O CORRE
A FRACASSADA GUERRA DE MEIO SÉCULO CONTRA AS DROGAS
ENTREVISTA COM O NEUROCIENTISTA RENATO MALCHER
O CORRE Reitor Julio Cezar Durigan Diretor da FAAC Nilson Ghirardello Coordenador do Curso de Jornalismo Francisco Rolfsen Belda
Grupo: Adriana Kimura Michael Barbosa Murilo Aguiar Rodrigo Berni Vinícius Cabrera Vitor Almeida
Chefe do Departamento de Comunicação Social Juarez Tadeu de Paula Xavier Professores Orientadores Ângelo Sottovia Aranha Tássia Caroline Zanini Francisco Rolfsen Belda Endereço Departamento de Comunicação Social Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 Vargem Limpa, Bauru-SP Telefone: (14) 3103-6000
Ramal: 6063
Suplemento produzido pelos alunos do 4º termo do curso de Comunicação Social: Jornalismo do período diurno da UNESP.
História – Eu nasci há dez mil anos atrás Entrevista – O especialista Matéria de capa – Meio século de guerra Indústria - Tem noia aí Religião - Eu sou a luz das estrelas Cultura – Mas I love you Ensaio fotográfico pelo suplemento - Rodrigo Berni
Por que falar de drogas? por Michael Barbosa
Em 1962, após conferência na Organização das Nações Unidas, o presidente dos Estados Unidos Richard Nixon declarou a guerra contra as drogas. Hoje, passadas mais de cinco décadas, essa guerra perdida ainda é travada nas ruas da maioria dos países do mundo. A sociedade contemporânea falhou em sua empreitada contra o consumo de entorpecentes; falhou porque lutou contra a própria história do homem, marcada pelo uso e abuso dessas substâncias, falhou, também, porque abandonou o usuário, transformando-o na pária social da nossa época e negando-lhe tratamento; falhou, enfim, porque o consumo e a produção de drogas apenas aumentou, tal qual a hipocrisia e o preconceito com que usuários e o próprio debate são tratados. Mas nem tudo é lamentação. Talvez, as recentes flexibilizações em países como Uruguai e EUA não sejam lampejos, mas um processo de tomada de consciência que começa a dar frutos. É dessa perspectiva que escrevemos Ocorre, na expectativa de avançar no debate sobre drogas, desmistificar substâncias e usuários e possibilitar a reflexão sobre por que tratamos de maneira tão natural a nossa droga de cada dia, mas não pensamos duas vezes antes de condenar a droga dos que estão ao nosso redor. Nossa matéria de capa é sobre como essa guerra foi perdida e passamos a pensar em alternativas às políticas proibicionistas. Nessa edição, também entrevistamos Renato Malcher, neurocientista e professor da Universidade Nacional de Brasília, que advoga em prol do uso medicinal da maconha. Discutimos a indústria farmacêutica e a naturalização de um mercado fora de controle. Falamos, ainda, sobre a redução de danos e como é possível tratar usuários com humanidade e respeito à liberdade individual. Esperamos, portanto, que Ocorre possa ser instrumento de reflexão e fonte de boa leitura.
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O CORRE Eu nasci há dez mil anos atrás DROGAS NA HISTORIA por Vinicíus Cabrera
Registros históricos indicam que substâncias psicoativas já faziam parte de diferentes culturas a mais de 5.000 a.C, com o passar do tempo e a evolução das civilizações, as drogas também se sofisticaram e acompanharam o homem chegando ao ponto de serem hoje comunmente utilizadas por todas as classes sociais em todas as partes do mundo. É importante dizer que os povos antigos tinham uma visão completamente diferente da que temos hoje a respeito das drogas, eles não acreditavam que elas fossem exclusivamente boas ou más. Os gregos, por exemplo, compreendiam que qualquer droga guarda um antídoto, porém constitui-se de um veneno, e que a dosagem é que determina o efeito salvador ou mortal que cada droga leva consigo. Primeiramente na cultura grega e posteriormente na romana, o álcool era cultuado por ser considerado uma bebida que facilitava o contato com os deuses. Essa prática é recorrente desde que o homem se encontrou pela primeira vez com os psicotrópicos, existem registros de utilização de papoulas de ópio pelos sumérios, civilização mais antiga da humanidade, com a justificativa de que o alterado nível de consciência era estabelecido para melhor ligação com o elemento divino. O álcool é uma substância que tomou um caminho um pouco distinto em relação a outros psicoativos. Por ser um habito cultural greco-romano e essa civilização ter conquistado bastante parte do mundo que conhecemos hoje, o consumo do álcool cresceu e se difundiu através de outras civilizações. É interessante notar que o álcool desde essa época é utilizado de forma semelhante a que fazemos atualmente, muito mais pela função social do que qualquer outra coisa, sempre o relacionando a confraternizações envolvendo datas importantes como festas, conquistas, aniversários, etc. Porém é mais interessante ainda notar que a utilização de drogas nas culturas clássicas não se configurava como um problema de ordem pública, principalmente por estarem fortemente ligadas a costumes relativos a essa cultura e principalmente por não serem diferidas de qualquer outro costume praticado na época. É por isso que na época apesar do alto número de