cinema Novo
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Cinema Novo inaugurou uma perspectiva crítica em relação ao cinema nacional até então produzido nos anos 50. Seus filmes inauguravam o que se chamava de “aventura de criação” e buscavam o equilíbrio entre o “cinema de autor” e a preocupação política em nome da formação de uma “consciência nacional”. Diante da influencia do Neo-realismo italiano, da Nouvelle Vague francesa e do desenvolvimentismo de JK, o movimento tem no cineasta baiano Glauber Rocha seu grande nome. Formulador teórico e visionário da estética cinemanovista, cujo lema era “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, Glauber dirigiu filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), que os colocaram na galeria dos maiores cineastas contemporâneos. O Cinema Novo criticava radicalmente a realidade política e cultural do país durante o regime militar e Terra em Transe foi uma referência fundamental para o movimento termo pop art refere-se a uma forma de arte que utilitropicalista, tendo inclusive deterza produtos do universo da propaganda como temas das minado um novo impulso criativo obras. Em oposição ao expressionismo abstrato, os artistas da em Caetano Veloso. pop art apropriavam elementos da televisão, dos quadrinhos, do cinema e da publicidade. Tinham como objetivo a crítica ao consumismo e para isso faziam uso das imagens familiares cotidiana. Tiras de história em quadrinhos, anúncios, embalagens, cenas de TV – tudo era apropriado e transformado em obras de arte. Influenciados pela pop art, os tropicalistas vestiam roupas pouco discretas e uma produção visual bastante colorida e impactante. O rótulo da antiarte que a arte pop carregou casava com o interesse dos tropicalistas de subverter os padrões de produção artística e de criticar a arte erudita e a separação desta da cultura popular. Assimilar o pop era fundamental para a estética tropicalista. Também a crítica ao consumismo pode ser observada nas letras de algumas canções, o que não impediu que a tropicália dominasse a cena também na propaganda onde foram criados jingles para comerciais da TV.
Pop Art
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roposta por Oswald de Andrade, a antropofagia consiste na produção de uma arte nacional com a assimilação da cultura estrangeira transplantada para o Brasil. Baseado nas vanguardas européias, questionando as bases culturais consolidadas, a proposta era deglutir o elemento estrangeiro e devolver um produto novo. Isso fizeram os tropicalistas ao assimilar tudo, do samba à música pop. O compositor Jorge Mautner afirma que é próprio da cultura brasileira a assimilação do elemento de fora. Para ele, essa tradição começou antes do descobrimento, em Portugal, quando o país acolhe os Cavaleiros Templários, perseguidos na Europa, e com eles é recebida toda uma cultura pagã. Depois vieram os índios, os negros, os imigrantes... Mautner afirma que Oswald e os modernistas apenas resgataram um processo que ocorria há séculos. undado em 1958, o Teatro Oficina apontou um Como entusiasta da cultura nacional, Mautner acrenovo caminho para o teatro diante do luxo do dita que essa “brasileiríssima” é a única forma de venTBC (Teatro Brasileiro de Comédias) e do engacer a intolerância do mundo contemporâneo. “Ou o jado Teatro de Arena (capitaneado por Augusto Boal). mundo se brasilifica ou vira nazista” proclama o A polêmica direção de José Celso Martinez Corrêa privimúsico que conviveu com os tropicalistas nos legia a inovação, o experimentalismo, a investigação e a bustempos do exílio. Em seu trabalho, Mautner ca de novas linguagens para o teatro. sempre valoriza a estética antropófaga Em 1967, foi responsável por uma das primeiras manifestana cultura: “De Jesus de Nazaré aos ções catalisadoras da Tropicália com a encenação de O Rei da tambores do Candomblé”. Vela, de Oswald de Andrade, cujo texto radical sobre as maze-
eatro
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Oficina
las do capitalismo tupiniquim e o vanguardismo da peça atualizaram a proposta de uma arte antropofágica, produzindo no público um misto de fascínio e revolta ao inaugurar o chamado “teatro de agressão”. O teatro do Oficina estava em sintonia com o novo panorama artístico cultural, como a música de Caetano Veloso e o cinema de Glauber Rocha. A encenação de O Rei da Vela e a instalação de Tropicália, do artista plástico Hélio Oiticica, foram as matrizes que identificaram a curta e fulminante era tropicalista.
