O Baqueano NOVEMBRO 2012
Bauru Atlético Clube
A história do time e os anos que marcaram época
Gino Bacci
Entrevista com o amuleto do BAC
Clube de campo
Pel é: a p fute assa bol gem por do Bau rei d ru o
O que restou do grande ponto de encontro da sociedade bauruense
O Baqueano Editorial A descrença no esporte que, ao longo do tempo, preencheu nosso ideário e nossas almas com sentimentos que não são passíveis de descrição, parece recrudescer. A dinâmica mercadológica do esporte dialoga com a tendência universal da atualidade de transformar qualquer crença, manifestação, objeto, sentimento e tantos outros “itens”, palpáveis ou não, em produto. Atribuímos a culpa pelo desencanto à comercialização excessiva dos meios futebolísticos e à busca desenfreada pelo dinheiro. A cada esquina, boteco, roda de samba, pelada de fim de semana, meio de comunicação, encontramos uma penca de saudosistas que rememoram os tempos em que esse esporte
era “mágico, técnico, puro, encantador, exibicionista e, acima de tudo, brasileiro”. O que não faltam são dedos em riste, profetizando o destino do futebol e julgando seu presente “fétido”. Olhares absolutos que parecem ter, a cada teoria, o remédio ideal para curar a doença do futebol. O que a grande parte desses jurados não conhece é o mal que os aflige: a pandêmica incoerência já pode ser diagnosticada como principal causadora dos discursos alheios. E, aparentemente, tal encefalopatia tem poder de alcance inimaginável, uma vez que afeta o Sistema Nervoso Central e dificulta que o discernimento e o bom senso sejam acionados sempre que necessários.
Transferem-se a este suplemento jornalístico os encargos psicológicos dignos de profissionais da psiqué: constatar quão fechados ao futebol comercial estão os olhares de certos paladinos da argumentação. Apresenta-se o remédio para a memória, que deverá ser tomado em medidas homeopáticas para que o choque de realidade não seja intenso. Sente-se agora no divã e desfrute da história de um clube que pode, no momento, identificar e definir panoramas históricos, sociais, econômicos e políticos de Bauru. Uma esquecida equipe, cujo maior feito lembrado foi ter sido berço de ouro de um rei negro, malandro em campo. Uma instituição que pôde definir a vida do
bauruense enquanto existiu: desde os dias ensolarados de domingo, no estádio Luzitana, até os finais de semanas carnavalescos, quando a sociedade local se reunia para comemorar e festejar quatro dias de folia para um ano inteiro de trabalho. Um BAC que demonstra socialmente Bauru dos anos 20 aos 60 de forma categórica. Um BAC que ainda se faz presente no coração de algum Bauru por aí, distante da realidade comercial. Seria o BAC mágico, técnico, encantador, puro e tipicamente brasileiro? É por meio de sua análise de tudo o que está contido nestes escritos, desenhado letra a letra por mãos jornalísticas, que definirá se esse psicólogo será seu melhor conselheiro.
Índice 3. rivalidade
Flashes do dérbi de domingo O clima de rivalidade em que viviam BAC e Noroeste, os principais times de Bauru, em meados do século XX
4. entrevista
O beque do BAC O amuleto Gino Bacci, ex-jogador do clube, relembra o início da carreira e seu auge nos anos 50
5. crônica
Reduto da rivalidade
A elegância e o glamour do ponto de encontro das torcidas do BAC e do Noroeste: o símbolo da rivalidade nas décadas de 1940 e 1950
5. ondas médias
O áureo do rádio O papel das transmissões radiofônicas de partidas de futebol na construção do imaginário do torcedor
6. história
O time da cidade O futebol do Bauru Atlético Clube desde sua fundação, em 1919, até os últimos suspiros, na década de 1960
8. rei
Pelé antes de ser Pelé Conheça a passagem de Dico, como era conhecido o rei do futebol, por Bauru e pelo BAC
9. vida social
Por trás da meta
A força do vôlei e do futebol de salão depois do fim do time de campo no BAC e a vida agitada dos associados do clube
10. legado
Do campo ao campo O clube campestre do BAC e o que restou do que era o grande ponto de encontro da sociedade bauruense
10. opinião
“Nem lembrança, nem saudade”
A saudade da memória baqueana e a nostalgia que sobrevive nos relatos dos guardiões da lembrança
11. memória
Na boca do rival Noroestinos, abordados na porta do Alfredo de Castilho, falam sobre o BAC e relembram sua história
12. outras palavras
Para saber mais Autores e publicações que contam ainda mais sobre a história do Bauru Atlético Clube
12. produção
Expediente e agradecimentos
Quem fez e quem ajudou a fazer O Baqueano
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Flashes do dérbi de domingo O No-Lu, embate entre BAC e Noroeste, dá vida à maior rivalidade do futebol bauruense Amanda Lima Enquanto o futebol ainda remetia a rádios colados aos ouvidos e apostas em mesas de bar, a identificação do torcedor com seu time do coração envolvia
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um romantismo que, para os mais saudosistas, arrasta-se cambaleante. A criação da Lei do Acesso, em 17 de janeiro de 1948, garantiu aos times campeões da Segunda Divisão profissional o acesso à Primeira Divisão do Campeonato Paulista de Futebol. Antes disso, o amadorismo – tomando por sentido o gosto pelo esporte – imperava. Na maioria dos municípios interioranos, uma série de times amadores surgiam e, entre os dois que mais se destacassem, estabelecia-se o dérbi. Em Bauru, Luzitana Futebol Clube (futuro Bauru Atlético Clube) e Esporte Clube Noroeste (o “Demolidor Ferroviário”) representavam o grande clássico da cidade,
