REVISTA
DESDE 2009
Tai Chi Brasil
Edição nº 32 - Distribuição on-line gratuita e dirigida
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Profa. Luiza Ines Wisniewski
Entre dois traços: a interculturalidade e a prática do Tai Chi Chuan no ocidente
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EDITORIAL
CAPA
Profa. Luiza Ines Wisniewski Praça do Tai Chi - Curitiba (PR)
Singularidades da prática cotidiana
Tai Chi Chuan Taijiquan
O entendimento do Tai Chi tem constituído um exercício constante para aqueles que se ocupam na formação das novas gerações de orientadores da arte. Esse propósito tem assegurado mais espaço entre aqueles que vivem a rotina dos movimentos associados ao estudo da teoria. Da fonte de conhecimento, gotas são absorvidas e, com um olhar ímpar sobre a cultura, tão rica, tão vivida, e a crescente formação de professores, tão comprometidos, tão vividos, somados aos voluntariados, seminários, cursos..., fazem aflorar singulares momentos, um prisma ímpar que escapa, às vezes, ao escopo comum da maioria. Que maravilhoso quando esse prisma é compartilhado a “portas-abertas” e todos, indistintamente, podem se beneficiar! Desta forma, nessas páginas apresentamos: “a interculturalidade e a prática do Tai Chi Chuan no ocidente - entre dois traços”, da psicanalista Luiza Ines Wisniewski; o artigo “Tai Ji Quan e Saúde na Doença Renal Crônica”, de Angela Deise e Chang Whan; poesia, do Caetano - entre outros pingos de informação. Agora é com você... a leitura é sua! Levis Litz O Editor
Aos leitores da RTCB
Papel ou digital? A opção é sua! Visite a nossa página na internet em www.RevistaTaiChiBrasil.com.br. Você poderá ler a versão digital na tela do seu computador ou então baixar gratuitamente para ler mais tarde. Se preferir a versão em papel, basta baixar (fazer um “download”) e imprimir. Essa alternativa é a preferida de alguns colecionadores.
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EXPEDIENTE
Cenas & Momentos Bastidores
Iniciativa de leitores Brasil afora ... muitas revistas Tai Chi Brasil foram impressas e distribuídas por professores de Tai Chi Chuan do Rio de Janeiro (foto), Minas Gerais e Paraná. Bem bacana essa atitude, parabéns! Foto: Mei Chang Maia em Niterói, RJ.
Curso de Pós-graduação em Tai Chi Chuan ... o editor da Revista Tai Chi Brasil ao lado da professora Luiza Ines Wisniewski na ocasião em que ela concluiu seu curso de pós-graduação.
Revista
Tai Chi Brasil www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
Curitiba - Paraná - Brasil Edição nº 32 | Abril / 2019 ® Todos os direitos reservados Registro nº 401.197 / 2009 4° ofício de registro de documentos
Editor: Levis Litz
CNPJ: 20.259.228/0001-08
Capa Luiza Ines Wisniewski Foto: Levis Litz / Fotos e Rumos Revisão Valesca Giordano Colaboraram voluntariamente Angela Deise (Niterói, RJ) Chang Whan (Niterói, RJ) Estevam Ribeiro (Rio de Janeiro, RJ) Filipe Kluppel (Curitiba, PR) Luiza Ines Wisniewski (Curitiba, PR) Marcus Maia (Niterói, RJ) Rodney Caetano (Curitiba, PR) Agradecimentos Arthur Dalmaso (São Paulo, SP) Claudio Montenegro (Joinville, SC) Equilibrius (Ribeirão Preto, SP)
Fernando De Lazzari (Ribeirão Preto, SP) Grupo Tai Chi Curitiba (Curitiba, PR) Grupo ToTao (Niterói, RJ) Mei Chang Maia (Niterói, RJ) Revista Tai Chi Brasil revistataichibrasil@hotmail.com www.RevistaTaiChiBrasil.com.br Jornalista responsável Levis Litz - mtb 3865/15/52v pr LevisLitz@TaiChiCuritiba.com.br LevisLitz@hotmail.com www.TaiChiCuritiba.com.br www.FotoseRumos.com ---------------------------------------www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
A Revista Tai Chi Brasil é um publicação de distribuição on-line gratuita e dirigida. Todos os textos e fotos aqui publicadas são colaborações concedidas de forma voluntária e gratuitas. Imagens com pouca definição são de responsabilidade de seus autores. Não é de responsabilidade desta publicação os artigos de opinião, fotos de divulgação, anúncios e também as opiniões emitidas em entrevistas e depoimentos, por não representarem, necessariamente, o pensamento do editor. Por questões de espaço, objetividade e clareza, a equipe editorial reserva-se o direito de resumir os textos recebidos e editar as imagens. A menção do conteúdo da RTCB pode ser feita desde que citada a fonte.
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SUMÁRIO
16 MATÉRIA
Luiza Ines Wisniewski 03 __ Editorial
Singularidades da prática cotidiana
04 __ Expediente
Cenas & Momentos Bastidores
08 __ Comentários & Opiniões
08
Leitores Tai Chi em revista por aí
09 __ Rádio Corredor
Nas ondas do Yin Yang
12 __
12
16 __ Texto
32 __
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Artigo Tai Ji Quan e Saúde na Doença Renal Crônica
33 __
Entre dois traços - a interculturalidade e a prática do Tai Chi Chuan no ocidente
Poesia Tai Chi Chuan Fotos ToTao - Niterói
MENSAGENS TAI CHI EM REVISTA POR AÍ Desde 2009... Que há muita gente lendo a Revista Tai Chi Brasil por aí... Isso tem!
Memória | Homenagem Capa da Edição nº 10 - Abril de 2011
Comentários & Opiniões “Muito grato por nos presentear com uma revista tão importante para praticantes e afins. Pratico Taichi há doze anos dos quais um ano voltado à família Yang. O caminho é longo na busca do equilíbrio de yin & yang. Abraço fraterno.” Roger R. Barthel - Recife
Quanta coisa já foi publicada, quantas dicas, curiosidades, matérias, fotografias, artigos... a boa notícia é que sempre poderemos reler qualquer edição. Seja digital, nas folhas de papel ou na tela de um computador... Se você é um desses admiradores do nosso trabalho, escreva para nós, comente, compartilhe... Participe! RevistaTaiChiBrasil@hotmail.com
“Fiquei feliz ao descobrir a revista. Pratico Taiji há uns três anos e tenho pesquisado sobre. Ter conteúdo relacionado é sempre enriquecedor!” Mateus Afrânio
Tai Chi News é um grupo no WhatsApp em que os membros recebem e acompanham as novidades, eventos, dicas, humor, arte e informações que envolvem o Tai Chi. A intenção é que seus membros apreciem e sintam-se à vontade para saírem e retornarem em qualquer momento. Quer receber as mensagens? Envie por whatsapp (41) 98409-6858: “Quero Tai Chi News!” Publicado originalmente pelo Tai Chi News Dica | “Os Passos Mágicos” - Surgiram da inspiração no Quadrado Mágico (uma tabela com números em progressão aritmética em que a soma de cada coluna, de cada linha e das duas diagonais são iguais). Conta a lenda que o “Quadrado Mágico” surgiu na China há milhares de anos, às margens de um rio, e que seus números apareceram em uma tartaruga que simboliza longevidade. A prática dos “Passos Mágicos” tem como objetivo fortalecer as pernas, os tornozelos e os pés. Recomenda-se não fazer se a pessoa tiver problemas nos joelhos. Como fazer “Os Passos Mágicos” - Desenhe no chão, conforme a sequência da ilustração, marcas de pés numeradas de 1 a 9. Comece a pisar com o pé esquerdo no número 1, com o pé direito no número 2 e assim sucessivamente até o número 9. Nota - Na Praça do Tai Chi, em Curitiba, há dois quadrados dos “Passos Mágicos” disponíveis aos frequentadores.
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Filipe Klippel | Curitiba - PR
. Queremos saber a sua opinião sobre a Revista Tai Chi Brasil A revista Tai Chi Brasil existe desde 2009, vai completar 10 anos de existência. Qual é a importância, para você, de haver publicações sobre Tai Chi no Brasil e no mundo? Compartilhe com a gente sua opinião!
RÁDIO CORREDOR
Nas ondas do
Yin e Yang The 2019 International Tai Chi Chuan Symposium
ITÁLIA
25 a 29 de maio de 2019
Yang Family Tai Chi Chuan Foundation
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Vivências Tai Chi Pai Lin em fins de semana O Tai Chi Pai Lin é o conjunto de práticas de origem milenar taoísta para a saúde, longevidade e o caminho da iluminação transmitidas pelo Mestre Liu Pai Lin.
Associação Tai Chi Pai Lin / Espaço Luz | Jerusha Chang. Rua Fradique Coutinho 1434 www.taichipailin.com.br
Tai Chi for kids
3-6 anos
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Em Niterói... Começar o dia fazendo Tai Ji...