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MúsICA BrasILeira
m 1959, João Gilberto lançava seu primeiro LP, Chega de Saudade, em que introduzia uma nova linguagem musical, criando uma batida que mistura o ritmo da percussão com as harmonias do samba, aliados a um jeito de cantar solto, quase falado. A originalidade da nova técnica assemelhava-se ao tom intimista do cool jazz, e foi responsável por influenciar as novas composições extremamente. Talvez o baiano João Gilberto tenha sido o maior responsavel por impulsionar criativamente os tropicalistas, mas a inspiração veio de todos os lados. Com o brega de Vicente Celestino, o Sgt. Pepper`s dos Beatles, a guitarra de Hendrix, o cantar de Janes Joplin, o iê-iê-iê dos meninos da Jovem Guarda, as canções de protesto, a música serial de John Cage até os clássicos de Chopin. Fazendo com tudo isso uma associação entre o erudito e o popular, o rural e o urbano, e assim por diante. Retomando estilos já esquecidos, misturando-os com aqueles da atualidade e incorporando novos elementos, a Tropicália fez uma mistura com “cara de Brasil”. Todo esse caldeirão rítmico se deu com a fusão do violão e a guitarra elétrica (rechaçada pelos críticos como anti-nacionalismo), do baião e do maracatu com o rock e da soma de todos os estilos, fazendo da nova antropofagia uma ode à formação do novo jeito de pensar, fazer e sentir a música brasileira.
POESIA
Concreta
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concretismo foi um movimento literário vanguardista baseado na disposição espacial das palavras e utilizando uma linguagem não-discursiva. A poesia concreta rompeu com as estrutura básica da poesia: o verso. E sem ele, acabavam-se as rimas e as métricas. A idéia era explorar os aspectos sonoros e as potencialidades visuais das palavras. Seus principais autores, os poetas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari eram também críticos musicais de arte que contribuíram com a Tropicália. Dentro dos dois movimentos é possível identificar o ideal de subversão dos padrões de arte e cuidado especial com a forma, mas elementos específicos do concretismo no tropicalismo são mais discretos, sendo que o principal exemplo é a canção Batmacumba de Gilberto Gil. Mas o mais importante para Tropicália e Poesia Concreta não é a ocorrência de uma na outra, mas a capacidade de as duas produzirem coisas diferentes, alinhadas com o mesmo ideal, que dialogadas aprimoraram e especializaram ambas estéticas.
Artes Plásticas N
o terreno das artes plásticas, as formas bidimensionais e as esculturas não eram mais suficientes para um grupo de vanguardistas da arte moderna brasileira. Em 1966, é organizado o “Propostas 66”, manifesto que pretende examinar a situação da arte no país e suas possibilidades futuras. Nos debates, o artista plástico Hélio Oiticica propõe que seja criada uma nova objetividade para as experiências das vanguardas brasileiras, onde a confluência de diferentes tendências e a ausência de uma “unidade de pensamento” fizessem parte desse novo conceito. Segundo Hélio, ela seria um estado de múltiplas tendências e fusões artísticas - e não um movimento dogmático esteticista que define padrões. Assim, o grupo formado por Ligia Clark, Ligia Pape, Helio Oiticica e outros vanguardistas executaram essa proposta em 1967 apresentando a exposição Nova Objetividade Brasileira. Na exposição, a obra “Tropicália” de Oiticica dá o tom. A montagem consistia num ambiente composto de areia, brita espalhada pelo chão, araras e vasos com plantas formando uma espécie de labirinto que percorria a tenda principal, às escuras. No fim do labirinto havia uma TV ligada que rompia de vez com os padrões artísticos tradicionais, provocando uma fusão entre a sensibilidade e a racionalidade da vida e da arte. Os suportes tradicionais - como o quadro - são desconstruídos em busca de uma relação integral entre espectador e obra
Receita da Geléia Geral
Edição de Arte Rafael Pedroso Reportagem Isaac Pipano Leonardo Schimmelpfeng Rafael Pedroso Rodrigo Azevedo
A anarquia tropicalista
