Elis

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Editorial As vozes empoderadas de uma Elis Produzir material jornalístico para um segmento requer atenção e, especialmente, sensibilidade ao tema que será abordado e ao público com o qual se dialogará. Populares na imprensa nacional desde as décadas de 1950 e 1960, os suplementos femininos já são antigos conhecidos do cotidiano da mulher brasileira, embora nem sempre sejam representativos de sua realidade. Para chegar à identidade de Elis, neste contexto, foi imprescindível tomar cons-

ciência da multiplicidade de identidades das quais somos feitas. Compreender que muito além de temas como moda, relacionamentos e beleza, participamos ativamente do mercado de trabalho, do mundo dos esportes, dos games, das lideranças - dentro ou fora de famílias convencionais – mães solteiras ou apenas filhas. Através de reportagens, entrevistas, perfis e notícias, todas produzidas por mulheres e dedicadas ao público feminino, Elis busca a reunião e a

Índice

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Blogueiras e Gamers

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Mulher na mídia

Ana e Maria

Lia e Mariane

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Entrevista e Esporte

Lia e Maria

forma de nos afastarmos, entretanto como meio de completarmos e ouvirmos de modo atento umas às outras. Corajosamente, neste momento, convidamos você, leitora ou leitor, a conferir de perto as diversas cenas e narrações jornalísticas reunidas por esta equipe, por esta Elis que, cheia de vida, quer levar à mulher brasileira um trabalho que represente, ainda que em minúcias, a sua realidade.

Casamento e dupla jornada

Thamires e Mariane

Crônica Mariane Ribeiro

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Indicações

Thamires e Ana

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Empoderamento e Candomblé

eloquência de vozes fortes, que não devem se calar perante o machismo, a violência e o preconceito enfrentados diariamente por pertencerem a um gênero historicamente oprimido. Entre tantas palavras para defini-lo, empoderamento talvez seja aquela capaz de sintetizar todos os sentimentos e histórias que nos empenhamos em contar. Enquanto mulher empoderada, Elis é composta de uma essência que reúne todas as nossas diferenças, não como

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Ensaio Fotográfico Thamires Motta

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Especial Menstruação

Bianca Landi

Expediente

Mariane Ribeiro, 20 anos, repórter. Tranquila e fã de artes manuais, descobriu o jornalismo por acaso e vem se encontrando nele. Cinéfila de carteirinha, gosta de moda, chocolate e pokémons.

Ana Beatriz Ferreira, Lia Vasconcelos,

19 anos, repórter. Corredora por paixão, antes de tudo uma leitora assídua, ainda está em processo de desconstrução em relação a sua condição de mulher na sociedade.

20 anos, repórter e diagramadora. Cearense, lésbica e mulher, encontrou no jornalismo a oportunidade de escrever e descrever sobre o que acredita e sobre o que desmistifica.

Thamires Motta, 20 anos, repórter e diagramadora. Nascida na capital paulista e apaixonada por feminismo e fotografia, gosta de artes e milita em defesa de minorias sociais.

Bianca Landi, 21 anos, repórter. De espírito livre e vinda do interior paulista, busca sua constante desconstrução. Pratica yoga nas horas vagas e tem a gratidão como sua filosofia de vida.

Maria V. Mazza, 22 anos, repórter. Descobriu o amor pelas letras desde que se entende por gente, tendo o jornalismo como consequência. Orgulho de ser uma mulher que luta.


Entrevista Mulheres em quadra Alessandra Hernandes Elas ocupam cada vez mais o mundo dos esportes, mas

Maria Victoria

Lia Vasconcelos

ainda sofrem para conseguir reconhecimento

Mãe aos treze e médica aos vinte e sete, Alessandra Hernandes rompeu com os padrões e construiu família e carreira silenciando a velha máxima de que casos não convencionais “têm tudo pra dar errado”. Como foi saber que estava grávida tino. Em uma escola melhor, mas não menos tão nova? preconceituosa. Aliás, até mais [preconceituo-

Como era sua relação com o pai? Primeiro preciso esclarecer que eu até casei com o pai dos meus filhos. Ficamos casados por 6 anos, então não fui literalmente mãe solteira. Acontece que ele se afastou da criação dos filhos depois da separação. Quando a Nátali tinha 9 meses fiquei grávida do Murilo, aí acabou qualquer chance de amar o pai deles. Porque ele achava que se me enchesse de filho, eu nunca ia largar dele. Ele sempre me amou, mas não os filhos, um merda.

Ele não gostava de usar camisinha? Camisinha? Ha 30 anos atrás? NUNCA. (risos) Acho que naquela época nem era fácil de achar pra comprar. Depois o Murilo nasceu e minha mãe resolveu fazer algo e me levou pra colocar um DIU, daí não engravidei mais.

E depois do primeiro choque? Lembro do meu pai me perguntando o que eu queria fazer e eu: quero casar! Eles não me obrigaram, mas também não se opuseram quando eu falei que queria. Depois disso saí da escola que eu estava, pois meus pais achavam meio vergonhoso eu frequentar aulas com aquela barriga enorme. Saí do colégio e começaram os preparativos do casamento, da casa e, claro, da gestação! A Nátali nasceu em agosto de oitenta e seis, esse ano eu não frequentei aula, só no ano seguinte que voltei a estudar. Aí sim, em outro colégio. E foi aí que minha vida mudou. (risos)

E os estudos? Meus pais nunca foram ricos, eu estudava em colégio do estado, mas depois que engravidei minha mãe achou que eu não deveria mais frequentar colégio público, pois, segundo ela, as pessoas não iam me respeitar e blá blá blá! Me colocaram num colégio particular. Aí sim eu tive condições de mudar meu des-

sa], mas minha mãe é elitista e acha que rico não tem preconceito. Típico (risos). Bom, em um colégio melhor, eu estudei e estudei e só assim pude entrar numa boa faculdade.