conhecido como No-Lu. Jornais contemporâneos à época e antigas fotografias comprovam como a rivalidade entre os dois era digna de primeira página. “Você pode encarar, nas devidas proporções, como Palmeiras e Corinthians”, analisa o radialista baqueano Walter Lisboa, 68. De terno e gravata impecáveis, sapatos brilhantes e cabelos engomados, a torcida lotava o estádio nas tardes de domingo para assistir ao dérbi. “O futebol, na sua origem, não era um esporte popular. Era um esporte da elite. Tanto é que o negro, por um bom tempo, não pôde participar”, salienta Lisboa. Privado das grandes massas, o espetáculo ilustrava a distinção clara não apenas entre luzitanos e noroestinos, mas entre diferentes classes da sociedade. O Noroeste era mantido pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), que foi construída na primeira metade do século XX e liga Bauru a Corumbá (MS), na divisa entre Brasil e Bolívia. A relação entre os jogadores e a ferrovia era grande. Os atletas, ao serem contratados, assinavam contrato com a ferrovia e, quando se aposentavam do futebol, ocupavam cargos que iam desde a oficina até os escritórios. Além disso, todos os funcionários, mensalmente, tinham des-
contada de seu holerite uma quantia destinada ao clube. O BAC, em contrapartida, representava a elite, o grupo dos grandes comerciantes e bancários da época, e era sustentado por seus associados. Caso o quadro de sócios sofresse redução, as consequências se refletiriam diretamente no futebol. A distinta forma de arrecadação de cada um dos rivais traduz a suposta vantagem que teria o Noroeste quanto à qualidade de seus escretes. “Se um jogador era bom, o Noroeste tinha como comprar. Não dava para lutar contra esse esquema”, explica o jornalista e ex-sócio do BAC Eduardo Nasralla, 57. Embora separados por suas respectivas paixões, torcedores do BAC e do Noroeste encontravam-se mais unidos do que sempre imaginaram. Como entre Ponte Preta e Guarani ou Corinthians e Palmeiras, não se podia conceber a existência de um dos clubes sem o outro. No entanto, em 1955, dificuldades financeiras acarretaram o fim do time de futebol profissional do Bauru Atlético Clube. O impulso por crescimento, melhorias e títulos provocado pela simples existência do rival deixou de existir. À deriva, coube ao Noroeste encontrar outra razão de ser, outro oponente a superar. A disputa que sustentava
o Noroeste foi, então, buscar chão nas cidades vizinhas. “Hoje, a nossa rivalidade no futebol é com o Marília e com o XV de Jaú”, conta o radialista noroestino Rafael Mainini, 33. Ao mesmo tempo, muitos baqueanos, como cidadãos sem pátria, passaram a torcer pelo Noroeste, que desde 1954 disputava a Primeira Divisão do Campeonato Paulista. Ainda assim, o clube que criava forte identidade com os cidadãos bauruenses era o BAC. “O Noroeste nunca foi o time da cidade. O time da cidade era o BAC. O Noroeste era o time dos ferroviários”, afirma Nasralla. Em setembro de 1970, em comemoração aos 60 anos do Noroeste, houve o último dérbi bauruense da história. “O jogo foi público, de portões abertos e estava lotado”,
descreve o pesquisador baqueano Fausto Gonçalves, 75. O resultado foi favorável ao Noroeste: três a zero para o time dos ferroviários.
O Baqueano
O beque do BAC
Homenageado como ícone do futebol bauruense, Gino Bacci relembra os tempos em que a bola era mais do que companheira de trabalho: era um símbolo da felicidade de jogar Nayara Kobori Amanda Lima
O estádio quieto e o gol marcado pelo silêncio. Vestido de azul como o Uruguai, o Bauru Atlético Clube comemorava e sofria junto com os brasileiros que assistiam ao fatídico jogo de 16 de julho de 1950. No antigo Estádio Antonio Garcia, o BAC fazia tremer as redes do rival Noroeste, enquanto o Brasil via a bola correr cada vez mais depressa nos pés uruguaios no Maracanã. Mesmo chorando a Copa perdida, os baqueanos vibravam com a vitória conquistada. Aos 35 minutos do segundo tempo, Gino Bacci fez o gol que selaria o triunfo contra o Noroeste. Bacci não foi destaque apenas no famoso dérbi de 16 de julho. Hoje, com 92 anos, é uma peça fundamental na história do BAC: foi zagueiro do “Esquadrão da Primavera” e chegou a atuar no São Paulo, levando a arte do futebol além de Bauru. Atualmente, é dono do “Hotel Avenida”, investimento herdado do pai.
*** Como foi o interesse pelo futebol? Gino Bacci: Eu só não comecei a jogar futebol no ventre da minha mãe porque não era nascido ainda. Nasci jogando e sempre gostei de bola. Desde o tempo em que eu era moleque eu já jogava. Meu pai me colocou em um colégio interno, o “Ateneu Paulista”, em Campinas, e lá a gente não tinha outro divertimento que não fosse o futebol. A gente jogava o tempo todo.
com ele morando em Bauru. toso jogar contra o Noroeste. o Pelé fez, ele aprendeu com o Eu tive que ficar no interior e Havia jogos difíceis, que mo- pai. Eu lembro uma história fiz carreira aqui. vimentavam a cidade e toda do Pelé: eu estava conversana região. A rivalido com o DondiB: Quais foram as partidas dade era grande, “Se você jogasse nho, e o Pelé comais marcantes do BAC? era uma briga boa. meçou “tic, tic, tic” errado, virava e a bola não caía. GB: Eu me lembro de um jogo Tinha momento em que definiu a posição no cam- que você não fica- tudo pancada” Fazendo embaixapeonato brasileiro. Aliás, era va à vontade, mesdinha. E eu falei: na época Campeonato Pau- mo com outros times. Eu “Dondinho, vou dar um tranlista. Nós jogamos em Tau- era do Luzitana e quando ia co nesse moleque aí. Ele tá baté, contra a equipe de lá, para Taubaté, me afastava. me irritando!”. O Dondinho, e o BAC precisava vencer. O Não podia ficar me exibin- que era muito gozador, disse: time de Taubaté estava mui- do lá, porque podia apanhar “Você que sabe, Gino. Vai lá!”. to preparado, com elemen- na rua. Brigava no campo e E o Pelé no “tic, tic”. Eu falei: tos profissionais. Mas eu não acabava de bater na rua. En- “ó, Pelé... Vou dar um tranco B: Quando começou a se sei o que aconteceu aquele tão, você evitava até de sair, em você...”. Ele deu uma ridestacar? dia. Algum santo baixou em porque era um perigo. Hoje sadinha e eu fui, mas ele desGB: É difícil de explicar. Co- mim, porque não é possí- em dia eu acho que o futebol viou e foi pegar a bola lá longe mecei a jogar fuvel jogar tanto está menos violento. Antiga- e continuou no “tic, tic...”