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tropicália, suas diferentes manifestações -- música, artes plásticas, literatura, cinema e teatro -- foi um movimento que, paradoxalmente, rompeu com a noção de “movimento”. Dito de outra maneira, as manifestações tropicalistas não obedeceram os moldes centralizadores dos movimentos de vanguarda; pelo contrário, as atitudes anárquicas dos tropicalistas sinalizavam mais para uma carnavalização da idéia de movimento, à maneira anárquica de Oswald de Andrade. Ao contrário também dos movimentos de vanguarda que apontavam para o futuro da arte, a tropicália optou por uma poética do aqui e agora. Assim, os tropicalistas não ignoraram os fenômenos do seu tempo, como os repertórios culturais locais e estrangeiros e as informações da cultura de massa, incorporando-os ao seu projeto estético. Para realizar esse projeto incorporativo, a tropicália rompeu com a MPB e suas premissas nacional-populares. Poética do aqui e agora. A relação com a bossa nova foi mais ambígua, pois, ao mes-
mo tempo em que os tropicalistas retomaram e homenagearam a tradição de João Gilberto, adotaram o mesmo procedimento para com a tradição musical rejeitada por ele, como os samba-canções e os boleros dramáticos. E ao contrário da estética em preto e branco da bossa nova, a tropicália projetou um Brasil em cores. Afinados com Oswald de Andrade, procuraram representar o Brasil como uma colagem de elementos díspares — locais e globalizados, bárbaros e sofisticados, comedidos e excessivos. Adotaram também procedimentos intertextuais, ao dialogarem com a literatura, as artes plásticas, o cinema e o teatro. Valorizaram o corpo e as performances, ao contrário da apresentação bossa-novista que recorria ao banquinho e violão. (Santuza Cambraia Naves é mestre em Antropologia Social pela UFRJ (RJ) e doutora em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução (RJ). Atualmente é professora da PUC (RJ) e coordenadora do Núcleo de Estudos Musicais da Universidade Cândido Mendes.)
Síntese de movimentos teatrais de todo mundo, tendo base um texto do mais radical modernista de todos os seus autores, Oswald de Andrade, “O Rei da Vela” foi um choque à comodidade burguesa e sua apatia geral. A leitura da peça pelo Teatro Oficina ganhou uma forma mortal, violenta, repleta de ícones, símbolos e impactos. Numa celebração no maior estilo pictórico num misto de sexo, circo e sonho causaram no público uma reação de repulsa e êxtase. Zé Celso Martinez Corrêa – mentor da obra e, no limite, de toda transgressão teatral – inaugura com a peça um “teatro de agressão”, nevrálgico e visceral, que vai de encontro à passibilidade Um dos espectadores. verdadeiro vespeiro de opiniões; a crítica e o público repudiaram e acolheram “Terra em Transe”, um dos mais controvertidos filmes de toda a obra do baiano Glauber Rocha. “Mandei plantar folhas de Montagem narrativa fragmensonhos no jardim do Solar” é tada, desenquadramentos prouma referência quase explícita à positais, cortes abruptos e uma plantação de maconha no Solar espécie de desordem alicerçam da Fossa, um cortiço transfora questão focal do filme: uma mado em hotel onde conviviam crítica agressiva e contundente juntos os integrantes da bossa sobre a política nacional através nova, da jovem guarda e os fudo país-alegoria Eldorado. turos tropicalistas. Em meio a toda discussão De certa forma, o disco Tropolítica, Glauber Rocha utiliza a picália simboliza tudo isso, mas película para propor uma consapenas se pensarmos de maneira trução revolucionária no modo generalista demais. Na verdade, de fazer cinema subvertendo to“Tropicália, Panis et Circensis“ dos os paradigmas. Decerto que é um disco grandioso, que vai Terra em Transe é ruptura. do latim à guitarra elétrica em menos de 14 faixas. Sincretiza tudo o que o movimento sugeria: aproveitar, engolir, transformar, subverter e regurgitar. Novo. Caetano, Gil, Tom Zé, Nara Leão e os Mutantes sob a orquestração de Rogério Duprat comandam o elogio à cultura nacional e perturbam sua ordem para sempre. Organizado pelo jornalista especializado em biografias, Carlos Calado (que também escreveu “A Divina Comédia dos Mutantes”), “Tropicália: A História de uma Revoluçõ Musical” narra a epopéia dos baianos concentrando a narrativa em Caetano e Gil. Traçando um paralelo entre a evolução do movimento e de todos os seus realizadores – de maior ou menor importância – Carlos apresenta todos os pormenores a partir de um trabalho de pesquisas, entrevistas e, até mesmo, um pouquinho de ficção. Vale, ainda, pelo belo arquivo fotográfico e por detalhes escondidos nos bastidores.
