42 posturas.

mostrei a maneira como ela fazia. Ele confirmou dizendo que Fajin pode e deve ser praticado lentamente e que este é um dos caminhos mais seguros para se ter sucesso na execução de um bom Fajin. Hospedá-la nos permitiu conviver com uma pessoa maravilhosa. Agradeço ao destino por ter vivido tal privilégio. Nossas conversas informais a respeito da vida e de como aplicar o Taiji para lidar com suas dificuldades me ensinou muito. O workshop transcorreu maravilhosamente. Um grande sucesso que resultou num segundo seminário no ano seguinte em setembro. A segunda vinda Shen Hai Min foi em agosto de 1997 e o seminário foi sobre a forma tradicional Yang que dentro da escola de Fu Zhong Wen conta 85 posturas.

Mestra Shen Hai Min corrigindo Estevam Ribeiro

Na época nos anos 80 e 90 a forma Da Yang (grande forma Yang) de Yang Cheng Fu era, e continua sendo, a forma de Taijiquan tradicional mais praticada no mundo. E normalmente tinha a contagem de 105 posturas em escolas tradicionais, e na tradução standard do governo 88 posturas. A escola de Yang Zheng Duo conta 103 posturas, a escola de Fu Zhong Wen conta como 85 posturas, e estamos falando da mesma forma!!!!

O seminário foi realizado em dois workshops de fim de semana e quatro aulas coletivas durante a semana. Todos que participaram guardam até hoje uma lembrança cara deste momento especial. Nos seminários, através das formas Standards, SHM nos ensinou princípios básicos de base, mudanças de posturas, diferenças de estilos, assinalando problemas a serem evitados, correção de posturas, atitude mental e manipulação correta da energia Qi durante a prática. Um dos melhores momentos para mim durante este seminário foi a explicação de Fa Jin (expressão da energia explosiva). Esta é uma característica do Taiji em geral mais evidente do estilo Chen, mas sutil e quase oculta no estilo Yang, mais presente na espada e no sabre Yang do que na forma de mãos. Sabe-se que o estilo Yang de Yang Luchan e de seus filhos Baohou e Jianhou ainda tinham Fajin expressos, mas a partir da simplificação de Yangchengfu e Wujianquan esta característica do Taiji se torna imperceptível. Ao ensinar a 48 que se compunha dos 5 estilos, inclusive o Chen, SHM nos mostrou a essência do Fajin como nenhum mestre de Chen jamais me mostrou. Ela nos ensinou que o Fajin pode ser feito lentamente, e que essa seria a maneira correta de praticar para evitar qualquer tensão desnecessária na execução. Esta forma de executar Fajin me foi confirmada anos depois pelo próprio mestre CXW quando eu lhe 26 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

Shen Hai Min e Estevam Ribeiro L.A. 2004 Duas semanas antes de viajar a mestra sofreu um acidente. Sua saúde que já era frágil (vejam a tradução do Prof. Marcus Maia sobre a história de SHM), ela tinha ganho de seus alunos uma bicicleta, daqueles modelos antigos parecido com os da China, infelizmente parece que