consumidores de ópio, por exemplo, não existia palavra de cunho pejorativo para denominar as pessoas que faziam uso do psicoativo. Quando adentramos a Idade Média, período conhecido pelo amplo domínio da Igreja cristã, muito casos envolvendo o conhecimento e a utilização de psicotrópicos pelos pagãos foi amplamente combatida pela igreja, que castigava os usuários com tortura e morte. Nesse período, com exceção do álcool, os psicotrópicos foram amplamente caçados, com a justificativa de que as plantas e substâncias psicoativas eram criações abomináveis e colocavam em risco a prática de adoração ao deus cristão. Posteriormente com a reforma religiosa, na baixa idade média, a expansão comercial e as mudanças sociopolíticas possibilitaram o aparecimento de um novo movimento cultural, o Renascimento, que resgatava a cultura greco-romana e questionava o domínio da religião cristã, pondo o homem em primeiro plano (antropocentrismo). As duas grandes guerras do século XX, então, fizeram
com que as drogas estimulantes fossem utilizadas como importantes ferramentas no combate. A anfetamina, droga estimulante que faz com que a pessoa fique sem sono e ativa por grande período de tempo foi utilizada em grande escala para aumentar o rendimento de soldados. Nesse período popularizou-se também a morfina, fármaco com alto poder analgésico, utilizada para aliviar dores de soldados feridos. É importante notar que essas novas drogas desenvolvidas para a guerra, depois seriam facilmente introduzidas à sociedade de países que lutaram nos conflitos, mas agora com um viés totalmente diferente, sempre enviesado pela incessante busca de prazer. Nas décadas pós-guerra, com o fortalecimento da ideologia capitalista no mundo ocidental, houve uma grande necessidade de mão de obra que atendesse às exigências do novo modelo vigente, paralelamente a isso, a juventude europeia e estadunidense se mostravam insatisfeitos com esse modelo. A dura realidade, desigual e selvagem, imposta pelo capitalismo a diversos setores da sociedade serviu como estopim para a organização de jovens em movimentos estudantis ao redor do mundo. Surgia o movimento de contracultura, também conhecido como hippie. O movimento pregava uma vida comunitária com valores ligados à liberdade, natureza e emancipação sexual e foi um dos responsáveis pela disseminação de algumas drogas. As drogas desempenharam um importante papel cultural nas décadas de 60 e 70, as pessoas que estavam questionando o sistema precisavam encontrar uma nova luz a olhar para as coisas. Sua solução foi explorar as substâncias alucinógenas. A mais comum era o LSD, produto químico descoberto em 1943 pelo químico suíço Albert Hofmann. O LSD permitiu que as pessoas olhassem para as coisas com o ângulo diferente. Outro psicoativo alucinógeno amplamente utilizado nesse período foi a Cannabis, droga reconhecida pelo uso recriacional e medicinal. Durante os anos sessenta, como as pessoas estavam tentando encontrar novas maneiras de explorar o prazer e as formas de realizá-lo, a maconha se tornou uma escolha óbvia. Apesar do fato de ser ilegal, muitas pessoas estavam dispostas a experimentar esta substância surpreendente. A maconha é uma erva daninha nativa em todos os continentes do planeta e tem sido muito popular na história recente, desde os anos sessenta tem sido uma parte comum de nossa sociedade. O abuso desses psicoativos alucinógenos, nas décadas de sessenta e setenta, fez com que os Estado Unidos levasse a ONU uma resolução para conter o abuso de drogas, que sugeria que o consumo de drogas ilegais fosse criminalizado. Ao compararmos o papel que as drogas têm nos dias de hoje com a que elas tinham em diferentes épocas identificamos uma grande mudança de significado por trás de sua utilização. Hoje em dia o consumo de drogas psicoativas se tornou um grave problema mundial que perpassa várias instâncias e classes sociais e que necessita de ações governamentais visando o seu controle. Apesar das tentativas governamentais, os países ainda não conseguiram de maneira satisfatória conter o alastramento de drogas baratas como o crack. 2
O CORRE C DE CANNABIS E M DE MALCHER por Vinicíus Cabrera
Renato Malcher é atualmente no Brasil um dos principais pesquisadores sobre as propriedades médicas da Cannabis. Formado em Ciência Biológica pela Universidade de Brasilia (UnB) e Doutor pela Universidade de Tulane, New Orleans é atualmente integrante do departamento de Ciência Fisiológicas da UnB. Renato busca, através de suas pesquisas, desmistificar um assunto ainda bastante estigmatizado. Na entrevista Renato nos mostra que as questões ligadas a Cannabis e ao seu desconhecimento vão muito além dos já ultrapassados argumentos proibicionistas. Vinícius Cabrera: O ano de 2013 nos reservou grandes acontecimentos no que diz respeito às políticas públicas a favor da legalização da Cannabis, a regulamentação do comércio e produção no Uruguai, o comercio recriacional no Colorado e a descriminização do porte na Suíça são alguns dos exemplos. Como você enxerga esses acontecimentos? O que o Brasil tem a aprender com esses acontecimentos? Renato Malcher: São