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Horto de Itaipu Sábado: 8 hs – estilo Yang
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ARTIGO
Tai Ji Quan e Saúde
na Doença Renal Crônica Por Angela Deise e Chang Whan
O corpo se torna naturalmente leve Quando a harmonia suprema é plena O clássico do Selo da mente do Imperador de Jade
Durante o processo de adoecimento e a tomada de conhecimento da gravidade e irreversibilidade de uma doença crônica, as pessoas envolvidas podem passar “pelos seguintes estágios emocionais descritos na literatura médica: negação, isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação, resultando em adaptações relacionais e situacionais” (SCHOR e DINIZ, 2006). Tudo se complica quando na vida da pessoa começam alterações na rotina, influenciando em escolhas pessoais e familiares. Uma sensação ruim de que já não somos mais nós mesmos, de perda de identidade, como se o chão tivesse sido retirado e, repentinamente, não soubéssemos mais onde estamos pisando. A aceitação de uma doença crônica inclui o tratamento prolongado, a irreversibilidade do quadro clínico e a submissão a medicamentos e terapias continuadas. São situações em que se observam mudanças corporais e sofrimento psíquico, bem como uma nova forma de encarar a vida. A ênfase do cuidado deve recair na qualidade de vida do ser humano, e não para a doença em si (SCHOR e DINIZ, 2006). Na literatura, tudo parece redondinho. No dia a dia do embate com a doença passamos a compreender a saúde como um processo criativo, que permite lidar com as adversidades da vida de um modo transformador. É tudo muito desafiador. Descobri que é muito importante, no adoecimento e na busca da saúde relativa, a percepção do que é essencial para o bem viver. Nem sempre é fácil manter o foco em um estado de saúde dentro da “desorganização” que a doença acarreta. 12 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
Busquei o Tai Ji Quan em 2006, após o meu terceiro transplante renal. Como muitos que passam pelo pátio do MAC (Museu de Arte Contemporânea de Niterói), fiquei extasiada olhando a instrutora conduzindo os “treinos” iniciais, que depois vim a saber se tratarem de exercícios de Lien Gong (exercícios terapêuticos fundamentados na Medicina Tradicional Chinesa). O Tai Ji Quan é uma antiga técnica corporal chinesa, uma arte marcial interna, que objetiva o equilíbrio do indivíduo como um todo: físico, mental e espiritual. Ele resulta de milhares de anos de experiência dos chineses no cultivo da energia (Qi) para promover saúde e longevidade, expandir a mente, alcançar diferentes níveis de consciência e mesmo desenvolver a espiritualidade. Sentindo que aquilo era bom, me aproximei e comecei a praticar com o grupo. Sendo o Tai Ji uma prática orientada pela tradição Taoista, imaginei que poderia regular o meu ritmo acelerado e minha respiração por meio dos movimentos lentos e suaves da prática. Aos poucos, fui entendendo que a pressa e os hábitos corridos do dia a dia da vida moderna constituem uma rotina pouco saudável. Com a nova prática, pude me reaproximar da natureza e repensar meu cotidiano. Comecei a estudar os princípios do Tai Ji enquanto praticava e descobri um pouco sobre a meditação em movimento. A instrutora Chang Whan é professora de Tai Ji Quan em Niterói desde 1995 e, com a paciência de uma verdadeira mestra, aos poucos foi me apresentando sobre a teoria e a prática da arte. O Tai Ji Quan (também comumente grafado Taijiquan ou Tai Chi Chuan) é uma antiga prática holística
chinesa que vem sendo incorporada ao cotidiano da vida moderna de muitos chineses, bem como, e, cada vez mais, na vida de entusiastas praticantes no mundo todo. Originalmente proveniente do sistema das artes marciais chinesas, a prática do Tai Ji Quan seguiu um curso de desenvolvimento próprio, distinto, focado mais no cultivo da saúde e do bem-estar, do que propriamente na destreza da luta ou da defesa pessoal. Em consonância com os fundamentos da Medicina Tradicional Chinesa, a saúde e o bem-estar devem ser cultivados de forma holística, ou seja, integrando o corpo, a mente e o espírito num todo orgânico. Tal concepção remonta aos ensinamentos da doutrina Taoista, que concebe uma interligação entre tudo o que há através de um contínuo movimento dinâmico entre os opostos complementares, simbolicamente representados pelas duas polaridades energéticas YIN e YANG. Tai Ji Quan se traduz como a “arte marcial da suprema polaridade”. Representado graficamente pela mônada chinesa, o símbolo do yin-yang é descrito por Al Huang (1999) como “o entrosamento, a união-dissolução do movimento dentro de um círculo cujas energias semelhantes, e ao mesmo tempo contrastantes, movemse juntas”.
internas, sejam físicas, sejam emocionais. No Tai Ji, os movimentos são externamente leves e suaves, mas internamente são geradores de energia vital. Os movimentos, aparentemente suaves, são gerados internamente a partir do sítio da energia vital, o “Dan Tien”, localizado numa região interna do corpo, três dedos abaixo do umbigo, de onde o “Qi”, a energia vital, emana e se propaga por todo o corpo durante a prática. A suavidade no Tai Ji, portanto, não é vazia, é uma suavidade com substância, carregada de energia vital, plena de “Qi”. Segundo os princípios das artes marciais, o corpo não é considerado um inimigo, mas sim, uma grande e preciosa ferramenta, e a mente, não é considerada um fim, mas uma ponte. Os exercícios de meditação em movimento como o Tai Ji Quan, Lian Gong, Chi Kung entre outros, têm como principal objetivo a promoção e a manutenção da saúde por meio de técnicas respiratórias, meditação, posturas e movimentos fluidos e contínuos. Podemos encontrar muitos relatos de estudos realizados na área médica atestando os efeitos da prática regular do Tai Ji Quan sobre as condições físicas, fisiológicas e de saúde de uma forma geral. Algumas pesquisas na área de geriatria e medicina do esporte buscam a comprovação dos efeitos benéficos da prática regular do Tai Ji na manutenção do equilíbrio corporal, no controle da pressão arterial, na fibromialgia e na artrite.
Nessa representação gráfica, dentro da área em negro notamos um ponto branco; e na área branca em forma que lembra um peixe, um ponto negro. A ideia básica seria demonstrar que o todo abrange a polaridade e o contraste. Os opostos, em contraste, como bem ilustra o símbolo gráfico, são percebidos não como oposição antagônica, mas como complementaridade em contínua interação dinâmica. Segundo Huang, a prática do Tai Ji Quan pode nos ajudar a perceber o desequilíbrio e, a partir dessa consciência, recuperar o centro, restabelecendo o fluxo dinâmico entre os dois polos. O movimento lento e circular do Tai Ji ajuda a promover a integração entre o corpo e a mente do praticante, dado ao estado meditativo que a prática induz.
Os movimentos suaves do Tai Ji ajudam na manutenção da flexibilidade, da postura e do equilíbrio, bem como no relaxamento e fortalecimento muscular dos membros inferiores. Outros estudos vêm comprovando a eficácia da prática sobre a redução da pressão arterial e sobre o sistema cardiorrespiratório, reduzindo o nível de cortisol na corrente sanguínea. Grande parte dos estudos referem-se à contribuição do Tai Ji no envelhecimento saudável e na prevenção de quedas. A pesquisadora Stephanie S. Y. Au-Yeung estudou os benefícios para pessoas que sofreram AVC (acidente vascular cerebral). Ela concluiu que grupos de pessoas que sofreram AVC as quais praticaram a forma curta do Tai Ji por doze semanas, quando comparados com um grupo de controle que praticou somente exercícios, obtiveram ganhos significativos no equilíbrio de pé quando testados no equilíbrio dinâmico, na transferência de peso e na mobilidade funcional.
O Tai Ji Quan é, portanto, uma forma de meditação em movimento, já tendo sido amplamente comprovada sua eficácia na dissolução de tensões
Alguns movimentos promovem exatamente uma sensação de “fluir das ondas”, conectando o praticante consigo e com o meio ambiente natural ao redor,
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Foto/Divulgação: Pátio do MAC (2014) Acervo: Marcus Maia
tornando a percepção deste como parte integrante de si. O Tai Ji Quan deve, portanto, ser preferencialmente praticado em lugares abertos, ao ar livre, para que o praticante possa estar em conexão com a natureza. O contato com a luz solar, a brisa marítima, o frescor das montanhas, ou o farfalhar das folhas das árvores e o canto das aves, que são terapêuticos por si só, devem ser integrados à prática. No extremo oposto, estão as doenças crônicas e suas limitações influenciando nas funções desempenhadas pelo indivíduo, gerando consequências físicas e psíquicas, tais como fragilidade emocional, dependência física e afetiva em relação ao meio social, ansiedade (medo de perda da autoestima, medo de ficar dependente, medo de morrer, medo de viver), com características muito particulares em cada fase do desenvolvimento da doença. Quanto a mim, devido à doença renal e aos anos na hemodiálise, tive tanto medo de não viver a minha juventude que pequei por excesso: fazia muitas coisas ao mesmo tempo, sempre correndo como se o tempo estivesse escorrendo pelos meus dedos, como grãos de areia numa ampulheta. Temendo pelas oportunidades 14 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
que estavam sendo desperdiçadas, acostumada a viver desde a adolescência sob o jugo de tratamentos intermináveis, adaptando minha rotina de estudos e de trabalho, sentia que era muito difícil buscar a saúde nessas condições. Mas a saúde lá estava mesmo no corpo fragilizado e combalido pela dor. Em grande parte, é no sofrimento que o espírito ganha força e desperta. Há, no corpo que sofre, espaço para um movimento gerador de transformação, de força e de serenidade. De fato, há muitas possibilidades, e o Tai Ji é uma delas. Por meio do movimento constante de ir e vir, para além de movimentos que promovam vigor interior, tonificação dos músculos, aumento de flexibilidade, coordenação e força, há a redução do estresse, a renovação da energia vital e o aumento da consciência corporal. Uma consciência de estar vivo, em todos os movimentos. Percebi na prática do Tai Ji, e pela observação de praticantes devotados, que mesmo um corpo adoecido pode reencontrar a saúde por meio desta meditação em
movimento. Aos poucos vai ocorrendo um diálogo entre a mente e os órgãos internos, liberando a linguagem do coração, aquela que perdoa as limitações de um corpo que já não pode responder com toda a desenvoltura de um corpo são, e exatamente por esse motivo necessita ainda mais de gratidão. Durante a prática do Tai Ji Quan, devemos esvaziar a mente de pensamentos que possam roubar a atenção. A mente deve estar focada na sintonia do corpo com o movimento e a consciência. O eixo vertical, que alinha a coroa no topo da cabeça com a coluna vertebral até o cóccix, deve estar aprumado, estabelecendo assim, através da postura corporal correta, um canal de conexão entre o céu e a terra. Essa consciência axial deve se estender até a sola dos pés, mentalizando-se o “enraizamento”, como na imagem de uma árvore que aprofunda as raízes para manter o eixo vertical. Obviamente, o enraizamento no Tai Ji não vai imobilizar os pés no chão. O movimento lento e cultivado pela prática conduz o eixo e o enraizamento ora para uma perna, ora para outra, conforme os passos dados ao longo da sequência de movimentos e formas que se sucedem. Cada passo deve ser dado com esse sentimento de enraizamento, ou seja, de profunda conexão com o chão, o solo, a terra. Alia-se a este trabalho de enraizamento a prática do relaxamento, tanto físico como mental, por meio da respiração naturalmente lenta e profunda. O corpo deve estar solto, e a mente tranquila, para que os movimentos se sucedam de forma fluida e contínua, propiciando, assim, a boa circulação do Qi, a energia vital. Fazer amigos num grupo assim é uma bênção, porque são pessoas que se encontram em torno de um mesmo ideal de saúde e equilíbrio. Em qualquer situação de doença crônica, serão necessários a paciência e o autoconhecimento para suportar provas e limitações. Quando praticamos Tai Ji, observamos e sentimos no corpo uma prática possível, baseada em movimentos possíveis para pessoas com limitações articulares, cardiovasculares, metabólicas e outras. A cada treino, somos testados em nossa paciência, perseverança e persistência, por meio de uma prática que alia movimentos físicos e mentais. O que importa não é o desempenho quantitativo, mas o qualitativo, que se traduz, metaforicamente, como um caminho trilhado pelo praticante. Durante os treinos, lemos textos de origem Taoista, como o Tao te King, que sempre nos oferecem momentos de reflexão e aprofundamento na prática e, por que não dizer, na vida.