. E a tebol no Bauru “Algum santo baixou como eu joguei. mente, você jogava e o sujei- bola não caiu. Atlético Clube, em mim, porque Eu sabia que o to queria que você vencesse: que era o Luzitaque eu estava se você jogasse bonitinho, B: Que conselho o senhor não é possível na F.C. A equipe fazendo era su- era tudo bonitinho, mas se daria a quem deseja sejogar tanto como perior à minha você jogasse errado, virava guir carreira no futebol? vai aparecendo e você vai aparepossibilidade. tudo pancada. GB: Tem que ser responsável e eu joguei” Eu sei lá o que cendo também. se cuidar. Hoje acho que não Eu cheguei a treinar pelo ju- aconteceu, mas sei que acon- B: O senhor jogou com acontece tanto, mas antigavenil do São Paulo. Eu estava teceu. E o BAC venceu. Dondinho, pai do Pelé, e mente jogava e depois comevisitando São Paulo, e o “Xiconheceu o rei ainda ga- çava a beber mais e mais, e não rola”, formador de jogadores B: Como era a rivalidade roto. Qual deles jogava tomava conhecimento. Hoje do São Paulo, me viu jogando entre o BAC e o Noroeste? melhor? em dia o jogador é mais proe me convidou para que eu fi- GB: A rivalidade sempre exis- GB: Não podemos fazer com- fissional, ele está começando a casse por lá. Mas meu pai não tiu. Se você marcasse um gol paração. O Pelé jogou em pe- pensar na vida, sabe que existe me deixava ficar em São Paulo já era uma vitória. Era gos- ríodo diferente. Mas tudo que a necessidade de se cuidar. Baqueano:
t d t p E r d d s t M o
d m s r m p h r F p m é u s c e M p m d
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O áureo do rádio
Reduto da rivalidade Felipe Vaitsman
“Esse já foi para a história!” Fábio de Santana Barreto o poder das emissoras. Famílias organizavam bailes ouvindo o programa Rádio-Baile Vista Alegre, da Bauru Rádio Clube, e as radionovelas prendiam atenções com suas histórias. Os radialistas e o futebol Torcedores se maravilhavam com a riqueza de detalhes e com a velocidade dos narradores da época. Walter Lisboa (já chamado de “o narrador de todas as torcidas”, que criou jargões, como seu último enquanto locutor: “esse já foi para a história!”) comenta sobre o seu primeiro ídolo do rádio: Pedro Luís. “Um narrador muito rápido, uma garganta espetacular e um português de primeira, sem sofisticação”, descreve. Outro grande nome foi Edson Leite, radialista bauruense conhecido como “poeta” em suas narrações de jogos. Foi Edson que elevou a popularidade da Rádio Bandeirantes, pois, “em meados dos anos 50, criou a fórmula adotada por muitas emis-
soras, que procurava unir notícia, música e esporte”, conta Tidei de Lima. Edson Leite e Pedro Luís – além de Mário Moraes, um dos comentaristas mais importantes do rádio esportivo brasileiro – fizeram a transmissão da Copa de 1958, na Suécia, pela Bandeirantes, inesquecível para muitos e que, segundo Tidei de Lima, “teve entre 78% de 80% de audiência”. Assim como essa, várias outras transmissões de diversos narradores ajudavam a estimular o imaginário do torcedor. Os radialistas, teoricamente imparciais e que “procuravam ficar neutros, se não perdiam audiência”, como conta Tidei, faziam com que em Bauru não fosse diferente. Apesar dessa busca pela neutralidade, a rivalidade entre o Noroeste e o BAC, que tinha o famoso Bar Crystal como principal palco, era alimentada pelos radialistas e presente entre os mesmos. Porque, em Bauru, todo mundo era ou BAC ou Norusca.
Fábio de Santana Barreto
Um dia, dois jogos. A vitória do BAC por 1 a 0, gol de Gino Bacci, foi insuficiente para que os baqueanos pudessem sair contentes do Estádio Antonio Garcia. Durante o dérbi de 16 de julho de 1950, as atenções estavam divididas: autofalantes presentes no campo transmitiam, pela Rádio Nacional, o Maracanaço, jogo que calou o país diante do Uruguai. Alguns devem se lembrar desse entre vários outros momentos que só puderam ser vivenciados através do rádio, que “tinha, em termos de audiência, o mesmo poder que a televisão tem hoje”, como afirma o historiador e pesquisador João Francisco Tidei de Lima. Um poder que sustentava caríssimas linhas telefônicas. Uma época em que, para realizar uma ligação interurbana, ou se marcava a alto custo uma chamada “aprazada” ou se esperava por horas na linha. Mas eram as radionovelas e programas de auditório que, mexendo com o imaginário dos ouvintes, mantinham
Edson Leite, Pedro Luiz e Mário Moraes: o grande escrete da Rádio Bandeirantes na Copa de 1958
Crônica
Ao entardecer de sexta-feira, o silêncio rompia-se com o brindar dos copos. “Finalmente, companheiros!”, era o coro geral. O alívio pela chegada do fim de semana vinha acompanhado de tensão com o clássico que se aproximava. Aliás, o dérbi começara ali mesmo, logo nos primeiros goles. Antes que qualquer chuteira pisasse no gramado do Estádio Luzitana, senhores elegantes, do alto dos tamancos, defendiam suas cores com provocações e coriscos aos rivais. Não perdiam a compostura dos ternos impecáveis e bigodes encerados. Jogavam limpo, com a classe e o charme costumeiros dos Anos Dourados. As brincadeiras ecoavam no salão do bar como se antecipassem os lances da partida de domingo. Uma grande ‘sacada’ mais parecia um drible desconcertante, causando furor e gargalhadas. E melhor que isso, só uma bela resposta, categórica, derrubando o rival como em um desarme preciso, em um contra-ataque mortal. O burburinho arrastava-se pela madrugada de sexta e esmorecia. Mas antes mesmo do sábado espreguiçar-se, alguns rapazes já estavam de volta ao balcão, cada vez mais ácidos. Apostavam, lançando seus dados e palpites na mesa. Bebericavam e bebericavam, até que se permitissem entornar as doses. Afrouxavam as gravatas e, conforme a bebida lhes subia, o som das risadas invadia o espaço reservado das famílias que almoçavam ali. Na prateleira mais alta atrás do balcão, um rádio capelinha embalava a boemia. Os cigarros queimavam lentamente nas piteiras e a ansiedade corroía os fígados já não tão saudáveis. O relógio, cada vez mais lento, convencia a todos de que, no domingo, Bauru pararia. Mas, até que se postassem em campo BAC e Noroeste, muitas outras garrafas secariam, torcedores travariam embates verbais divertidíssimos e a atmosfera da partida se condensaria na esquina da 1º de Agosto com a Rio Branco. O Bar Crystal era a preliminar do dérbi.
