Crua

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CRUA

RUa

Quem são os atores das cidades e o que acontece na rua? Na primeira edição da CRUA! você vai descobrir

FUNK

A vida e o universo de MC Mauri

Filhas da rua

As esquinas bauruenses como você nunca viu

na pele

o lado real e humano do rolezinho

Aline Paes

Ela sempre esteve ali, mas agora não há como não notar

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CRUA

RUa

Quem são os atores das cidades e o que acontece na rua? Na primeira edição da CRUA! você vai descobrir

Filhas da rua

As esquinas bauruenses como você nunca viu

na pele

o lado real e humano do rolezinho

Aline Paes

Ela sempre esteve ali, mas agora não há como não notar

FUNK

A vida e o universo de

MC Mauri

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Na Ladeira com Mauri Expoente do funk, o MC joseense fala sobre sucesso, plĂĄgios, preconceito, machismo e suas letras diferenciadas numa conversa de mesa de bar texto / Felipe Vaitsman fotos / CasĂŠ Ribeiro/Nine Music

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nebulosas

A

Ladeira já é um pico antigo de São José dos Campos. Há mais de dez anos, foi descoberta por skatistas que buscavam o espaço ideal para praticar suas manobras e curtir entre amigos. Em um dos pontos mais altos do Urbanova, encrostada entre condomínios de luxo do bairro, oferece uma visão única da Serra da Mantiqueira e seus mares de morros, onde o sol se põe caprichosamente.

Quando você descobriu que era MC? Quando eu descobri? Mano, eu tenho uns raps no YouTube desde 2006. Tinha 13, 14 anos. Era “Sintonia Urbana” o nome do grupo. Hoje eu conheço gente que até ouvia. Era o comecinho do YouTube, mas não era essa febre, não tinha vídeo bombado. A gente produzia e divulgava no Orkut. E se apresentava em escola estadual, municipal, quando tinha evento de grafite, rap, break. Foi na escola que começou. Nas aulas eu sempre fui o piorzão, o mais indisciplinado. Mas escrevia melhor que todo mundo. Na hora de redação, o pessoal sempre me chamava. Tudo que eu escrevia, dava um jeito de cantar. Isso é rap.

E quando você assumiu isso aí e disse: ‘vou pra cima’? Há dois anos começou a ter show. Ainda era rap ou já no funk? Já no funk. Por que essa transição? Eu sempre quis um lugar pra gravar. Antes eu colocava batida de rap pronta, americana, ligava a câmera sem mostrar o rosto, porque tinha vergonha, e gravava. Saía só o áudio, com qualidade ruim. Quando eu descobri que tinha gente que produzia, era no funk. Eu já ouvia funk, rap, rock e tudo. Mas como tinha o estúdio de funk eu fui atrás: “quanto que é a produção?”. “Cem conto”. Pô, inventei um funk e gravei. Duas semanas depois já tinha baile pra fazer.

Com esse visual e uma energia positiva arrebatadora, acolheu todas as tribos que passaram por ali ao longo dos anos. Quem conheceu, ficou. Hoje, as rodas de violão se estendem até a alta madrugada, o goró rola solto e, para quem curte, é só “acender”. Recentemente, abriram um bar na esquina da Ladeira. Potencializou o rolê. Foi lá que Amauri Goulart Azevedo, o MC Mauri, quis ser entrevistado. Não necessariamente no boteco. “A Ladeira tá sempre aberta, o bar eu já não sei”, alertou. Estava abrindo. Nós mesmos colocamos a mesa. Ele pediu uma vodca com energético, eu preferi ficar na cerveja.

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"Eu não defenderia o que eu não acho certo, tem dinheiro que não me compra"

Eu imagino que muito do seu crescimento no funk aconteceu depois que você lançou Sé Loko. Foi um divisor de águas na sua carreira? Sé Loko foi um divisor, com certeza. Começamos a gravar em janeiro, lançamos em março [de 2013] e, depois do clipe, cresci muito. Recebi vídeo de gente da Itália cantando Sé Loko. Recebi vídeo de Melbourne, na Australia. De Oklahoma e vários outros picos nos Estados Unidos. Até gente do Peru ouviu. Os meus amigos viajam e mostram. Um parceiro joga futebol nos Estados Unidos e disse que na concentração, antes dos jogos, ele sempre bota pra tocar. É o ritmo dos caras de lá também. Essa aí bateu forte.

E como foi? O primeiro show foi aqui [em São José dos Campos], no Vila Music Hall. Hoje se chama Millenius a casa. E no mesmo dia eu fechei Itajubá, não sei como. Três horas de viagem! Fiz um baile da hora aqui e lá. Eu só tinha uma música. Cantei a minha, mas como eu já ia muito em baile funk, suguei um pouco de cada show que vi e fiz o meu.

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nebulosas O clipe é realmente muito bom. Como foi a produção? Quem filmou foi o Anderson Silva, que é um cara da hora. Ele anda de patins e faz umas produções. Já andou até na Califórnia. Tem vídeo dele apostando com uns gringos, em dólar, quem descia um corrimão. É um cara vivido e bom de filmagem nessa área de esportes. Ele, Adivan Salles e Luigi Santanna que me ajudaram. Os caras são meio do rock, desse negócio underground, andam de skate. Entenderam bem a ideia. Sé Loko muita gente gosta só pelo clipe. É funk, mas se você não gosta, só assiste. Deixa no mute. Tem muita informação, é engraçado. Não tem como não gostar. É muito marcante esse lance do humor mesmo. Você que pensou nisso? É tudo ideia minha! Influência de Hermes & Renato, Chaves, Eminem, por aí vai. E tem várias mensagens subliminares, se você prestar atenção. Tem o bonequinho do Chaves pequenininho no criado mudo. Tem o Burro do Shrek do lado do Einstein. Tem Chapolin, o lençol é do Bob Esponja, um monte de bobeirinha. Tipo: “o cara é loucão, mas tem essas coisas de criança”. Fora o meu primo vestido de enfermeira saindo da geladeira e um monte de outros bagulhos idiotas, bem podres. Eu pensei em tudo, o roteiro é todo meu. Agora você trabalha com uma produtora e tem um empresário. Isso veio depois de lançar Sé Loko? Como funciona a parceria? A produtora se chama Nine Music. Quem me enxergou foi o Solõn Pereira. Ele é um cara de visão boa, mente boa. Tudo que é ideia da hora ele investe. Ele nem era amante do funk. Começou a curtir agora, mas já entendeu como funciona. E a gente se ajuda. O Solõn e a Nine investem para ter um retorno depois. O que faltava pra eu fazer tudo que queria era dinheiro. Agora tô tranquilo. Estamos juntos há uns dois, três meses no máximo. Bem depois de eu lançar Sé Loko.

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"A música Sé Loko, antes de eu ser "alguém", cantei pro Daleste no camarim. E ele gostou. Eu nem esperava, mas ele me chamou no meio daquele show e cantou o meu refrão" E a questão do plágio? Tentaram roubar Sé Loko de você? Foram uns caras da baixada santista que eu não vou falar o nome. Eles já tiveram até um conceito, gravaram música com o MC Primo, que foi um monstrão que mataram. E não só fizeram um plágio, fizeram um plágio da hora! Eu fiquei até com medo deles bombarem com a minha ideia. Fizeram um webclipe bem produzido. O empresário deles falou: “nós já estamos no funk faz tempo, quem bombar primeiro fica com o mérito”. Eu fiquei com medo. Mas fizemos campanha no Facebook pros meus fãs “negativarem” o vídeo deles no YouTube. Deu tudo certo. Teve um outro cara que também plagiou e divulgou que quem produziu foi o DJ Ga BHG. O DJ Ga era o cara que tocava com o MC Daleste. Ele nunca ia produzir essa música. O Daleste me ajudou muito e o DJ Ga me ajudou muito no começo da minha carreira. Te ajudaram? A música Sé Loko, antes de eu ser “alguém”, cantei pro Daleste no camarim. Só o refrão. E ele gostou. Eu nem esperava, mas ele me chamou no meio daquele show e cantou o meu refrão. Gostou de mim, mano! Maior simpatia! Molequinho humilde, o melhor que eu já vi. Depois disso, todo show que ele fazia em São José, cantava Sé Loko. A única música que eu vi o cara cantar sem ser dele era a minha. Teve um show que eu não fui e que o pessoal me ligou de madrugada. Eu tava dormindo na casa da minha avó e atendi o telefone com os caras falando: “Mauri, o Daleste abriu o show cantando a sua música”! E tem um site bombado que chama Mundo do Funk. Quem cuida é o DJ Ga. Quando eu lancei minha música ele soltou no site, me deu maior força.

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nebulosas Como você reagiu ao assassinato do Daleste? Foi muito triste, mano. Chorei muito. Choro até hoje. Eu não esqueço: tava em Ubatuba quando fiquei sabendo. Fiz uma música pra ele. Muita gente fez, mas eu fiz de coração mesmo. Ele me ajudou muito. Eu gravei Sé Loko por causa dele. Eu ia gravar outra música, uma de ostentação. Só escolhi Sé Loko porque ele cantou. Como é o esquema das suas gravações? Tem um DJ que é seu parceiro e que produz suas músicas, certo? O DJ Maicom. Ele que faz a maioria das minhas produções. Mas eu trampo com outros caras. A última gravei com o DJ Nino, da baixada santista. É aberto, como se fosse parceria. Se eu gravar uma música, tiver uma letra e der pra dez DJ’s diferentes, vão sair dez músicas diferentes. É uma arte. Dá um tema e manda dez caras pintarem um quadro: vão sair dez quadros diferentes, mas com a mesma temática. No canal do YouTube são quantas músicas divulgadas? Sé Loko, Nóis Bagunça, Calça Leg, Passou Mal, tem umas de putaria: Imagina, Galudão, Mama Nove. Tem Bonde Monstro... São umas 7, 8... A internet é o seu principal meio de divulgação? Internet e boca a boca. Eu já era conhecidinho. Não que eu ache que é um negócio bom, mas eu era porque sempre fui loucão. Já fui expulso de 4, 5 escolas. Não por briga e nem por vandalismo. É que eu não deixava ninguém assistir aula. Até as professoras davam risada de mim. Uma professora de matemáti-

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ca sempre me dizia que eu deveria fazer artes cênicas, ser ator, cantar e tal. Sempre gostei de aparecer fazendo alguma coisa. Então antes de fazer um funk eu já sabia que uns 20 iam me ouvir e me aceitar. A internet foi o jeito de eu mostrar pra mais gente ainda. Facebook, YouTube... Mas tem também o cara que faz download e põe no sonzão do carro, né? Esse é o principal. O que mais conta é você baixar no celular, ouvir no carro, na rua. É só esquecer um pouco a internet e lembrar de antigamente: era fita. Você ouvia uma música legal, gravava na fita. Depois, seu amigo copiava. Mesma coisa com o CD: pedia emprestado, passava pro computador e fazia seu próprio CD. Às vezes você tá ouvindo à toa e alguém ouve sem querer. “Porra, o que é isso aí?”, vai procurar, vê os vídeos, baixa. Se não gostou, “ah, minha amiga vai adorar”. Acho que até quando o cara não gosta, faz contar pro bem. Tem que causar um sentimento. Isso força a pessoa a ver.