acontecimentos inevitáveis. A guerra às drogas é um enorme engodo, de consequências brutais, dentro de um antigo sistema de estratégias geopolíticas que, claramente, coloca em constante crise países de economia e poder bélico inferior. A guerra só serviu para criar desgraças e bloqueios para o desenvolvimento político, econômico e social dos países pobres. Além disto, a ciência tem se tornado mais dinâmica e acessível, de modo que os mecanismos de satanização da maconha, embora tenham sido bem sucedidos em criar estigmas incrustados na cultura, mesmo na cultura acadêmica, já não consegue mais se manter. A maior dificuldade sempre foi, claro, a de esconder o que sempre se soube: que a maconha é uma planta de extraordinários usos médicos. Assim, na medida em que o uso médico foi retomando seu espaço formal, nos Estados Unidos, Israel e muitos países europeus, produziram-se uma nova amostragem de pessoas enfermas de diversas doenças e pessoas saudáveis que se aproveitaram do sistema. E, o que se verifica é que há sólidas evidencias de que a proibição da maconha não só não se justifica, mas que quaisquer possíveis danos são amplificados pela proibição e minimizados em um contexto regulamentado. V.C: A guerra contra o tráfico se mostra cada vez mais ineficiente, o número de vítimas e a falta de alternativas que não utilize da repressão violenta são alguns dos indicadores do fracasso. Como a regulamentação da Cannabis pode contribuir ou influenciar no melhoramento das políticas antidroga em países subdesenvolvidos norteados por essa guerra? E no fator econômico? R.M: Além dos fatores mencionados acima, é certo que o estado ganhará em impostos e o mercado ilegal perderá em renda. Empregos serão criados, e uma nova era de desenvolvimento biotecnológico e farmacêutico fará uma revolução de profundos impactos positivos em saúde publica, com o acesso a remédios eficientes e baratos produzidos por plantas. Os desenvolvimentos científicos na área de ciência básica e médica ganharão um impulso extraordinário. Novos produtos reestabelecerão o extraordinário potencial industrial da fibra e dos óleos da Cannabis. A Cannabis poderá ser usada para a produção de fibra, álcool e biodiesel. Além do que, o estado economizará diminuindo sua participação em uma guerra que parasita os cofres públicos, e criminaliza a pobreza, abarrotando as cadeias com pessoas de comunidades pobres presos por atos não violentos, cuja criminalização jamais se justificou. VC: Porque países vizinhos, como no caso da Uruguai e Argentina, já estão tão à frente do Brasil, quando o assunto é a Can-
O especialista
nabis? Você acredita que o brasileiro ainda é influenciado pelos conceitos proibicionistas americano? R.M: Não, eu creio que há uma grande articulação entre agentes políticos, entre grupos corporativos e setores da mídia e demais poderes políticos que desejam manter o sistema de criminalização da pobreza, patologização de hábitos e o estado permanente de guerra civil. V.C: Muitas pessoas contrárias à regulamentação da Cannabis usam como argumento o aumento do número de usuários, para essas pessoas, a regulamentação da Cannabis desencadearia um fenômeno parecido com o que houve com a legalização de outras drogas como álcool e nocotina, em que o número de usuários dependentes subiu alarmantemente. Como você enxerga essa situação? R.M: De fato, em lugares onde houve a regulamentação da maconha de alguma forma, seja por meio do uso médico, seja por meio da flexibilização a postura da policia, verificou-se uma migração de drogas como heroína e álcool para a maconha. Em condições não regulamentadas, isso seria algo potencialmente ruim, mas em situação regulamentada, onde jovens em fase de crescimento tenham o acesso restringido e os adultos saibam o conteúdo de canabinoides das plantas, isso seria uma vantagem. Pois, nestas condições, a maconha causaria menos problemas do que o alcoolismo, por exemplo. V.C: Como você enxerga a manipulação das plantas de Cannabis através da biotecnologia? Seria possível fazer linhagens específicas para determinadas enfermidades? R.M: Sim, mas não necessariamente por modificações transgênicas, mas, sobretudo, pela continuidade do uso de genética clássica aperfeiçoada por métodos modernos, nos quais o Brasil possui excelência, alias. V.C: Existe uma porção de mitos relacionados à Cannabis, um deles afirmava que a sua utilização causava esquizofrenia. Depois de muitos estudos, foi descoberto por pesquisadores em Harvard que a utilização de Cannabis não está ligada com o aumento de casos de esquizofrenia. Esses mitos e a demonização da planta seria uma espécie de estratégia do lobby proibicionista? R.M: A estratégia está em interpretar de forma distorcida a literatura real e ignorar toda a literatura que contradiz os mitos. Mas as preocupações são legitimas, ilegítimas são os usos que se fazem dessas preocupações. Um péssimo e vergonhoso exemplo disto é a postura alarmista recorrente da Associação Brasileira de psiquiatria, que mais atrapalha do que ajuda a evitar que pessoas com propensão a esquizofrenia tenham problemas com a maconha durante a adolescência.