“A mais sintética definição da Tropicália é a de Caetano: ‘A Tropicália é o avesso da Bossa Nova’.” (Carlos Calado, jornalista e escritor)
“Tropicália são os sonhos do Deus da Chuva e da Morte e a relidade do Kaos com K” (O artista multimídia Jorge Mautner)
“É um caldeirão de cultura fervilhante. Tudo cai ali e se transforma. É um mix de tudo.” (George Vidal, maestro)
“A tropicália foi um movimento que, paradoxalmente, rompeu com a noção de movimento.” (Santuza Cambraia Naves, pesquisadora) “A tropicália foi uma renovação da música brasileira, uma adequação à música e às artes que vinham sendo praticadas fora do país.” (Fábio Trummer, vocalista da banda Eddie) “O Tropicalismo é ao mesmo tempo a salvação e uma muleta. Engessou qualquer tipo de possibilidade de se criar música não-universal no país.” (Daniel Faria, estudante) “Hoje em dia é uma referência, como qualquer outro movimento ou estilo do passado.” (John, guitarrista da banda Pato Fu)
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Ediçâo Isaac Pipano
lectual e absolutamente despercebido pela massa) suas tão honrosas conquistas. Mas é considerar que, distanciando-nos do momento de sua concepção compreendo-o passadas as turbulências, a Tropicália transgrediu e impôs novos paradigmas, trouxe a universalidade ao local e deixou profundas marcas na maneira como a cultura era vista por todos aqueles que a produziam. Em contraponto, é de extrema importância encarar que o país vivia um momento de mudanças conceituais e que todas as artes convergiam para um mesmo sentido, o da transformação. Sem os baianos, é claro, a Tropicália talvez fosse só mais uma das tantas vanguardas que ilustram a transição daquelas décadas fadada ao esquecimento. E, assim sendo, não estaríamos escrevendo essas páginas.
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tropicalia.uol.com.br
Tropicália 40 anos
essa noção de encadeamento das circunstâncias é o que constrói o tropicalismo. E hoje, passados quarenta anos de sua realização, tudo adquire uma aura mágica de exuberância, magnitude e inatingibilidade. Coroar Caetano Veloso e Gilberto Gil por serem mentores do projeto tropicalista tornou-se um senso-comum da crítica, que parece simplesmente reproduzir sempre as mesmas informações, sem nunca se questionar sobre o verdadeiro alcance popular do nosso tropicalismo e de todas as suas transformações. Não é relegar ao mais importante movimento artístico popular brasileiro (já que o maior movimento vanguardista, que é a Semana de 22, apresentou graus de receptividade ainda menores, sendo totalmente rechaçado pela maior parte da elite inte-
Isaac Pipano
tardes no Danúbio que o incentivou; assim como também foram responsáveis os Mutantes por aproximarem a juventude urbana paulista aos artistas intelectuais e a batuta de Duprat na concepção musical, movida pelo dodecafonismo de John Cage. Ou como foi importante que a velha música popular brasileira se mantivesse num estado de inércia, inicialmente abalado pelo iê-iê-iê do Rei, do Tremendão e da Ternurinha e pela importação da guitarra elétrica – o mal-estar da nossa civilização – para só depois reagir tentando calcar ainda mais profundamente seus velhos hábitos e valores. Ou como foram também importantíssimos Carmen Miranda, Chacrinha, Torquato Neto, Capinan e o pequeno príncipe Ronnie Von. Enfim, tudo converge para o que já estamos cansados de saber. Porém,
Isaac Pipano