"Antes de fazer um funk eu já sabia que uns 20 iam me ouvir e me aceitar. A internet foi o jeito de eu mostrar pra mais gente ainda"

Recentemente você apareceu no Vanguarda Mix [programa de uma afiliada da Rede Globo]... Justo eu que sempre falei, né? Nos protestos eu fiz um cartaz: “Globosta”. Eu odeio a Globo, mano. Por que? Por inventar coisa, manipular informação, fazer o que eles querem na cabeça das pessoas. “É isso: a Globo falou tá falado, vamos assistir Big Brother”. Perda de tempo. Faz gente de idiota, faz nego consumir merda. Faz criança ficar vendo lixo, novela. É tudo negativo. Aí veio essa oportunidade. Como a Globo é um negócio muito grande e a divulgação é enorme... porra, eu fui! Televisão é uma troca, né? Eles precisam de atração, eu preciso me divulgar e é isso aí. Mas meus amigos apareceram segurando garrafa de Red Label e baforando um lança em um trechinho. Que muito louco, mano! E o que você acha da maneira que tratam o funk nos grandes meios de comunicação? Eu quero muito mais respeito. A visão é muito preconceituosa. Mui-

to! Mataram o Daleste e fizeram de tudo pra parecer que ele merecia. “Tem até uma foto dele segurando uma arma”. Porra! Não fazem filme do BOPE? Não tem novela com gente bêbada batendo o carro? É hipocrisia, falso moralismo... Eu quero mais respeito, mais espaço, poder falar qual é a nossa verdade. Mas não vai ter. E se tiver, não vai ser cedo. Eu sou louco pra tomar o microfone no meio de uma entrada ao vivo da Globo e aparecer xingando. Só assim eu conseguiria bater de frente. Mas eles são inteligentes. Se juntam àquilo que eles sabem que não têm força para lutar contra. É muito dinheiro. Eu não defenderia o que eu não acho certo, tem dinheiro que não me compra. Tanto que na entrevista do Vanguarda Mix, eu sou o que menos fala. A reportagem é sobre funk ostentação, e eu nem canto ostentação. Qual é o seu estilo? Dentro do funk eu me enquadro em num negócio chamado loucura. Eu faço funk de loucão, da zoeira, da baguncinha. Mas eu não faço só funk. Eu tenho reggae gravado, tenho rap, tenho um rap romântico com violão, sem beat. Eu não gosto

de rotular. Eu faço o meu. Não me enquadro em nenhum. Eu tenho funk que fala de ostentação. Mas é ostentação com zoeira. É o meu rolê: hoje eu tô com dinheiro, sou feio, mas tenho ideia pra trocar, então vem comigo. Por que não vir? A minha ostentação é isso aí. Eu não sei direito o que eu faço. Me enquadro no meu. Se eu me rotular, vou ficar muito preso nisso e vão me cobrar. E se eu não tô na vibe? Vai que eu nem quero? Quem você acha que é o cara do funk hoje? Que faz um negócio diferente? Diferente além de mim? Diferente sou eu, o resto é ostentação ou putaria. Tem o Nego do Borel, que canta ostentação, mas é um cara loucão. Aqui ele ia subir no teto, ficar dançando. Mas ele canta ostentação. O jeito que é diferente. Falaram que eu sou parecido com ele porque eu também sou loucão. No baile me dão um copo pra beber, eu engulo o copo e cuspo a bebida. O estilo é parecido. Ele é mais loucão até, mas as letras dele são ostentação. Acho que diferente, na letra, sou eu.

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Sua última música, Calça Leg, já bateu mais de 250 O rap tem uma pegada social. Escancara as injustimil visualizações no Youtube. Fala um pouquinho ças, os problemas. O funk nem tanto. Você gravou sobre ela. uma rima durante as manifestações [de junho de Duzentos e cinquenta mil... São mais de cinco 2013] e fez muito sucesso. Pensa em fazer uma Pacaembus lotados! E vai aumentar mais, bem música nessa vibe ou acha que não tem mercado? mais. A história desse funk é assim: tinha uma Eu até tenho umas, mano. Mas é mais rap. O funk comunidade no Orkut chamada "Eu amo calça muito longo é ruim de ouvir. Fica chato. Um rap de legging". Milhões de pessoas! Todo mundo ama e 11 minutos tem mais a ver, fica mais legal de ouvir nunca teve uma música, mano! Eu gosto de pegar e cantar. Um funk de 11 minutos eu não cantaria. os negócios que tão ali, mas ninguém falou ainda. Mas tem uns funks de protesto. O MC Felipe BoTem que estar muito atento. É aquele negócio: tem ladão, da baixada santista, tinha umas ideias bem uma árvore, todo dia você passa ali, mas só repa- diferentes. Foi um dos primeiros que mataram. Era ra quando tiram. Eu fiz da calça legging porque a voz da periferia, da favela. E ele usava o funk pra toda mulher usa e todos os caras gostam. Engloba fazer isso. muita gente. Quantos shows você faz por mês, mais ou menos? Tem todo esse lance do sexo, do desejo, da mulher Faço um por semana, em média. Mas quando eu como objeto. Você acha que existe muito machisvou em baile me pedem pra dar palhinha e tal. mo no funk? Só que não é muito legal ficar dando só palhinha. Isso tá em todo lugar, até fora da música. Não é Quando o cara vê que você é bom, ele fica te chasó no funk. Às vezes é machismo você pensar que mando sempre, mas não quer pagar. a mulher que é o objeto no funk. É a mulher que escolhe, eu acho isso muito claro. Quem disse Você já foi muito explorado? Já tomou calote? que não é a mina que tá usando o cara? Sexo é a Sim. Até hoje os caras não dão muito valor. Tem coisa que dá mais prazer na vida. O funk vai lá e gente que me deve, mas eu não quero nem cobrar. fala. Sem mentira. Se os dois tão afim, vamos lá. Se Meio nojento. Isso é coisa de gente ruim. Não vale quer, quer. Se não quer, tem quem queira. As mea pena correr atrás de trezentos reais, mil, que seninas do funk são as mais bem resolvidas. Não tem jam. E tem os caras que são ruins, mas não cobram porque mentir. No dia que ela não quiser nada, nada. Aí preferem levar esses do que pagar o seu. ela vai falar, mas não vai deixar de usar roupinha Ou levam uns da mídia, que já estouraram, pagansensual, vestidinho curto. do muito caro. O cachê do cara é 7 mil e pagam. O meu não é nem metade, mas não pagam. E se for Você tá solteiro? ver, meu show é melhor, mano. (Silêncio) Tô... quer desligar [o gravador]? (Risos) Eu tô sempre solteiro, mano. Sempre, sempre, sempre.

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"Às vezes é machismo você pensar que a mulher que é o objeto no funk. Quem disse que não é a mina que tá usando o cara?"

Você lança singles, solta as músicas na internet uma por uma. Pretende juntar isso em um CD? No funk não rola muito. CD é cartão de visita. Eu tenho todas as minhas músicas gravadas em um CD, mas segurar tudo e soltar de uma vez não rola. Não compensa. Tem música que eu não boto fé que vai estourar, mas estoura. Vai que eu seguro muito e acabo perdendo o momento. Por isso é só de uma em uma. Você pensa muito no mercado, né? Sim. Tem duas de putaria que estouraram. Eu não gosto de fazer, mas são as que tocam no baile. A música mais consciente, com uma letra legal, não toca nos bailes, nos carros. Eu aprendi a gostar de escrever funk de putaria. É engraçado. Mas eu tenho um pouco de vergonha. Minha mãe vai ouvir, mano!

"A música mais consciente, com uma letra legal, não toca nos bailes, nos carros. Eu aprendi a gostar de escrever funk de putaria"

Sua família te apoia? Pra caralho. Desde sempre. Eu sempre li muito e escrevi muito e eles incentivaram isso. Agora eu tô cantando o que escrevo. Por isso quero gravar essa romântica, bonitinha, bem comercial pra tocar em rádio. Fazer de todos os tipos pra estar aí. Eu sei fazer o que eu quero, o que vocês querem, o que a família gosta. Englobar todo mundo. O que esperar de 2014? O bagulho vai ficar louco, pesado, da hora! É isso mesmo! Antes de Sé Loko eu não era ninguém, eu não sabia se ia continuar ou não. Mas agora é “nóis”! Se eu morrer com 65 anos e tiver estourado com 62, esses três anos de vida estourado valeram os 65. Eu só vou fazer isso. Me segura, gostando ou não. Se tiver um dando força, eu continuo. Minha mãe sempre vai dar força, então tô continuando! Vou continuar pra sempre!

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expediente

editorial

Reportagens

Aline Ramos Felipe Vaitsman Fernando Martins Gabriela Passy Jéssica Frabetti Lucas César Lucas Vieira Thales Schmidt Vinicius Martins

Diagramação

Vinicius Martins Wilian Olivato

Colaboradores

Amanda Lima Carolina Bataier Casé Ribeiro/Nine Music Diogo Zacarias Felipe Amaral

Professores responsáveis Mauro Souza Ventura Tássia Zanini

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Esta revista é um projeto das disciplinas de Jornalismo Impresso III e Planejamento Editorial III do curso de Jornalismo da Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação da Unesp/Bauru.

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esde os dois assaltos que passei nas ruas de São Paulo, estar na rua se tornou um risco. Ainda mais para mim que vive numa cidade de interior metida a cidade grande. Os conselhos de pais e amigos eram muitos: "Pare de sorrir na rua", "Desconfie de todos", "Ande rápido". Ali entendi que a rua não era minha em São Paulo, mas depois percebi que também não era em lugar algum. Por muito tempo me questionei: se a rua não é minha, ela é de quem? Um tempo depois decidi fazer as pazes com São Paulo. Meus melhores amigos vivem nela, não há como fugir. Sob orientação deles andei um final de semana inteiro sozinha perseguindo

botecos, casas de amigos, festas e apresentações culturais. A reconciliação veio na Praça Benedito Calixto e continuou pelas ruas da região. O sol batia forte, assim como os tambores. O Maracatu marcava presença e anunciava que tomaria as ruas num cortejo. Curiosos se aproximavam, afinal "que soooooom é esse?". Alguns, que como eu, já sabiam o que ia rolar tentavam se misturar. O Cortejo guiado pelo grupo de Maracatu "Arrastão do Beco" dava inicio as comemorações da inauguração da nova casa do Coletivo Cultural "Nossacasa Confraria de Ideias". Partimos. Meus pés desengonçados não conseguiam acompanhar as dançarinas, precisava de mais cerveja.

Caminhava no olho do furacão, o batuque competia com as buzinas dos carros furiosos. "Vem dançar na rua" gritou um rapaz. Em seguida mais um, mais dois, mais três, mais vinte. A manifestação cultural virou ato político, era preciso resistir, a rua também é nossa. Com algumas latinhas de cerveja a mais e o sol escaldante na cabeça, me entreguei, dancei, suei. A rua não era minha, mas não é de ninguém. A rua não é sua, mas porque temer? A rua não é nossa, mas o que falta para ser? Próximos ao Beco do Batman, região da nova sede da Nossacasa, veio o refrigério. Uma senhora que regava suas plantas também nos banhou. Atrás de nós

uma fileira imensa de carros se formava. Pouco importava, naquele momento, a rua também era nossa. Quando passávamos em frente a uma igreja católica, uma freira nos excomungou. A rua também é dela. E essa revista também, é nossa, é sua, é Crua!. Na primeira edição escolhemos a Rua como tema porquê não há nada que seja tão comum a todos. É onde todos os medos se encontram e tensões afloram. É onde está o ladrão, o morador de rua, a prostituta. É por onde saímos e chegamos em nossas casas. É onde eu e vocês nos encontramos. Saímos transformados dessa edição, e nossa alma, Crua!. A gente se encontra na Rua.