Você não tinha medo? Tenho algumas lembranças importantes pra partilhar: eu grávida, barriguda, sozinha, sem que ninguém soubesse (o pai sabia, mas desde sempre ele foi ninguém), pensava: agora, nunca mais serei sozinha, tenho o bebê e ele vai ficar comigo pra sempre. Lembro quando peguei a Nátali pela primeira vez e pensei: ‘nossa! Tenho que criar esse bebê, ela só tem a mim nesse mundo’. Esse momento eu deixei a infância, a adolescência e me tornei adulta e responsável, não sei se mãe ainda.

Em que momento houve o afastamento entre vocês e o pai dos meninos? Quando passei no vestibular, o pai deles cogitou a hipótese de eu não cursar, talvez trancar matrícula, até que as crianças crescessem mais. A Nátali tinha 6 pra 7 anos e o Murilo 5 anos. Aí ele tomou um pé na bunda e eu fui pra vida! (risos) A partir daí ele se afastou e não se comprometia com os filhos. Nunca se comprometeu, na verdade. Só ia atrás de mim, um saco. No começo, eu até tentava obrigá-lo a ficar com os filhos, mas ele não queria e só criava caso. Não queria pagar pensão e chegou a ficar com empregos informais só pra não pagar. Ficava meses sem aparecer. O pai só procurava-os pra perguntar por mim e sobre minha vida. Foram anos que briguei bastante com o pai deles. Eu queria que ele deixasse de me encher o saco, cuidasse dos filhos e me ajudasse financeiramente, mas ele não fez nada disso. Meus filhos nunca tiveram a figura paterna, né?! Nenhum prestou pra isso. Fui criada num

“O machismo. É a gênese do nosso sofrimento” ambiente machista, fiz uma faculdade onde o preconceito, machismo e elitismo imperam, só fui me reerguer emocionalmente quando conheci o feminismo. Foi ele que me salvou. Tento conscientizar os meus filhos sempre quanto a isso, mas eles já entendem faz um tempo. Eu achava que só eu sofria com certas coisas, como relacionamentos, sexo e tal, mas é universal. O machismo. É a gênese do nosso sofrimento.

Arquivo pessoal

Eu comecei a namorar aos 12, em dois ou três meses já estava transando, mas era tão infantil que pensava: “ah, eu não vou ficar grávida, porque isso não vai acontecer comigo.” Eu sabia o que estava fazendo, sabia que aquilo era sexo e que era assim que se engravidava. Sabia por que aprendi na escola e com conversas entre amigas, meus pais mesmo nunca tocaram nesse assunto comigo. O atraso menstrual logo chegou, mas fiquei esperando, esperando e nada. Ainda pensava que comigo não aconteceria. Falei com o pai da criança, que tinha 21 anos, e ele até achava que eu estava grávida, mas nem pensou em fazer um exame, nem de farmácia. Por volta dos 4 meses, acredito, todos os sintomas já eram claros, como náuseas, vômitos, sonolência extrema, etc. Então eu mesma fiz o diagnóstico: estava grávida. Não tinha ideia de como ia falar pro meus pais. Conversava com a toupeira do meu namorado, mas ele também não sabia o que fazer. Detalhe: o pai dele era ginecologista.

Isabella Baldin, a “Zeca” e sua equipe do futsal, campeãs no InterUnesp 2014

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aça uma pesquisa rápida: acesse qualquer site esportivo e procure algo relacionado à mulheres. Em muitos você encontrará espaço destinado a elas, mas não enquanto profissionais, jogadoras ou competidoras, e sim como musas. É assim que o mundo dos esportes, em sua maioria, as recepciona. E onde se encontram as mulheres esportistas? Dificilmente em manchetes de destaque, mas, sim, elas existem. Um levantamento apresentado pelo Corujão do Esporte, programa da Rede Globo, mostra que nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1900, o número de competidoras era de 22, contra 997 homens. Na competição mais recente, ocorrida em Londres, 2012, foram 4676 mulheres para 5892 homens.

Helena Maria Sala, atleta de Handebol desde 2009, conta que “a equipe feminina foi campeã do mundial sem patrocínio e elege a melhor jogadora do mundo há 2 anos”, mas não recebe todo o reconhecimento que tem.

O papel da mídia

Isabella Baldin gosta de futebol desde criança e, hoje faz parte da equipe de futsal da UNESP. Zeca, como é conhecida, já sofreu até mesmo pra poder participar de um jogo informal com os meninos da escola. “Nós estamos anos-luz atrás do esporte em relação ao masculino, ainda falta muito pra gente conquistar uma igualdade”, conta. Se uma mulher se interessa pelo esporte, ela é desestimulada. Talvez digam que é algo para homens ou que não é adequado para manter a feminilidade. Mas dificilmente dirão para seguir em frente com o sonho. E o objetivo é mudar justamente isso, o pensamento retrógrado de que ser mulher significa ser impedida de fazer aquilo que gosta por conta de seu gênero.

As grandes e reconhecidas competições são de times masculinos, por isso, as mesmas são televisionadas por canais abertos, como o futebol e a corrida dominical. Já a paga, que até tenta trazer mais opções, ainda dá mais espaço para os homens. A mídia tem grande parcela nessa glamourização de equipes formadas por homens e o quase anonimato das femininas. A conta é simples: quanto mais patrocinadores, mais os canais de televisão voltarão os olhos para você. Os times de futebol, por exemplo, recebem valores exorbitantes para estamparem uma marca em sua camiseta, enquanto modalidades como handebol ou futsal lutam por seu espaço.

Pensamento atrasado Em março deste ano, a 59ª sessão da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, que aconteceu em Nova York, na sede da ONU, discutiu sobre a igualdade de gênero no esporte, assunto ainda pouco discutido.