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O CORRE O ato de fumar por Rodrigo Berni
É indiscutível que a fumaça molesta, é indiscutível que quem fuma compulsivamente ao longo de anos está mais predisposto a ter problemas respiratórios, é indiscutível que o mercado do cigarro movimenta rios de dinheiro, é indiscutível o número de mortes anuais por causa do cigarro, é indiscutível que essa situação se configura cada vez mais alarmante, mas se tudo isso é chover no molhado então como devemos agir a fim de termos uma sociedade mais justa com quem fuma?
damos conta que a nicotina, princípio ativo do tabacco, diferente do que é comumente noticiado não é em si prejudicial à saúde. A nicotina é na verdade um estimulante que age sobre os receptores nicotínicos. É claro que o cigarro não é composto somente de nicotina e é ainda mais claro que essas outras substâncias encontradas em cigarros, tais como monóxido de carbono, alcatrão e até elementos radioativos não tenham semelhanças com a nicotina.
A criação de leis e mais leis que impõem, proíbem, limitam as possibilidades do fumante na verdade são empregadas de maneiras a tratar os fumantes como pessoas não capacitadas, não autônomas. Na verdade o fumante é capacitado o bastante para não corroborar com leis que os proteja de si mesmos.
É ai que entra a indústria tabagista que se aproveita de brechas e faltas de legislações, que lhe imponha um produto sem todos esses tipos de venenos. Sim amigos, a indústria tabagista utiliza uma série de estratégias quase que imperceptíveis que terminam por deixar o cigarro um produto dinâmico e de fácil aceitação por grande parte da população. Estratégias como a adição de leves filamentos de fósforo para que o cigarro queime mais depressa ou até mesmo a utilização de filtros que dão ao fumante falsa sensação de que estão protegidos.
É interessante notarmos também que essas inúmeras tentativas de impedir o ato de fumar estão ligadas a uma manipulação das pessoas através de uma legislação que tem por objetivo cercear as sensações próprias da natureza humana, a dor e o prazer. Sim, o prazer, que nesse caso é fortemente ligado à força do habito de pitar um cigarro esporádico depois de uma refeição, por exemplo, ou pelo simples fato de se estar ocupando a mente, passando tempo, quando se esta fumando. O outro lado da moeda, a dor, consequência de do uso prolongado do cigarro é geralmente ampliada através de propagandas veiculadas por todos os tipos de mídia, até mesmo nas próprias embalagens de cigarros, não que isso seja errado. O resultado disso chamasse alienação, sim amigos; alienação! Com um panorama confuso pautado pela imposição de leis antitabagistas controladoras, o fumante perde o fio da meada e não busca se informar a fundo sobre o assunto, ao invés disso, o se torna tão cego quanto uma toupeira. A pesquisarmos a fundo, nos
Bom, ao dizer essa porção de coisas a respeito do ato de fumar e onde isso desemboca, não podemos deixar de dizer que o fumante que pita muitos cigarros está se colocando em uma situação de risco, situação que lhe pode acarretar consequências nefastas. Não que isso seja mais arriscado que se automedicar, ou dirigir um carro em alta velocidade. O que quero dizer é que o caminho a se seguir, novamente, não é o traçado pelas autoridades vigentes, na qual as leis se voltem contra nós mesmos. Proteção, nesse caso, é confundida com opressão e é notável a falta de interesse para se resolver essas questões.
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O CORRE Meio século de guerra por Michael Barbosa e Vitor Almeida
A guerra às drogas praticada não só no Brasil, como em outros países, caminha a passos largos para o fracasso. A superlotação de penitenciárias, a marginalização dos usuários e os altos índices de violência e mortes em nome dessa luta comprovam o quão ineficaz é a política proibicionista. O principal fruto desse sistema - o tráfico - gera um círculo vicioso: há cada vez mais envolvidos, presos e mortos. Para a pesquisadora do Observatório Nacional do Sistema Prisional/ ONASP, Thaísa Vilela Fonseca Amaral¸ ”é preciso por fim à sanguinária guerra às drogas e isso só é possível através da legalização e regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.” Thaísa acredita que o fim da política antidrogas seria o primeiro e importante passo para uma melhora nos índices de violência.
Com a legalização das drogas, a regulamentação do consumo e o controle do Estado, países como Brasil e Estados Unidos poderiam lucrar com tributação sobre os produtos, ao invés de gastar um caminhão de dinheiro mal aplicado nessa guerra. A publicidade acerca das drogas poderia ser mais uma fonte de renda para Estados que controlassem o consumo. Outro ponto positivo da legalização seria o aumento na qualidade da droga, o que diminuiria os riscos para o usuário, muitas vezes prejudicado pelos altos níveis de impurezas encontrados no produto. Além da criação de empregos formais ligados à produção e à venda de drogas, a maconha legalizada possibilitaria, enfim, o aprofundamento nas pesquisas sobre o uso medicinal da erva.
Uruguai
Colorado e Washington
10 de dezembro de 2013: o senado uruguaio aprova projeto que regulamenta e legaliza a produção, distribuição e consumo da maconha. O projeto de iniciativa do presidente José Mujica contou com o apoio da Frente Ampla, coalização governista dos partidos de esquerda. A medida segue caminho diferente do adotado por países que já passaram por experiências de flexibilização ao uso da erva. O Uruguai não pretende entregar a produção e venda ao setor privado, mas sim exercer o monopólio estatal do produto. Mujica, inclusive, justifica que não se trata de legalizar, mas sim de regular um mercado que já existe. No plano de ação de nossos vizinhos consta o limite de compra em 40 gramas mensais por usuário ou até seis pés da planta em casa; o preço pretendido é de um dólar por grama, ou seja, preço competitivo, próximo do que se pratica no mercado negro lá e aqui. A legalização à esquerda.