(ou já pós), nasce nosso grande trunfo cultural. E não são poucas as pelejas enfrentadas pela Tropicália, ainda hoje, passados 40 anos, onde os efeitos de magnitude póstumos, adquirem um caráter soberbo de excelência. Mas, de fato, o que foi esse tal de tropicalismo? Que Caetano e Gil chegaram da Bahia com idéias semelhantes, motivados pela exigência de subversão dos ares brasileiros ares que também fizeram o Cinema Novo reagir ao colonialismo, que motivaram os irmãos Campos e Décio Pignatari a quebrar o verso, a Zé Celso transgredir a moral desmascarando a nudez ou, ainda, as artes plásticas sugerirem que espectador e obra devem manter uma relação de integralidade – estamos cansados de ouvir. Como também sabemos que foi o Sgt. Peppers, ouvido incansavelmente por Gil nas
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ualquer análise crítica de uma obra artística merece, segundo pressupostos estabelecidos por Benjamin, ser tratada sob o afastamento total da relação temporal-espacial estabelecida entre o espectador e o produto. Dessa forma (e buscando resultados mais eficientes na explanação dos argumentos sobre a obra), o contexto ideológico no qual se obtém o produto é apontado como fator mais substancial do que a própria acepção do público. Contudo, todos esses conceitos relacionam-se e misturam-se ao tentar estabelecer padrões sobre os movimentos artísticos – que são o extremo de qualquer obra. No contexto sessentista de efervecência cultural, no pré-auge do declarado amor aos movimentos sociais e às lutas entre reacionários e modernistas
O que é a tropicália pra você?
acervo pessoal
Traz uma lista dos pecados da vedete
A Nova Objetividade veio não como um movimento ou uma tendência estética, mas como uma “chegada” (como dizia Hélio Oiticica) em que a falta de unidade é a própria vanguarda. Para seus autores, esse novo conceito de expor arte insere o espectador na obra, gerando sensações táteis, visuais, olfativas e sonoras. O conceito de exposição da obra perdia-se em detrimento ao novo método de aproximar ao ambiente as obras eliminando, assim, toda sua estrutura básica. A construção de Tropicália de Oiticica inaugura a relação entre ambiente e arte e batiza o movimento.
acervo pessoal
EDITORIAL
A Velha Nova Objetividade Em comemoração aos 40 anos da Tropicália, o MAM do Rio recebe exposição.
Caranguejo Antropofágico
Leonardo Shimmelpfeng
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Com recurso tipicamente tropicalista, mangueboys modernizam sons locais através de influências universais
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Divulgação
Dinho Leme, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias depois do anúncio da volta.
Oswald. Para o escritor Carlos Calado, autor do livro “Tropicália: a História de uma revolução musical”, o movimento Mangue-Beat foi tão vanguardista quanto foi a Tropicália. Outras bandas atuais de Recife - como o Mombojó e o Eddie - ainda mantêm a perspectiva de modernizar o som local a partir de suas influências mais cercanas. Fábio Trummer, vocalista da banda Eddie, rejeita a influência diretamente. Para ele, “o Mangue-beat se orien-
tou pelo punk, pelo reggae e pelo hip-hop para formatar o manifesto caranguejo com cérebro, nenhum movimento ligado ao tropicalismo”. Entretanto, Trummer considera que o recurso tropicalista de fundir o local ao universal foi fundamental para formar o movimento do mangue e criar a identidade do movimento. Para ele, “os mangueboys não são herdeiros da tropicália, mas tem nos tropicalistas a base ideológica musical que determinou o som do Mangue-Beat”.