Você mudaria algo disso tudo que viveu? Sim, não me submeteria por amor, pois descobri que o amor não se submete a nada por nós. Amo meus filhos, mas tudo o que passei foi f***. pg. 10


Dois buquês e um sobrenome Thamires Motta

O amor ainda é motivo de estigma, preconceito, luta e subversão

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um gesto de carinho, duas mãos se entrelaçam. Os rostos já são íntimos um do outro, se aproximam, se encontram, os lábios se beijam. O momento é comum para qualquer casal apaixonado, ainda que o casal em questão seja formado por Teresa e Estela, ou melhor, Fernanda Montenegro e Nathália Timberg. Com 86 anos e carreiras de sucesso na teledramaturgia, ambas protagonizam o primeiro casal lésbico da terceira idade, na novela “Babilônia”. As personagens estão juntas há 35 anos e refletem na telinha o que se tornou realidade apenas em 2013 - o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Foi somente no ano de 2011 que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que casais do mesmo sexo tem direito à união civil, que garante direitos e deveres semelhantes ao casamento, como direito à adoção, pensões e benefícios de saúde. Dois anos depois, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que era obrigatório a todos os cartórios do país realizar casamentos entre homossexuais. Segundo dados do IBGE daquele ano, a cada mil casamentos, apenas três são uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. Dessas, 52% foram entre mulheres. A assessora de eventos Rebecca Pietraroia (26) e a musicista Wendy Miceli (33) foram o segundo

casal a realizar a união estável na cidade de Londrina (PR). Rebecca conta que o cartório ainda estava se preparando estruturalmente para recebê-las, mas para se sentirem mais confortáveis, pediram para assinar os papéis em uma sala fechada. “Com a Wendy, desde as primeiras trocas de olhares, eu já senti que ela era o amor da minha vida, a pessoa com quem eu queria envelhecer, então oficializar isso perante a lei foi emocionante”, narra Rebecca. Ela, que é filha de advogados, acredita que a assinatura é importante para garantir que ambas estejam amparadas em seus direitos. No entanto, lamenta não ter a aceitação dos pais sobre seu relacionamento. Nenhum deles compareceu a cerimônia. Cicelline Pugliesi, analista de RH, e Mariana Pugliesi, coordenadora pedagógica, se casaram em setembro de 2013, e foram as primeiras a realizar a cerimônia no cartório do bairro São Judas, na zona sul de São Paulo. “Arrisco dizer que talvez tenhamos sido as únicas”, conta Cicelline. “Minha postura ajudou, um pouco firme e autoritária”. A paixão, o carinho e a vontade de viver juntas podem ser motivos suficientes para oficializar uma relação, mas para casais homoafetivos, a cerimônia esbarra numa questão de sobrevivência e garantia de direitos. “Nós pagamos impostos e temos direitos, como qualquer outra pessoa. A bandeira que queríamos levantar é sobre cidadania”, explica Cicelline.

Somos todos iguais? Embora tenha chegado a 3.701 o número de casais formados por pessoas do mesmo sexo que formalizaram o “sim” em 2013, a discriminação e o preconceito ainda atrasam a garantia de felicidade dos casais. Cicelline conta que sempre teve muito apoio do irmão - que foi, inclusive, padrinho do casamento -, mas que chegou a sofrer retaliações da mãe quando era mais nova. “Minha mãe me deu uma surra, cobrou promessas para uma mudança de opinião… mas preconceito é falta de informação, com o tempo e o convívio ela foi entendendo”, conta. Rebecca e Wendy explicam que nunca sofreram discriminação explicitamente, mas já passaram por situações constrangedoras. “Uma vez um colega músico comprou um bar, e quando fui agendar uns shows ele disse que meu público não interessava pra ele… Meu público é GLS, ou seja, ele quis dizer que gays não interessavam para o bar dele”, comenta Wendy. Apesar de todos os obstáculos, a tendência é que cada vez mais casais homoafetivos formalizem seus relacionamentos, amparados pela lei. Cicelline descreve a sensação de forma emocionada. “O sobrenome dela que carrego comigo é uma vitória. Eu a amo e nenhuma sociedade preconceituosa vai me dizer se devo ou não amá-la”.

Trabalho dobrado Mariane Ribeiro

A rotina dupla de trabalho é uma das maiores desigualdades entre os sexos e talvez uma das mais difíceis de mudar As mulheres dedicam cerca de 30h semanais a fazeres domésticos, enquanto para os homens são 12h semanais.

Se o trabalho feminino dentro de casa fosse remunerado somaria cerca de 67 bilhões de reais em todo o brasil

As mulheres de dupla jornada de trabalho tem maiores chances de apresentar problemas cardíacos.

Pnad e IBGE

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ão é de hoje que são delegadas às mulheres todas as tarefas que envolvem o cuidado com a casa, como limpar, cozinhar e lavar, além de também tratar da educação dos filhos. Essa é uma realidade que existe há muitos anos, uma conseqüência dos tempos em que a mulher não tinha outra opção além de se dedicar as tarefas domésticas e a criação dos filhos, cabia apenas ao homem ser o provedor da casa, garantir o sustento da família. Nos dias atuais essa realidade vem mudando, prover a casa não é mais apenas tarefas do homem, as mulheres fazem parte do mercado de trabalho também, ocupam cargos que antes eram exclusivos do sexo masculino. Mas apesar dessa mudança e da conquista do mercado de trabalho pelas mulheres, não houve uma divisão igualitária das tarefas domésticas. Ainda que a mulher seja cada vez mais igualmente responsável em garantir o sustento da casa, recai somente sobre ela a responsabilidade em cuidar das tarefas domésticas, das crianças e do marido. A dupla jornada é a situação em que a mulher tem que se desdobrar entre a esfera pública (trabalho) e a privada (casa). Durante a semana, a jornada da mulher já é maior que a do homem, porém são nos finais de semana que a desigualdade se intensifica. O professor e neurocientista comportamental, dr. Jô Furlan, diz que essa desigual-