O Baqueano
O time da cidade A história do clube que nasceu Luzitana, respirou futebol e cativou Bauru Annelize Pires, Carolina Rodrigues e Felipe Vaitsman a Pederneiras disputar um amistoso e venceu por 3 a 1. Na viagem de volta – ainda no vagão do trem – os jovens planejaram transformar aquele combinado em um clube de futebol. Apenas quatro dias foram necessários para que tudo fosse concretizado. Encontros, convites e longas conversas foram recompensados na noite de 31 de abril, quando uma reunião de-
mesmo nome de sua loja”, explica Nildemar Godoy, atual tesoureiro do Bauru Atlético Clube, que faz questão de frisar: “Luzitana com ‘z’”. Em 1º de maio, nasceu para o Brasil – e, de certa forma, para o mundo – o Luzitana Futebol Clube. Dali a alguns dias, o Noroeste tomaria conhecimento da nova força futebolística da cidade e logo organizaria uma partida para testar o Reprodução / Acervo Gabriel Ruiz Pelegrina
Quando Charles Miller, na volta de seus estudos na Inglaterra, trouxe as primeiras bolas de futebol para o Brasil, em 1894, provavelmente não sabia que, em pouco tempo, o esporte bretão tomaria as várzeas da cidade de São Paulo. Tampouco imaginava que se popularizaria em todo o país. Talvez Miller também não fizesse ideia de que algumas pelotas, viajando nos trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, cairiam em descampados bauruenses e por ali fariam tremendo sucesso. Mas foi às margens de outra ferrovia, a Noroeste do Brasil, que nasceu o primeiro time de futebol da cidade. O Esporte Clube Noroeste, vinculado à estrada de ferro, foi fundado em 1º de setembro de 1910 e, durante seus primeiros anos, reinou em Bauru. Para medir forças, a equipe dos ferroviários disputava seus matches (partidas) com outros times da região. A prática do futebol era tão recente que sequer se desvinculara das terminologias em inglês. “O escanteio era corner. Os zagueiros eram os backs. O goleiro era o goalkeeper”, relembra o historiador e memorialista Gabriel Ruiz Pelegrina. A soberania noroestina na cidade só foi ameaçada em 1919. Em 26 de abril, um grupo de amigos bauruenses foi
Casa Luzitana em 1925: a loja que inspirou o nome de fundação do clube
terminou os alicerces do clube. Os grandes nomes da primeira gestão seriam Antonio Garcia e Pedro Bertolini, entusiastas do esporte em Bauru, nomeados, respectivamente, presidente e vice do clube. O nome da agremiação teve relação direta com o empreendimento do primeiro mandatário. “Em homenagem a ele [Antonio Garcia], puseram Luzitana, que era o
Primeiro de maio: fundação do Luzitana Futebol Clube
time. O Luzitana apresentou sua camisa azul e branca pela primeira vez contra um combinado Smart-Noroeste – o Smart, até 1919, era o único time que fazia frente ao Noroeste em Bauru. A contagem no placar foi, na verdade, o anúncio de que o Luzitana não se contentaria em ser coadjuvante: 9 a 3 para os lusos. Anos de grandes clássicos e
Primeiro de agosto: mudança de nome para Bauru Atlético Clube Campeão Amador do Estado
Anos de glória Em 1946, o Luzitana Futebol Clube, já ilustre, muda de nome para Bauru Atlético Clube e se eterniza ao som de três letras bem simples: BAC. O futebol e a cidade se aproximam; o clube é Bauru até no nome. A mudança ocorreu no dia 1º de agosto, em comemoração ao cinquentenário de Bauru. De certa forma, não só no nome, o time se tornou mais brasileiro e assim mais vitorioso. Pois foi ainda em 1946 que a comemoração do 50º aniversário da cidade foi seguida de outra: a do primeiro título amador do estado conquistado por um time bauruense. A final deu-se entre BAC e SAMS, vencedores dos campeonatos
Licença da Federação Paulista de Futebol (FPF)
1951/1952
1931
1919
de uma fervorosa disputa entre Noroeste e Luzitana pelo posto de maior time de Bauru levaram a um equilíbrio impressionante. Desde o primeiro Campeonato Bauruense de Futebol, em 1931, até o início dos torneios oficiais da cidade – com a Liga Bauruense de Futebol Amador, em 1946 – foram seis títulos do Luzitana contra seis do Noroeste. Muitas vezes, a final foi disputada justamente entre os dois. Na última delas, vencida pelos ferroviários, o time azul e branco já não era homônimo da casa de comércio de Antonio Garcia.
1946
Primeiro título do Luzitana no Campeonato Bauruense de Futebol Esquadrão da Primavera Origem do Baquinho Passagem de Pelé pelo clube
1964 1955
Partida beneficente: reencontro BAC x Noroeste
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1975 1970
BAC amador no fim dos anos 60: equipe só disputava amistosos
insustentável e o BAC pediu tade dos jogadores. “A gente licença à Federação Paulista jogava pela paixão. As amizade Futebol, desativando o time des é que valiam”, conta José profissional e encerrando de Carlos Barbosa, o Zequinha, vez o sonho de Nicolinha e de meia-esquerda do BAC àquela toda uma torcida. época. Mas não é só de paixão No início dos anos 60, o clu- que se sustenta um time. Em be ensaiou uma volta ao futebol 1966, o clube deixou de partie montou uma cipar de campeoequipe semipro- “O jogador, quando natos. Otacílio Fifissional para lho, zagueiro do volta ao campo jogar a Segunda BAC nesse temem que jogou, Divisão regiopo, relata que nos se emociona” nal de 1962. “Era anos seguintes um time baseado – Otacílio Filho, ex-jogador o time só jogou em jogadores da amistosos. várzea. O BAC só treinava terHoje, o que restam são ça, quinta e sábado, depois das as lembranças. “O jogador, 17 horas, porque o pessoal tra- quando volta ao campo em balhava”, relata Edson Massa, que jogou, se emociona”, exquarto zagueiro e capitão do plica Otacílio. Mas nem o BAC no retorno do futebol. No campo sobrou – o terreno foi entanto, o time já não era tão comprado por uma rede de prestigiado pelos moradores supermercados. Aparecido da cidade. “A torcida de Bau- Domingos Braga, o Sarará, ru preferiu o Noroeste, que era foi ponta-esquerda do BAC da Primeira Divisão. Sobraram na década de 1960 e recorda, só os torcedores antigos [do saudoso, da sede do clube. “A BAC]”, lamenta. gente se lembra daquelas três O grande foco do clube se torres, muito bonitas. Infeliztornou a parte social. O futebol mente, nós brasileiros temos dependia muito mais da von- memória curta”, desabafa.