A bondade superior é como a água A água favorece todas as coisas, e a nenhuma exclui Permanece nos lugares desprezadospelos outros Por isto se assemelha ao Sábio No viver é que acha a felicidade da vida No pensar se assemelha ao Abismo profundo Na bondade, se harmoniza com todos Nas palavras, é sincero No governar, equilibrado No trabalho, age com retidão Para caminhar, encontra o melhor momento Sendo assim não cria rivalidade. E a maldade fica esquecida
Lao Tse-Tao te King, 1983
Angela Deise Terapeuta ocupacional transplantada renal e dedica-se atualmente às artes plásticas. Chang Whan Estudou com a Mestra Shen Hai Min na década de 1990. É professora de Tai Ji Quan em Niterói desde 1995. Referências consultadas ALMEIDA. V. L. Movimento expressivo e processo alquímico do Corpo. (Inst. Sedes Sapientiae, / ”Abordagem Junguiana – uma leitura de realidade e metodologia de trabalho”. PUC/COGEAE. HUANG, Al Chung-liang. Expansão e recolhimento: a essência do T’ai Chi. São Paulo. Summus, 1979. JIA, J. E. Ch’na Tao. Conceitos básicos: Medicina tradicional Chinesa Lien Ch’ i e Meditação. São Paulo: Ícone, 2004. Steven L. Wolf PhD, FAPTA, Huimnan X. Barnhart PhD, Nancy G. Kutner PhD, Elizabeth Mcneely PhD, Carol Coogler ScD, PT, Tingsen Xu PhD, and the Atlanta FICSIT Group (2003). Reducing Frailty and Falls in Older Persons: An Investigation of Tai Chi and Computerized Balance Training Journal of the American Geriatrics Society 51 (12), 1794–1803. doi:10.1046 /j.1532-5415.2003.51566. Disponível em: http://www.blackwell-synergy.com/links/doi/10.1046%2Fj.15325415.2003.51566.x Topics in Geriatric Rehabilitation. Functional Mobility. 19(3):172-182, July/August/ September 2003. Gallagher, Bill MS, PT, CMT, CYT. Tai Ji Quan and Qigong: Physical and Mental Practice for Functional Mobility. Disponível em: http://pt.wkhealth.com/pt/re/tgr/abstract.00013614-200307000-00003.htm;jse ssionid=GdpQnW2KpXQ251kvty124HlJK4VQvMhFX6G5HR1pH35F1zbm7 2y6!675572714!181195628!8091!-1 THE PHYSICIAN AND SPORTSMEDICINE - VOL 30 - NO. 3 – MARCH 2002. Jirayos Chintanadilok, MD David T. Lowenthal, MD, PhD. Exercise in Treating Hypertension. Disponível em: http://ww.postgradmed.com/issues/2002/03_02/lowenthal.html
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TEXTO
“O que eu gostaria de dizer sobre o meu texto é que para as artes chinesas da caligrafia - o traço da escrita e o tai chi chuan, há uma relação com o corpo muito distinta da nossa relação ocidental e que isso afeta a concepção mesma do treino. Para nós ocidentais o corpo é um conjunto de órgãos, tendões e músculos que precisa ser melhorado tendo em vista uma performance ideal, para a cosmologia chinesa a prática é uma ocasião única, uma energia vital a ser cultivada a cada vez. Essa é a concepção que precisa ser transmitida.” 16 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
TEXTO...
Entre dois traços:
a interculturalidade e a prática do Tai Chi Chuan no ocidente Por Luiza Ines Wisniewski
Antes de pintar um bambu, deixe-o crescer em ti. Su Dongpo (1036-1101) O presente trabalho de pesquisa bibliográfica teve como objetivo focalizar diferenças entre o modo de pensar ocidental e chinês uma vez que a prática do Tài Jí Quán coloca aos ocidentais frente a um diálogo intercultural. Um diálogo que não passa apenas pelos desafios de uma tradução linguística, ou sobre aquilo que se veicula na transmissão oral de informações sobre a cultura chinesa e histórias das artes marciais. Não são meras palavras, mas palavras que fazem o dia a dia de uma prática, e que não apenas informam mas que compõem um conjunto indissolúvel – o da transcrição de uma corporização regida por outras letras, a constelação dos signos carnais dos ideogramas, os traços chineses. Linguagem, letras e corpo que veiculam uma cosmologia densa e contextual que materializa uma outra arte de viver, diferente da linearidade e do ideal de clareza e simplificação do pensamento conceitual abstrato que determina o traçado ocidental. Este estudo se orientou por um levantamento bibliográfico que, além de alguns clássicos da literatura chinesa, selecionou autores, ocidentais e chineses, que tiveram a experiência de ter transitado por essa ponte entre os dois mundos, o ocidental e o oriental chinês. O psicanalista francês Jacques Lacan (2009), em seu Seminário 18 De um discurso que não fosse semblante, cria a palavra “ocidentado” para contemplar a dificuldade de um ocidental para haver-se com a caligrafia, ou seja com o embalo, o movimento do corpo necessário para escrever os ideogramas, a letra chinesa. “Levarão muito tempo para descobrir com que natureza isso é atacado e com que suspensão se detém, de modo que o que farão será lamentável – não há esperança
para um ocidentado. É preciso um embalo diferente, que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que o traça. (LACAN, 2009, p.113). Nesse parágrafo Lacan articula a letra, a escrita da letra e o movimento do corpo, a marca da escrita e o uso do corpo. François Cheng, tradutor e poeta, professor do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais da Universidade de Paris III, em seu livro Vacío y Plenitud, diz que os chineses conceberam uma cosmologia que rege todo o universo e as práticas humanas: a pintura, a caligrafia, poesia, música, teatro e também práticas relativas ao corpo – a representação mesma do corpo humano, o Tài Jí Quán, a acupuntura. (CHENG, 1993, 2004, 2010, p.74.) Desde essa perspectiva a prática da arte marcial interna, do Tài Jí Quán, da mesma forma que a arte da caligrafia chinesa, exige dos “ocidentados” que consigamos um certo desligamento, uma certa distância em relação àquilo que nos traça – ou seja as determinações do pensamento ocidental. O que esse trabalho visa focalizar no corpo envolvido nas práticas chinesas, seja a pintura, a caligrafia ou as atividades físicas, é o corpo produzido e movido pela concepção do sopro da criação. O Tài Jí Quán é uma prática corporal decorrente de um modo de pensar que faz do pensamento e do sentir no corpo um conjunto indissolúvel. Trata-se de uma experiência mais rica do que é possível mensurar nas provas de extensas séries estatísticas, onde há o esforço de demonstrar o valor da prática do Tài Jí Quán utilizando os parâmetros da ciência ocidental. www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 17
O pensamento chinês, a cosmologia chinesa, começou a ser escrita em traços no Livro das Mutações, Yjing (I Ching), muito antes do início da nossa era (sec VI e V a.C.), traços e comentários, que se mantém até hoje, gerindo a vida dos habitantes do País do Meio, Zhong Guó (Ch’ung Kuo) – e que chegam até nós através de uma também longa história de traduções. Escrever sobre essa cosmologia também nos coloca frente aos desafios da tradução. Temos que nos haver com os traços de ideogramas, as várias pronúncias, com sua enorme homofonia, com a escrita transliterada do sistema Wade-Giles e com a romanização do Pinyin, adotado oficialmente na Republica Popular da China em 1979. No livro “A Essência do Tai Ji Quan”, os autores propõem, a nós ocidentais, criarmos um profundo sentido histórico para nos orientar no caminho da prática do Tài Jí Quán genuíno. “Para a arte manter a integridade, os instrutores ocidentais desta antiga disciplina e filosofia oriental devem tornar-se uma ponte entre as duas culturas, reconciliando a sua socialização e contexto ocidental com a sua arte oriental” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.18). Os autores lembram também que fazemos parte de uma linhagem, somos mais um numa série, não somos os primeiros, nem os últimos. Sendo apenas mais uma ponte, esse trabalho se propõe buscar nesse sentido histórico, não apenas o modo de pensar oriental, mas também de localizar o que está do lado ocidental da ponte, a letra que nos determina e também que nos limita nessa experiência de tradução. A concepção psicanalítica de corpo como produto da relação do humano com a linguagem, servirá de guia para um ensaio bibliográfico que contempla aspectos de nosso pensamento ocidental e do pensamento chinês que podem nos dar algumas referências para esse diálogo corporificado entre duas culturas que realizamos na prática do Tài Jí Quán. 18 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
A Letra que nos Traça
A Psicanálise deve suas origens ao tratamento com as histéricas. Sigmund Freud, médico e pesquisador do sistema nervoso, teve que se dobrar à constatação que os sintomas conversivos não obedeciam à anatomia do organismo (FREUD, 1980a) Tratava-se de um corpo moldado por uma outra ordem, determinado por um traumatismo, uma sensação experimentada, um corpo comocionado por um sentir e uma significação particular. A Psicanálise inaugura- se com essa questão – como o organismo é fisgado pela dialética subjetiva, ou seja pelas letras da história de cada um – e mais além de uma práxis particular, podemos dizer que essa é a sua maior contribuição à história do pensamento sobre o homem. O humano, o ser falante tem um duplo nascimento (SAURET, 2006, p.20): o nascimento biológico de um organismo prematuro e dependente dos cuidados da assistência alheia (FREUD, 1980b), dependência que, por sua vez, determina um segundo nascimento, o nascimento na linguagem. Mesmo que o ser humano seja falado antes mesmo de ter uma existência biológica, a linguagem, devido ao deslocamento contínuo do sentido, não lhe fornece uma resposta derradeira ao seu ser. Nasce biologicamente dependente, não-todo e, devido à impossibilidade de ser inteiramente significado pelas palavras que o instituem, permanece não-todo, habitado por um vazio, um irrepresentável. O não-todo do humano o torna sempre pendente de uma ontologia, um mito, uma religião, uma filosofia que o oriente em relação a sua existência. Mas nas ontologias não se trata apenas de ideias abstratas, pois elas são transmitidas pela assistência alheia, através do modo em que as experiências vividas são nomeadas e interpretadas, significadas e regradas. São concepções que se corporificam, que produzem “acontecimentos do corpo – o significante não tem somente efeito de significado, mas também de afeto – o que perturba, deixa marcas em um corpo” (MILLER, 2008, p.376). Além de dar sentido à existência, modelam e determinam um corpo, um modo de sentir. Trata-se de um saber que passa ao corpo e o afeta. Um saber que produz um corpo. Podemos ilustrar antropologicamente essa corporização através de exemplos: um corpo superfície que se pinta, se decora, ou um corpo que se mutila ou ao qual se impõe a ditadura da higiene, da atividade esportiva ou da beleza. Cada cultura, com suas crenças e seus modos de laço social, inscreve o corpo individual e determina uma corporização assim como estabelece as coordenadas em relação a como conceber esse não-todo da existência humana, ou seja como conceber o vazio. A Psicanálise propõe uma invariante: em qualquer língua o corpo é produto da relação com a palavra, o que inclui não apenas as significações dadas ao corpo, as ideias que se tem do corpo, mas palavras
que o afetam e determinam, uma “cartografia corporal” (MILLER, 2011, p.387). Cartografia singular, no corpo de cada um, e ao mesmo tempo materialização da estrutura presente nas línguas. A cultura ocidental e a cultura oriental chinesa – em particular, na medida em que se manteve por milênios no maior isolamento de uma interferência significativa do ocidente – comportam duas concepções diferentes. A ontologia ocidental e a cosmologia chinesa, traçadas por letras distintas e modos distintos de relação com o vazio determinam corporizações, corpos experimentados, vividos e concebidos de formas diferentes. Ao falar sobre as raízes filosóficas do Tài Jí Quán, os autores do livro A Essência do Tai Ji Quan enfatizam a importância do conhecimento da cultura chinesa para os praticantes ocidentais, que tenderão a abordar o Tài Jí Quán com a “especulação abstrata” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.62), tão desencorajada pelas filosofias chinesas e que comporta um padrão de análise que herdamos de nossa tradição filosófica grega, judaica e cristã.