dade que existe entre homens e mulheres em relação às tarefas domésticas é resultado da criação desse homens, normalmente em ambientes que eles vêem a mãe cuidando da casa, e que muitas vezes essas mães não ensinam os filhos de que eles também são responsáveis pelas tarefas. Essa situação cria “filhos mimados pela mãe que continuam mimados pela esposa até que ela se sinta muito sobrecarregada. O que acontece é que após criado o habito de acomodação, mudar é sempre mais difícil, porem não é impossível.” Outro apontamento que Furlan faz acerca dos trabalhos domésticos é que estamos passando por um momento em que falta reconhecimento para esses trabalhos. “Se você vive em uma casa limpa e organizada, veste roupas em bom estado e tem comida a mesa, alguém fez isso”. Ele ainda afirma que tem visto uma crescente modificação em relação ao trabalho doméstico, que mais casais têm dividido essa tarefa para que nenhum dos dois acabe sobrecarregado. Ele diz que se trata de mudanças bem sutis se comparado à séculos de tarefas domésticas sendo delegadas às mulheres. Ainda estamos bem longe da igualdade entre homens e mulheres no âmbito das atividades de casa, resultado de séculos de opressão, mas pequenas mudanças, como apontadas, já começam a aparecer. pg. 09


Crônica Mariane Ribeiro

Juntas não estamos sós

J

á passava da meia noite quando decidiu ir embora. Ninguém mais queria ir, a festa estava mal começando, diziam. Mas a noite pra ela já havia acabado, cansada e com sono, só queria sua cama. Procurou em vão alguma companhia, os conhecidos queriam ficar mais um pouco. Decidiu que iria sozinha, alguns quarteirões não são grande coisa. Enquanto andava percebeu alguns efeitos das cervejas bebidas, as pernas se trançavam e às vezes era difícil seguir em linha reta. Porém a noite era bonita e ela pensou que tinha as estrelas como guardiãs. Apesar da embriaguez, não era boba a ponto de achar que estava segura, que nada se espreitava em cada esquina e cada sombra podia esconder um inimigo. Os passos, mesmo meio zonzos, eram rápidos, apressados e a chave ia à mão como uma espada que anseia por sua bainha, o portão que às vezes parecia tão distante. Olhos e ouvidos atentos ao menor sinal de mudança que não correspondesse à quietude habitual. As ruas da cidade não são sempre as mais iluminadas, existem momentos em que a companhia elétrica falha e a luz queimada prevalece e tudo vira uma sombra só. Entre uma esquina e outra, a rua é assim, escura. Entre uma esquina e outra ouviu passos vindo atrás dela. O medo é o pior companheiro. Os ensinamentos antigos, não corra e nem olhe para trás, não demonstre medo, vieram todos à tona. Já dizia sua vó, correr atiça o instinto de caça do cachorro bravo. Continuou andando, as mãos suadas e o coração acelerado. O que eu faço? Não olhou ao atravessar a rua, com um asfalto de distância arriscou uma espiadela por cima do ombro e qual não foi seu alívio e o conforto ao ver que atrás vinha outra mulher, também armada com uma chave. O coração dela, antes de choque, aquietou. Ver que quem vinha atrás era outra mulher fez com que seus medos se dissipassem. Não estava mais sozinha. Ela sorriu meio tímida e a outra lhe sorriu de volta com cumplicidade. O olhar que trocam é de conforto, “estou aqui por você e você está aqui por mim, juntas somos mais fortes”. O silêncio carrega o “obrigada” que ninguém disse, mas ambas sentiram. Não trocaram nenhuma palavra, apenas continuaram caminhando, uma com a certeza dos passos da outra. Quando chegou a esquina em que cada uma seguiria para sua casa com a chave ávida por encontrar seu portão, trocaram novos olhares, dessa vez de cuidado e preocupação, um desejo de que cheguem bem em casa. Ela chegou ao seu portão em segurança e nunca saberia o nome daquela que acompanhou em seu trajeto, mas ela sabia que era uma igual, uma irmã. Só uma mulher sabe o que a outra sente.


Comércio, descaso, machismo e imagem Lia Vasconcelos e Mariane Ribeiro

Frequentemente, mulheres que têm muito para dizer são caladas diante dos estereótipos midiáticos reforçados a todo o momento. Conhecemos, de fato, a dimensão disso? A cada gole de cerveja, uma gota de machismo No cenário da publicidade, as propagandas de cerveja se destacam na criação do estereótipo, da hipersexualização e até mesmo do constrangimento feminino. É como se elas fossem produzidas em um molde: uma mulher dentro dos padrões comerciais, a bebida e o grande público masculino desejando ambas. Um exemplo atual, no mercado brasileiro, é o da marca Itaipava com a campanha “Verão é Nosso!”, criada pela agência Young & Rubicam Brasil. Nela, a modelo e bailarina Aline Riscado é a personagem Verão, garçonete de um estabelecimento na praia, com figurinos que expõem e realçam seu corpo e a todo momento é ovacionada e desejada pelos homens ali presentes. De grande sucesso comercial, a campanha fez com que a marca conseguisse retornar ao ranking Datafolha das Propagandas Preferidas dos Consumidores. Alex Caires, do “Mulher, Cerveja e Machismo” explica que “o uso da mulher como acessório sexual associado ao seu poder de venda, bem como a erotização da submissão e a disposição do homem, ligada a cultura do futebol e samba” são algumas das questões centrais no machismo reproduzido em propagandas de bebidas como a cerveja. Outro exemplo recente é o caso dos anúncios de carnaval referentes à marca Skol. A campanha, espalhada por pontos de ônibus na cidade de São Paulo, apresentava dizeres como “Esqueci o ‘não’ em casa” e “Topo antes de saber a pergunta”. A resposta foi imediata: mulheres, com destaque a participantes do Coletivo Feminista ECA USP, reagiram com fotos em frente aos cartazes em que mostravam o dedo do meio, gesto típico de repúdio.