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da rua

Vozes

fala tu!

indice 28 Nu e Cru Aline Paes Ela sempre esteve ali, mas agora não há como não notar

36 Quem faz negócio na rua de Ribeirão Preto O endereço, o preço e a importância do comércio na antiga capital do café

40 ruas para carros O problema do transporte coletivo e da organização dos sistemas de movimentação dentro do espaço urbano.

42 Invisível

Rua. Engenheiro Saint Martin, Q. 10

O Fala Tu! é a sessão de cartas do leitor da Revista Crua!. Como essa é a nossa primeira edição, é meio óbvio ainda não termos cartas suas para publicar. Mas, como a rua é o nosso tema central, resolvemos, nestas páginas, transmitir algumas das mensagens que as ruas bauruenses nos passam, dia a dia. É só abrir os olhos para as paredes e você verá.

Moradores de rua são retrato de uma sociedade que não enxerga diferenças

44 Filhas da rua Um conto-reportagem sobre madrugada e saltos-altos nas esquinas da Avenida Nações Unidas

Av. Rodrigues Alves, Q. 07

50 na pele Um rolê pra se divertir, dar uma tumultuada, dar uns beijos, conhecer novos amigos e tirar varias fotos

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quer sua mensagem aqui? envie para mensagens@crua.com.br

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fala tu!

Rua Dr. Almeida Cintra, Q. 08 Rua Nicolau Assis, Q. 07

Rua PiauĂ­, Q. 11

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Fino

avenida

C

Dono de galeria e de loja, grafiteiro, professor de judô. As formas geométricas e as personagens extraterrestres são marcas características da pintura do bauruense, que começa a se tornar cada vez mais reconhecido. Não são só paredes que recebem seus grafismos: também telas, canecas, camisetas e móveis recebem a marca de Matheus Pinheiro Marques, o Fino.

heguei na Rua Maria José, 5-37, com a cabeça fervendo. Toquei a campainha uma, duas vezes – e até agora não sei se funcionou. Dali a pouco alguém me notou e foi me atender. Entre e logo percebi que não era só uma casa. “Aqui é a galeria, mas a gente não tá com nada montado agora”, me explicou o Fino, o meu entrevistado, quando entramos pela porta da frente num espaço que geralmente seria utilizado como sala. Em vez de sofá e mesinha de centro, havia quadros nas paredes, spots de luz e gravuras organizadas em caixas. Viramos à esquerda, entrando num cômodo que tinha cama, mesa, telas e uma pilha de latas de spray. “Aqui é meu quarto e a loja de grafitti”, disse ele, ao perceber a minha sincera confusão. Fino é o apelido de Matheus Pinheiro Marques, de 22 anos, desde a infância, quando as crianças costumam ser um pouco maldosas e apelidar segundo as características físicas. Bauruense, o Fino começou a pintar aos 12 anos e foi até Londrina para se formar em Artes Visuais pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). Voltou para Bauru e mora na casa-galeria-loja, enquanto cursa

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texto e foto / Gabriela Passy o último ano de Design na USC (Universidade Sagrado Coração), e divide a casa com mais três amigos, que estão integrados à galeria. “Quando eu voltei de Londrina, [Bauru] não tinha um espaço adequado para ser uma galeria. O que rolava era uma coisa muito fechada, de muita panelinha. E a gente veio com o propósito de quebrar isso”. Se quebrou ou não com as panelinhas eu não posso dizer, mas quebrou com o conceito das galerias tradicionais. “Tem gravura de vinte reais e até de mil e quinhentos. É uma coisa não elitizada mesmo, já que a gente procura trabalhar com todos os públicos”, conta.

A Galeria Residência é voltada para a arte de rua, que é o ponto central do trabalho – inconfundível - do Fino. “A arte torna a cidade mais legal, disso eu não tenho dúvida. As pessoas passam a ver as coisas de outro jeito”. Além das paredes da rua e dos quadros na galeria, as gravuras do artista começam, aos poucos, a ter como espaço de expressão todo tipo. Fino ganha um olhar sonhador quando pergunto o que ele pretende fazer daqui para frente: se formar, viajar para a Europa ou os Estados Unidos, ficar mais um ano em Bauru e... “Me mudar pra uma cidade do interior, sei lá, do Norte ou do Nordeste. O meu objetivo não é ser dono de galeria, de loja. Eu quero um lugar sossegado onde eu possa focar só em pintar”. Percebo que o Fino se agita no sofá. Entrevistadora distraída que sou, me esqueci que ele logo teria de sair para dar aula de judô, arte marcial em que é faixa preta. Correndo, faço uma última pergunta: - O que você espera da arte para o mundo? Sem parar nenhum segundo para pensar, Fino solta uma risada e me responde: - Acho que é a salvação.

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avenida textos / Jéssica Frabetti

Deu um

clique

Projeto de fotografia aposta em conteúdo jornalístico para recuperar o valor do fotógrafo Para os profissionais Rodrigo Zaim, Tecio Teixeira e Jardiel Carvalho o mercado de fotojornalismo brasileiro sucateou e inferiorizou o profissional, dando preferência às galerias de grandes agências. Para driblar esse esquecimento, os fotógrafos uniram seus ideais de amor à arte e montaram o Foto Coletivo R.U.A.. O proposito é desbancar as imagens sem de velocidade instantânea sem conteúdo e ensinar fotógrafos que não conhecem a linguagem jornalística, através das fotografias que consideram importante: aquelas que possuem história para contar por trás de cada clique. Serviço Serviço Para saber mais sobre o trabalho deles, basta acessar o Para saber maisa facebook.com /ruafotocoletivorua ou o site sobre o trabalho deles, basta acessar o facebook. com /ruafotocoletivorua ou o site www.ruafotocoletico. wix.com

Onde eu vivo,

eu vivo?

cor, por favor

Uma campanha do Google pretende conectar a comunidade de arte urbana com a cidade Espaço não falta. Muros cinzas, pretos e opacos não faltam. A proposta da campanha Color+City chegou para viabilizar a valorização de artistas de rua e promover uma cidade mais colorida. A empresa fornece em sua plataforma de mapas uma interação entre os interessados em pintar e aqueles com com donos de muros que querem ter seu espaço renovado. A única exigência é que ambos tenham uma conta no Google+ para contato entre ambas as partes. Para as pessoas que queiram doar um muro para arte, basta

clicar em “doar um espaço” com o local e fotos. Já os artistas escolhem o lugar em que pretendem pintar e reservam o espaço, desde que seja um por vez. Cada artista tem 35 dias para fazer a pintura.

Serviço A campanha possui uma página, que, além de conectar artistas e apoiadores, possui também uma galeria de artes e postagens com conteúdo sobre o Color+City. Clica lá: www. colorpluscity.com

´

e ?

Qual a sua

Site reune experiências em diversas cidades do planeta e conta a dor e a delícia de cada uma

Conheça o Na Rua, experiência audiovisual que mostra a relação entre músicos e locais

Uma rede de conteúdo e conexões urbanas. O projeto Cidade para Pessoas é definido logo assim, com a missão de gerar repertório através de reportagens e ilustrações sobre como melhorar as cidades, unindo diferente setores que moldam a sociedade como iniciativa privada, academia, poder público e sociedade civil. Pode parecer complicado, mas o blog é um prato cheio para tomar consciência de onde você vive, como vive e em quê contribui na rua rua, bairro, cidade. Financiado pelo site crowdfunding Catarse.me, o projeto percorreu 12 destinos pelo mundo, entre eles Copenhague, Amsterdam, Londres, Nova Iorque. Em suas viagens, o Cidade para Pessoas tratou de observar e debater o planejamento urbano e soluções clássicas das cidades, pautando a primeira fase do projeto no trabalho do planejador urbano dinamarquês Jan Gehl, que tem dedicado a sua vida e carreira em planejar melhores cidades para se viver. Na segunda fase do projeto o foco da pesquisa foi analisar novas ideias e paradigmas das cidades do futuro. Depois de mergulhar nesse universo, fica difícil não pensar que temos tomado direções opostas para cidades melhores. Serviço Quer conferir a pesquisa? É só entrar no site www.cidadeparapessoas.com

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Mais

Vale a pena começar com a transcrição de uma parte do video de apresentação: “a gente pode morar numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro, tá ligado? A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos. Até aí, tudo bem. Só que agora é comigo, é com você, é com nóis. Vamos para a rua mostrar o valor que a rua tem”. E com isso, o projeto chama os artistas de rua, da gringa e de onde for para tocar do jeito que quiser, na rua em que quiser. Tomar conta da rua e mostrar que, para cada pessoa, um ponto do mapa pode inspirar lembranças sonoras e visuais. Cada artista apresenta uma música, que seja de preferência composição própria, em um endereço em que quiser homenagear. O roteiro é feito com dicas de artistas e usuários através das redes Instagram, Foursquare, Facebook e Twitter. Daniel Daibem, músico natural de Bauru, é um dos nomes que participaram do projeto. Serviço Para conferir de perto o projeto e a participação dos artistas, basta acessar www. projetonarua.com e dar uma olhada nos vídeos já feitos ou as estreias, todas as terça-feiras

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avenida

Academias ao ar livre uma ~ opcao acessivel ´ ~

Com cada vez mais espaços populares para se exercitar, não há desculpa para ficar parado

O pixo nosso de cada dia

E

m 2009, João Wainer e Roberto T. Oliveira produziram o documentário Pixo, que expõe a pixação como um fenômeno cultural na cidade de São Paulo, desde o seu início, a história da pixação, na época da ditadura, com mensagens claras e políticas; depois parte do movimento punk e consequentemente de revolta e subversão às regras até chegar em galerias de arte. Para quem não conhece essa realidade de perto, o documentário, quase todo feito em cima de registros dos “rolês noturnos”, chega a chocar. Isso porque a marca feita pelos pichadores fica, mas como ela chegou até lá, pouca gente sabe ou quer saber. Aquela marca no 13º andar do prédio? É o grito de alguém que não tem voz durante o dia e a encontra em forma de tinta, feita para agredir a sociedade. Caco OLOCO, como gosta de ser chamado, entrou na onda da pixação para extravasar. E, conta que na rua a relação é sempre uma via de mão dupla: o que traz amizade também gera treta. Cair de pico, levar tiro por causa de mole, são os riscos. Mas, o perigo, na visão de quem vive, é o que deixa tudo mais emocionante. “Problemas