os freios não funcionaram e ela bateu contra um poste afetando um dos joelhos, que a marcou definitivamente e até hoje, com medo de fazer uma cirurgia, ela sofre com esse problema no joelho. Entretanto, isso não a impediu de dar o seminário. Consegui que ela viesse de LA para o Rio num vôo onde minha prima que também era comissária da Varig conseguiu um atendimento diferenciado, o que permitiu que ela viajasse com apoio para a perna atingida. Ainda assim a recebemos verificando que mancava de dor. Neste seminário a forma tradicional foi abordada profundamente, no mesmo modelo do ano anterior: dois workshops integrais nos fins de semana com uma semana de aulas de aperfeiçoamento, a forma de mãos 85 e a forma de espada 54 foram ensinadas. No seminário da forma longa tradicional os dez princípios de YCF foram a bússola e o leme da prática. Como no ano anterior, as pessoas já tinham começado a apreciar o método e a presença da professora, desta vez aproveitaram para fazer perguntas mais interessantes, e a professora nos ensinou um jogo de sorteio com um dos dez princípios; que quem sorteasse um dos princípios tinha de exemplificar como seria em qualquer postura o correto e o incorreto perante o princípio. Um dos melhores momentos para mim durante este seminário foi quando durante um momento de folga eu e a mestra conversávamos sobre a qualidade do Taijiquan apenas ao observar alguém praticando a forma. Ela me perguntou como eu analisava estas qualidades. Eu respondi que minha análise era sempre com a concordância com os dez princípios de YCF e os clássicos do TJQ. Ela concordou e me disse, let’s make it simple: 1º: Você deve, ao a analisar a qualidade de um taijista, não importa qual estilo, começar pelos pés; se a direção dos pés, o enraizamento dos pés, ou a leveza dos passos não estiverem corretos, você não precisa olhar para o resto, tudo estará incorreto. 2º: Se os pés estiverem corretos, você deve observar as pernas como um todo, se cheio e vazio não forem diferenciados, se a passagem de peso não for fluida, se não houver equilíbrio entre leve e pesado, entre forte e flexível, excesso de peso causando estagnação, ou excesso de leveza causando flutuação, então você não precisa mais olhar o resto... 3º: Se pés e pernas estão corretos, você deve observar a cintura; se os movimentos não nascem da cintura, se a base da coluna não está relaxada, se o abdome está contraído e se não existe diferenciação entre cheio e vazio na cintura, então você não precisa olhar o resto. 4º: Se pés, pernas e cintura estão corretos, você deve considerar as costas ombros e tórax. Se os movimentos gerados na cintura não atravessam com suavidade as costas, isso se reflete num congelamento dos ombros e tórax, geralmente inflando o peito e arrebitando a lombar, ou ao contrário, criando um colapso do peito e desalinhamento da cabeça em relação à coluna. Se for assim, não precisa olhar o resto. 5º: Se pé, pernas, cintura e tronco estiverem corretos, aí então você considerará braços e pulsos; começando pelos cotovelos. Cotovelos quase nunca devem estar acima dos pulsos e mais raramente ainda acima dos ombros. Entretanto não devem estar totalmente vazios e tendo uma das oito energias atribuídas especialmente a eles, ZHOU, os cotovelos devem estar vivos, e com alternância clara entre cheio e vazio, entre expandir e recolher,

entre avançar e recolher. Depois os pulsos, estes devem se comportar como a saída de uma mangueira d’água usada para regar plantas; se o pulso estiver muito angulado a água (Qi) não poderá passar, se ele estiver muito relaxado, a água não será projetada para longe. É preciso que o pulso arqueie e relaxe alternadamente para que se crie a pressão necessária para que a água vá longe. Se braços e pulsos não estão corretos, você não precisa olhar o resto. 6º: as mãos; as mãos refletem o Qi, e seu alcance. Quando as mãos não estão vivas é porque o Qi não alcançou os dedos, menos ainda foi projetado além das mãos como deveria. Se as mãos estão tensas demais, ou se os dedos estão curvados e relaxados demais, as mãos estão mortas, você não precisa olhar o resto. 7º: Se pés, pernas, cintura, tronco, braços e mãos estão corretos você deve considerar o pescoço e o alinhamento da cabeça. Se o pescoço está tenso, se a cabeça está inclinada, ou balançando de um lado para o outro como se flutuando, o Qi não está circulando propriamente, você não precisa mais olhar o resto. 8º: Se todo o corpo estiver correto, o que devemos observar em seguida são os aspectos internos, começando pelas seis harmonias ou Liu He. As três harmonias se dividem em três externas e três internas. Mãos e pés, cotovelos e joelhos, ombros e cintura são as harmonias externas. O espírito e a intenção, a intenção e o Qi, o Qi e a postura são os aspectos internos. Quando todos estes aspectos e princípios são observáveis, o praticante está no caminho do cultivo e dificilmente se desviará.