Uma dose de revolta

Luíse Bello

Apesar da superexposição feminina reforçada por agências de publicidade e pela grande mídia, há um movimento de contestação que busca empoderar mulheres e orientá-las a questionar a forma com que são representadas. Recentemente, a revista teen Atrevida, em seu portal na internet, publicou uma matéria que tentava ensinar suas leitoras a se maquiarem de uma forma que agradasse aos meninos. Seu público, caracterizado principalmente por meninas entre 12 e 15 anos, respondeu de forma clara e rápida: não se sentem na obrigação de agradar ninguém, a não ser elas mesmas. Isso mostra que o movimento feminista, que vem crescendo a cada dia mais, é forte e atinge diversos públicos, sexualidades, etnias, classes sociais e faixas etárias. Sua importância é inegável e tem ajudado muitas meninas e mulheres. Daniela Cabeça, 19 anos, estudante de Design, reforça a ajuda deste em seu processo de empoderamento. “O feminismo me fez notar que eu também tenho voz, tenho coisas a dizer, que eu importo e que todas as mulheres são bonitas do jeito que elas são e que elas não precisam se adequar a padrões de beleza impostos a nós pela mídia”, diz.

Gabriela Shigihara

É

fato consumado e disseminado, seja no “boca a boca”, ou nos dados de pesquisas oficiais, que os homens são maioria no mercado de trabalho, e os espaços midiáticos não fogem da regra. Alguns números nos ajudam a criar um panorama geral de como as mulheres compõem tais espaços: no Brasil, 50% da força de trabalho é composta por mulheres. Dos seis milhões e seiscentos mil trabalhadores domésticos do país, seis milhões e duzentos mil são mulheres. Do sul ao Norte e Nordeste, segundo o IBGE (Insituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 47% das mulheres brasileiras se declaram brancas, ao passo que a maioria de 57% se declaram negras, pardas, amarelas e índias. Por que, então, diante de tanta diversidade, os grandes meios de comunicação insistem em retratar as mulheres numa única imagem? Em recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo, foi comprovado que 90% dos brasileiros assistem a televisão todos os dias e 83% destes se informam somente por esse meio. Os famosos grandes donos da mídia (que se dividem em seis famílias) vivem numa grande competição por público e publicidade, portanto, se vende o que é facilmente absorvido pela população, aniquilando qualquer chance de representatividade midiática da diversidade. Mulheres magras, brancas, jovens e heterossexuais são o padrão do suposto belo, rentável. A publicidade, principal plataforma de lucro dentro da mídia, é composta majoritariamente de homens; homens que contrastam visivelmente em seus papéis em propagandas, novelas, filmes, entre outros. Enquanto a mulher torna-se objeto de apropriação, o homem é retratado como “o apropriador”. As propagandas de cerveja são os líderes da publicidade ao utilizar da objetificação da mulher um produto rentável. Documentários como “MissInterpretation”, “Mulher, Cerveja e Machismo”, iniciativas como “ThinkOlga”, “Lugar de Mulher” criam um panorama completo de como as mulheres são retratadas nesses veículos de comunicação; desde o ambiente de trabalho (principalmente o publicitário) até às propagandas, produto deles. A publicitária Rafaela Del Medico, ao ser questionada sobre a publicidade brasileira, afirmou que a sua área “é das piores, se não for a que pior trata a mulher. As mulheres são sub representadas na mídia, seja o meio ou veículo, tem pouca coisa que consegue mostrar a mulher e sua pluralidade da forma que é.” As iniciativas para mudar o quadro atual da mídia no Brasil e no mundo vêm acontecendo a passos de formiga, mas os diretores de “Mulher, Cerveja e Machismo” acreditam que a recepção calorosa e surpreendente de mais de 300 mensagens e e-mails, mais de 12 mil curtidas e 6 mil compartilhamentos da postagem que apresentou o documentário no Facebook, (além do interesse de pessoas que estão fora do Brasil, acadêmicos, artistas independentes, coletivos femininos e feministas) é “sinal de que as mulheres têm se conscientizado”.

A campanha “chega de fiufiu” está no site “thinkolga.com” pg. 03


Ana Beatriz Ferreira

L

eitoras por paixão e ofício, blogueiras literárias têm se destacado na web e influenciado o mercado editorial brasileiro

Leitoras

e

Blogueiras Literárias

Em ônibus, metrôs, salas de espera, parques ou bibliotecas, é comum encontrar mulheres entretidas na leitura de um livro. Muitas, além de lerem, sentem a necessidade de compartilhar suas experiências de leitura – e a estas não faltam plataformas, como os blogs literários, imensamente populares entre quem é “rato de biblioteca”.

Quem

mais lê no

Brasil?

Mulheres

Homens Dados Leitura

Elas

da no

52% 48%

pesquisa “Retratos da Brasil” Fundação do Li-

indicam suas autoras do coração

Para elas, que escrevem ao menos uma resenha por semana, ler cerca de 100 exemplares em um ano é comum. Aione Simões, 25 anos, cuida desde 2011 do Minha Vida Literária, com 8,100 seguidores no Facebook. Jornalista recifense, Eduarda Menezes, 25 anos, criou o Book Addict também em 2011 e já conta com mais de 10,000 leitores. Fots

de

Daily Mail

“Rowling foi a primeira pessoa (incluindo homens) a se tornar bilionária escrevendo livros. Essa conquista já seria épica por si só, mas assume um significado ainda maior por pertencer a uma mulher.”

“Alice Munro consegue retratar o cotidiano e dilemas do universo feminino com muita sensibilidade.” Outras autoras: María Dueñas, Chimamanda Ngozi Adichie, Jennifer Egan, Sue Monk Kidd.

J.k. Rowling Fotos

Alice Munro

de

Acervo Pessoal

Aline Simões

Duda Menezes

Mulheres gamers: uma realidade que incomoda Maria Victoria

Invadindo espaços ditos “masculinos”, mulheres já são quase metade dos gamers no Brasil

O

mundo dos games já foi composto, em sua maioria, por homens. Hoje, sabe-se que os números são diferentes e as mulheres já são uma quantidade significativa. Recentemente, uma pesquisa feita pela consultoria Sioux, a Game Brasil 2015, apontou uma alta no público gamer feminino. São 47,1% de mulheres entre os jogadores, número que aumentou em relação a 2013, que apontava 41%. Já o de homens diminuiu de 59% para 52,1%.

te dos homens não consegue encarar que uma mulher pode, sim, ser uma oponente a sua altura ou até mesmo melhor. Toda esse resistência, sem dúvidas, acaba afastando as mulheres. “Elas resistem bem a esse tipo de tratamento, afinal, gostam mesmo e não deixam por causa de preconceito. Por outro lado, perdemos profissionais incríveis por causa desse desestímulo”, comenta Gabriela Brandão, jornalista gamer do portal Player 2.