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texto / Jéssica Frabetti

A religião das ruas tem uma legião de seguidores que ninguém vê

com a polícia também são constantes. Eles odeiam pichadores e, quando pegam, adoram bater e pintar a galera”, conta. A aventura, segundo ele, fica maior a cada rolê. O grafitti também aparece muito em cena e a maior parte, ainda, sem um rosto de artista. Sax Two, desde pequeno já reparava nas paredes de BH, onde viveu 13 anos, aquilo que também queria fazer. Já em Bauru, surgiu o contato mais forte com pixadores e graffiteiros, onde começou a pintar. “A relação entre graffiteiros é como de qualquer outra sociedade, uns tem grupos ou Crew's, outros pintam sozinhos ou com alguns parceiros mais chegados”, explica. Para ele, graffiteiros e pixadores normalmente tem ideias diferentes, o que costuma ser motivo de desavenças. “Mas, se ninguém "roletar" ninguém fica tudo na paz”, conta. O documentário tem aproximadamente uma hora e é uma ótima indicação para quem quer conhecer e refletir sobre esses fantasmas que deixam seus rastros nas cidades. Ele não traz respostas ou mesmo julga quem pinta as ruas, mas traz argumentos para quem nunca viu de perto.

texto / Fernando Martins

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á é mais do que sabedoria popular que uma prática regular de exercícios é essencial para que as pessoas consigam prazer, satisfação, saúde e bem estar. E na rua não é diferente. Nela é possível encontrar diversas formas de realizar uma atividade física. Entre elas, hoje, está na moda a construção de academias populares ao ar livre em praças das cidades. Elas consistem em alguns aparelhos de movimentação simples para uma prática facilitada de exercícios de baixa intensidade. Em Bauru, já são aproximadamente 40 academias ao livre espalhadas pela cidade, segundo o diretor do Departamento de Ações e Recursos Ambientais da Secretaria Municipal

prática acessível de atividade física, de Meio Ambiente (SEMMA), Paulo André. “Em 2013 nós instalamos 16 mas carece de um melhor projeto: “A academias ao ar livre e há o projeto intenção dessas academias ao ar livre para a instalação de outras 16 neste é incentivar a prática esportiva, mas colocando apenas meia dúzia de ano”, completa Paulo André. Paulo André destacou também que aparelhos em parques não resolve o há uma academia ao ar livre voltaproblema e elas ficam devendo muito por não atender vários requisitos da para idosos, no Jardim Ferraz na mínimos do treinamento desportivo”. Praça Vidigal próxima a Sociedade Hípica de Bauru, e há o projeto para a instalação de outras academias específiEssas academias são compostas com todos cas, tanto para os idosos, quanto as adapta- ou alguns dos seguintes itens: volante diagonal duplo, alongador, elíptico, leg press duplo, das para cadeirantes. remada convergente, simulador de caminhaSegundo o persoda, volante vertical duplo, balanço lateral, nal-trainer, Geraldo cavalgada, bicicleta, espaldar, multi-função, Luis da Silva, essas abdominal e elevação de braços, além de academias são imbanco, lixeira e placas. portantes para uma

Olha lá: Pixo (2009) Direção: João Wainer, Roberto T. Oliveira

retirado de http://vereadornatalino.files.wordpress.com/

Geraldo também ressalta a importância de acompanhamento profissional aos praticantes dessa atividade física, pois os exercícios podem ser tão bons, quanto também ruins para a saúde, se praticados de maneira falha: Com certeza a falta de um profissional monitorando os praticantes é muito preocupante, pois qualquer exercício físico pode trazer grandes benefícios para a vida, assim como pode ser um grande vilão quando realizado de maneira equivocada, se pensarmos que todo tipo de pessoa tem acesso a elas, desde crianças até idosos e de indivíduos ativos e saudáveis até sedentários ou pessoas com problemas de saúde”. Não se esqueça também de que se manter hidratado e ter uma alimentação balanceada é fundamental para qualquer prática esportiva.

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avenida Artistas encontram nas A rua ruas espaço para trae´ o palco balhar texto / Vinicius Martins foto / Felipe Amaral

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ugar de alegrias e tragédias, sorrisos e lágrimas, prazeres e dores, a rua abriga um misto de emoções e pessoas. Dentre tantas manifestações de humanidade está a arte. Aliás, mais que isso. Na rua estão aqueles que vivem a arte e constroem, sem medo nenhum, uma vida inteira pelo prazer de ser artista. Em Bauru, o calçadão da rua Batista de Carvalho, no Centro, é como um lar para essas pessoas. Uma delas é o artista paulistano Alex Sandro Gomes Sengik, que se apresenta como estatua-viva em centenas de cidades pelo Brasil. Para ele, trabalhar na rua é gratificante. Atrás dos olhos cansados, ainda sujos de maquiagem depois de mais um dia de trabalho, é possível enxergar a confiança e o orgulho de quem já vive essa vida há 21anos. “Quando se tem um dom artístico, você vicia, não consegue mais parar”, explica.

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Nem mesmo o calor ou a indiferença das pessoas são capazes de desmotivar Alex a continuar com seu trabalho. “Em cidades como Campinas, por exemplo, não existe valorização desse trabalho, as pessoas são frias, presas ao dia-a-dia massacrante”, explica. “Mas Bauru, no geral, é uma cidade muito aberta para cultura, aqui todos são muito solidários e valorizam nossa arte e a melhor coisa para um artista é ouvir um elogio ou um muito obrigado pelo nosso trabalho”, completa. Além de Alex, outra figura conhecida do calçadão bauruense é o músico Fábio Marcelino Barreiro, da cidade de Palmital-SP. Semanalmente, Fábio viaja por várias cidades brasileiras apenas com uma violão e algumas roupas. Ele se apresenta tocando e cantando músicas populares e religiosas. “Não trocaria isso aqui [a rua], por banda nenhuma”, conta, entusiasmado.

Fabinho Barreiro, 30 anos, há 14 como artista de rua

Grande parte desses artistas vivem a base apenas de doações ganhas em apresentações. Não há suporte do Estado nem leis que garantam ou regulamentem a profissão de artista de rua. Por vezes, é comum a abordagem policial e, no caso bauruense, já houve até a tentativa de proibir o trabalho artístico na rua. “Apesar da falta de suporte trabalhista, a constituição brasileira garante o direito ao trabalho do artista de rua”, conta Alex, que diz já ter presenciado agressões e tentativas de impedir o trabalho da categoria.

falta de Suporte

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nu e cru

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Sem mascaras Ela sempre esteve ali, mas agora não há como não notar texto / Aline Ramos fotos / Wilian Olivato

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nu e cru

A

s curvas de Aline e Antônia se completam. Aline é tudo o que vocês podem ver nas fotos. Olhar penetrante com um sorriso permanente. Ombros largos, pernas de ciclista. Ela lembra: eu nunca fui a menina mais bonita da turma. Antônia é tudo o que vocês não podem ver. Forte e resistente. É esguia, de traços fortes e geométricos. Antônia é simples e vermelha. A beleza está em suas rodas. Aline não é musa e Antônia não é modelo. Há um ano Antônia entrou na vida de Aline pra não sair mais. As duas são corrente e óleo. Quando era criança, a frustração de Aline era não poder andar no bairro movimentado de bicicleta. Restou a ela as tintas, lápis

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de cor e muita imaginação. Ali nasceu a Aline Paes artista. Em Bauru, no segundo ano de faculdade de Design, nasceu a Aline ciclista. Não havia paixão, só a necessidade de chegar mais rápido ao trabalho. Com o tempo algumas coisas mudaram. Aline parou a faculdade de Design e passou a fazer Artes. Antônia entrou em sua vida. “Eu não vivo mais sem ela, numa cidade de interior como Bauru, andar de bicicleta vai além do físico. Obviamente eu me sinto melhor fisicamente andando de ‘bike’, mas a mudança também rola na mente, na alma. Num domingo qualquer que não há nada para fazer, pegar a “bike” e dar im rolê pela cidade é fantástico. Faz com que Bauru se torne realmente uma cidade sem limites”.

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nu e cru

“Eles devem me conhecer como eu sou.”

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nu e cru

A percepção de Aline pela cidade mudou desde que começou a andar de bicicleta. A relação com a rua, casas, muros é mais íntima. “Eu vejo coisas que sempre estiveram ali, mas só de ‘bike’ consegui notar”. A cidade está ali para se descobrir, assim como Aline descobriu seu corpo. Esse é o primeiro ensaio sensual de Aline e Antônia, mas Aline tirou a roupa outras vezes em público em apresentações do Teatro Oficina, dirigido pelo Zé Celso. “Quando teve a apresentação do Teatro Oficina em Bauru eu fui nos dois dias. Antes estava na dúvida se tiraria a roupa, porque todos os meus amigos estariam lá. Mas foi isso que me motivou. Eles devem conhecer o que eu realmente sou, e a gente só é de verdade quando tira todas as máscaras. Você também tirou a roupa né?” Aline é sem dúvidas uma mulher de verdade. Com 24 anos, não aceita maquiagem no rosto e comemora que está mais próxima de abandonar o emprego de carteira assinada. “Tem surgido cada vez mais uns freelas, atualmente estou trabalhando numa série de quadrinhos”. Aline se sente cada vez mais livre e em conexão com a cidade que vive. Isso tudo a gente vê nesse ensaio com a sua fiel companheira Antônia. Mas antes que você vire a página, a Aline quer fazer um pedido: Zé Celso, me chama?

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´ Quem faz negocio na rua de ~

Ribeirao Preto Q

Crescimento Vertiginoso

texto e fotos / Thales Schmidt

O endereço, o preço e a importância do comércio na antiga capital do café

uem desembarca no Terminal Rodoviário na região central de Ribeirão Preto, na Avenida Jerônimo Gonçalves, antigo cartão postal da cidade, pode escolher entre diferentes lugares para fazer compras. Caso escolha ir a algum lugar próximo, basta caminhar até o Centro, onde é possível visitar as lojas no calcadão e o Shopping Santa Úrsula. Ainda é possível esperar o semáforo fechar, atravessar a avenida mais famosa da cidade e chegar ao Centro Popular de Compras, CPC, e ao Mercado Municipal.

Ribeirão Preto tem 157 anos e teve sua população estimada pelo IBGE no ano de 2013 em 649. 556 habitantes, é dona do terceiro maior crescimento populacional entre as 30 maiores cidades do Brasil, atrás apenas de Salvador e Manaus. Segundo as contas da fundação estatística do Governo Federal, nos últimos 10 anos a população da cidade ganhou mais 121.823 habitantes. Em 1980, eram 306 mil habitantes. A cidade é um pólo regional para trabalhadores e turistas da região. Sua atual prefeita, que cumpre seu segundo mandato, é a ex-radialista Darcy Vera, do Partido Social Democrático. Distante 329 km pela Rodovia Anhanguera da capital São Paulo, atrás nos índices de crescimento populacional, o Indíce de Desenvolvimento Humando, IDH, da cidade é de 0,800. O índice criado pela Organizações das Nações Unidas é composto a partir de dados de expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita e busca calcular o grau de “desenvolvimento humano”. Com o aumento da população, alguns problemas na infra-estrutura da cidade são evidenciados. A mobilidade urbana é um tema cada vez mais difícil, ainda mais com um crescimento que se concentra cada vez mais entre a zona norte e a região oeste. Ribeirão passa por um processo de urbanização parecido com o das grandes capitais nacionais durante a década de 70, quando a economia nacional passava por um período crescimento. O aumento nas vendas era mantido com a mão de obra barata oferecida, em boa parte, pelos fluxos migratórios vindos do campo.