O Traçado Ocidental A ontologia
Para fazer uma ponte, antes de olhar a outra margem, é imprescindível verificar o território que temos sob os nossos pés. Na prática do Tài Jí Quán, ter os pés firmes no chão é a primeira condição do movimento.Nesse sentido vamos nos deter sobre as determinações do nosso modo de pensar, pois é a partir dele que teremos que fazer a travessia para poder então atingir “uma outra inteligibilidade” (JULLIEN, 2009, p.192), o pensamento chinês. O pensamento ocidental, diz François Jullien no seu livro Diálogo entre as Culturas, tem sua pedra angular no status filosófico do universal que produz uma teoria
do conhecimento que prioriza as categorias racionais abstratas, independentemente dos contextos singulares. Dessa racionalidade decorre todo o desenvolvimento científico que hoje invade o mundo pela via da tecnologia. Mas a racionalidade pode reduzir-se a um modo utilitário, produzindo uma uniformização das categorias, eliminando as diferenças individuais e as diferenças culturais. Antes mesmo do grande progresso científico do ocidente, a nossa filosofia, que identifica o ato do pensar humano com o pensamento conceitual abstrato, diante de outros modos de pensar, tem sido tomada pela ilusão arcaica (LÉVI-STRAUSS, 1982, p.123,136, citado por LACAN, 1998, p.873) ou seja, tem desconsiderado a originalidade do diferente, entendendo-o como um pensamento primitivo, como um pensamento que ainda não se desenvolveu. François Jullien no mesmo livro, Diálogo entre as Culturas, analisa a herança do pensamento grego nas origens mesmas do nosso modo de pensar e nos leva a constatar que nossa ontologia é apenas uma das tentativas de dar conta do real da existência. A origem do Universal no pensamento ocidental está na origem da Metafísica. Segundo Jullien, os primeiros gregos chamados filósofos eram os que faziam “teorias”, como então eram chamadas as missões e viagens ao estrangeiro para descobrir a multiplicidade do mundo. Sócrates, que não se afastava de Atenas, deixou de se preocupar com o “holón” – o “todo” da natureza – como haviam feito os pensadores gregos que o antecederam, e fez do kat-holu – “segundo o todo” – uma exigência formal, instalando a universalidade do conceito abstrato. “O todo deixou de ser a multiplicidade das coisas e se tornou uma regra”. (JULLIEN, 2009, p.57). Jullien aponta que na abertura da Metafísica de Aristóteles já está especificada a diferença entre o individual e o universal assim como a classificação dessa diferença em dois níveis: o inferior da sensação individual e o superior do saber universal. A partir da ordenação e sistematização dos fenômenos múltiplos se deduzirá deles
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um único conceito, uma única razão, aplicável doravante a todos os casos semelhantes. O gesto inaugural da filosofia ocidental reside exatamente na separação entre o pensamento e a sensação. A razão é a referência que passa a dominar toda a existência humana, assim como o que determina seu caminho, o seu dever ser. “A produção da razão e do conceito abstrato se fazem sobre a renúncia à unidade passageira do gozo do individual”. (JULLIEN, 2009, p.59). No traçado ocidental está o saber do conceito separado da existência efetiva de cada ser. O plano superior das ideias – a ideia de homem, a ideia de árvore, um atributo genérico, que é do conhecimento abstrato, lógico, constatado desde fora pelo sábio ocidental, está separado do sensível e acidental, do transitório do vivido interior de cada um. Trata-se de um traçado que separa, um dentro e fora e um acima, universal abstrato e um abaixo, particular sensível e acidental. Podemos retomar aqui o termo criado por Lacan, ao qual já nos referimos na introdução desse trabalho, pois independentemente da intenção de qualquer gesto oriental, seja na arte marcial do Tài Jí Quán ou na arte da caligrafia, devido a elevação ao conceito Universal do Ser, nós os ocidentais somos individualmente um mero acidente, um mero “ocidentado”. Universal singular Pondé no seu Guia Politicamente Incorreto (2012) nos alerta observando que as ideias abstratas e universais são acometidas por um problema: a realidade é sempre maior ou menor, nunca é igual as ideias. Fritz G. Wallner, filósofo alemão no seu livro Medicina Tradicional Chinesa, um modo alternativo de pensar diz que na medida em que a ciência opera essa redução da natureza a estruturas categoriais e regras ganha-se em segurança e simplicidade mas perde-se uma quantidade enorme de informação que fica excluída do saber reconhecido, do saber válido. A multiplicidade excluída, préconceitual, é vista como o esotérico, o primitivo (WALLNER, 2011, p.8) e tratada da mesma forma como tem se tratado a sabedoria popular, uma sabedoria inferior. Do traçado que separa e estrutura o pensamento conceitual, também decorre como concebemos o vazio. O vazio é a falta, o não-todo é o inferior, o deficitário, o que tem que se alçar para atingir o ideal. Como a existência humana mesma, sempre faltante de uma significação derradeira acaba sempre resistindo ao todo do conceito universal, entram em cena as nossas crenças para nos orientar no bom caminho. Podemos ter a ilusão que em nossa pós-modernidade não existem mais crenças, nem em deuses, nem em heróis – cada vez menos conceituados – porém o apelo às ontologias, aos mitos está muito presente, mas passa desapercebido no que se concebe como o progresso da ciência. O mito do século XXI 20 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
é o ideal de uma ciência, ou uma cientificidade absoluta, é a crença num super-herói que num futuro irá desvendar todos os segredos, irá dar todas as respostas para a nossa existência. Devemos nosso progresso científico ao pensamento conceitual abstrato e não se trata de desmerecê-lo e de nenhuma forma descartá-lo, mas muitos cientistas e pensadores da atualidade tem alertado dos riscos do cientificismo, de transformar a ciência numa ideologia, de fazer do modo de pensar conceitual abstrato o único válido. Stephen Jay Gould, paleontólogo americano, em seu livro La falsa medida del Hombre, faz uma análise crítica das medições abstratas da inteligência humana e denuncia o “erro filosófico profundo, comum e que tem enorme impacto social na educação, que é trazer a concepção genética, os argumentos biológicos, de uma ciência natural, para a organização social dos seres humanos” (GOULD, 1997, p.14).
A linguagem
O mesmo traçado que separa o conceito e o vivido está na linguagem – escrita e falada – onde uma palavra arbitrária, um abstrato universal do conceito do Ser diz de qualquer ser sem que haja nenhuma relação essencial entre o particular do que é nomeado e a palavra que nomeia. O algoritmo, a estrutura do signo na linguística saussureana explicita bem esse traçado, como podemos ler no seu Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 1978, p.129):
Conceito Imagem acústica
Significado Significante
A junção entre significante e significado é uma junção que se faz através do primeiro princípio da linguística: a arbitrariedade do signo no sentido de imotivado, de não causado pelo significado com o qual não tem nenhuma vinculação natural. A vinculação natural rudimentar na proposição de Ferdinand de Saussure é concedida apenas aos símbolos, onde haveria uma junção estável e estariam impedidas as substituições. Como exemplo cita a balança como o símbolo da justiça mas podemos observar que nesse “natural” está implicada a participação de um contexto cultural (SAUSSURE, 1978, p.131). O traçado ocidental se desdobra nas regras gramaticais e sintáticas, nos modos de conjugação dos verbos e nas concordâncias nominal e verbal que determinam o modo de falar e escrever, priorizando o uso da linguagem culta ou científica sem a participação das singularidades. É no uso poético da linguagem que vamos encontrar os movimentos que contestam a forma mesma da escrita ocidental. O maior representante dessa manifestação é a poesia moderna, termo bastante amplo que engloba a poesia concreta, a poesia cubista, entre outras; todas
“formas que buscam dar corpo visual, espacial e sensitivo à forma da escritura mesma e não apenas na sua significação” (CAMPOS;CAMPOS;PIGNATARI,1975,p. 82).