A problematização da personagem Restrição de espaço O aumento de mulheres gamers é um avanço, mas ainda existe certa relutância para que elas adentrem esse espaço. Encarar os jogos como hobby ou até mesmo profissão oscila em extremos muito dolorosos, como a rejeição ou a objetificação. Para a estudante de jornalismo da UNESP, Helena Vieira Nogueira, interessada na área, quando a figura feminina entra neste mundo, ela pode ser adorada, não levada nem um pouco a sério, ou até mesmo vista como um forma de chamar a atenção do público masculino: “poucos são aqueles que nos tratam de forma neutra”, comenta. No ano passado, a socióloga americana Jennifer Allaway publicou um estudo em que aponta que 60% das mulheres já sofreu preconceito na indústria de games. Isso acontece porque grande par-

Em um ambiente considerado “de homem para homem”, não é surpresa dizer que as peronagens femininas são sexualizadas, além de caracterizadas como mais frágeis, coadjuvantes, e até mesmo aquelas que parecem quebrar um padrão, têm suas ressalvas. “Elas são, no geral, rasas quanto à personalidade e emoção, ocupando papeis secundários em relação ao protagonista masculino”, explica Helena. Por mais que exista a tentativa de melhorar, ainda encontram-se personagens que precisam ser salvas, que estão ali para serem companheiras de alguém, e que dificilmente serão protagonistas, lutarão por um propósito sem ter qualquer tipo de característica que a desmereça. Sempre existem ressalvas, mas o número de personagens que ainda desagradam nesse aspecto é grande. Gabriela ainda fala que “falta um

pouco mais de cuidado e de valorização delas nos jogos”. Se há uma solução, é difícil até mesmo de dizer. Mas elas devem começar certamente com a mentalidade das pessoas em aceitar o público feminino como realmente parte dos games, e não apenas como um acessório para deixar algo mais bonito ou até mesmo sensual.

pg. 04


Me chamaram de negra Thamires Motta

Quando a estética afro é imprescindível para reconhecer-se negra – e principalmente, para combater o racismo

Gabriela tem 20 anos, mas seu cabelo passou pela técnica de “relaxamento” quando ela tinha apenas 3. “Eu nunca cheguei a conhecer meu cabelo. O que eu passei quando assumi meu crespo – no ano passado – foi um auto conhecimento. Minha transição foi muito mais mental”, comenta ela. A transição a que se refere chama-se “big chop”, e consiste em cortar o cabelo rente à raiz, para tirar toda a química que os fios já foram submetidos. A partir daí, o cabelo passa a crescer na sua forma natural. Para Gabriela, os padrões impostos pela sociedade tiram a autoestima da mulher negra. “O meu cabelo faz parte de quem eu sou, faz parte da minha identidade como pessoa. A partir do momento que eu, de alguma forma, tento ‘escondê-lo’, eu estou me escondendo”, afirma. Gabriela não está sozinha quando analisa a dificuldade na aceitação dos traços negros, sobretudo quando é possível notar que os próprios profissionais nesse ramo são escassos. Cabeleireiros dificilmente sabem tratar dos cabelos afro sem sugerir um relaxamento ou alisamento, como se controlar os fios e o volume fosse a única saída. Ana Karolina Lombardi tem 21 anos e é assistente de departamento pessoal. Quando era pequena, ela orava e fazia jejum no café da manhã pedindo para que o cabelo nascesse mais liso no dia seguinte. “Eu só fui entender o que significa racismo após a minha transição capilar. Fui fazer uma entrevista em uma grande empresa de Bauru, e na primeira fase eu ainda estava de mega hair, fui elogiada e passei facilmente para a segunda fase. Na segunda fase eu já havia tirado o mega hair e estava de tranças, o choque estampado na cara da entrevistadora ao me ver foi impossível de disfarçar. Mesmo eu sendo a mais qualificada com cursos e experiência exigida para a área, não fui selecionada”, narra Ana. O racismo é um dos mais perversos preconceitos, justamente porque anula a beleza e a naturalidade das características negras, submetidas a processos de “branqueamento”. Ele é diário, velado ou exposto, mas para Gabriela, o ato

de assumir os crespos é uma maneira de lutar contra essa violência. “É ir de encontro consigo mesmo, é se redescobrir como pessoa. Se assuma, se ame, se goste, se tenha de volta! Ser negra é ter poder!”, enfatiza. E ela tem toda a razão.

Arquivo Pessoal

“Eu nunca cheguei a conhecer meu cabelo. O que eu passei quando assumi meu crespo – noanopassado–foium auto conhecimento”

A força que emana das águas de Oxum Ana Beatriz Ferreira

Mulheres negras que constroem sua identidade dentro do candomblé relatam suas experiências espirituais e políticas

D

eusa das águas doces, Oxum é senhora do amor e da fecundidade. Iemanjá, por sua vez, é celebrada com rosas ao mar. Iansã é orixá dos ventos e tempestades. Em sua condição sagrada, as três divindades são inspirações espirituais para afro-brasileiras que buscam construir sua identidade em um meio social arraigado de intolerâncias. De acordo com o Censo Demográfico do IBGE realizado em 2010, há mais de 588 mil fiéis do candomblé e da umbanda no Brasil. Estigmatizados pelas origens africanas, todavia, associações como a Fundação Cultural Palmares, pertencente ao Ministério da Cultura e defensora das tradições dos afro-brasileiros, estimam que haja muitos mais frequentadores de terreiros que preferem a omissão ao racismo e ao preconceito de culto. Frequentadoras, principalmente, as quais também assumem a liderança e orientam os fiéis.