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O geográfo brasileiro Milton Santos estudou a ocorrência do chamado “trabalho informal”, que crescia durante o “milagre ecônomico” da ditadura militar de Médici. O professor da Universidade de São Paulo, USP, afirmou que nas cidades do terceiro mundo estavam construíndo um modelo econômico diferente, distinto do ocorrido nos países centrais do capitalismo. O trabalho não registrado, informal, foi considerado por Santos como complementar ao seu par legalizado. A teoria dos circuitos então formulada previa a existência de dois subsistemas na cidade: o subsistema superior é com-

posto pelos bancos, empresas multinacionais e demais inciativas com grande capital; já o circuito inferior é formado por empresas pequenas com produtos não especializados e tem a capacidade de manter com pouco capital, são as pequenas lojas, supermercados e padarias que concorrem com as grandes redes de varejo nas cidades. Os dois sistemas funcionam de maneira complementar, embora a expensão do circuito superior nas cidades acirre a concorrência. A doutora em geografia humana pela USP Marina Montenegro estuda o processo de urbanização e a relação

entre os dferentes circuitos da economia nas metrópoles. “Na periferia da zona sul de São Paulo, por exemplo, pequenos mercadinhos têm desaparecido com a chegada recente dos hipermercados em suas versões mais populares” afirma Montenegro. Entretanto, na visão da pesquisadora os pequenos comércios não deixaram de ter seu lugar, “Enquanto as compras menores do dia-a-dia seguem sendo realizadas em pequenas vendinhas, açougues e padarias de bairro; roupas e eletrodomésticos tendem a ser cada vez mais consumidos em grandes cadeias comerciais de varejo”.

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Centro Popular de Compras O visitante que preferir ir ao CPC encontrará eletrônicos, roupas, acessórios, brinquedos, relogios e outros itens,o local também conta com uma praça de alimentação. Criado em 2000 para acomodar 153 comerciantes ambulantes que ficavam nas praças da região central, o local é bancado pela Administração Municipal que é responsável pelo aluguel e pelas contas de energia e água. “Estamos aqui desde o começo. O começo foi difícil, os primeiros cinco anos.” afirma Alfredo Osvaldo, comerciante da Ivone Presentes. Os corredores são cheios, apinhados de produtos e pessoas que passam conversando com sacolas nas mãos. Osvaldo trabalhava como ambulante na praça XV de Novembro antes de ter o seu box no Centro Popular de Compras. Os comerciantes mais antigos dividem espaço com alguns recém-chegados, Afonso Soares é o responsável pela Play Games e inaugurou seu estabelecimento há seis meses. Antes, trabalhava apenas com uma loja virtual e agora usa o box como complemento para atender clientes que encontra na internet. Alves não se preocupa com a concorrência oferecida pelos 4 shopping centers da cidade e pelo novo Shopping Center Iguatemi Ribeirão Preto. “Cada item tem seu público, não que o público do shopping não vir aqui ou o público daqui não vai no shopping. O Shopping Iguatemi é de elite, não é qualquer que tem grana para gastar lá” afirma o comerciante.

Financiamento público Distante 7 kilometros do Terminal Rodoviário municipal, o mais novo shopping da cidade é acessível via táxi ou veículo pessoal. O percurso até a zona sul da cidade, passa por bairros luxuosos com avenidas largas e bem asfaltadas. O acesso para pedestres no local é difícil. Segundo declaração do grupo empresarial responsável em coletiva de imprensa, o objetivo do empreendimento é atrair clientes de Ribeirão e cidades em um raio de até 100 quilômetros. A inauguração do local ocorreu no dia 30 setembro e os números são grandiosos, são 127.200 m² de área construída, 158 lojas, 16 megalojas e 2640 vagas de estacionamento. Parte do financiamento da construção do local foi feito com dinheiro público. No final de 2011, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, concedeu um crédito de R$ 647,7 milhões para a construição de seis novos shopping centers nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Amazonas. A Iguatemi Empresa de Shopping Centers S.A foi beneficiada com R$ 141,4 milhões da quantia e um dos empreendimentos financiados foi o Shopping Center Iguatemi Ribeirão Preto.O local conta com lojas de grifes internacionais e, segundo a administração do grupo, irá gerar 3.500 empregos.

Antes de partir

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Antes de retornar para seu local de origem, quem visita Ribeirão Preto pode querer tirar uma foto da viagem. O cartão postal mais antigo da cidade, contudo, foi alterado por uma obra antienchente de R$117 milhões iniciada em 2009 e terminada ano passado. Com ela, as 128 palmeiras imperiais plantadas nos anos 30 que margeavam a Avenida Jerônimo Gonçalves foram retiradas e replantadas em outras áreas . Caso o visitante esteja disposto a andar os 650 metros entre que separam o Terminal Rodoviário do cruzamento entre a Avenida Jerônimo Gonçalves e a Avenida Dr. Francisco Junqueira, é possível visitar o Memorial das Palmeiras. O local tem 10 palmeiras do antigo postal ribeirão-pretano.

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Ruas para os carros texto / Lucas Viera foto / Vinicius Martins

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mobilidade dentro do espaço urbano é um problema que atinge diretamente milhares de pessoas. Atualmente os meios de transporte estão cada vez mais individualizados e excludentes, a opção mais acessível é o transporte coletivo, e esse vem apresentado diversos problemas, em especial para quem mais necessita. O ônibus é o meio de transporte coletivo mais popular do Brasil. Apesar de sua popularidade, o sistema viário brasileiro apresenta vários problemas em diversas cidades diferentes. Essa problemática ficou evidente nas manifestações do movimento “passe livre” no começo do ano passado, mas já era compartilhado por milhares de pessoas. Além dos problemas estruturais, há também problemas na formatação do sistema. Os horários das linhas atendem especialmente horários comerciais, os dias uteis e no período diurno são os que tem maior atendi-

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36,8% do deslocamento nos munícipios brasileiros é feito a pé, 31% dos domicílios brasileiros não possuem calçada em seu entorno, segundo pesquisa do IBGE

Apesar de o sistema ser inteiramente focado na mobilidade de veículos, ele se demostra ineficiente nos centros urbanos, o trânsito é um problema grave em diversas cidades brasileiras. Além da falta de atenção para uma grande parte da sociedade que não dispõe de veículo próprio, o sistema ainda é ineficaz no que diz respeito a seu próprio foco, os veículos. O transito na cidade de São Paulo bateu várias vezes seu próprio recorde de engarrafamento ao longo de 2013, o ultimo foi registrado em 25 de novembro, quando o congestionamento atingiu 195km, dados da CET(Companhia de Engenharia de Tráfego).

O problema do transporte coletivo e da organização dos sistemas de movimentação dentro do espaço urbano.

mento. Pode-se perceber com isso que o transporte urbano não está focado na mobilidade urbana dos cidadãos, mas na mobilidade da força de trabalho. Os horários alternativos, ou em finais de semana são claramente menos valorizados. Em Bauru a Transurb (Associação das Empresas do Transporte Coletivo Urbano de Bauru) é responsável pelo transporte coletivo. A Transurb representa as três concessionárias do serviço público de transporte coletivo de passageiros – Transporte Coletivo Grande Bauru, Baurutrans CN Transportes Gerais e Cidade Sem Limites. As três são do mesmo dono.

O que está sendo feito

Algumas das alternativas para amenizar o problema da mobilidade urbana já estão sendo realizadas. Em 2012 o governo federal anunciou investimentos no setor através da criação da PNMU (Política Nacional de Mobilidade Urbana), e alguns projetos já estão em andamento, em especial para a região metropolitana de São Paulo, onde o investimento superou os 5 bilhões, principalmente para a expansão da malha ferroviária, e dos túneis do metrô. Segundo o ministério das cidades, existe um total de dez projetos federais que tratam do problema, programas que variam do

investimento no transporte coletivo ao incentivo ao transporte sustentável, como o programa Bicicleta Brasil, que promove o incentivo a instalação de ciclovias nos municípios Brasileiros e a divulgação da bicicleta como meio de transporte alternativo. A Ong Greepeace também desenvolve um projeto que trata do tema da mobilidade, se chama “#Cade? O plano de Mobilidade urbana”. O projeto tem como objetivo divulgar os trabalhos realizados nas diversas cidades brasileiras e promover o debate com a população, incentivando-os a cobrar dos governantes a instalação e a

efetivação de alternativas para o transporte urbano. No site do projeto (greepeace.com/cade) foi criado um mapeamento nacional simplificado, onde foi a avaliado a situação do transporte nas principais cidades do Brasil. No próprio site existe uma descrição simplificada da problemática e ferramentas diretas para que o cidadão possa se atualizar com as ultimas notícias referentes ao seu município e possa comunicar problemas, podendo até mesmo enviar uma reclamação formal para o governante responsável pela área em seu munícipio.

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INVISÍVEIS M ercedes era morador de rua na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Começou a escrever um livro, escreveu somente a introdução. “Meu nome é Luiz Felipe da Luz, nasci no dia 25 de dezembro. Por causa disso alguém me disse que eu sou filho da luz, e eu devo ser mesmo, porque já levei 5 facadas, 7 tiros e fui atropelado 11 vezes. Em uma dessas vezes, por um caminhão Mercedez-Benz. Por isso, me chamam de Mercedes.”. Escreveu esse parágrafo e faleceu

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7 dias depois, em virtude de complicações decorrentes da AIDS. Mercedes aprendeu a ler e a escrever graças ao Boca de Rua, jornal porto-alegrense elaborado integralmente por moradores de rua. Graças ao jornal, o pedinte com apelido de empresa automobilística morreu não como mais um invisível morador de rua, mas como “jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Era o que dizia seu crachá vistoso encontrado em meio aos seus poucos pertences após sua morte.

Moradores de rua são retrato de uma sociedade que não enxerga diferenças texto / Lucas César foto / Diogo Zacarias O Jornal Boca de Rua é um exemplo de iniciativa que busca dar voz ás pessoas invisíveis. Elaborado por moradores de rua, é um jornal porto-alegrense trimestral, associado à ALICE (Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação) e cujas pautas tratam do universo das demandas sociais das camadas mais baixas. Há quase 15 anos, o Boca de Rua transforma vidas de pessoas abandonadas

e renegadas socialmente, como Mercedes. É vendido por 1 real e tem uma tiragem de 10000 exemplares . Além de dar voz a quem não a têm, o “Boca”, como é chamado carinhosamente pelos colaboradores, é uma alternativa à grande mídia, uma forma de divulgar informações que não circulam nos grandes veículos, de sanar, mesmo que pouco, o problema da invisibilidade social.