O corpo purificado
René Descartes (1596-1650) foi o filósofo que, seguindo a tradição grega, terminou por separar definitivamente a mente e o corpo. Com o seu famoso “Penso, logo sou” põe todo o foco no eu pensante, o eu dos conceitos universais abstratos, deixando desacreditadas as experiências sensoriais individuais e passageiras, a resextensa, a res do corpo fora de qualquer ideia. Na sexta meditação das Meditações diz: [...] de um lado tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e sem extensão, e que, de outro, tenho a ideia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e que ela pode existir sem ele”. (DESCARTES, 1999, p.320). Devemos à separação cartesiana a condição mesma do nosso desenvolvimento científico. Descartes desembaraçou radicalmente o pensamento das sensações e a ciência fez da res-extensa, um corpo anatômico, o que Lacan denomina um corpo “no seu registro purificado” aquele que pode “ser totalmente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e passível de ser condicionado” (LACAN, 1986, p.92). No entanto, Lacan observa que o corpo na sua verdadeira natureza, o corpo afetado pelas palavras e os afetos, o corpo sentido, fica completamente excluído “daquilo que chamei a relação epistemo-somática” (LACAN, 1986, p.92). Podemos ilustrar a dicotomia cartesiana da seguinte maneira: Espírito ou Mente Corpo Corpo A ciência faz parte da nossa cultura e os nomes da ciência são usados para elidir o corpo afetado pela linguagem e os afetos, produzindo a ilusão que se trata mesmo de um corpo-máquina. Dessa separação também decorre que a sensorialidade do corpo ocidental é de superfície; não sentimos nosso corpo no interior, a sensorialidade interna só se apresenta pela dor. A psicanalista francesa Colette Soler afirma que “há também sensações internas proprioceptivas, interoceptívas, que estão relacionadas às funções vitais [...] Mas no estado normal de funcionamento do organismo, essas sensações se mantém no nível mais baixo, no mais discreto. No bem estar do corpo não sentimos nosso corpo
no interior, daí a fórmula que gosto muito e tenho usado com frequência – a saúde é o silêncio dos órgãos, dos órgãos que o discurso nos atribui sem que os percebamos... Isso é tão verdadeiro que até existem técnicas para restaurar a sensorialidade no corpo, técnicas orientais, técnicas para aprender a perceber os órgãos internos, até mesmo para controla-los”. (SOLER, 2010, p.23/24). As práticas que não se amoldam às exigências racionais e universais da ciência estão cada vez mais postas no nível inferior do traçado. A dimensão clínica da prática médica anterior ao desenvolvimento das ciências naturais, a medicina homeopática, as práticas psicoterapêuticas, a psicanálise, ficam excluídas dos saberes considerados válidos por não comportarem o inteiramente objetivável. Por outro lado, cada vez mais são reconhecidos e valorizados os saberes que operam a redução do vivido a uma série de substâncias produzidas pela maquinária do organismo e que determinariam toda a existência. A dimensão da relação da palavra e do corpo pode ser apreendida em situações palpáveis do dia a dia que mostram como é operante esse traçado que separa os níveis superior e inferior das nossas existências. O saber validado, reconhecido, tende a deixar de fora as palavras que deram nome originalmente ao vivido no corpo. Podemos constatar isso nos nomes infantis dados aos genitais: os “pipis”, “xerecas”. Eles até podem manter-se na intimidade, mas quando nossas crianças começam a trilhar os caminhos do saber, devem ser substituídos pelos nomes científicos da anatomia corporal.
Os Traços Chineses A cosmologia
A origem da civilização chinesa remonta ao Livro das Mutações, Yijing – (I Ching) que, como enfatiza François Jullien no seu livro Figuras da Imanência, “originalmente não foi escrito em nenhuma língua, não se constituiu de palavras, apenas de traços”. Ele foi composto com dois traços – um traço contínuo e outro descontínuo – e suas diversas combinatórias, os trigramas e hexagramas. Essa escrita de traços, de figuras a serem lidas, é um “utensílio” na proposição de François Jullien (1997, p.10) que, com todos os textos acrescentados posteriormente, tem sustentado uma cultura singular. O Yijing encarna o essencial, a base da cosmologia chinesa. Cosmologia é o termo utilizado por François Cheng (1993, 2004, 2010, p.9) pois trata-se de um pensamento de acordo com o Dao (Tao), a Via do Universo, e o sopro vital, a concepção chinesa do universo originário. Na análise filosófica que faz do Livro das Mutações (JULLIEN, 1997, p.9) Jullien diz que, nesse texto, não há uma trama, não há referência a um criador, nem palavra divina. Não há nenhuma epopeia, não há mensagens a serem decifradas. Há combinatória de traços a serem www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 21
manipulados numa escritura que estaria em ligação direta com o dinamismo das coisas e sua transformação contínua. A consulta aos traços é a busca de saber o modo oportuno de intervir e de harmonizar a conduta humana com o curso do mundo. O Livro das Mutações é a obra ao redor da qual se alinharam as principais escolas de pensamento chinês: o Taoísmo, o Confucionismo e, mais tarde, o Budismo. “A orientação chinesa em relação à vida é moldada pela fusão de três filosofias: o Taoísmo, o Confucionismo e o Budismo. Cada uma dessas filosofias enfatiza a harmonia e desencoraja em larga medida a especulação abstrata...”. (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.62). Outra obra fundamental para o pensamento chinês é Daodejing, O Livro da Via e da Virtude, atribuído a Laozi (Lao Tsé). Na apresentação do texto feita por Stephen Addis, um dos seus vários tradutores, informa que Laozi, considerado o fundador do Daoísmo, teria vivido no sec. VI a.C. O texto é a versão escrita de um ensino oral transmitido por muitas gerações e é composto por oitenta e um capítulos curtos que não contêm nenhuma referência histórica ou nomes de personagens, apenas asserções em versos extremamente concisos e compactos, sem conectivos supérfluos (ADISS, 2002). No primeiro capítulo já está presente a concepção do Dao, a palavra que designa a Criação e o movimento do Universo. Dao quer dizer a Via. Em função da proposição que norteia esse trabalho, ou seja, a relação do humano com a letra, é importante a observação de François Cheng em seu texto Lacan y el pensamiento chino, onde diz que verbalmente, no jogo homofônico tão frequente na língua chinesa, Dao quer dizer também “falar”. “O Dao significa pois uma ordem da vida ao mesmo tempo que uma ordem da palavra” (CHENG, 2003, p.151.) A partir de uma tradução para o francês, realizada por François Cheng e Jacques Lacan do capítulo 42 de Daodejing, apresento na sequência uma tradução livre para o português. . O Dao de origem engendra o Um . O Um engendra o Dois 22 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
. O Dois engendra o Três . O três engendra os Dez mil. Seres . Os Dez mil seres endossam o Yin . E abraçam o Yang . Pelo sopro do Vazio central . Realizam o intercambio-entendimento. Nos comentários em relação a esse capítulo F. Cheng enfatiza que o sopro é a entidade capaz de engendrar a vida, o Um e o Múltiplo, a partir do princípio da força, Yang, e da receptividade, Yin, que irão produzir as diferentes condensações do sopro vital e as suas transformações. Essa cosmologia determinará uma concepção muito particular dos seres, das relações entre os seres e dos seres com o mundo. Os taoistas construíram seu sistema a partir do Yin, Yang e Vazio- central e sua posição perante a vida é a de uma comunhão com o universo. As sensações mais íntimas não se limitam ao vivido no interior da unidade de um corpo, não são um mero acidente singular; elas são vibrações em ressonância com o grande ritmo do Dao. Os Confucionistas, outra escola filosófica importante na cosmologia chinesa – ainda seguindo os comentários de F. Cheng – preocupados com a ética, pensaram que seria necessário regular as relações humanas mediante os ritos e a música. Porém a sua proposição de um ternário composto pelo Céu, a Terra e o Justo meio (o agir humano) mantém uma correspondência com o ternário taoísta do Yin,Yang e vazio-central, uma vez que o Céu corresponde ao Yang, a Terra ao Yin e o Homem, que está entre os dois -o Justo Meio- no lugar do Vaziocentral e que deve levar em conta a lei vital e constante do funcionamento do Dao. Desde o Livro das Mutações, o que se constata é que os pensadores chineses coincidem na ideia de uma Via que está em permanente mutação e que seu movimento se dá entre três elementos: Yin, Yang, Vazio central, ou seu equivalente confuciano: Céu, Terra e Justo Meio. Essa concepção, diz François Cheng, implica numa não dominação, não é o Um que comanda o Dois, senão o Três que transcende o Dois. Haveria uma permanente circularidade entre os elementos desses ternários. Entre os séculos II e VI d. C, a invasão bárbara no norte da China trouxe o Budismo e, num processo que durou alguns séculos, o vazio budista foi assimilado ao vazio do Dao. A partir do Século X d. C., as correntes se interpenetraram formando uma espécie de síntese que resultou no Budismo Chan (CHENG, 1993, 2004, 2010, p.13). Os métodos budistas incluíam os diálogos entre mestre e aluno assim como a meditação para o esvaziamento da mente na busca da grande calma e a contemplação (RYCKMANS, 2010, p.67). O termo Chan significa meditação e dá o sentido dessa prática: ser um com o Universo. Em seu livro Um Sábio não tem ideias (2001), F. Jullien concorda indiretamente com F. Cheng na ideia
de uma cosmologia quando diz que a China não erigiu o edifício da ontologia pois a sabedoria não é do Ser, não é do sábio; a sabedoria é da Via, o Dao. “Confúcio é chamado sábio porque carece de preconceitos – não tem ideias e por isso mesmo, mantendo a mente disponível, permanece totalmente aberto a cada “assim”, apreende – como vem, como se capta um som emitido” (JULLIEN, 2001, p.7). Diferente da racionalidade do conhecimento ocidental – de categorias e conceitos abstratos aos quais são submetidos os objetos a serem conhecidos – a sabedoria chinesa é um conhecimento que se detém na multiplicidade mesma do mundo, um “tomar consciência do fundo de imanência que ressoa, que se dispensa com tanta evidência bem perto...” (JULLIEN, 2001, p.25). No pensamento chinês os conceitos são interligados pelo contexto, da mesma forma que a escrita chinesa é lida pelo contexto do conjunto de traços dos ideogramas. Essa contextualização podemos observá-la no ideograma Shén. A tradução por espírito não apreende a significação presente no conjunto, na constelação de traços do ideograma, que é, ele mesmo a figuração do princípio criador e organizador do universo.