Em iniciação, Nailah Veleci, graduanda de Ciências Políticas na UnB e integrante do movimento feminista, é abiã. Ou seja, está no primeiro grau hierárquico da casa que frequenta. De família candomblé, a jovem foi batizada na Igreja Católica pelos pais para ter opção religiosa. Mais tarde, porém, escolheu sua fé, como relata. “Eu parei de frequentar a igreja quando tinha uns 12 anos porque não me sentia à vontade, a paz que o candomblé me trazia a igreja nunca conseguiu chegar perto.” Apesar dos preconceitos enfrentados, consciente de sua condição de mulher e negra, ao ser iniciada no candomblé, Nailah assegura “Eu aprendi na minha religião que eu sou dona do meu corpo, que a mulher negra é incrivelmente linda, que minha mãe Oxum tem o poder de seduzir qualquer um com sua inteligência e beleza.”

No candomblé, a figura que coordena os rituais e a casa é de um babalorixá, pai-de-santo, ou de uma ialorixá, mãe-de-santo. A ela cabe também receber os santos e jogar os búzios. Patrícia Alves Matos, professora, é ialorixá da casa Ile Axé Iya Mi Agba, de São Paulo, desde 2002. Sobre a experiência, comenta. “Eu tinha 25 anos e para assumir uma cadeira, uma casa, há todo um aprendizado.” Como filha de Oxum, dedica-se à preservação e à valorização da energia feminina. Em seu papel de líder espiritual, Patrícia destaca que há um longo processo de ressignificação, especialmente por ter entrado adulta neste universo. “Ser mulher, ser mulher negra e ser de candomblé já é um desafio na sociedade brasileira”, desabafa.

Instituto Moreira Salles

E

mpoderar, segundo o dicionário Michaelis, significa dar poder a alguém, ou a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços de consciência social. Foi apenas no ano de 2013 que o número de pessoas autodeclaradas negras e pardas alcançou 53%, ou seja, mais da metade da população brasileira, segundo o IBGE. Para a assistente de arte Gabriela Costa, o ato de empoderar-se atravessa vários temas, mas o principal deles é reconhecer-se negra, aceitando seus traços, trejeitos e cabelos. A questão acaba tangenciando diversos indicadores preocupantes para a população negra, em especial as mulheres. São elas as maiores vítimas de agressão e as mais vulneráveis à pobreza, segundo o IPEA. Sete em cada 10 casas que recebem o bolsa-família são chefiadas por negras e negros, e dois terços das casas nas comunidades possuem esse recorte de raça. Para além da miséria, outra violência se faz constante no dia a dia dessas mulheres: a simbólica, racista, que determina que o padrão de beleza aceitável é branco e europeu, de traços finos e cabelos lisos.

pg. 05


Ilustração:Aimee Herman

Especial Sangue pelo sangue Além dos desconfortos gerados pela menstruação, o sangue menstrual ganha novas utilidades

A

pesar de todos os incômodos gerados pela menstruação e pela tensão pré-menstrual, o número de mulheres que preferem adotar uma relação mais saudável com seu ciclo têm crescido. É o caso da terapeuta holística Raquel Frota, de 36 anos, que relata que há um ano tem uma relação de constante gratidão para com a sua menstruação. Ela atribui a isso o fato de não ter mais cólicas nem outros sintomas da TPM. “Sou do sagrado feminino, então sou daquelas que oferecem o sangue para a terra, aduba plantas, faz rituais com sangue, faço altar menstrual, uso colar, etc”.

de facilitar no recolhimento do sangue também é mais barato. N. possui um trabalho de curso em desenvolvimento no qual pretende usar como base seu próprio sangue. Ela relata que a relação com seu ciclo começou a mudar depois que ela começou a se questionar sobre como os comerciais de absorventes íntimos retratavam o ciclo menstrual. “Nunca vi nenhum comercial de absorvente usar a imagem do sangue no próprio produto. É como se fosse algo impuro ou nojento”, e completa que “a partir desse momento vi que não deveria sentir vergonha ou nojo de algo que é da nossa natureza”.

Para ela, manter uma relação mais saudável com a menstruação faz também com que cada mulher tenha a oportunidade de se conhecer melhor. Raquel usa coletor menstrual ao invés de absorventes, já que ele facilita no recolhimento do sangue. Ela explica que a menstruação é uma das pautas mais importantes dentro do Sagrado Feminino, que além de ser uma filosofia antiga é também um estilo de vida. Ela se identifica como bruxa, e explica que para elas o sangue possui uma energia muito forte: “fui lendo, me informando, entendendo que meu sangue não é sujo, que ele é uma parte do meu poder feminino”.

A estudante relata que a relação com seu ciclo mudou muito desde que ela passou a enxergá-lo dessa maneira. N. acredita que o empoderamento com relação ao ciclo menstrual começa quando há a percepção de que não é preciso escondê-lo ou sentir-se suja em função dele, uma vez que isso é condicionado pela visão midiática, que impõe problemas em cima do ciclo menstrual sem possuir de fato um fundamento sobre isso. “À partir do momento que nós nos sentirmos seguras em relação a isso e discutirmos mais sobre, será possivel fazer com que mais mulheres se empoderem e cada vez mais cedo consigam enxergar a ideia transfigurada do nosso ciclo sob uma sociedade patriarcal”.

Bianca landi

N.M, 20 anos, estudante do curso de Artes da Unesp de Bauru, também está investindo em um coletor menstrual, que além

Absorventes: Na Alemanha, surge o primeiro absorvente descartável, o Hartmanns, uma bandagem vendida em caixa com seis unidades. Anos depois, o produto chega à Inglaterra e aos Estados Unidos

1854

1930

1890

Inventores americanos registram as primeiras patentes de um cinto com tecidos absorventes laváveis, para substituir as antigas toalhinhas usadas até então

O Modess, da Johnson & Johnson, é o primeiro absorvente descartável a chegar ao Brasil. O produto, que era importado de fábricas nos Estados Unidos, só começou a ser industrializado aqui em 194 pg. 06


Bianca landi

Muito além das gotas de sangue na calcinha, a menstruação acarreta mudanças físicas e emocionais. Como lidar com elas?