A invisibilidade social anula e mutila a identidade das pessoas que compõem o cenário da cidade grande

Mercedes tinha tudo pra ser mais um morador de rua. Um ser humano fadado à rejeição e ao descaso, uma peça invisível dentro do cenário urbano. É a situação não só dos moradores de rua, mas de todos que ocupam funções consideradas periféricas ou insignificantes, possuem baixa escolaridade e são de baixa renda – faxineiras, garis, porteiros, empacotadores, jardineiros etc. Esses personagens sociais são diariamente tratados como cidadãos de segunda categoria, indignos de serem cumprimentados ou receberem um “obrigado”, ou um “bom dia”. A invisibilidade social é um fenômeno extremamente sensível no Brasil. Fernando Braga da Costa, autor da tese “Homens Invisíveis – Retratos de uma Humilhação Social”, acredita que a Invisibilidade Social é um fenômeno político, social e psicológico que envolve diversos fatores e é fruto direto da desigualdade social. O não enxergar, segundo ele, é uma forma de preconceito, mas também uma consequência do dia corrido, da falta de comunicação e do medo da violência. Para elaborar sua tese, Costa passou 8 anos trabalhando como gari na cidade de São Paulo. Uniformizado e com os instrumentos de trabalho (vassoura, pá e cesta de lixo), o acadêmico vestido de gari passava por lugares em que frequentava diariamente como estudioso, e não era reconhecido. “Certa vez fui almoçar no bandejão central com um colega gari. No caminho, passei em frente ao centro acadêmico, passei em frente à lanchonete, tinha muita gente

conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. O pessoal passava como se estivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão. Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angústia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar e não senti o gosto da comida. Voltei para o trabalho atordoado.” A invisibilidade social (ou invisibilidade pública) é uma cegueira psicossocial atrelada, também, à herança escravocrata do país. A tese é do sociólogo Leonardo Mello e Silva, da USP. “O trabalhos pesado, no Brasil, era uma atividade associada aos escravos. O fato de as leis trabalhistas terem sido implantadas no país tardiamente evidencia como o trabalho era uma atividade considerada mal vista. “ A profissão de gari é símbolo dessa questão. Jefferson Sousa, de 37 anos, gari na cidade de Goiânia, diz que é diariamente desprezado nas ruas da capital goiana. “O pior é quando os carros quase passam por cima da gente, e ainda buzinam sem educação pedindo pra gente sair. A gente tem que se cuidar, se não é atropelado.”. É assim que Jefferson e milhares de outros garis limpam a sujeira com que esses mesmos motoristas poluem a cidade.

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Filhas da rua

Um conto-reportagem sobre madrugada e saltos-altos nas esquinas da Avenida Naçþes Unidas texto / Felipe Vaitsman fotos / Amanda Lima

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E

m uma dessas madrugadas lúgubres de Bauru, Danilo foi buscar droga na linha do trem. Qualquer droga. Ele usa de tudo, apesar de só ter experimentado essas porcarias da rua. Queria coisas mais potentes, como ácido, ecstasy e heroína. Mas, naquela noite, podia ser pó, pedra. Estava com um amigo, que, mais malandro, foi logo pulando por cima dos vagões estacionados e atravessou. Danilo ficou para trás. Na sua vez de passar, vinha o trem, rugindo o ferro nos trilhos. Titubeou e decidiu não pular sobre o comboio em movimento, como via nos filmes de faroeste. Desceu entre os vagões e seguiu, margeando a linha, acompanhando a passagem da locomotiva. Lá na frente, uma sombra. Não parou. Continuou caminhando, de encontro ao vulto. O barulho ensurdecedor não permitiu que ele ouvisse os gritos que vinham do escuro: — Para! Para! Só o fez a um metro do cano frio apontado para sua cabeça. Por pouco não lhe estoura os miolos. Na linha, um corpo estraçalhado pelo trem que acabara de passar. É isso que ele diz ter visto. De certo, uma armação, um atropelamento forjado. A rua ensina, é uma mãe. E Danilo é um de seus muitos filhos. Não se espanta com o que convencionaram chamar de marginalidade. Vive perambulando, furtando mercadinhos e lojas de conveniência. Já levou muito tapa na orelha e diz ter escapado de punições piores por ser “bonitinho”. Mas já viu pessoas “rodarem” por motivos muito menores. Nas suas andanças pela madrugada, soube das mais asquerosas histórias de Bauru. Gente que morreu por dez reais, por trapaça, por ciúme, por vingança, por pensar diferente, por ser diferente. Por estar na rua. Outro dia mesmo, mataram uma travesti na cidade. Thays, 27 anos. Deu no jornal. Na

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rodoviária, ela armou barraco com uma mulher que furou a fila do guichê para comprar a última passagem. Se descontrolou, gritou e tentou agredir a trapaceira. Saiu escorraçada. Sem bilhete, voltou à pensão em que estava. Para morrer. O namorado a assassinou com um tiro no peito, dentro do quarto. Ninguém sabe dizer ao certo qual foi o motivo. Vivian mora nessa pensão, e conhecia a vítima. Viu a mesma arma apontada para o rosto, mas ficou calada e viveu para contar a história. Ela trabalha na esquina da Rua Benjamin Constant com a Avenida Nações Unidas. Tem 19 anos. Toma hormônios há quatro meses e se orgulha dos peitinhos já crescidos. — Tem bofe que acha que eu sou mulher. É porque eu sou bicha-paty. De vestido rosa-choque, curtinho, e com uma enorme bolsa laranja, ela bate o tamanco no chão e gagueja quando fica nervosa. Engole com os olhos carros e mais carros que passam lentamente por ali. Ela acena, mexe, pede carona. A transa é cinquenta, a chupeta é trinta. Mas o movimento está fraco.

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A colega, Fernanda, na rua há muito mais tempo, sabe bem que lua cheia e céu limpo iluminam o submundo mais do que se deveria. Que homem quer ser visto abrindo a porta do carro para uma travesti? Pois ela pouco se importa. Ri, joga o cabelo para trás e roda em torno do poste com movimentos de pole dance. Já entrou em carro com cinco bofes. E já foi ameaçada por mais de dez. Botou todos para correr, menos um, que não escapou a tempo e foi achincalhado em plena calçada. Hoje, Fernanda se arrisca bem menos. Trocou as esquinas pelo celular. Fica em casa o dia todo, esperando algum cliente acioná-la. Quando está na rua, é porque o telefone não tocou. Pois Vivian e Fernanda dividiam o ponto naquela terça-feira. Se conheceram ali mesmo, sob a enorme lua cheia. Os carros passam vagarosamente e trazem olhares tímidos, assustados, curiosos. Elas só pausam a conversa para mexer com os homens: — Me leva pra casa! — grita Fernanda, para dois que passavam de carro pela segunda ou terceira vez. — A-adoro um negão... Quan... quantos já não me juntaram nessa pa... nessa parede aqui e puxaram meu cabelo com força? — comenta Vivian. — Ah, não! Negão não dá, amiga! Dói demais. Só cheirando muito pó pra aguentar. — Ma... mas eu gosto é de sentir dor mesmo, bi. Gosto quando eles me batem. E... e eu bato neles tam... também. — Bate quando faz a ativa, bicha? — Ba-to! Tem homem que quer apanhar! Eles só não assumem... — E você gosta de fazer a ativa, é? — Adoro! Principalmente quando o cara parece be... bem machão, mas é to... todo recatado. E, olha... o “meu” é bem maior que o de muitos por aí. — Porque você não é homem, então, louca? Gosta de ser ativa!

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— Eu, não, bi. Eu sou bicha-paty... Mas Vivian sabe deixar a delicadeza de lado. Carrega sempre uma faca. Cansou de ter suas bolsas roubadas pelos vagabundos que zanzam na noite. Agora já reconhece o perigo de longe. Da última vez, lutou com o ratoneiro e conseguiu salvar as coisas. Em pouco tempo, aprende-se muito. Fernanda parou de estudar muito cedo, mas costuma dizer que se formou, já deu aulas e agora é diretora na rua. Ela já não paga pelo ponto. Para se prostituir na Avenida Nações Unidas, a maioria das travestis deve pagar uma espécie de aluguel para alguma cafetina. São cem reais por dia – dois programas. Cada cem metros de avenida é de uma dona. São entre quatro e seis esquinas. Algumas dessas cafetinas ainda abrigam as meninas em apartamentos, quartinhos ou pequenas pensões como aquela em que Vivian mora e onde mataram Thays. É uma luta para pagar tudo em dia. No mundo delas, as ameaças vêm de todos os lados. Rillary tem 22 anos e carrega nos braços algumas marcas da vida. Foi atacada com uma faca de cozinha na Parada da Diversidade de Sertãozinho por outra travesti. E, na rua, sabe dos riscos que corre. Mesmo assim não abre mão de levar o celular para o trabalho: gosta de ouvir música enquanto espera pelos clientes. Se roubarem, foi só mais um aparelho, de tantos. Bianca, de 35, faz ponto na esquina do Teatro Municipal. No último sábado, alguns infelizes passaram de carro e arremessaram ovos nela e em outras colegas que, com sorte, não foram atingidas. Mas as marcas da ignorância e do preconceito estão na parede de um dos símbolos da cultura em Bauru até hoje.

Bianca é serena. Loira, alta e siliconada, olha fundo nos olhos de cada um que passa salivando por ela. Muito simpática, não desmancha o sorriso nem quando alguém para o carro só para ofendê-la. É o mesmo homem que vai voltar no fim da madrugada, para fazer um programa. Hoje ela se dá o direito de escolher: só transa com quem mostra firmeza. Naquela noite, por volta das três da manhã, foi vista saindo de uma BMW – cliente graúdo. Mas voltar ao ponto é sempre se expor à estupidez: “eu gosto é de boceta”, gritava um homem embriagado, de dentro do carro. Não é preciso responder. Ela prefere acenar ao outro que passa se declarando. — Bianca, meu sonho de consumo! A esses, carinhosos, toda a reciprocidade. Inocência, jamais. O homem antes de gozar é um. Depois, é outro. E aquele que ganha um programa de graça nunca mais vai querer pagar. Por isso, Rillary não dificulta a negociação. “Dinheiro na mão, calcinha no chão. Dinheiro, não viu, calcinha subiu”, é o que sempre diz, com seu sorriso tímido.

Cada uma vai atrás do seu

Na Nações Unidas, do cruzamento com a Avenida Duque de Caxias até a rodoviária, Vivian, Fernanda, Rillary e Bianca, além de dezenas de outras travestis, vivem a face mais visceral da noite. Tal como os mendigos do centro da cidade, os traficantes do Parque Vitória Régia e malandros vacilantes iguais a Danilo, que andam por aí fumando bitucas de cigarro, pedindo goles de cerveja (sem encostar a boca na lata) e cometendo pequenos delitos para pagar suas drogas. São todos vítimas. Estar na rua não é opção. Rillary queria mesmo é ser DJ. Sonha tocar em festas abarrotadas, virando a madrugada nas melhores baladas de São Paulo. Bianca fez Magistério e está concluindo um curso para ser auxiliar de cabeleireiro. Ainda assim, as duas continuam nas esquinas noite após noite. É muito difícil deixar essa vida. Não é todo dia que se vê uma travesti num balcão de farmácia, na recepção de um hotel ou na gerência de um banco. Por preconceito e hipocrisia da sociedade, foram fadadas a ser putas. São becos, bocas, drogas, furtos, dívidas, facas, balas, mortes. Já seria um prejuízo muito grande se Thays fosse a única vítima da violência contra transgêneros. Mas e Camila, assassinada com uma facada na altura do pescoço? E Safira, morta com cinco tiros? O que dizer sobre Evelyn, espancada e largada no meio do mato pelo agressor? Não tardará a aparecer uma travesti estraçalhada na linha do trem. E a sujeira do asfalto vai encobrir explicações. “Foi por vingança”, “roubou o cliente”, “usava drogas”, “era puta” vão ser as respostas doentias ecoando pela avenida. O fato é que há vários rastros de sangue no chão que não serão apagados. Na noite de movimento fraco e babados fortes entre Vivian e Fernanda, a bicha-paty pergunta à colega mais experiente, diretora na rua: — Do... do que vo... do que você tem medo? — De nada — diz, se entregando com o olhar. — Eu te... eu tenho medo de... tenho medo de morrer.