“O primeiro radical mostra o céu e as estrelas acima e o sol e a lua abaixo, os sinais do céu; o outro radical mostra dois traços que se expandem em relação a linha vertical, como mãos que recebem a energia o sopro, traços que localizam o homem como elemento entre o céu e a terra.” (CAMPIGLIA, 2004, p.88). O ideograma escreve a conexão dos poderes criadores que incluem o homem como eixo entre o céu a terra. É um traçado do ternário da cosmologia chinesa, seja o Yin, Yang e o Vazio central taoísta, seja a Terra, o Céu e o Justo Meio confucionista ou Chan, a meditação budista.
A escrita
Intitulo esse capítulo de Escrita pois quero ressaltar a separação que a língua chinesa evidencia entre a fala e o escrito. A língua falada tem muitas variações, pois inclui muitos dialetos. O traço, a letra não está presa ao serviço da comunicação das informações; está claramente distanciada da função de representar a linguagem oral, sendo concebida como mais uma das artes que fazem a conexão do humano com o universo. A escrita chinesa tem sua origem no figurativo, origem comum da caligrafia e da pintura. Da observação da natureza, dos animais, das sombras, teriam surgido os primeiros caracteres. O desenvolvimento dos caracteres se deu por uma autonomia e liberdade de combinação, não atuando como suporte da língua falada. Desde a origem, relata Roberto Curto no livro Las mejores poesías chinas (PO, 2000, p.15), houveram
pictogramas e ideogramas e a evolução da escrita caligráfica produziu também os caracteres chamados radicais. Os radicais combinados com outros atuam como signos fonéticos que determinam a pronúncia, mas são escolhidos também de acordo com o contexto geral. Não se trata de uma escolha arbitrária e sim de uma escolha baseada numa relação última com o real. Não há uma hiância entre os signos e o mundo, os caracteres são considerados “seres dotados de vontade e unidade interna, com grande autonomia e mobilidade para combinações”, o caractere é “um signo carnal” (CHENG, 2003, p.184). Não é uma escrita que representa o mundo, substituindo as coisas pela palavra, mas uma letra que faz parte do mundo, que é o ato de significar operando. Os caracteres que são em si mesmos uma constelação de traços, incorporam na escrita caligráfica também o estilo – o pincel – a arte do calígrafo, o que vem acentuar ainda mais a sua autonomia e carnalidade. Ricardo Portugal autor do texto A Dança da Poesia: uma semiótica do caractere chinês ressalta o aspecto de substrato corporal-caligráfico dos caracteres chineses os sinogramas, ou hanzi ( ), que se reflete tanto na forma do traçado como no significado. A participação do corpo do calígrafo no ato da escrita afeta a forma dos traços, acrescenta-lhe um “viés pessoal”. No movimento da caligrafia o corpo do calígrafo vem “animar” a escrita. “A escrita, tomada enquanto caligrafia, se assimila à arte marcial da espada, ao kung fu e à dança...” (PORTUGAL, 2012). O substrato corporal-caligráfico está também incorporado permanentemente ao caractere na sua forma, no aspecto visual da reprodução que faz do corpo humano e também na abstração visual dos movimentos do corpo. Entre as ilustrações dadas por Portugal estão os hanzi de “ver”, “olhar” ( ), kān, onde o radical de “mão” ( ), shou, se inscreve sobre o radical de “olho” ( ), mù; e do radical de “corrida” ( ), “que acrescentado aos pés de outros radicais é o traço semântico de “movimento”. Uma das concepções chinesas que faz uma verdadeira mostração dessa corporificação no contexto da escrita é o ideograma Yì ( ), um dos aspectos do Shén ( ), o espírito. O Yì contém as memórias corporais, ou seja, experiências que foram armazenadas no corpo e formam uma espécie de traço pessoal. A significação do ideograma Yì ( ), segundo Helena Campiglia (2004, p.104), o som do coração, exprime o que o conjunto inseparável do pensamento e do corpo apreendem do som das palavras, das intenções nas entrelinhas do dito. O Yì tem a função que proporciona sabedoria e julgamento pois fornece ao Shén as impressões armazenadas na sua memória para que o espírito possa agir em concordância com as experiências passadas. A sabedoria decorre da não separação entre o armazenado no corpo e o pensamento. A caligrafia tornou-se uma arte independente a partir dos anos 220 d. C. No final da Dinastia Han tornouse cada vez mais a expressão da criatividade do autor. www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 23
Arte pura, livre de toda função utilitária, a caligrafia constituiu uma elite: o pincel do calígrafo é também um símbolo de prestígio da classe dos letrados (RYCKMANS, 2010, p.158). Numa reflexão sobre o caractere chinês, Lacan – na lição de 6 de dezembro de 1961 do Seminário IX sobre a Identificação – aponta o que é posto em evidência do valor da letra nessa escrita. Referindo-se ao estatuto de obra de arte que a caligrafia adquiriu na cultura chinesa, ressalta o que chama de “a diferença em estado puro” presente nos traços do calígrafo, nunca iguais a si mesmos, onde se localiza o essencial: antes de qualquer sentido, qualquer informação ou comunicação, são traços que marcam as vivências do sujeito. Essa função originária do traço, que identifica o vivido pelo sujeito está em evidencia no caractere, sinograma, ou hanzi ( ), e está mascarada, abstraída, na escrita ocidental. Com os letrados a pintura adquire a mesma dignidade da caligrafia, deixando sua origem de ornamento artesanal para atingir o estágio de shenpin. “O termo Shenpin só se aplica a uma obra cuja qualidade inefável parece sugerir sua relação com o universo originário” (CHENG, 1993, 2004, 2010, p.10). Os letrados, calígrafos, pintores e também poetas criaram uma linguagem escrita, uma escrita poética, wenyen, que se caracteriza por uma economia de caracteres que consiste na supressão deliberada dos pronomes, preposições e conjunções para enfatizar o vazio que, com o jogo homofônico muito frequente nos caracteres monossilábicos, permite ampliar as possibilidades de composição. “O vazio é imprescindível, para dar força de espírito e equilíbrio e para permitir que o leitor também faça parte da obra” (PO et al. 2000, p.11). Ernest Fenollosa em Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia, faz uma comparação do que seria a leitura da “palavra” chinesa e da palavra ocidental: “Lendo o chinês, não temos a impressão de estar fazendo malabarismo com fichas mentais, e sim de observar as coisas enquanto elas vão tecendo seu próprio destino” (FENOLLOSA, 2000, p.114-115). O décimo primeiro capítulo do Daodejing, escrito na forma concisa da poética chinesa, poderia ser traduzido por “modela-se a argila para fazer uma vasilha e é em seu vazio que está sua utilidade” (PO et al., 2000, p. 11). No contexto do Tài Jí Quán essa forma poética, segundo o Prof. Niall O’ Floin, evoca o “nei jia zi” que se traduz por: moldar a forma que resulta da disciplina do treino no terceiro estágio do aprendizado do estilo Chen do Tài Jí Quán. A modelagem da forma no ato de criação não é a expressão da vontade do artista. A transmissão do espírito leva ao artista a uma prática que o torna Um com o universo. O gesto de criação se dá “quando terminam todas as divisões entre o sujeito e o objeto, o observador e o observado, de forma similar ao que os budistas chamam de Iluminação” (PO et al.,2000, p.14). 24 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
O corpo do traço
Na escrita chinesa, no “substrato corporalcaligráfico”, na conceituação de Ricardo Portugal, ou na expressão mais poética de “signos carnais” de François Cheng, estamos numa constelação de traços que figuram o corpo e que evidenciam a participação do corpo no ato mesmo da escrita. Ainda em seu texto sobre “A Dança da Poesia: para uma semiótica dos caracteres chineses”, Portugal, ao comentar um espetáculo de dança da caligrafia da coreógrafa e diretora Liu Qi, apresentado na China ao longo de 2011, diz que “é muito antiga, na China, a relação entre a dança e a caligrafia, cujo exercício como arte máxima é uma manifestação peculiar a esta cultura. Grandes calígrafos do passado inspiravam-se em movimentos de dança e vice-versa. A caligrafia é vista como dança fixada, congelada, concentrada a um espaço; a dança, uma caligrafia fluida ou estendida”. (PORTUGAL, 2012). Vamos encontrar uma outra referência, que reafirma essa íntima relação entre corpo e letra, no comentário de Zhu Tiancai, expoente do estilo Chen, que diz que os processos de aprender o Tài Jí Quán e de aprender a escrever os caracteres chineses partilham os mesmos princípios. “Ao princípio aprendemos a desenhar as linhas horizontais, as linhas verticais, as pinceladas suaves e os acabamentos. Realizam-se repetidamente e minuciosamente estas linhas – é o treino básico. Uma vez que os fundamentos foram estabelecidos e ganhamos alguma mestria, poderemos treinar um estilo mais florido. Mas ao mesmo tempo, continuamos a aderir as regras da escrita, porque não podemos nos afastar dessas regras. Todas as pinceladas e linhas devem continuar a seguir a mesma sequência. A aprendizagem do Taijiquan deverá seguir esse mesmo princípio, enquanto progredimos, crescendo dentro das regras e dos princípios...” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.10). Esses dois autores atuais – um enfatizando a vertente da arte corporal, o outro os princípios que regem a prática – se inscrevem numa tradição onde o produto da criação e o corpo se conjugam num mesmo universo inseparável. Podemos constatar com Cheng Yaotian, (17251814) pintor citado por F. Cheng (1993, 2004, 2010, p.144), como as observações técnicas que faz sobre a caligrafia são bem significativas para os praticantes de Tài Jí Quán: “A via da caligrafia se baseia no domínio do vazio e não é outra que a própria do céu. Está claro que é pelo vazio que se movem o sol e a lua, pelo que as estações se sucedem, e dele procedem os dez mil seres… A via da caligrafia não é outra. A arte caligráfica se dá por meio do pincel. Este se manipula com os dedos, os quais são levados pelo punho e pelo antebraço. Por sua vez o antebraço obedece ao cotovelo que se deixa guiar pelo braço e o ombro... todos