Hangzhou 2008 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 27


Ressonância Taiji

Este foi o conceito do Taiji que somente Shen Hai Min abordou em toda a minha aprendizagem com grandes mestres. Ela dizia que a prática do Taiji devia causar uma ressonância tanto no praticante como para quem o estivesse assistindo. Essa ressonância deve ser, segundo SHM, como após tomar o gole de um bom vinho, o gosto permanece, mesmo depois de algum tempo. Ao apreciar o Taiji devemos experimentar este prazer único. Se isso não acontecer é porque, tal qual o vinho, o taiji não seria de qualidade suficiente. E é essa qualidade que devemos procurar no nosso Taiji e no Taiji daqueles que seguimos. Embora no estilo de mão, Shen Hai Min seja extraordinária, na espada ela transmite Shen Ming, brilho espiritual. Tendo aprendido vários estilos de espada, ela me disse que fazia inclusive espada Chen Taiji e espada dupla, quando começou a praticar com Fu Zhong Wen este a aconselhou a abandonar todos os outros estilos de espada e só treinar a espada Yang, o que ela fez durante muitos anos e alcançou a maestria, e pode mais tarde voltar a praticar para competir e ensinar os estilos standard como a espada 32 e a espada 42. Em todos os campeonatos que entrou competindo com atletas bem mais jovens, ela ganhou sempre o 1º lugar com espada Taiji.

neto de Yang Zhengduo, James Fu, neto de Fu Zhong Wen, Alex Dong neto de Dong Yun Jie, todos famosos e graças à internet podemos apreciar os estilos destes grandes mestres. Hoje avaliando o que aprendemos do estilo Yang com Shen Hai Min e principalmente o que evoluímos sob sua tutela, nos faz sentirmos o privilégio de termos estado no lugar certo na hora certa de aprender com uma mestra embora não famosa, no entanto uma jóia do mais puro brilho que o Taiji poderia expressar num ser humano.

Imensa Gratidão Lao Shi!

Estevam Ribeiro

Dizem na China que o que diferencia um estilo externo de um estilo interno, é que podemos copiar o externo e aprender um pouco, mas ao copiar um estilo interno sem ajuda de um mestre não é possível. Outro grande ensinamento que ela expressava era o que ela chamava de “setting”, ou seja quando uma postura finaliza, o corpo quase para mas o Qi não para. Fiz um clip no Youtube da professora fazendo a postura escovar os joelhos, que exemplifica este “setting the posture”, segundo Shen Hai Min.

Procurem no Youtube em “Shen Hai Min Brush Knee study”

A última vez que estivemos com a mestra foi em sua cidade Hangzhou em 2008, onde fomos em grupo para estudar um seminário da espada Yang tradicional. Quando se fala em estilo Yang hoje temos como grandes referenciais Yang Jun, 28 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br

Shen Hai Min e Estevam Ribeiro Hangzhou 2008


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Encontro com Shen laoshi em 2018

Chang Maia

nos jardins do condomínio. “Não posso parar de me exercitar!” A cabeça, essa ainda está boa, afirma com orgulho. Relembrar memoráveis episódios vividos é um prazer que compartilha com gosto com suas visitas. Ocasiões em que buscar nos arquivos da memória lembranças de tempos e lugares percorridos, nomes estrangeiros, gentilezas recebidas e prestadas, e episódios de apuros em terras estrangeiras que, depois de passadas, podem render boas risadas. Boas lembranças de uma vida plena e realizada, com superações, conquistas, reconhecimentos, andanças pelo mundo e, sobretudo, laços de amizade.

Shen laoshi, ou professora

Shen, vive atualmente em um moderno e agradável condomínio de apartamentos, perto da filha Dandan e família, em um subúrbio nos arredores da cidade de Hangzhou. Aos 83 anos, Shen laoshi já sente o peso da idade e os joelhos, em decorrência de histórico de acidente e cirurgias que, no entanto, não a impedem de manter suas atividades físicas de forma moderada e regular 30 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br