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Um rolE pra se divertir, dar uma tumultuada, dar uns beijos, ´ conhecer novos amigos e tirar varias fotos texto / Aline Ramos fotos / Wilian Olivato

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inhas canelas ardiam de tão rápido que andava. Caminhar até o centro da cidade sozinha, numa sexta à noite, é o tipo de coisa que meus amigos universitários não aconselhariam. A cada prostituta que eu encontrava nas esquinas, a cada provocação dita pelos carros que passavam, a cada cantada na rua, me entreguei. Eu não sabia mais a quem temer. Responda, do que você sente tanto medo?

mulher. negra. jovem. universitária. classe média. heterossexual. Responde, Aline, a quem você teme? Se a cidade não é sua, ela é de quem? Da travesti que anda com uma faca na bolsa porque toda noite sabe que talvez não volte pra casa, não é. Dos dois homens pardos que me ultrapassaram, de chinelo no pé, muito menos. Dos cinco adolescentes que saltaram do ônibus, também não. É claro que não! Era a eles, esses meninos do ônibus, que gostaria de encontrar. Desde dezembro de 2013 isso havia ficado muito claro: a cidade e o shopping não pertencem aos adolescentes que só querem se divertir, dar uma tumultuada, dar uns beijos, conhecer novos amigos e tirar várias fotos. Quanto mais me aproximava ao Boulevard Shopping Nações, na cidade de Bauru, mais adolescentes surgiam a minha frente. Eu estava indo na direção oposta ao “rolezinho”, que atravessava a avenida correndo. Viro a esquina e a cavalaria da Polícia Militar me recepciona. A mim não, o objetivo deles não era recepcionar ninguém ali, mas expulsar. Bombas de efeito moral pra dispersar os adolescentes que tomavam a rua, cavalaria pra fazê-los andar mais rápido e revista policial num grupo de dez meninos, pra dar um susto. “Eles podem nos revistar o quanto for, não vão encontrar nada. Não temos nada de drogas, não somos bandidos, mas afinal, quem é você?”, perguntou o menor C.A., de 17 anos. Jefferson Guilherme, já tem 19 anos, podemos chamá-lo pelo nome, e quer que todos saibam que o que está acontecendo é uma injustiça. “Anota ai, vai sair no jornal mesmo? Estamos sendo injustiçados. Eu trabalho a semana inteira e não posso curtir o final de semana com os meus amigos de boa?”. Márcio Aparecido, 18 anos, explica: “eles

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estão pegando no pé dos menores que estão bebendo, mas isso não é motivo pra revistar a gente, né?”. E sentencia: “aqui ninguém está vendendo bebidas para eles, o problema não é nosso”. Jefferson lembra “estamos fazendo o nosso rolezinho há anos, nunca incomodamos ninguém, porque agora decidiram partir pra cima?”. A explicação pro Jefferson e para todos os adolescentes que se perguntavam o que estava acontecendo, saiu na imprensa bauruense durante a semana: “Rolezinho tem mutirão contra álcool”; “Bauru diz ‘não’ à truculência nos shoppings”. O plano foi bolado pela SEBES(Secretaria de Bem Estar Social) que em reunião com lideranças da cidade, concluiu que seria preciso intervir. Após a onda de rolezinhos em shoppings na cidade de São Paulo, todo o país passou a temer o que muitos têm chamado de “movimento”. Em Bauru, os Shoppings anunciaram que agiriam com cautela e a SEBES, preocupada, desejava punir todo maior de idade que induzisse menores a beber. Além do mutirão contra o abuso alcoólico entre menores, em parceria com o Ponto de Cultura “Acesso Popular”, um palco foi providenciado para a Praça Rui Barbosa. Desde às 19h diversos artistas locais ligados ao Hip Hop subiram no palquinho. A polêmica surgida na capital chegou ao interior e expôs uma ferida aberta há anos.

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Com a falta de opções de lazer e entretenimento, com o aumento econômico da classe C, o interior já presenciava diversos rolezinhos no estado de São Paulo. Não é de hoje que adolescentes se reúnem em praças, parques, proximidades de shoppings para beber. Em Bauru, há dez anos é possível presenciar o fenômeno. Tudo começou no Bauru Shopping, localizado na área nobre da cidade. Os adolescentes se dividiam pela noite entre o Supermercado Wallmart, Shopping e Habib’s. Em nenhum dos locais podiam ficar. Os vizinhos reclamavam, a Polícia Militar chegava de cavalaria e os expulsava. Quando o Boulevard Shopping Nações foi inaugurado em novembro de 2012, o rolezinho mudou para lá e se alongava até a Praça Rui Barbosa. Enquanto caminhava do Shopping até a praça, atrás de mim, três adolescentes perguntavam “O que você quer novinha?”. Percebi que não haveria como fugir das investidas do grupo, então negociei. Uma foto, alguns goles de pinga e em troca eu falaria meu nome e o que fazia com uma câmera fotográfica em mãos. Negociação consumada, cachaça entornada, Orlando Neto, de 23 anos, analisava a situação. “Eles querem que a gente vá para a Praça, não querem que a gente fique nas proximidades do Shopping, acreditam que lá não seja o nosso lugar”. Outro grupo passa, um deles pede uma foto, uma voz entre eles brada “Pra que você vai tirar foto nossa? Pra chamar de marginal depois? Eu não deixo”.

Enquanto este cobria o rosto, o restante buscava a melhor pose. Orlandinho não me deixava esquecer dele. “Ei, mas você vai me passar seu Whatsapp?”. Dançarino desde os 15 anos, explica que a música pra ele é algo que vai além de todas as questões técnicas. “A música boa é aquela que toca o coração”. A relação é clara, emoção e dança, Orlandinho só dança se sente a música. Explica que isso se aplica a qualquer estilo musical. Apesar de saber dançar axé, pagode, o grupo que formou há poucas semanas, “Bonde do Prazer”, é de funk. Formado por ele, duas meninas e o MC Gui, que além de puxar a música, vai se aventurar na dança, o Bonde do Prazer já tem duas apresentações agendadas. E Orlandinho está animado para 2014. “Já fiz minha matrícula na faculdade de Direito, quero poder ajudar os irmãos que são presos injustamente”. Enquanto contava seus planos pro ano, entre shows, faculdade e trabalho, Orlandinho me puxa pelo braço e diz “vem cá, não vamos passar no mesmo lado da rua que esses ‘gambés’”. No nosso português chato, “gambé” é PM (Policial Militar). Já na praça, encontro vários meninos e meninas que corriam da cavalaria alguns minutos antes. A tempestade havia passado e os policias no entorno da praça não adentravam no ambiente. Estavam nos quatro cantos, um verdadeiro cerco montado. Mas a presença das viaturas não inibiu a ninguém. A dança, o xaveco, as fotos, o rolezinho não parou. Em

cima de uma mureta estava parte da “família” Castellamare. Quem disse que o rolezinho não é um ambiente familiar? Alguns grupos de amigos passam a se considerar uma família, mudam o sobrenome no Facebook, andam juntos e se apoiam. Isso não é exclusividade de Bauru e muito menos do rolezinho. No dia, metade da família Castellamare estava por lá, eram cinquenta. Ao todo são cem adolescentes e jovens. “Ei, cola na nossa festa? Os Castellamares estão organizando, vai ser open.”. A festa que promete tocar de tudo vai ser na Vila Industrial, Bauru, e só compra convite quem foi previamente convidado, ou integrantes da família.

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Quando me dei conta, diversos garotos queriam me convidar para suas festas, mostrar que sabiam dançar ou rimar. “Ei, agora eu quero dar entrevista pra ela”, disputava João Araújo de 21 anos. João chamou atenção porque estava vestido com uma camiseta do rapper Thigor MC. E qual não é a surpresa que João é primo do rapper e possui o mesmo talento? “Aline, escolhe uma palavra, qualquer uma, que eu faço uma rima pra você”. Escolhi diamante e ouvi que eu era um. No final, João ganhou uma foto. “Só eu e ela molecada, rapa daqui”.

Rolezinho não tem estilo musical, tudo cabe. Uma roda agitava um “paGod” com instrumentos e cantores de talento. Aos poucos diversos adolescentes se aproximavam, e entre improvisações, e músicas já conhecidas, aquele momento era dedicado a Deus. A iniciativa foi de jovens da Igreja Quadrangular, Comunidade Vineyard e o grupo de dança Wise Madness. Entre orações e palavras de apoio, os jovens se abraçavam. João, Orlandinho, Guilherme, Jefferson, e tantos outros também se aproximaram e demonstraram que tinham talento. Não eram de igreja, mas conviviam bem e não fechavam os ouvidos a mensagem que era passada.

Aos poucos, a praça foi esvaziando, assim como as garrafas de cachaça e vodka. O horário do último ônibus para os bairros mais distantes se aproximava. Meu celular apitou, era o Leandrin Castellamare me avisando que mais tarde queria as fotos. Afinal, rolezinho que vale a pena rende novos contatos no Whatsapp e muitas fotos com a “molecadadinha”.

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f(r)iccao ‘

chuva texto / Carolina Bataier

A

primeira gota caiu certeira na folha grossa da árvore, fez barulho de coisa rasgando. As outras, espatifadadas no asfalto, levantaram do chão o cheiro morno. Limpando com a mão a primeira gota da testa, sentiu o arrependimento: havia saído sem

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guarda-chuva. Olhou para a rua escura e engoliu seco: correr até o toldo ou se molhar? Encostada ao muro, foi pouco a pouco ficando com as roupas encharcadas. Logo ele chega. E chegou. Abriu a porta do carro, deu um beijo e riu. Riu de quê? ***

Pensava que já era o quarto dia que chovia sem trégua. Por isso, talvez, merecesse não ir trabalhar hoje. O chefe entenderia? Não, ele não entende nada além de números, e o que significa um dia a mais de chuva para um ser assim? Calçou os sapatos. Soubesse que choveria tanto teria comprado as galochas daquela loja no centro. Horrorosas, mas de serventia numa hora dessas. Seria o caso de uma capa de chuva? De segunda a sexta-feira era sempre a mesma coisa. Descer sete andares até a portaria, sorrir bom dia, atravessar a rua, caminhar por dois quarteirões e esperar o ônibus. Agora, a água escorria na enxurrada. Era gostoso de ver, aquela água toda, as gotas caindo grossas uma a uma no metal (era metal?) da cobertura do ponto de ônibus. Então falar oi para o motorista, se irritar com os adolescentes-office-boys já cedo a rir, depois achar graça na despedida simpática do motorista “fica com deus, minha filha”, caminhar por três quarteirões e meio, chegar ao escritório. “Essa chuva, olha, tá difícil, desisti de lavar as roupas, ainda bem que na esquina de casa mesmo tem uma lavanderia”, e os colegas olharam estranho. Ninguém respondeu, esse pessoal é mesmo assim, prefere é falar da vida alheia.