Na terra da liberdade e do capital os estados de Colorado e Washington legalizaram a planta em lei válida a partir do começo deste ano. Por lá qualquer sujeito com idade mínima de 21 anos poderá comprar e plantar, com poucas restrições e com direito aos famosos coffe shops. No Colorado 136 lojas receberam autorização para comercializar a marijuana, com cardápios de variedades genéticas e taxações análogas às aplicadas ao álcool. Também não há restrições à venda para pessoas de fora dos dois estados, cenário montado para o turismo. A legalização pela ética liberal.
O fracasso retumbante da guerra contra as drogas nos Estados Unidos fica evidente quando são analisados os altos investimentos do governo estadunidense em políticas antidrogas entre 1990 e 2006 e a vertiginosa queda do preço da cocaína no mesmo período. Isso significa que apesar do alto montante de dinheiro investido, a procura e, principalmente, a oferta de cocaína só cresceram. Ou seja, o custo social do proibicionismo é elevado e os resultados são precários.
Dados sobre a criminalidade estadunidense em períodos de proibição das drogas deixam evidente que, ao contrário do que argumentam os proibicionistas, a situação só piora sob forte repressão. A Lei Seca, instalada nos Estados Unidos em 1919, provocou o aumento exorbitante de homicídios no país e com o fim da Lei, em 1933, os índices voltaram a cair e se normalizaram. O mesmo acontece com a Guerra ás Drogas iniciada por Richard Nixon na década de 1960, quando os homicídios cresceram e estão estabilizados no ápice até os dias atuais.
fonte: Luís Fernando Moreira
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O CORRE
Portugal
Holanda
Na terra dos nossos patrícios a descriminalização veio e virou exemplo internacional. Em terras portuguesas, o usuário pego com pequenas quantidades de qualquer droga não sofre nenhum tipo de imputação penal desde de 2001. O que antes era crime agora constitui uma violação administrativa; o dinheiro economizado com a diminuição da população carcerária e do aparato da guerra contra às drogas, agora é investido em programas de redução de danos, clínicas públicas para o tratamento de viciados e demais políticas relacionadas à questão do usuário.
O país europeu foi pioneiro em flexibilizar o consumo da maconha, mas as coisas se deram num tipo de “legalização” sui generis - se é que pode-se chamar de legalização. O que aconteceu lá foi a “Lei do Ópio”, que dividiu as drogas ilícitas em pesadas (heroína, cocaína, anfetaminas, ecstasy etc) e leves (maconha, haxixe, cogumelos etc) e não criminaliza o consumo e venda das leves, ainda que não regulamente e taxe de maneira específica todo esse comércio. A Holanda de ontem foi vanguarda, a de hoje parece anacrônica.
Na contramão dessa verdadeira guerra contra as drogas e seus usuários, o Uruguai e os estados norte-americanos Colorado e Washington propõe políticas mais racionais para lidar com a questão, ainda que por caminhos diferentes. Faz-se necessário um debate aprofundado e sem preconceitos sobre o assunto, já que as drogas estão tão presentes na vida do homem, desde sua essência. É necessário notar que o uso de substâncias psicoativas é uma questão cultural. Não quer dizer pésssima qualidade de vida, ou a transformação do mundo do usuário num labirinto no qual só existem caminhos que levam à substância.