A magia segue pela reluzente galáxia Rodrigo Azevedo
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ormado em 1966 por Arnaldo Baptista (baixo, teclado, vocais), Rita Lee (vocais) e Sérgio Dias (guitarra, baixo, vocais), os Mutantes foram “uma das melhores bandas de rock de todos os tempos, inclusive em âmbito internacional”, segundo Carlos Calado, autor do livro A Divina Comédia dos Mutantes. A banda se tornou referência quando o assunto é psicodelia e experimentalismo e foi inovadora no uso de feedback, distorção e tantos outros truques de estúdio. Após 28 anos do último show, os fãs celebraram a volta ocorrida no centro cultural londrino Barbican, onde também acontecia uma exposição
dedicada à Tropicália (ver texto ao lado). Rita Lee, a primeira a sair da banda em 1973, não participou do retorno. Os irmãos Arnaldo e Sérgio, aliados ao baterista Dinho Leme, ganharam o reforço de Zélia Duncan, que assumiu os vocais. A participação dos Mutantes no movimento tropicalista nasceu com o empurrão do maestro Rogério Duprat quando produzia o arranjo de “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. Logo no início do contato com Gil, Duprat percebeu que “os meninos” eram o que ele precisava para a canção. Embora os Mutantes ainda fossem extremamente jovens – igualmente inconseqüentes - e não estivessem interessa-
dos de fato em revolucionar cultura nenhuma – tornaramse, de imediato, o expoente rock´n roll no tropicalismo, contribuindo com diversas gravações e promovendo parcerias, sempre com diversão (e muito LSD). Em pouco tempo o trio paulista já dominava a essência do espetáculo pop, tanto que emplacou até jingle de campanha dos postos Shell. Em 2007, Zélia e Arnaldo anunciaram saída (após um tão breve retorno) para se dedicarem a projetos solos. Porém, uma nova formação assumirá a banda e lançará um disco com canções inéditas sob a batuta de Sérgio Dias, algumas delas em parceria com Tom Zé.
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te do MAM, pois em 67 a bateria foi obrigada a se retirar da Mostra por seu samba ser interpretado como bagunça pela direção do museu. Também foram reservados espaços para a música, teatro, cinema, arquitetura (com fotos de obras da arquiteta Lina Bo Bardi) e lembranças sobre o momento político do país, além de produções contemporâneas que dialogam diretamente com as dos participantes do movimento, os penetráveis e os parangolés.
Fotos da Exposição “Tropicália: A revolução na Cultura Brasileira”: Hélio Oiticica, em frente à Whitechapel Gallery em- Londres, 1969; “Cubo da Nova Objetividade Brasileira”, obra de Hans Haudenschild, 1967; “Diálogo Óculos” de Lygia Clark, 1968; e estampas da Rhodia dos anos 60.
Vale a pena salientar que embora o movimento não tenha prosseguido como algo linear, de fácil percepção na música contemporânea, tornase de extrema conveniência, vez ou outra, resgatá-lo. Mesmo assim, a Tropicália deixou o recado de que a música não deve seguir fórmulas prontas ou tendências já criadas, e sim primar por novas experimentações, incorporações e misturas para que possa haver renovações e aprendizados com o que já se fez e o com o que se pode fazer. Não é só botar no microondas.
Rafael Pedroso
“
Ninguém é profeta fora de sua terra” escreveu Caetano em 1969. De fato, não foi fácil mostrar para o mundo a música que era feita no Brasil, como ainda hoje não é. A mistura de sons de Caetano, Gil e seus amigos era muitas vezes vista como falta de originalidade. Associada à bossa nova no início, vista como uma vertente latina do jazz, posteriormente, a música tropicalista foi tomada como vanguarda do rock internacional. Essas visões eram capazes de valorizar a música, mas não davam conta da relação com a cultura e a política do nosso país e nem do diálogo com as artes de Oiticica, Glauber e Zé Celso. Em 1989, surge Beleza Tropical, álbum de músicas lançado pela Luaka Bop do músico
Tribalistas: alusão mal-sucedida???