Aquisição do clube de campo
Último dérbi bauruense da história, em comemoração aos 60 anos do Noroeste Placar: Noroeste 3 x 0 BAC
Venda do terreno da sede social à rede Tauste de supermercados
1994 1988
2006 Desativação da sede social
Pelé volta a Bauru e faz seu último jogo com a camisa do BAC, antes de ir a Nova Iorque jogar pelo Cosmos
Reprodução / Acervo Otacílio Filho
amadores do interior e da capiCom a saída de Domingos, tal, respectivamente. Isso sig- Nicolinha promoveu o treinanifica que, se a Lei do Acesso – dor do Baquinho (infanto-jucriada só em 1948 – existisse, o venil do BAC), Waldemar de BAC disputaria a Primeira Di- Brito, ao comando do time. Ele visão do campeonato de 1947. começou bem. Em 23 de deOs anos seguintes culmina- zembro de 1951, liderou o BAC ram no chamado Esquadrão em um dos maiores confrontos da Primavera. O presidente entre times brasileiros e ardo BAC na época e também gentinos. O embate foi com o proprietário do Atlanta de Buenos extinto Diário “A gente jogava Aires, que poucos de Bauru, Nicola dias antes havia pela paixão. Avallone Jr., o Niganhado do São As amizades colinha, foi o prinPaulo no Pacaemé que valiam” cipal responsável bu. Entretanto, pela montagem da em Bauru o cená– Zequinha, ex-jogador equipe em 1951. rio foi diferente. O O Esquadrão da Primavera Esquadrão da Primavera vencontava com ótimos jogadores, ceu os argentinos por 8 a 2 – a que se tornaram eternos ído- maior goleada que uma equipe los dos baqueanos. Dentre eles do interior já aplicou em um destacavam-se o centroavante time estrangeiro. Dondinho, o atacante Marinho Nicolinha ainda reforçou e o beque Gino Bacci. Infeliz- o plantel em 1952, mas quem mente, a formação durou ape- subiu foi o Linense. E, desde nas até 1952, mas contou com então, o BAC entrou em declígrandes técnicos no período: nio, sobretudo depois da suDomingos da Guia e Walde- bida do Noroeste em 1954 – mar de Brito. com um time todo reforçado Domingos da Guia foi a por ex-baqueanos. grande aposta inicial de Nicolinha para treinar o Esqua- Último suspiro drão. Ele era conhecido por ter No fim da gestão de Nicosido excelente zagueiro central linha, a conta do Esquadrão – talvez o melhor de todos os da Primavera veio à tona e o tempos. Segundo Fausto Gon- fracasso na tentativa de ascençalves, pesquisador do fute- der à Primeira Divisão trouxe bol na cidade, Domingos sou- graves consequências. Alguns be administrar o BAC na sua episódios já haviam marcado passagem. Já para o radialista a crise financeira. “Carioca Walter Lisboa, o treinador foi e Alceu [jogadores] depreinfeliz ao escalar jogadores daram a sede do clube no reservas em um jogo decisivo carnaval de 1953 motivados contra o São Bento de Marília, pela falta de pagamento. Não ainda em 1951, e o BAC perdeu tinham como pagar a penem pleno Antonio Garcia. Isso são [onde moravam]”, relata teria minado o acesso da equi- Fausto Gonçalves. pe naquele ano. Em 1955, a situação ficou
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O Baqueano Pelé antes de ser “Jogando bola na rua, infernizando a vida dos outros, roubando amendoim dos trens que passavam, fazendo arte, andando de carroça”. É assim que Raquel Marçal da Silva, 67, se lembra das coisas que Dico fazia durante sua infância em Bauru. O garoto era vizinho da avó de Raquel, e criou com toda a família da menina, principalmente com seu irmão Raul, um vínculo muito forte: “A gente se falava como irmãos. Não tinha esse negócio de termos mais dinheiro do que eles. Era uma coisa de família”, conta Raquel. No ano de 1943, João Ramos do Nascimento, o Dondinho, foi contratado pelo Luzitana Futebol Clube. Com ele, vieram de Minas Gerais sua esposa Celeste Arantes, sua sogra Ambrosina Arantes, seu cunhado Jorge Arantes e seus filhos Zoca, Lucinha e Dico. Dico de Edson. Edson filho de Dona Arantes e Seu Nascimento. Edson Arantes do Nascimento. Dico começou a jogar futebol cedo em Bauru. Enquanto Dondinho jogava no time profissional do BAC, ex-Luzitana, o garoto jogava nas categorias de base. “O BAC formou o infanto-juvenil, e o Pelé, já com seus 10, 11 anos, pertenceu ao time”, relata o radialista Walter Lisboa. Mas não era só no Baquinho, como era conhecido o infanto-juvenil, que Dico se divertia com a bola nos pés. “Ele começou a jogar no São Paulinho de Curuçá”, explica Raquel. Na realidade, jogava em qualquer time que tivesse lugar para ele. E jogava muito. Segundo Lisboa, “Pelé saiu de Bauru fazendo 90% do que ele fazia no Santos e na Seleção”. Mas ainda não é hora de tirar