Passadas as sete horas de trabalho, de novo a mesma coisa. Deixar o prédio do escritório, caminhar desta vez por três quarteirões, dobrar a esquina, passar por baixo da árvore de folhas grossas e chegar à papelaria onde ele sempre a encontrava em seu caminho de volta. Esperava, agora, observando as gotinhas que escorriam pelas folhas grossas da árvore ao lado e pingavam no asfalto. Pela esquina, cruzando a rua, todo dia passava um homem de bicicleta, e ele era indiferente àquela água toda: desde o primeiro dia seguia sem capa de chuva. As mãos do guidão molhado, as rodas finas fazendo ondas nas poças, a camisa pouco a pouco se encharcando e grudando no corpo. Ele chegou. Entrou no carro, ganhou dele um beijo, jogou no chão o guarda-chuva. Sentado no sofá, na hora do noticiário, foi que ele falou meio assim se divertindo “olha, esse negócio de guarda-chuva, pra que isso?”. Como pra quê, se chovia há quatro dias, e continuava, podia ouvir na janela as gotas batendo, amanhã certamente seria mais um dia de olhar a enxurrada escorrer pela rua de sempre, depois ouvir as gotinhas no toldo da papelaria enquanto um rapaz passava sempre ao longe de bicicleta, nunca com capa de chuva, sempre a se molhar, devia morar por ali e gostava era de chuva na volta pra casa depois do expediente, vai saber, vai entender essa gente. Ele olhou fundo, as mãos tocando de leve a coxa dela: meu amor, não tem chuva alguma, vem ver. Ela colocou a mão para fora da janela, riu, como não? Aquilo a escorrer era o quê? Olha cada pingo grosso. Lá embaixo, um casal caminhava pela rua escura. Nenhum deles se escondia debaixo de guarda chuva. Ela achou poético. Passou uma senhora com uma sacola de compras, e mais uma mulher segurando pela coleira um cachorro, e ninguém se escondia debaixo de capa alguma. Ele pegou depressa o jornal espalhado pelo chão no canto da sala, entre outros jornais de outros dias, desajeitado procurou estre as páginas e mostrou os desenhinhos de pequenos sóis na segunda, terça e quarta-feira. Olha: até na previsão. Ela virou o rosto para a janela mais uma vez e ainda pôde ver a mulher com os cachorros virando a esquina, as gotas deveriam manchar o moletom cinza, se morassem três andares para baixo poderia ver. Parado um passo atrás, ele fazia aquela cara de quem derrubou café na blusa logo de manhã, quando faltam dois minutos para sair de casa. Esperou ela falar, mas ela não falou. Olhou de novo a água escorrer pela rua, se acumulando em pequenos lagos na esquina de baixo. Teve certeza: todos haviam enlouquecido.

A

mor sempre acaba estragando alguma coisa depois que chega ao fim. Uma saia que a gente não usa mais porque era motivo de briga (e consequente reconciliação), um perfume que fica impossível de sentir o cheiro, uma música que a gente não consegue mais ouvir. Você me estragou uma rua toda. Não foi por acaso que aconteceu justamente com a alameda Flor do Amor. Nunca foi rua, era alameda, mas qual é a diferença? Para mim era a rua que me levava ao melhor lugar do mundo: seus braços naquele quarto de cortinas fechadas onde nossas músicas tocavam enquanto a gente era nós dois. Não foi por acaso porque eu não sou dada a acasos, e se fosse menos preocupada com clichês eu até diria que eu faço acontecer. Foi naquele dia, você de cara fechada a noite toda, e eu bem sabia porque, mas preferia fingir que não. Então você disse que quando me viu às seis da tarde na saída do trabalho conversando bem pertinho de um rapaz sentiu ciúmes. De longe, você não viu se a despedida tinha sido com beijo na boca ou se era um beijinho no rosto, um pouco mais demorado. Tanto faz. Você deu

Nessa Rua texto / Carolina Bataier

jeito de parecer que passava por ali assim por acaso e eu dei jeito de fazer que acreditei nessa sua versão dissimulada. Mas isso tudo você só disse depois. Antes, o resto do dia foi isso, você de cara feia, sem falar e só engolindo seco cada uma das minhas tentativas infantis de quebrar o gelo. Você não falava e eu também não queria entregar o jogo, resolvi ir embora e você, meio insistente, meio náufrago solitário, decidiu me acompanhar. Cada passo seu, pesado, deixava mais grave o silêncio. Na plaquinha com o nome da rua eu dissimulei e agi “olha, eu gosto desse nome, romântico, né? Vem cá, não vamos desperdiçar um nome bonito desse não, e olha esse céu, que lindo”. Você venceu, foi eu quem falou “conta vai,

que foi que aconteceu, foi aquele cara?”, e você assumiu e então falou do beijo que viu de longe, da sua dissimulação ao me encontrar ali meio por acaso e da angústia. No fim nós dois vencemos, eu falei que estava tudo bem você sentir ciúmes e me querer só para você, porque eu já era sua. Nos beijamos e seguimos de mãos dadas. Agora, com as cartas na mesa: eu não queria mais viver sem você, nem você sem mim. No dia em que eu sai da sua casa levando numa sacola minha três camisetas, um soutien, cinco CDs, um livro, pulseiras, brincos e colares, desviei da alameda Flor do Amor.

Soube que dia desses a alameda-rua ganhou ares de cidade grande. Tiraram os paralelepípedos, passaram massa asfáltica e ergueram um prédio novo. Outros rapazes, meninos, homens, caminharam por ali e vieram parar no meu portão. Mas eu por ali não passo, corto caminho por baixo, por cima, perco ônibus se for o caso. A rua poderia ganhar cruz, o altar de um amor novinho em folha que começou bem ali e um dia morreu. (E eu não quero carregar sozinha esse fardo. Leva ele também com você).

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.crônica

texto / Gabriela Passy foto / Amanda Lima

agora é

E

sta crônica é sobre um percurso de mais ou menos dois quilômetros e meio. Numa ponta dele está o Teatro Municipal de Bauru, onde eu danço todas as tardes da semana, e na outra, a minha casa, um sobradinho simpático que fica a quatro quarteirões da Praça da Paz, cartão postal bauruense. Volta e meia, quando me dá coragem e o tempo se mostra auspicioso, resolvo voltar andando para casa, pensando um pouco nos exercícios aeróbicos que eu preciso fazer e outro pouco nos R$2,80 que vou economizar com o ônibus.

A caminhada dura entre 20 e 30 minutos, dependendo da disposição e da força que as pernas ainda têm depois de três horas dançando. Eu gosto de caminhar. Mas caminhar, quando se é mulher, traz alguns inconvenientes. Caminhar, quando está calor e você é uma mulher vestindo collant, meia calça e shorts, traz muitos inconvenientes. Alguns dados têm de ser colocados, agora. Eu sou branca, magrela e relativamente alta. Posso até ser bonita a uns olhos ou outros, mas definitivamente não sou do tipo que “pára o trânsito”. Não sou aquela mulher com o estereótipo de gostosa: peitão, bundão, coxão.

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E mesmo assim, nesses dois quilômetros e meio, sou abordada diversas vezes por diversos homens, de diversos tipos e diversas classes sociais. Comecei a reparar seriamente nessas abordagens; comecei a quantificar e a qualificar o tipo de cantada que eu recebia nesse trajeto. O número mínimo de xavecos que eu recebi, em uma semana, foi cinco. E eu acho esse um número muito alto, muito chato de se ter de lidar. O que você faz? Ignora, xinga, sai correndo atrás do filha da puta pra dar uma surra? Nada disso vai acabar com a cultura da cantada na rua. E daí você se sente impotente.

O cara que tá sentado xaveca, o cara que tá passando por você xaveca, o cara que tá passando de carro ou parado no semáforo xaveca. E é o cara do carrão e o cara da bicicleta. É o mauricinho e o pobretão, é o novinho e o velho safado. Tanto faz. O que acontece, na real, é que não importa a sua aparência. Só o fato de você ser uma mulher, ter um corpo e estar andando sozinha pela rua, sem um homem que teoricamente funcionaria como um cão de guarda, já te torna alvo de todo o tipo de provocação e assédio. Se você é mulher e está andando com o que é considerado como pouca roupa, então... Nem se fala. Daí você perde até o direito de reclamar, já que estava pedindo para ouvir o que ouviu.

Sei lá, a gente fala tanto em liberdade... Todo mundo é livre, é uma beleza mesmo. E a liberdade da mulher de andar pela rua sem ter que lidar com esse tipo de coisa? E o direito da mulher de andar quatro quarteirões até a padaria sem ser bombardeada por gracejos do tipo “oi, boneca”, “que princesa”, “aô, potência!” ou qualquer coisa do tipo? E o direito da mulher de existir sem ser vítima de violência – e eu enquadro a cantada de rua como um tipo de violência -, seja ela entre quatro paredes ou numa avenida? Antes de terminar, só queria deixar uma coisa bem clara: não era pra esse ser um texto feminista, mas agora é.

texto / Jéssica Frabetti

fritação.

encontros não furtivos e verdadeiros da Eu ia ia ia, Os minha primeira infância que aconteciam na lá na casa “nossa” rua de Maria

M

orei em duas cidades desde que nasci, as duas interioranas. Bauru, a primeira delas, muito embora considerada cidade grande naquela época, ainda continua carregando o charme de cidade pequena. Já Mariana, em Minas, apesar de ter o posto de centro turístico, é uma belezinha de sossego. Talvez eu ainda não saiba exatamente o que esses caminhos guardaram em mim, mas posso sentir que a tranquilidade digna deinterior me faz rememorar e viajar no tempo. Para uma data indefinida onde um dia eu e minha família tivemos pessoas para chamar de “nossa” em um espaço de terra chamado Bairro do Redentor.

Todo domingo era sagrado e não tinha essa de cada um para um lado, o que todo mundo queria era sentar na calçada, conversar, fazer uma comida diferente e terminar os assuntos inacabados durante a semana. Era um hábito natural essa reunião. Eu era pequena, mas mesmo assim me lembro de quando ficava escorada no muro gritando “Ia” e minha vizinha, Maria, sempre me buscava com um agrado nas mãos: um pote de azeitonas só para mim. Sinto falta de não repetir esses gestos com essa grande família, sem laço de sangue, mas com um carinho que eu não encontro mais. Em Mariana não foi diferente, e ainda preenchidos com o sotaque e costumes do mineiro. Na casa onde morei, os

proprietários me receberam de peito aberto, existia uma preocupação boa, sincera e cheia de afeto. Voltei para Bauru, mas esse carinho ficou guardado comigo. Esses dias encontrei alguns vizinhos antigos, da época de Redentor e fiquei pensando em como seria minha vida se tivesse continuado no bairro. Quando minha irmã nasceu, nós mudamos para outra região, localizada perto do centro da cidade. A nova vizinhaça não era a mesma e aos poucos fomos nos sentido mais sozinhos. Não sei o que se perdeu, mas a rua já não era mais um espaço nosso. Minha mãe chegou a voltar algumas vezes para as pequenas festas de final de semana, mas o contato foi se perden-

do ao longo dos anos - talvez um falta de atenção nossa? Até hoje, mesmo sem ter a minha memória devidamente preenchida por aqueles anos de convívio, quando encontro meus antigos vizinhos eu me sinto bem, com uma sensação de pertencimento. Por outra lado, um sentimento de pesar me acompanha pelo fato de não fazer parte da vida de cada um deles como em outrora. Fui (e ainda sou) muito adorada, tive vários irmãos e irmãs mais velhos que não conheço mais. As relações vão mudando e a vida das pessoas vai ficando cada vez mais corrida. Mas sempre fico maravilhada quando encontro essa união que não é de sangue nem imposta, é da rua.

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.polaroid

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fotos / Felipe Amaral

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