Xíngyì quán

Mestre Wu Cháoxiàng, ou simplesmente mestre Wu, tinha grandes capacidades e conhecimento nas Artes Marciais Chinesas, e, em particular, no Xíngyì quán, esta arte marcial chinesa que pode ser de difícil aprendizagem, mas de grande importância no mundo marcial. Ela vem sendo treinada e ensinada através de um grupo de ex-alunos do mestre Wu. Existem ainda outros ex-alunos pelo Brasil, mas não temos relatos de estarem em atividade na transmissão dos conhecimentos adquiridos. Esse grupo de que faço parte, tenta transmitir os ensinamentos recebidos para honrar a memória e os esforços do mestre Wu de ensinar e de manter viva esta prática de “Kung Fu”. Em 1972 mestre Wu emigrou para o Brasil, mudando para o Rio de Janeiro em 1973 e em 13 de agosto de 1977 fundou o Instituto de Cultura Chinesa onde passou a ensinar Artes Marciais e Acupuntura. Dentre elas, o Xíngyì quán originário de Shānxī, na China, que aprendeu com o mestre Bù Xuékuān na região de Tàigu. Já o mestre Bu aprendeu com Chē yì zhāi (também conhecido como Chē Yong’hóng). E o nome de família deste mestre passou a denominar este estilo como Chē de Shānxī. O Xíngyì quán era considerado como uma arte secreta e de difícil aprendizagem devido às exigências físicas e psicológicas dos praticantes. Só para ilustrar, em algumas escolas a postura ou base primordial - Sān ti shì é praticada durante 03 anos e só depois que são ensinados os movimentos.

No Brasil, mestre Wu era mais “flexível” e o curso no Centro de Cultura Chinesa, localizado na Rua Sete de Setembro, Centro - RJ, durava 03 anos e aprendíamos um conteúdo mínimo que continha as bases, os cinco “elementos” ou agentes (metal, água, madeira, fogo e terra), as sequências dos cinco elementos, os 12 animais (dragão, tigre, macaco, cavalo, serpente, galo, andorinha, falcão, lagarto ou crocodilo, fênix, águia, urso ou águia-urso), o Qìgōng (para cultivar, circular e disparar a energia), e só depois as práticas de “dois a dois”. Mas, antes de iniciarmos as aulas, tínhamos que praticar um conjunto de exercícios variados como aquecimento. Outra curiosidade é que nos primeiros anos as aulas eram ministradas com as portas fechadas, só os praticantes poderiam permanecer no recinto. O Xíngyì quán prepara o estudante para a vida, ensina a arte de lutar não só em lutas, como no dia a dia, capacitando física e mentalmente o praticante que adquire agilidade, coordenação, velocidade e equilíbrio. Preparando-o através do controle do fluxo interno de energia para dar resposta imediata e controlar o oponente. Desenvolve o autoconhecimento ajudando-o a entender melhor a si e os que o cercam. Assim consegue adquirir uma melhor saúde e um comportamento mais tranquilo, evitando desta forma, conflitos desnecessários. Durante meu aprendizado tive a oportunidade de aprender com o mestre Wu e um de seus melhores

alunos (dos que conheci, o considero o melhor) o professor Sérgio Pedro. Este depoimento simboliza e exemplifica o aprendizado do Kung Fu. “O segredo do Kung Fu consiste em não aprender Kung Fu, pois aprender é um sistema formatado. O segredo do Kung Fu, como repetia mestre Wu, é prática. Compreender que aprender é uma forma, mas praticar não tem forma, pois é a alma* do praticante que manifesta o estado de espírito da arte. Assim, há que se compreender que o Kung Fu não é feio nem bonito... O Kung Fu é o retrato do que se passa no interior do praticante em um momento, então o Kung Fu pode ser triste ou alegre, calmo ou agitado, falso (forma sem a alma) ou verdade (alma no movimento)..., enfim, é a arte que exprime o sentimento. Por isso, mestre Wu dizia: “saber Kung Fu é desaprender tudo que aprendeu”. Significa perder a forma para encontrar-se, a si mesmo, quando treina... É esvaziar a mente e encher o coração. É sentir o quanto somos grandes dentro de nós e o quanto somos pequenos dentro do mundo... O quanto somos o todo e o quanto somos o nada” (Professor Sergio Pedro). Assim, praticando Xíngyì quán poderemos alcançar o verdadeiro “Kung Fu” modificando e melhorando as nossas vidas. Para mim foi um agente de transformação influenciando na minha vida pessoal, profissional e familiar. * Nota: Alma neste texto pode ser simploriamente definida como sentimento ou expressão da sua energia vital.

Marcelo Cardozo Demarco Colaboração: Marcello Giffonni e Matheus Oliva da Costa

Mestre Wu e prof. Sérgio Pedro

Prof. Marcelo na base Sān ti shì

www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 31


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