Dico de Bauru. Em meados da década de 1950, o então presidente do BAC, João Fernandes, resolveu dar ao time infanto-juvenil uma estrutura de grande porte. Fernandes designou ao ex-jogador Waldemar de Brito a função de dirigir o Baquinho. Sob o comando dele, Dico e companhia foram campeões do II Campeonato Infanto-Juvenil de Futebol, disputado em 1954. O título deu ao Baquinho o direito de disputar a partida preliminar da decisão da Segunda Divisão paulista. O jogo foi contra o Flamenguinho, campeão juvenil paulistano, na rua Javari. Era a primeira partida de Dico na capital, mas ele não se intimidou: fez incríveis sete gols, e o Baquinho enfiou 12 a 1 no Flamenguinho. Inevitavelmente, Dico foi ganhando destaque. O radialista Eduardo Nasralla conta que, com o fim do Baquinho, em 55, o garoto “chegou a disputar amistosos pelo Noroeste, mas não foi contratado”. Segundo ele, o alvirrubro “chegou a oferecer a Pelé um contrato nos mesmos termos do melhor jogador do time, mas aí entrou o Santos na parada”. E foi assim que começou o fim de Dico em Bauru. O interesse do Santos pelo garoto não surgiu do nada. Waldemar de Brito, que também era amigo pessoal de Dondinho, tinha contatos no time do litoral. Funcionário da Secretaria Estadual de Saúde, Waldemar queria retornar a São Paulo com uma promoção e, para tanto, “procurou o deputado estadual Athiê Jorge Coury, que também era presidente do Santos, e apresentou Pelé. O Athiê
Reprodução / Acervo Bauru Atlético Clube
Leonardo Zacarin
Para sua irmã e os bauruenses da época, ele ainda é o Dico
Baquinho de 1954 (da esq. para a dir.): Osmar, Grillo, Passoca, Zoel, Aniel, Esquerdinha (em pé), Maninho, Pelé, Miro, Pércio, Armando (agachados)
acertou não só a ida de Pelé ao Santos, mas também a transferência do Waldemar de Brito para São Paulo”, relata Nasralla. Dico foi. Mas voltou. Em 1958, depois da conquista do Brasil na Copa da Suécia, visitou Bauru, onde seus pais viveram por mais alguns anos. Em 1975, depois de toda a trajetória vitoriosa com as camisas do Santos e da Seleção Brasileira, assinou contrato com o New York Cosmos, dos Estados Unidos. No dia 15 de março daquele ano, veio a Bauru se despedir da cidade, do BAC e da “família branca” que ficaria no Brasil. “Nessa viagem, ele queria ir lá em casa e o pessoal não queria deixar. Ele ficou muito ‘p da vida’, saiu escondido e foi mesmo assim”, relembra a “irmã” Raquel. A despedida, é claro, não poderia acontecer sem um jogo de futebol. “Juntaram o Baquinho da época [de 54] e arrumaram o jogo contra o Caçulinha [grande rival do Baquinho]. O Pelé jogou só o primeiro tempo e meteu três gols”, narra Lisboa. Depois de 75, Dico foi e não
voltou mais, e a relação do antigo craque do Baquinho com a cidade ficou estremecida. O historiador bauruense Gabriel Pelegrina sustenta que “Pelé não gosta de Bauru. Ele não fala nada da cidade e nem vem aqui”. Lisboa, Nasralla e Raquel, por outro lado, acham que é a cidade que deve a Dico. “A imprensa cai em cima falando que o Pelé precisa fazer alguma coisa por Bauru. Não. É Bauru que precisa fazer alguma coisa pelo Pelé”, observa Nasralla. Raquel endossa a opinião do radialista ao dizer que “nunca foi feito nada por ele [Pelé]” e, além de destacar a importância do jogador para Bauru, declara que “ele não tem mágoa nenhuma [de Bauru]. Essas histórias são invenções”. Polêmicas à parte, o fato é que Dico mudou. Virou Pelé. Cheia de saudades, Raquel recorre à infância para ratificar que Pelé “é melhor como pessoa do que como jogador”. E, lembrando-se da família, finaliza: “Nós não somos Pelé. Nós somos Dico. Pelé é para o mundo”.
Três coisas que você não sabe sobre Pelé Pelé era corintiano
Regra especial para Pelé
A origem do apelido
• Quando criança, o rei do futebol torcia pelo Corinthians. Jogando futebol de botão com o irmão Zoca e seus amigos, Pelé escolhia o Timão e comemorava gritando ‘Goool do neguinho Baltazar’, em homenagem ao eterno centroavante corintiano.
• Em 1953, jogando um campeonato infantil de futebol de salão pelo Radium, Pelé destoava tanto dos outros garotos que a organização do torneio decidiu que ele não poderia passar do meio da quadra. Se passasse, seria marcada falta contra seu time.
• Quando Dondinho jogava no Vasco de São Lourenço (MG), o goleiro da equipe se chamava Bilé. Brincando com os amigos em Bauru, Pelé vivia gritando ‘Boa, Bilé!’, mas as crianças não entendiam direito e reproduziam ‘Pelé’.