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O CORRE Tem nóia aí De médico e de Louco A automedicação e a superdosagem são a marca da indústria farmacêutica no pós-modernismo por Adriana Kimura
Você não vai conseguir ler esta reportagem até o fim. Não sem dar uma pausa por qualquer outra atividade. Hoje, a maioria não conseguiria, é algum tipo de síndrome do pósmodernismo. Os mais fortes resistiriam às trocas de parágrafos, triunfantes pela vitória, mas não passariam pelo teste de ler um romance até o fim. Nós não temos atenção, estamos ansiosos pelo que vem a seguir - na vida, não nos textos. Volta e meia nos martirizamos pelo tempo mal empenhado em uma série de atividades inconclusas. Como já é tão tarde assim? Dorzinha de cabeça, gripe no meio da semana, rolar na cama procurando o sono: não dá tempo. Mas um remedinho pode resolver o problema. Sempre tem um que resolve. Toda casa tem sua caixinha de remédios. Os analgésicos, multivitamínicos e antigripais, especialmente no caso dos que estão livres das tarjas preta e vermelha, são os campeões na automedicação. Eles ocupam os primeiros lugares no consumo dos brasileiros, segundo pesquisas de mercado realizadas pela consultoria IMS Health e pela Associação Brasileira de Medicamentos Isentos de Prescrição, no final de 2012. O médico e professor da Faculdade de Medicina da USP Anthony Wong aponta uma recomendação da Organização Mundial de Saúde de que a automedicação responsável é benéfica para o sistema de saúde, já que, nos casos de algumas dores ou cólicas, por exemplo, tomar um remédio sem tarja na caixa, por períodos curtos, pode aplacar os sintomas e colaborar para que o problema se resolva sozinho após alguns dias. Segundo o médico, essa atitude pode ser econômica e colaborar para o funcionamento geral do sistema de saúde, desde que não haja superdosagem ou uso recorrente dessas substâncias que, além de poderem causar dependência e falência de órgãos, passam a perder o efeito em organismos acostumados a esse uso. Presentes na lista dos 10 medicamentos mais vendidos aos brasileiros há mais de 3 anos, calmantes como o Rivotril acompanham Ritalina e outros psicoativos na empreitada de satisfazer às exigências cotidianas de produtividade, atenção e foco, que parecem ser a febre do momento. Eles ganharam a preferência no mercado farmacêutico e têm a tarja bem marcada, em preto. O Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos aponta que a venda de Ritalina cresceu cerca de 3200% nos últimos 11 anos, fazendo do Brasil o segundo maior consumidor do medicamento - Estados Unidos estão em primeiro lugar - mesmo sem considerar o mercado de comercialização ilegal. A Ritalina se popularizou entre estudantes e baladeiros como estimulante aos sentidos e à atividade. Rivotril ganhou fama para domar a ansiedade e já foi promovido por Selton Mello, Pedro Bial e Zeca Pagodinho, que não tiveram receio em comentar: usavam. Conseguir se manter mais acordado e atento, ou a própria conquista da calma e de uma boa risada são questão de um comprimidinho, sempre à mão - sem falar nas gotinhas, que quase passam por florais. Atualmente, indo a um neurologista, quem bobear leva diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção. A somatização de situações psicológicas distribui receitas até mesmo para as crianças - e frequentemente.
O faturamento da indústria farmacêutica nacional de dezembro de 2012 a novembro de 2013 alcançou R$ 57 bilhões, sendo R$ 13,5 bilhões correspondente à receita de medicamentos genéricos. A alta foi de 16% no faturamento e 12% em unidades vendidas, segundo dados do IMS Health. Em respeito à lógica de mercado, a indústria farmacêutica descobriu a preferência do consumidor, investiu em propaganda, abarcou a competição de vendas e acompanhou o poder de consumo dos compradores. O baixo nível de desemprego traz brasileiros preocupados com sua saúde e com poder aquisitivo para comprar seu remedinho, mesmo que só por garantia. Estudos publicados no livro “Bad Pharma”, de Ben Goldacre, revelam que laboratórios produtores de remédios interferem diretamente nos órgãos governamentais que avaliam os medicamentos encaminhados para o mercado. Os resultados dos testes apontam eficácia e demonstram efeitos colaterais reduzidos, o que não corresponde à realidade. Muitos dados sobre efeitos secundários obtidos em ensaios de pesquisadores são omitidos e desconsiderados no processo de comercialização e prescrição de medicamentos. Alguns remédios chegam às farmácias com um potencial de efeito semelhante ao de uma pílula de açúcar. Sob a divulgação de dados preocupantes quanto aos interesses da indústria farmacêutica e aos riscos do consumo elevado e equívoco de analgésicos, antigripais, calmantes e psicoativos, ganham notoriedade as terapias e comercialização de medicamentos alternativas. O Especialista em Manipulação Magistral Alopática e cientista farmacêutico pela Universidade de São Paulo Luís Lago garante que as matérias-primas utilizadas pelas farmácias de manipulação são as mesmas que a indústria farmacêutica utiliza. Segundo o especialista, a personalização dos medicamentos manipulados atende às necessidades específicas dos pacientes e evita o desperdício. Essa alternativa possibilita a junção de medicamentos diversos em uma única fórmula além do custo do medicamento manipulado ser inferior ao do industrializado. Luís trabalha com manipulação de fórmulas magistrais alopáticas e homeopáticas, além de fitoterápicos, produtos dietéticos e suplementos alimentares para atletas. Conforme explica o cientista, os medicamentos fitoterápicos geralmente causam efeitos colaterais de menor intensidade que os ocasionados por alopáticos - remédios tradicionais -, mas é importante evitar o uso concomitante desses medicamentos em casos de mesma ação farmacológica e estar sempre atento às dosagens indicadas. As fórmulas homeopáticas, agindo através do estímulo de resposta do sistema imunológico do paciente e sendo ministrado de maneira personalizada, raramente traz efeitos colaterais notáveis. As farmácias de manipulação necessitam de prescrição médica no caso da comercialização de substâncias que possuam tarja vermelha ou preta. Um problema enfrentado por Luís Lago é a incidência de clientes que procuram fitoterápicos com indicação feita por outra pessoa, de forma