do lado direito do corpo que se apoia no lado esquerdo do corpo. Os dois lados juntos formam a parte superior do corpo que não pode funcionar senão graças à parte inferior do corpo, especialmente os pés. Firmemente apoiados no chão os pés encarnam por excelência a plenitude da parte inferior do corpo e a partir daí se realiza tudo. O mérito da plenitude da parte inferior consiste em permitir que a parte superior do corpo seja habitada pelo vazio. Não é um vazio puro e inerte, porque, como tudo está habitado pelo vazio, a parte superior possui também sua plenitude, que não é outra coisa que seu lado esquerdo. Apoiando-se na mesa e juntando os dois pés ao mesmo tempo, esse lado esquerdo, pleno, permite então que o lado direito seja habitado pelo vazio. No entanto, no interior do lado direito, que desse modo resulta indispensável, se instaura novamente um jogo de vazio e cheio em cadeia, pois cada elemento que o compõe vai se tornando alternadamente em cheio e vazio. Desse modo o ombro vazio, ao tornar-se cheio, age sobre o cotovelo vazio; o cotovelo vazio ao tornar-se cheio. age sobre os dedos vazios. Nos dedos, o vazio alcança seu maior grau. No entanto, o vazio que ai se aloja não poderia girar “vazio”, pois é imprescindível que, por sua vez, se torne cheio. Por que os dedos, não esqueçamos, são prolongados no pincel… o verdadeiro pincel… deve ser como um “tubo perfurado”, na medida em que o vazio dos dedos deve ser completamente passado a ele. Enchido de vazio, o “tubo perfurado” que é o pincel não se limitará a cumprir a função de um simples receptáculo mas se encarrega de todo o movimento dinâmico do corpo que acabamos de descrever, movimento do qual é o resultado. Investido de um poder pleno, é capaz de impor uma dupla ação: através da sua plenitude, imprime a tinta no papel tão fortemente que parece atravessá-lo, e através de seu vazio, se desliza pelo papel, aéreo como um espírito puro que, na sua passagem, enche o espaço de sua presença sem deixar rastos palpáveis”. (CHENG, 1993, 2004, 2010, p.145). Ao tratarmos da escrita exemplificamos a corporização da letra chinesa com o ideograma Yi, o som do coração, com o qual começamos a flexibilizar a separação entre o espírito e o corpo que decorre da estrutura do pensamento ocidental. Porém o ideograma ( ) Jīng, que tem o significado de “essência fundamental da vida” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.79), é o corpo energético na substância mesma dos ossos, tendões, dos órgãos, da carne e nos desafia a aprofundar essa flexibilização para o interior do nosso corpo de órgãos silenciosos que só percebemos nos seus gritos de dor. Esse sopro vital que vai do insubstancial até o mais substancial dos corpos e dos elementos da natureza, intraduzível segundo os autores da A Essência do Tai Ji Quan, é o mais difícil de ser apreendido pela “especulação abstrata” ocidental (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.62). Mais do que entendê-lo, concebê-lo, é necessário chegar a aprofundar a sensibilidade, do vivido na superfície, para o interior do corpo.
Shitao, cognome oficial de Zhu Ruoji (16411720), membro da família real da Dinastia Ming, monge budista, letrado, calígrafo e pintor, autor do Livro As Anotações sobre a Pintura do Monge Abóbora-Amarga, referindo-se ao corpo, afirma: “mais que ossos é o sopro, o alento vital que anima o ser do universo e o ser do homem”. (CHENG, 1993, 2004, 2010, p.212), pois o corpo não é uma simples substância; o corpo é concebido como condensação do sopro vital.
Tài jí quán Uma história em dois tempos
A história do Tài Jí Quán transita por relatos de vidas e fatos muito antigos que vem de uma tradição oral e por uma datação histórica que leva a notação a.C. e d.C. do calendário gregoriano. São dois tempos: o tempo cronológico, a medida do tempo ocidental, convenção arbitrária, que foi adotado na China somente em 1949 (MILLER, 2004, p.10) e o tempo da duração, das mutações, dos ciclos da vida, presente nos relatos, nas lendas e também no calendário lunar/solar da cultura chinesa. Dessas duas contagens do tempo decorrem duas vertentes históricas a serem consideradas: a lendária e a história comprovada por evidências encontradas em documentos ou achados arqueológicos. Wong Kiew Kit no “Livro Completo do Tai Chi Chuan” faz uma ordenação. Por um lado estão as Escolas com uma datação histórica e, por outro lado, as origens onde se misturam fatos e lendas. A origem lendária teria sido com o Mestre Zhang San Feng (1127-1279), o criador do Wudang Tai Chi. Esse monge taoísta teria “substituído os métodos de treinamento exteriores do Kung Fu Shaolin por métodos interiores, que ao invés da força muscular usam da respiração e do Qi, o sopro vital para a realização dos movimentos” (KIT, 2006, p.36). A origem das práticas corporais chinesas se perdem no tempo, remontam às danças xamânicas e a personagens como Huang Ti, o Imperador Amarelo (2700 a.C.). Segundo as lendas ele praticava um exercício chamado Tao Yin (guia e comando) –também chamado T’u Na (espirar e inspirar) – e hoje conhecido por Qi Gong (Chi Kung). Esses exercícios taoístas seriam os precursores do Tài Jí Quán (LIU, 1995, p.11). Dessas referências antigas, o texto “Guan Jing Wu Hui Fa” (Método para se Alcançar o Esclarecimento Através da Observação da Escritura), escrito por Cheng Ling Xi na época da Dinastia Liang (907-923 d.C.), seria, segundo Wong Kiew Kit, o documento mais antigo a usar o termo Tài Jí Quán (KIT, 2006, p.35). Um título que sugere uma relação antiga entre a escrita e o Tài Jí Quán. www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 25
O Tài Jí Quán tem seu início histórico nos anos de 1600 quando foi sistematizado pelo mestre Chen Wan Ting (1600 -1680), exímio praticante de artes marciais, que durante o dia treinava suas habilidades corporais e à noite estudava literatura chinesa (KIT, 2006, p.39). Essa dupla referência ao corpo e à letra marca o essencial de uma tradição do Tài Jí Quán, que vem de práticas corporais milenares e implicam na relação do homem com o Dao. No relato pormenorizado da história da criação do estilo Chen, no livro A Essência do Tai Ji Quan, podemos constatar todo um trabalho de compilação e elaboração das tradições tanto marciais como filosóficas, realizado por Chen Wang Ting. “A ideologia central do Yijing, o Livro das Mutações, é o berço dentro do qual a teoria do Tài Jí Quán cresceu” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.63). A prática corporal do Tài Jí Quán se conjuga junto com outras artes: a caligrafia, a pintura, a poesia, assim como a acupuntura e as práticas da medicina tradicional chinesa; todas elas ordenadas pelo mesmos princípios, pela mesma cosmologia e que compõem uma “arte de viver” (CHENG, 1993, 2004, 2010, p.10). Historicamente comprovadas, as escolas ou estilos tradicionais – Yang, Wu/Hao, Wu e Sun, todos nomes de famílias – se originaram a partir do estilo Chen (REVISTA TAI CHI BRASIL, n.1, 2009).
O punho da suprema cumeeira
Denominada de arte marcial interna o Tài Jí Quán, ( ) traduzido a partir do significado de cada caractere seria literalmente “suprema cumeeira do punho”. O caractere ( ), Quán, punho, torna possível a conexão com o traçado da caligrafia e da pintura. É a partir do movimento do punho vazio que o sopro vital se manifesta através do pincel do calígrafo e também no movimento marcial do praticante de Tài Jí Quán. O caractere ( ), Jí, cumeeira, associado ao caractere ( ), Tài, supremo, tem o significado de um conhecimento de primeira grandeza, de uma prática que eleva o sopro (Qì) a um grau supremo, em direção ao princípio infinito de onde surge o movimento. Shitao (1641-1720), que viveu no mesmo período de Chen Wan Ting (1600-1680), diz que a arte do traço é uma disciplina de vida onde é fundamental a receptividade por parte do artista. O praticante precisa ser movido intimamente pelos sopros vitais, tanto o Yin como o Yang e o vazio-central, para que o traço possa também ser movido pelo sopro. Essa receptividade é um estado superior do espírito, da força de vida que se manifesta “por uma gestualidade surgente e rítmica” (CHENG, 2003, p.156). O escrever e pintar são práticas corporais que se desenvolvem segundo os mesmos princípios presentes na multiplicidade das artes corporais na tradição chinesa, 26 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
sendo a do Tài Jí Quán aquela que se propõem atingir o grau supremo de desenvolvimento do Qì, do sopro vital. A prática do Tài Jí Quán tem sido associada aos benefícios para a saúde, principalmente na sua difusão no ocidente. Seu aspecto marcial, sua vertente de “um comprovado método de defesa pessoal” tem sido bastante esquecido (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.8). Porém desde o início de sua criação por Chen Wang Ting, o objetivo era aumentar as habilidades de combate dos habitantes de sua aldeia – sua família – num período histórico de muitas lutas e instabilidades. A busca de uma efetividade marcial na firmeza e nos movimentos imprevisíveis escondidos atrás da suavidade denuncia, ela mesma, a dimensão de segredo para garantir a defesa da família. Sem desconsiderar os benefícios à saúde e sem esquecer da marcialidade estamos privilegiando a dimensão da arte no Tài Jí Quán pois estamos tratando de cernir, por esse viés, a experiência interna de uma outra sensorialidade corporal que está presente nessa prática. O termo interno faz referência justamente a esse corpo energético, onde a circulação do Qì pode ser ampliada, concentrada e conduzida. O mapa desse corpo está na Medicina Tradicional Chinesa, no percurso dos meridianos e dos pontos de acupuntura, assim como o que é concebido como os componentes da vida em si o Jing, o Qì e o Shen, a densidade, a animação e a espírito respectivamente (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.92). Trata-se não apenas de uma rede complexa de fluxos e elementos mas de um modo de praticar – inclusive no caso da medicina – num corpo muito diferente de toda a conceituação e prática ocidental e, consequentemente, difícil de ser assimilada. Por outro lado, os praticantes de Tài Jí Quán são sempre aconselhados pelos professores e mestres a não pensar muito sobre os movimentos do Qì no corpo e a não olharem além do estágio onde se encontram em sua prática. O direcionamento do professor é sempre no sentido de “vamos praticar”, pois o aprimoramento se atinge a partir da disciplina do treino.