Dados obtidos no livro De Edson a Pelé - A infância do rei em Bauru, de Luiz Carlos Cordeiro
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Por trás da meta
Com o fim do time profissional, vôlei e futebol de salão crescem e vida social ganha força no BAC Amanda Lima
Construção da sede social nos anos 50, onde hoje está o Supermercado Tauste
o voleibol se explicava pelo fato de sua filha fazer parte da equipe. “Ele era o patrocinador e o ‘paitrocinador’”, brinca o radialista Rafael Mainini. “Depois da morte dele, não só o projeto do vôlei feminino passou por uma reestruturação – acabou o time que jogava na especial – como o clube em si também praticamente morreu”, completa. O esporte minguou de vez no BAC. Mainini ressalta que toda modalidade esportiva de alto rendimento “requer uma viabilização, uma gama maior de patrocínio, uma receita um pouco maior”, o que deixou de
Vista aérea da sede social – na parte superior estão as três torres da entrada
da existe de registros do clube está seguro graças a Nildemar Godoy. “Eu ia lá toda semana para colocar cadeado, porque quebravam tudo e roubavam”, relembra. Nas invasões, foram-se troféus, documentos, computadores e aparelhos de som. Depois de um acordo com o presidente do clube, o baqueano fez três viagens de porta-malas cheio com tudo o que julgava importante. Domingueiras dançantes Paralelamente ao esporte, o BAC era capaz de reunir com primazia a sociedade bauruen-
A surpresa de Chico Eduardo Nasralla, jornalista, conta sobre o dia em que dividiu a quadra do BAC com Chico Buarque: “No dia em que veio Chico e MPB4, foi uma coisa interessante. O Luso é o templo sagrado de basquete. Eis que desce o pessoal do Chico e resolve fazer um ‘rachinha’ naquela quadra. O seu Rodrigues, que era presidente do clube na época, um aficionado pelo basquete, disse: ‘pelo amor de Deus, aqui ninguém vai jogar futebol, não! Vai acabar com a minha quadra’. Ele, por telefone, acertou tudo e arrumou uma Kombi para levar Chico e MPB4 até
se nas décadas de 1960 a 1980. Entre suas principais atrações, estavam a feijoada de Luiz Carlos Carvalho, o Pacu, shows de artistas da época e os bailes de carnaval, também realizados nos demais clubes da cidade, como o Bauru Tênis Clube (BTC) e o Bauru Country Club. “Eu conheci minha cara metade no carnaval do BAC”, entrega o ex-jogador do clube Aparecido Domingos Braga, o Sarará. Pelo menos uma vez ao mês, o clube convidava algum artista para fazer apresentações no ginásio. Beth Carvalho, Nelson Gonçalves, Jair Rodrigues, Jamelão e Luiz Ayrão são algumas das personalidades que já animaram as noites baqueanas. Estar diante desses grandes nomes era comum aos bauruenses da época, já que circuitos universitários possibilitavam shows de Chico Buarque e MPB4 ou Elis Regina pelo valor irrisório de três reais. Esses shows aconteciam no Clube Luso e no BTC. Durante o dia, piscinas e quadras do BAC ficavam cheias. O ambiente bastante familiar é realçado por ex-sócios e contemporâneos ao período. Entretanto, isso passou a ser buscado em locais mais particulares. “As pessoas que têm o poder aquisitivo um pouco maior podem morar num condomínio fechado que tem quadra poliesportiva, área de lazer para as crianças. O clube perdeu o sentido”, destaca Mainini. Divulgação
existir com a morte de Maceia e com a redução paulatina do quadro de associados. Entre 1994 e 2006 (ano em que a sede social do BAC foi vendida à rede Tauste de supermercados), o local ficou praticamente abandonado. O que ainReprodução / Acervo Bauru Atlético Clube
divisão especial do Campeonato Paulista em 1999 e em 2000, mesmo depois da desativação da sede. A qualidade do grupo era assegurada sobretudo por Pedro Maceia, então presidente do BAC. A atenção redobrada do ex-dirigente do clube sobre
Acervo BAC / Montagem por Wagner Alves
Assim que as chuteiras de futebol profissional foram definitivamente penduradas no Bauru Atlético Clube, em 1955, o foco dos investimentos foi a construção de uma sede social. E, antes mesmo que tratores deixassem o local depois de acabada a reforma, a força do BAC já havia garantido a venda de uma série de títulos. Com a mudança, o que antes era apenas campo e arquibancada uniu-se a piscinas, restaurante e ginásio, que comportava duas quadras esportivas. O futebol, felizmente, não acabou. Até o fim das atividades da sede social, em 1994, realizavam-se, no mesmo campo cujo portal de entrada apresentava as três torres, os campeonatos amadores. “O futebol de salão e o campeonato de associados ganharam força depois que o time profissional do BAC acabou”, conta o ex-jogador José Carlos Barbosa, o Zequinha. O último lampejo do esporte de alto rendimento no clube deu-se com a bola nas mãos. Um professor, chamado José Oscar Guimarães, consultou o dirigente Nildemar Godoy – atual primeiro-tesoureiro do BAC – sobre a possibilidade de se formar uma equipe de vôlei. A união de forças fez com que um time masculino e um feminino participassem de campeonatos. A força do time de vôlei feminino tornou-se tão expressiva que a equipe chegou a disputar a
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o BAC, onde estavam uns jovens vagabundos que gostavam de bater bola – entre eles, eu. Fizemos um ‘rachinha’ com eles. E teve uma coisa muito impressionante: no restaurante tinha uma foto do Baquinho, com o Pelé sentado em cima de uma bola. E falaram para ele: ‘aqui que o Pelé começou a jogar’. ‘Sério isso?’, respondeu o Chico. Ele foi até o campo, pegava na grama e falava: ‘eu joguei no campo onde jogou Pelé!’. Ficou maravilhado.”
O Baqueano Do campo ao campo
Amanda Lima
Da mesma forma como começou, o BAC volta para o campo. Mas, no clube distante da cidade, a bola rola somente de brincadeira
Nildemar Godoy tenta manter viva a história do clube há mais de quarenta anos
Wagner Alves No ponto final de sua história, o BAC se transforma em um clube de campo a quilômetros do centro urbano da cidade. Apesar da área de mais de noventa mil metros quadrados, a história de Dondinho e outros se resume a apenas um ponto, diante da grandeza de seu passado. Não fossem a sigla na fachada e uma escondida sala com um emaranhado
Opinião
de troféus, qualquer visitante poderia muito bem deixar o clube sem saber nem mesmo o significado de BAC. Comprada em 1988, a sede campestre foi uma tentativa de atrair público para o clube quando ser sócio não representava o status de outros tempos. Por 18 anos, os clubes da cidade e do campo dividiram um mesmo associa-
do. Somente em 2006, com a venda do antigo estádio para o Tauste e renegado pela vida urbana, o BAC encontrou no campo sua sobrevivência. Duas quadras, um campinho society, três piscinas, vários quiosques com churrasqueira, muitos animais e uma moderna tirolesa compõem o novo cenário do baqueano. Três fatores mantêm tudo
isso: o rendimento do dinheiro proveniente da venda do estádio, os seis funcionários que cuidam do local e a paixão de Nildemar Godoy, o atual tesoureiro do BAC. Se fosse depender dos sócios, o clube fecharia as portas em um mês. Apesar de uma longa lista de associados, contam-se os ativos nos dedos. “Se for considerar esse termo [sócio ativo], são dois: eu e o advogado. Pagando em dia”. Número de associados que reflete na frequência. “Não é uma frequência fixa. Hoje vão mais não-sócios que sócios”, explica Godoy. Sobre o que o mantém como tesoureiro do BAC até os dias de hoje, Godoy assume que é a paixão. “Acho que é mais isso [paixão]. Ao menos para mim. Porque eu estou aqui, como diretor, participando, desde 64. E antes de ter algum cargo eu ia assistir aos jogos. Vi o Pelé jogar”. A história do BAC termina como começou, do campo para o campo. Onde hoje as bolas rolam somente por brincadeira, Nildemar ainda tenta manter viva história do clube. Tenta transformar esse último ponto em uma reticência.