Tá, menstruei. E agora? Com a menstruação, vem a TPM, subestimada por muitos ao ser equiparada a um simples desequilíbrio emocional. Essa tensão que precede a vinda da menstruação, no entanto, é causada pela mudança na produção de hormônios e acarreta uma série de sintomas físicos e psíquicos. “Assim que termina a menstruação,

se inicia a produção de estrogênio, que tem seu pico ao redor do 14º dia do ciclo, fase que ocorre a ovulação. A partir daí começa a cair e a aumentar a produção de progesterona. Por volta do 26º, 28º dia do ciclo menstrual, os dois hormônios começam a cair” explica Fernanda. “Durante a menstruação, não há nem estrogênio nem progesterona. A queda gradativa do estrogênio provoca os sintomas típicos da TPM. Quando ele volta a aumentar, os sinais e sintomas da TPM começam a melhorar”. Entre os principais sintomas físicos estão o aumento do peso, acne, dores de cabeça, inchaço nas mamas, dores osteomusculares e distensão gasosa. Já a vontade de chorar, sonolência, irritabilidade, ansiedade, insônia, cansaço, fome em excesso ou falta de apetite se destacam entre os sintomas psíquicos. Se autoconhecer, segundo Fernanda, é o melhor caminho para conseguir controlar os sintomas da TPM. É importante saber a duração e o intervalo dos ciclos menstruais, conhecer os sintomas e saber quando eles começam a aparecer, e também o que parece desencadeá-los. Fernanda também explica que “como ela (a TPM) está associada à ovulação, muitas mulheres podem se beneficiar do uso de alguns tipos de pílula anticoncepcional”. Em casos mais graves, no entanto, podem ser necessárias medicações mais específicas, como os antidepressivos, por exemplo. Já no que diz respeito à alimentação, alguns alimentos podem ajudar a aliviar os sintomas da TPM, enquanto outros tendem a piorá-los. Kássia indica alimentos ricos em fibras e vitamina B6, pois auxiliam na produção de serotonina, ajudando a diminuir as mudanças de humor. O magnésio, aliado ao cálcio, ajuda a diminuir as dores das cólicas, e os ômegas 3 e 6 aliviam a tristeza e a irritabilidade. Já alimentos ricos em gorduras saturadas, sódio e cafeína devem ser evitados. Atividades físicas frequentes também ajudam a proporcionar maior bem-estar à mulher, segundo Fernanda. Caminhar ao ar livre, andar de bicicleta, nadar e fazer algum esporte são algumas das atividades indicadas pela endocrinologista.

Rachel Boynton

C

om a menarca, somos obrigadas a nos acostumar com as mudanças do nosso corpo mesmo sem entender muito bem como elas acontecem e o que significam. Alimentação, hormônios, hábitos cotidianos... o ciclo menstrual é muito mais do que apenas sangue na calcinha. Já parou para reparar que a cada geração a menarca, que é o primeiro ciclo menstrual, vem mais cedo para as meninas? Segundo a endocrinologista Fernanda Bolfi, isso se deve muitas vezes as crianças estarem cada vez mais obesas. Ela explica que as células adiposas servem de combustível para a fabricação do hormônio GnRH, responsável pela liberação das gonadotropinas. Além disso, há também o aumento de exposição a substâncias químicas encontradas no ambiente, que alteram os estrogênios. Segundo Fernanda, são chamadas de “disruptores” endócrinos, e ela cita alguns: diclorodifeniltricloetano (DDT), utilizado em pesticidas agrícolas; dioxinas, produzidas em processos industriais de manufatura e transformação; bifenis policlorinados (PCBs), encontrados em plásticos comumente usados em produtos para torná-los difíceis de incendiar; bisfenol A (BPA), usado para fazer plásticos carbonados e resinas epóxi, utilizados na fabricação de uma variedade de produtos de uso doméstico. Kássia Lobato, nutricionista do hospital Santa Marta, em Brasília, alega que a alimentação das crianças e adolescentes está mais rica em gorduras saturadas e conservantes, e mais pobre em vitaminas e minerais. Isso acaba realmente levando à obesidade ou ao sobrepeso, e crianças com esse quadro, segundo Kássia, “crescem mais acentuadamente e podem ter a maturação sexual mais precoce que crianças com o peso adequado para a idade”.

No Brasil é lançado o O.B., o primeiro absorvente interno no país. O nome vem de ohne binde, expressão alemã que significa algo como “sem toalha”

1933

1987

1974

O médico americano Earle Haas coloca à venda o Tampax, o pioneiro absorvente interno com aplicador.

Surgido na década de 30, idealizado por Leona Chalmers, foi somente nos anos 80 que os coletores passaram a ser fabricados nos EUA. Nos últimos anos o coletor vem sendo cada vez mais utilizado por mulheres de todo o mundo, como uma alternativa aos absorventes internos e externos. pg. 07

Imagem: Prue Stent

Da menarca em diante: o que nos espera?


Ensaio Thamires Motta e Lia Vasconcelos

Sororidadevemdolatimsororis,que significa “irmã”. E pra nós, traduz que laçosentremulheressãoosalicerces que nos fazem muito mais fortes.

“Esses sorrisos são a prova de que a gente pode ser feliz mesmo em meio a tanto machismo. E o sorriso delas me dá muito mais força pra continuar” pg. 08


“Não há nada mais forte do que um sorriso diante de tanto preconceito” Lia Vasconcelos

sororidade pg. 11


Elis ESPECIAL

Menstruação

Todo mês, toda mulher, todas nós. O que precisamos saber sobre menstruação? Representatividade: Mulher

na mídia e o

Machismo

Cultura: O

melhor das mulheres


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