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Os desafios da transmissão
A concepção energética do Qì é uma das mais difíceis de serem transmitidas para as línguas e o pensamento ocidental (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.79). Quando os atuais mestres do estilo Chen enfatizam o treino e não o entendimento das concepções e dos fundamentos do Tài Jí Quán, há uma sabedoria nesse direcionamento, se considerarmos a estrutura do conhecimento ocidental que privilegia o universal abstrato. Quando fazemos teorias nos afastamos do vivido no corpo. Considerando que a primazia é da prática, atenhome ao estilo de minha, o estilo Chen de Tài Jí Quán para focar o aspecto do treinamento. No livro que considero oficial do estilo Chen, pois não apenas contém citações dos mestres mas entrevistas e depoimentos dos atuais detentores da linhagem, escrito por David Gaffney – discípulo de Chen Xiaowang – e por Davidine Siaw-Voon Sim – escritora e instrutora de nível 3 em Tài Jí Quán – podemos aprofundar alguns aspectos do sentido do treinamento que caracteriza esse estilo em particular. A prática lenta do Tài Jí Quán, na sua origem no estilo Chen, está intrinsecamente relacionada ao ritmo de treino. “A lentidão de treino é o ritmo necessário para moldar corretamente a estrutura do corpo” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.137); é um treinamento em direção ao vivido, ao experimentado no corpo, com o objetivo de desenvolver uma grande capacidade marcial em seus praticantes. Seguindo a orientação dos mestres de priorizar a prática detenho-me sobre um aspecto bem pontual: o treino interno para fortalecer o Qì nas posições estáticas de pé. Uma dessas posições, Zhàn Zhuāng ( ),a meditação em pé no estilo Chen, é a posição que condensa todos os elementos essenciais da prática: a postura, o relaxamento, a respiração, o alinhamento, o equilíbrio, a força das pernas e na cintura, e a raiz do movimento no abdômem – o Dān Tián ( ) – e, principalmente, “uma mente calma” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.173). Para compreender o que está em função nessa expressão – manter a mente calma – é necessário deixar de lado o que se entende por mente na nossa referência ocidental, essa mente pensante conceitual, para poder apreender a natureza de uma atenção voltada para a sensação. Atenção intencionalmente treinada para sentir o fluxo da vida dentro e fora do limite tênue do invólucro da própria pele. As instruções de como praticar “Zhàn Zhuāng” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.178) começam pelos pés na distância dos ombros para que haja uma distribuição equilibrada do peso nas duas pernas, seguido do relaxamento dos joelhos e do quadril, um arredondamento entre as pernas para o peso baixar até os pés; a cabeça fica ereta puxada para o alto mas relaxada; o queixo
suavemente para dentro; a boca fechada levemente; a mandíbula relaxada; a língua encostada no palato por trás dos dentes; a cintura e o cóccix relaxados para manter o corpo alinhado entre o topo da cabeça e a lombar; sentir o arredondamento da abertura das virilhas; as pernas suportam o esforço do corpo, os dedos dos pés agarram o chão. Uma vez estabelecida essa postura de enraizamento no chão, os braços são levantados formando um círculo na frente do corpo. A atenção é dividida entre aquela dirigida para o Dān Tián, o ponto logo abaixo do umbigo, o centro distribuidor da força interna do movimento, e entre a que fica livre para escutar atrás, conectando o dentro e o fora do corpo. A respiração deve ser natural, mas uma prática regular desenvolverá uma respiração abdominal sem forçamento. A descrição da postura enfatiza o treino interno para que a atenção esteja presente no sentido no corpo e no que o rodeia. O Tài Jí Quán é a cultura do treino. “Seja nas posturas estáticas ou nos movimentos suaves tratase de um treinamento contínuo do corpo e não de um treinamento técnico” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.169). É essa direção que leva o praticante a estabelecer uma relação com o universo originário do micro e macro cosmos que circulam sem rupturas na cosmologia chinesa. As mudanças nas sensações no interior do corpo do praticante requerem a presença de um professor e mais além do que ele possa transmitir com sua demonstração prática estão as palavras que direcionam o treino (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.15). Elas podem enfatizar os elementos da arte em expressões que ressoem. As expressões figurativas podem transmitir mais do vivido e sentido do que extensas explicações anatômicas. Porém o aprimoramento da arte do Tài Jí Quán, e essas são as palavras insistentes desde os professores até os mestres mais renomados, depende da atitude do praticante em relação ao treino. O antigo ditado marcial “Pratica mil e dez mil vezes, a habilidade que procuras crescerá de forma natural” (GAFFNEY; SIAW-VOON SIM, 2012, p.114) diz de uma natureza dinâmica, a natureza do Dao, a Via, em constante mutação. O treino é como o praticante pode colocar-se em consonância com essa cosmologia. www.RevistaTaiChiBrasil.com.br 27
Considerações Finais
A cosmologia chinesa, em todas as suas artes, estabelece uma relação com um corpo que é afetado, que é sentido, que está para ser apreendido e participa da unidade do universo; esse mesmo corpo que foi proscrito do pensamento ocidental e tende a ser reduzido à extensão de um objeto purificado. Os autores da “Essência do Tai Ji Quan”, propõem uma forma de transpor as barreiras da tradução: “uma das melhores maneiras de entender o Qi é ter consciência de como atua” (Idem pag. 80). Sentir o corpo é onde está a questão: se ficamos presos ao plano teórico, corremos o risco de reduzir as concepções das práticas chinesas a conceitos abstratos que não vão incidir em nossas sensações; nos manteremos identificados ao traçado ocidental. O que a psicanálise ensina da relação da palavra e do vivido nos deixa com o desafio que para buscar a sensação é necessário um direcionamento feito pela palavra. Palavra que não separe a representação abstrata do vivido singular de cada um. No ocidente, as objeções às exigências do pensamento conceitual abstrato – o que poderíamos chamar de flexibilizações do traçado – manifestam-se especialmente no domínio das artes. Podemos considerar a poesia moderna, uma das artes ocidentais, como o paradigma dessa flexibilização do traçado. Essa forma poética, que se inicia com Baudelaire dá espaço ao simbolismo, trata-se de captar o vivido, a sensação, nas inovações formais. São composições que fazem oposição ao academicismo e às regras clássicas da métrica e da rima, desconstruindo a gramática e criando neologismos em poemas que valorizam o gráfico, o visual, a rítmica da sonorização, compondo uma certa conjunção das artes da escrita, do desenho e da música. Os autores do livro Teoria da Poesia Concreta (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1975, p.105), analogam a escritura ideográfica com a poesia moderna ao dizer que o poema concreto “não é intérprete de objetos, mas sim um objeto por direito próprio”. São vários os poetas da vertente do modernismo que traduziram a poesia chinesa para as línguas ocidentais. Haroldo de Campos, um desses poetas, denomina suas traduções de “transcriações” (CAMPOS, 2009, p.13). Temos podido constatar, no percurso desse trabalho, que a arte é um ponto essencial nas práticas chinesas e que inclui, em seu corpo, a Arte marcial do Tài Jí Quán. A prática do Tài Jí Quán convoca para uma outra cartografia corporal inerente à concepção do Qi, o sopro vital. A transcriação que Haroldo de Campos propõe como uma ponte entre a arte de duas línguas poderia também fazer uma ponte em direção a essa outra experiência corporal. As palavras que direcionam a prática, mais do que enfatizar o aspecto científico, poderiam se orientar pela dimensão poética. O essencial da dimensão poética que 28 www.RevistaTaiChiBrasil.com.br
se explicita na poesia chinesa e na poesia moderna é o conjunto de traços que se compõem para fazer o vazio. E é o vazio que, presente no intervalo de cada traço, de cada gesto, registra a cada vez, mais um vivido no corpo, mais uma sensação. Trata-se de um vazio diferente do vazio da falta e do déficit; é um vazio que está para abrir espaço para a sensibilidade, para a circulação do sopro vital. No ato de criação, cada traço da escrita ou da pintura, assim como cada gesto da prática do Tài Jí Quán, é um. No treino, o aprimoramento vem pela série de gestos numa prática onde a repetição direciona a atenção a estar presente no vivido do gesto, na sensação do gesto. No traçado desse trabalho passamos pela arte da caligrafia, da pintura e da poesia chinesas, artes do gesto, artes que convocam o corpo de quem traça do mesmo modo que a arte marcial, principalmente a arte marcial da suprema cumeeira, o Tài Jí Quán. São artes onde o conjunto de traços modelam o vazio onde irá circular o sopro vital, o sopro da criação. O sentido do ideograma ( ) Jí, aponta para o refinamento do uso do sopro vital, um refinamento que, da mesma forma que na caligrafia poética (wen yen) e na pintura (shen pin), se atinge na disciplina de seguir os princípios e o treinamento contínuo. Para os ocidentados que somos, o mais difícil de ser apreendido é o que se realiza no corpo através do treino contínuo. Abandonar a ideia de um treinamento físico que consiste na repetição automática visando um ideal de realização, um “dever ser” sempre num horizonte ao qual se chegará lá na frente e passar para a concepção do treino nas artes chinesas onde a repetição visa cada momento presente, cada gesto, pois é no vivido de cada “assim” que está o aperfeiçoamento da arte (JULLIEN, 2001, p.17). Concluo citando um trecho de Shitao intitulado Junto com a Caligrafia (cap XVII) citado por F. Cheng (1993, 2004, 2010, p.246): “O Céu confere ao homem a regra, mas não pode conferir-lhe seu cumprimento; o Céu confere ao homem a pintura, mas não pode conferir-lhe a criação pictórica. Se o homem descuida a regra para ocupar-se somente de conquistar sua realização, se o homem descuida o princípio da pintura para dedicar-se imediatamente a criar, então o Céu já não está nele; por muito que caligrafe e pinte sua obra não terá consistência.” Luiza Ines Wisniewski Psicanalista e Professora voluntária na Praça do Tai Chi em Curitiba. Possui pós-graduação Lato Senso em Tai Chi Chuan, do qual originou-se esse texto.
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