“Nem lembrança, nem saudade”
Gabriel Oliveira
Com a pompa e a proteção da posse por direito, emergiu-se do coração do futebol bauruense um poderoso do ramo alimentício. As escavadeiras mecânicas, com o suporte do capital, conseguiram sentenciar o destino de tudo o que era palpável. As máquinas da vida, com o suporte biológico, sentenciam, na incerteza do tempo, o destino do que ainda sobrevive. O Bauru Atlético Clube se faz presente na emoção de relatos e nas compreensões de olhares que, já quase cansados da vida, ainda brilham com os bailes de carnavais, ainda navegam naquele tempo. Dribladores de um relógio que, a cada segundo, anuncia a iminência de um fim. Durante meses de apurações, uma série de relatos,
fatos, fotos, datas e nomes puderam botar à prova a memória de cada entrevistado e a veracidade de cada documento e imagem. Mas mágico foi perceber claramente que a cada depoimento tínhamos em nossas frentes uma história de vida e uma de BAC. Construtores do “futebol verdade” – o futebol genuíno baqueano – e pioneiros na “verdade do futebol”, no acesso irrestrito às memórias mais escondidas por sentimento e paixão. Nenhuma escavadeira mecânica é capaz de demolir tamanha construção. Nenhum capital consegue destruir o legado do time-reino, onde o rei, até então príncipe, pôde dar os primeiros passos. Nas falas de Luciano Dias Pires: “a memória da cidade é
o povo”. Mas cadê a memória, povo? Segundo o diplomata e filósofo francês, Henry Bergson, começamos a perder a memória quando estamos, na verdade, enfrentando problemas de acesso a ela, já que em nenhum momento uma recordação desaparece. Todos os entrevistados, substratos palpáveis de quase todo o material encontrado aqui, leitor, encontram-se cada qual em um microcosmo, muitas vezes sem nenhum contato entre si. E a memória de cada um permanece em seus inexplorados territórios cinzentos permeados e trancados em um ambiente passional tipicamente baqueano. Poucas declarações são tão marcantes quanto a do pesquisador Fausto Gonçalves, ex-baqueano, que luta
pela perpetuação da memória da equipe: “eu queria me libertar das coisas que estão gravadas na minha cabeça e não consigo”. Por isso, explica, decidiu escrever livros a respeito do futebol bauruense. Até quando vai esperar manifestações espontâneas de quem, generosamente, dispõe-se a ajudá-lo a construir a sua memória? As chamas dos olhos das dezenas de entrevistados representam muito mais do que os inúmeros Watts do painel chamativo do “poderoso alimentício”. Recorro, novamente, ao saudoso Fausto, que não se cansou do povo. Quando perguntado “o que é BAC para Bauru?”, respondeu: “Agora não representa nada: nem lembrança, nem saudade”.
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Na boca do rival
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Em 12 de novembro de 2012, O Baqueano bateu à porta do grande rival Noroeste, que, naquela manhã de domingo, venceria o rioclarense Velo Clube por 3 a 1 no Estádio Alfredo de Castilho. Antes da partida, noroestinos comentaram o que sabem ou lembram do BAC, seu velho coirmão.
“Eu fui sócio do BAC, frequentei o clube. Lembro que a feijoada do Pacu era muito boa. Até estou atrás de uma camisa do BAC”. Walter de Oliveira, 62, aposentado
“Dizem que era uma grande festa, que mais da metade da população torcia pelo BAC. Acho que hoje não seria ideal ter um time rival dentro da própria cidade, até porque o bauruense já não comparece em peso ao estádio. É melhor unir forças por um grande time”. Sivaldo Machado (esq.), 39, encarregado de produção
“Eu lembro do Baquinho, sei que o Pelé jogou no BAC, mas a cidade dá muito pouco valor. Hoje, Bauru mal consegue ter um time só, imagine dois. A cidade merecia ter um time melhor, mas não tem apoio dos grandes empresários”. Luiz Antonio Garcia (esq.), 52, comerciário
“Quando eu cheguei em Bauru, o BAC já estava acabando. Mas eu lembro que tinha uma rivalidade sadia. Seria bom ter um rival do Noroeste na cidade”. Osmar Maciel, 71, aposentado
“No tempo do BAC, eu morava em São Manuel e vinha, quando era pequeno, com o meu pai para assistir aos dérbis. Sempre fui noroestino, mas frequentava o BAC, era associado. A rivalidade era só no futebol”. Reinaldo José Grava, 77, aposentado
Fotos por Amanda Lima
O Baqueano Expediente Amanda Lima Annelize Pires Carolina Rodrigues Fábio de Santana Barreto Felipe Vaitsman Gabriel Oliveira Leonardo Zacarin Nayara Kobori Wagner Alves
Diretor da FAAC Roberto Deganutti Coordenador do Departamento de Comunicação Social Juarez Tadeu de Paula Xavier Professores Orientadores Angelo Sottovia Aranha Tássia Zanini
Para saber mais
De Edson a Pelé: A infância do rei em Bauru (Luís Carlos Cordeiro, DBA, 1997)
Pelé - A autobiografia (Sextante, 2006)
Site: www.bauruac.com.br
Excelência Pioneira do Futebol Bauruense (Fausto Gonçalves, Canal 6, 2010)
Agradecimentos
Endereço Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 Vargem Limpa, Bauru - SP Telefone: (14) 3103-6000
Bauru Atlético Clube Aparecido Domingos Braga, “Sarará” Edson Massa Eduardo Nasralla Fausto Gonçalves Gabriel Pelegrina Gino Bacci João Francisco Tidei de Lima José Carlos Barbosa, “Zequinha” Nildemar Godoy Otacílio Garms Filho Rafael Mainini Raquel Marçal da Silva Walter Lisboa