David Byrne da banda Talking Heads. O disco reuniu músicas de Jorge Bem, Gil e Caetano, misturados com ritmos africanos. Na mesma época surge a world music, que, convenhamos, pouco contribuiu para a música porque reuniu estilos diferentes em torno de um mesmo nome (e serviu muito mais como um estilo para a crítica catalogar). De David Byrne é também o álbum Rei Momo, lançado em 1990. O disco vai além do tropicalismo e da MPB, acompanhando os trabalhos do músico sobre culturas afro-latinas. E é Byrne também que, nessa mesma época, “descobre” Tom Zé e lança o álbum Massive Hits do brasileiro. E é Tom Zé que inicia uma melhor compreensão da música brasileira lá fora, mais ampla e complexa, pois a partir do
álbum Com Defeito de Fabricação, músicos como Sean Lennon e The High Llamas gravam remixes que resultam no álbum Post Modern Platos. Um pouco mais longe e alguns anos mais tarde, o cantor Beck lança, em 1998, o álbum Mutations - músicas tocadas ao violão são misturadas a elementos psicodélicos. Mutations é um trabalho de Beck que deveria ser lançado por uma gravadora independente, porém saiu pela Geffen, o que chegou até a dar processo do cantor contra a gravadora. Mas interessa que o nome Mutantions é referência aos Mutantes e a faixa Tropicalia é uma homenagem do cantor ao movimento. Mas é verdade que a crítica brasileira não recebeu bem a homenagem e o próprio Beck admitiu não ser um conhecedor da música tropicalista.
Postmodern Platos, 2000, de Tom Zé com remixes do álbum Com Defeito de Fabricação.
O cantor Beck em show no State Theater em Detroit em setembro de 2005.
www.attambur.com/Noticias/20041t/lenine.htm
entre os artistas sobre suas percepções e propostas musicais imbuídos de um desejo de fazer algo novo, diferente do que produzem costumeiramente. Talvez a desculpa para o não êxito da coisa seja que de fato não estavam interessados em promover nada. Mas só talvez. O fato é que hoje, artistas como Lenine, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Zeca Baleiro e tantos outros, tentam resgatar elementos e tendências que o tropicalismo iniciou, cada um à sua maneira, a troco de nada.
A Tropicalia ganha espaço em terras longe do pé grande de Abaporu.
cafetera.etsit.upv.es/.../tag/musica/page/3/
tropicália e por possuir certa aura antropofágica (com suas roupas e batidas exóticas), ou por Arnaldo Antunes ser poeta concretista e simpatizante do movimento tropicalista, e ainda, por Marisa exibir certas aberturas a inovações musicais e ser sempre cultuada pela crítica, criou-se certo mito de que os três tinham o objetivo de inaugurar uma nova perspectiva musical, baseada na Tropicália dos baianos. Embora a pretensão tenha sido relevada, o resultado soou descompromissado, muito mais como um diálogo
Vez em quando longe daqui
Forest Casey
Reincidência da Tropicália é recorrente na MPB e sua influência vira ferramente para músicos
m 2001, Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown iniciaram um projeto para gravar algo que fosse diferente do que cada um estava acostumado. No mesmo ano - entre reuniões, troca de e-mails e telefonemas - o projeto “Tribalistas” – homônimo ao álbum – sai do estúdio e o disco é lançado já em 2002. Talvez por Brown já ter gravado com Caetano e Gil um disco em homenagem à
em “Máscaras Sensoriais” ou provar as essências de “Roda dos Prazeres”, que traz inúmeros conta-gotas de misturas com cores, texturas e gostos diferentes espalhados em potes pelo chão. E a Tropicália de Hélio Oiticica (1937-1980) também está lá pra comemorar seu aniversário. Outro ponto chave foi a presença da bateria da Mangueira, que aguçou ainda mais os sentidos dos visitantes. O convite funcionou como um pedido de desculpas por par-
Mesmo com as saídas de Arnaldo e Duncan, Sérgio Dias garante que os mutantes não param
É somente requentar e comer Leonardo Shimmelpfeng e Isaac Pipano
Londres, Nova York e Chicago e seguiu para o MAM-Rio por motivos um tanto óbvios. Assim, em 7 de agosto de 2007, o MAM foi tomado pelo sentimento de nostalgia de quem viveu e acompanhou o movimento e por olhares curiosos da nova geração, que só o conhecia através de livros, artigos e matérias jornalísticas. As obras remontadas ainda surpreendem, como quando se põe os óculos e luvas que Lígia Clark propôs para testar novos usos aos cinco sentidos
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os anos 90, a obra dos tropicalistas serviu de estímulo para uma série de cantores-compositores da moderna MPB. O pernambucano Chico Science, por exemplo, criou com a sua banda Nação Zumbi uma das expressões mais fortes do panorama musical do período empregando um recurso tipicamente tropicalista: o diálogo de ritmos regionais e universais.