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O CORRE errônea, à procura de plantas diuréticas que foram apontadas como emagrecedores, por exemplo. “Os medicamentos fitoterápicos costumam ser considerados pela população em geral como produtos naturais que se não fizerem bem, também não farão mal. E isso não corresponde à realidade”, alerta o farmacêutico, que se dispõe a orientar seus clientes, mas que, especialmente no caso de medicamentos homepáticos, não dispensa a receita. Luís afirma que a medicina alopática não é muito difundida no mundo acadêmico e acredita que os consumidores optem pela alopatia em busca de resultados mais imediatos e por efeito da massiva publicidade realizada pelas empresas responsáveis pela comercialização desses remédios. Esse uso abusivo também é resultado de um comportamento médico, hoje, observado tão frequentemente: “muitas vezes eu, como farmacêutico, questiono a terapia prescrita por alguns médicos que prescrevem mais medicamentos do que o necessário, aumentando o risco de efeitos colaterais”, afirma Luís que destacou, também, sua preocupação com a indicação de antidepressivos para pacientes que não apresentam sintomas claros de depressão. Outras terapias reduzem e até dispensam o uso de medicamentos, como é o caso da massoterapia, que utiliza apenas alguns óleos essenciais e cremes para acompanhamento. A massagem para tratar patologias do sistema músculoesquelético,
posturais, reumáticas e neurológicas pode se inspirar em técnicas orientais e é teorizada em três bases: a fisiológica, a emocional e a vibracional. A opção dispensa indicação médica, mas o massoterapeuta *** alerta para os cuidados a serem tomados: “todas as técnicas exigem cuidados e todos os tratamentos também. O que posso indicar seria bom senso, ao procurar um profissional formado (de preferência, com uma boa formação) e procurar referências com pessoas que se trataram com ele, já que os efeitos colaterais são poucos, mas existem”. Ednei também trabalha com aromaterapia - técnica derivada da fitoterapia, desenvolvida a partir dos princípios ativos de óleos essenciais extraídos de plantas -, auxiliando tratamentos com base na influência dos aromas sobre o estado de espírito dos pacientes. Ele define essas terapias como integrativas - já que existe uma colaboração de efeitos psíquicos, espirituais e fisiológicos - e complementares - pela atuação em complemento aos tratamentos tradicionais - e destaca a importância da multi-profissionalidade aplicada nesses tratamentos. Para o terapeuta, a eficácia dessas terapias é resultado de uma combinação que respeita as diferentes necessidades do ser humano em seus diversos aspectos. Ou você chegou até aqui, ou pulou para dar uma espiada no que concluía o último parágrafo de. Bem, de médico e de louco, todos temos um pouco. Tratando-se de indústria, e de consumo, e de hoje, no entanto, ‘um pouco’ jamais teria sido suficiente.
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O CORRE Tem nóia aí O difícil combate às drogas: casa, comida, roupa lavada e um baseadin pra relaxar Técnica de assistência ao usuário aposta na redução de danos e se distingue da estratégia de espanta-pombos, praticada há anos pela polícia do Estado por Adriana Kimura
Pouco depois das 15h, 10 viaturas da Polícia Civil são encaminhadas à ‘Cracolândia’, no centro de São Paulo. É 23 de janeiro, 2014, alguns policiais do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) teriam requisitado reforços diante da atitude de usuários revoltosos pela prisão de um traficante. A ação foi realizada sem o conhecimento da Prefeitura ou da Polícia Militar. O episódio lembra a Operação Cracolândia - janeiro de 2012 -, de Kassab, que também contou com balas de borracha, bombas de efeito moral e algumas perguntas sem resposta. Haddad, de primeira, soltou que isso tudo era “lamentável”, Alckmin apareceu no dia seguinte, pedindo que fosse evitada a “picuinha partidária”. A versão petista da Operação Sufoco (como ficou conhecida a de 2012) - a De Braços Abertos -, à parte a “picuinha”, já está sob efeito de boicote. O programa de Haddad contaria com o diálogo entre parceiros da operação e usuários - diálogo este dificultado pela ação que pretendia deter um traficante e resultou em alguns feridos e outras 30 detenções além da prevista. A esperança é de que o vínculo de confiança estabelecido pela De Braços Abertos seja suficiente para criar o contraponto à ação violenta da Polícia Civil. A operação De Braços Abertos, do governo municipal, tem como enfoque inicial moradias irregulares erguidas no centro da capital paulista. Barracos foram desmontados enquanto cinco hotéis da região foram oferecidos para hospedagem. Serviços assalariados - de varrição e zeladoria - e refeições gratuitas também fazem parte do programa, que busca garantir a oportunidade de reabilitação e o desejo de transformação e autopreservação no usuário. Não há exigência de abstinência total e imediata. A própria conscientização do beneficiário deve paulatinamente incentivá-lo a cuidar de si. Esses princípios muito de assemelham aos do programa de Redução de Danos (RD), inspirado em um modelo europeu, que consiste em oferecer o máximo de segurança e a minimização dos efeitos negativos ao usuário diante de seu vício adquirido. dos males, o menor A enfermeira aposentada Elisabete Paganini trabalhou em RD para o programa municipal de DST/Aids da Prefeitura de Ribeirão Preto e comenta o tipo de abordagem realizada pelos colaboradores: “a tônica não é ‘não use drogas’, mas ligar o usuário ao agente de saúde, ou seja, formar um vínculo de confiança com os técnicos”. No estabelecimento desse vínculo torna-se importante desconsiderar a possibilidade de abordagens que remetam à violência. Ela ainda afirma que a recuperação é um processo lento e que sua equipe contava com o auxílio de enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, médicos e multiplicadores (usuários que estejam dispostos a trabalhar como agentes de prevenção no seu local de uso ou moradia). O programa evita o acionamento da força policial, já que uma abordagem violenta pode ameaçar os resultados de todo o trabalho
desenvolvido. “O profissional, para desenvolver este tipo de trabalho, precisa estar devidamente preparado para não colocar seus valores pessoais no trabalho e não ‘julgar’ o usuário”, destaca Elisabete. Quanto à perspectiva urbanística e à socialização dos tratamentos, a pesquisadora Rafaela Rigoni, estabelece um parâmetro de comparação entre o Brasil e a Holanda, onde reside atualmente. Lá, o trabalho em Redução de Danos já foi aplicado e traz resultados notáveis quanto à minimização do uso em espaços públicos e à recuperação dos usuários. “Os dois aspectos da política sobre drogas na Holanda, direcionados a redução de danos e que vejo como mais importantes a serem desenvolvidos no caso do Brasil se referem à assistência social e à tolerância com relação ao uso de drogas nos serviços de atendimento aos usuários”. A especialista apresentou uma série de atividades e recursos de auxílio diponibilizados aos dependentes químicos no processo de reabilitação desenvolvido na Holanda. São oferecidas oportunidades de sociabilização e readmissão civil do usuário e a tolerância ao o uso de drogas torna os serviços de atendimento mais acessíveis aos beneficiários. “Antes da tolerância com o uso de drogas nos serviços, o que se observava no contexto holandês era semelhante ao Brasil: usuários, uso e venda de drogas nas ruas, ações policiais que somente conseguiam deslocar grupos de usuários de um local para outro, e um baixo índice de atendimento e acesso dos usuários ao sistema público”, comenta Rigoni. sobre ratos e gaiolas Uma pesquisa, realizada no final da década de 1970, do psicólogo canadense Bruce Alexander demonstrou que a dependência química deve ser enfrentada através da socialização. Alexander percebeu que a o grau de dependência atestado pelos ratos em laboratório era um efeito do confinamento desses animais. Fora de suas gaiolas, interagindo com o ambiente e com outros seres, eles custavam a se tornar dependentes. Esse experimento, utilizado como referência por muitos estudiosos da área, é comprovado em processos reais, como na Holanda, onde a recuperação de dependentes consiste, basicamente, em lhes oferecer oportunidades de trabalho, condições de saúde e sociabilização. O que soa intrigante é perceber que muitos usuários tornam-se dependentes por estarem em situação semelhente à do animal enjaulado - sem acesso às condições básicas de vida - e, ainda, que um dos recursos de maior efetividade na recuperação dessas pessoas é tão simplesmente oferecer-lhes oportunidades de emprego, alimentação e vida social - permitindo que elas realmente utilizem esses serviços de atendimento ao não lhes submeter obrigatoriamente aos efeitos da abstinência. O governador do Estado, Geraldo Alckmin, reforçou que o apoio ao dependente químico nunca será negado e mencionou, sobre a ação da Polícia Civil do dia 23, 9
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a necessidade de deter os traficantes no combate às drogas. Esse argumento também sustentou a resposta afiada da diretora do Denarc, Elaine Biasolli, - “Lamentável é deixar traficantes na rua” - às declarações primeiras de Haddad e os pareceres do secretário de Estado da Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, que acredita no potencial de colaboração à assistência social da ação. No entanto, entrevistas publicadas pelo Estado de SP, no fatídico 23 de janeiro, com pessoas que vivem na Cracolândia, constituem depoimentos de usuários que foram agredidos pela polícia mesmo não sendo traficantes. Um dos usuários ainda afirma que os verdadeiros traficantes não frequentam a região e que a polícia prendeu apenas alguns entregadores de curto lastro. Rafaela Rigoni, sobre o acesso dos usuários à saúde: “Usuários apresentam necessidades distintas de outras populações, e poderiam ter respeitadas tais necessidades. Exigir de um dependente que extinga seus comportamentos de dependência antes mesmo de ingressar em um serviço público é uma forma de barrar seu acesso à saúde, e de perpetuar a crença de que ele não tem jeito, não tem possibilidades, é um ‘caso perdido’”. A pesquisadora aponta a legalização de drogas leves, na Holanda, como um importante fator para o controle sobre o narcotráfico: “O que se vê é que, em comparação com outros países da União Européia (onde condições sócioeconômicas permitem um comparativo), o uso de drogas pesadas na Holanda apresenta um dos níveis mais baixos”. Para ela, a tolerância e o respeito ao uso de drogas permite um maior acesso dos usuários ao sistema de cuidados e um maior controle sobre os danos decorrentes desse uso. “Uma abordagem baseada na realidade do sujeito, descolada de uma ‘saúde ideal’ ou moralista que entende as drogas e seus ‘usuários’ como males a serem extirpados da sociedade, é necessária para produzir sujeitos com maior autonomia e responsabilidade, ao invés de incrementar a dependência”.
De lado a “picuinha partidária”, lamentável mesmo é tentar com bala de borracha uma solução que é de pão, emprego e teto.
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