A idéia era valorizar a música regional, assim como os tropicalistas fizeram com o baião, esnobado pela bossa nova. O estilo classificado de Mangue-beat valorizava ritmos pernambucanos como maracatu, ciranda e embolada fundindo-os ao rock, o rap, e o funk. O Mangue-beat sintetizava o que seria o muito nacional com o que seria o muito internacional e adquiriu caráter de movimento, com manifesto influenciado pela proposta de antropofagia cultural de
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Rodrigo Azevedo
á uma controvérsia em definir se o marco inicial da Tropicália foi a apresentação de Alegria, Alegria e Domingo no Parque, a gravação do disco Panis et Circensis em 68 ou, ainda, as instalações de Oiticica no Museu da Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM Rio -, que comemorou os 40 anos do movimento com a apresentação da exposição “Tropicália: A revolução na Cultura Brasileira”. A mostra esteve em Berlin,
O cantor Lenine dialoga com tropicalismo e regionalismo.
entrevista Isaac Pipano Rafael Pedroso
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Fui enterrado vivo duas vezes
pequeno município de Irará nasceu na capitania de Todos os Santos. As bandeiras formaram a terra movidas, algumas pela caça ao ouro, outras pescando pessoas. Dizem os índios que Irará é “nascido da luz do dia”, do tabuleiro, da caatinga, da farinha e da castanha de caju. Hoje, seus pouco mais de 26 mil habitantes ainda andam de um lado para outro quando faz calor demais, sentam-se nos degraus das casas e, às vezes, visitam o site da cidade pra ver que dia acontece mesmo a Feira Regional da Mandioca. Aos 23 anos, Antonio José Santana Martins, que ainda nem era o irreverente (adjetivo alcunha) Tom Zé, vivia sob o sol de Irará numa timidez convertida, abalada. “Veja bem, um jovem de 16, 17, 18 anos querendo ser alguma coisa na vida, tímido pra caralho tendo uma família que era um problema filha da puta, o pai muito bondoso, mas aquilo era uma loucura; uma mãe muito bondosa, mas aquilo era uma loucura. O lado de minha família que tava todo na universidade começou a achar que a gente era uns “porquinho”. Você que é criança não vê a coisa, mas tem intuição e sabe que você tá sendo recusado. Quando você chega aos 15 anos, não arranja uma namorada. Tem vergonha de sair, não tem amigos, não tem o caralho. Inventa que música deve ser sua salvação.”. Como resposta a toda a angústia e desprezo, Tom Zé, 72, apegouse a música. Não era bonito pra ser ator, não tinha voz para cantar e inibia-se demais. Assim, teve de conceber uma forma alternativa para se expressar. “[...] nesse dia eu desisti de fazer música e comecei a fazer uma coisa que era a coisa
chamada jornalismo cantado. Eu transformava em música os personagens da cidade de forma que, quando eu chegasse aqui na frente, pra você se ligar em mim, eu falava de Bauru, da Universidade, coisas que eu soubesse daqui e você ficava afim de ouvir. Você nem desconfiava que eu não era bom músico. Muitas vezes uma pessoa ouvia, mas depois dizia: “Isso não é música”. Depois disso, fui dando mais um certo trato a essa não-música, fazendo melhor essa não-música, cada dia mais não-música”. Talvez tenha sido a não-música que o manteve no ostracismo por longa data, muito embora produzisse discos e permanecesse como referência subversiva, – muito mais por insistir na reprodução de sua proposta inicial e por encontrar barreiras na viabilidade comercial de suas intenções – enquanto que toda a leva baiana quis adaptar-se ao novo panorama da música brasileira. Foi só em 1990 que David Byrne, ex-líder do Talking Heads, recuperou o baiano (ver página 7). “Eu tô aqui por causa de David Byrne, que se fosse o Brasil e os tropicalistas eu tava enterrado. Na divisão do espólio do tropicalismo, eu fui enterrado vivo, em 1971.” E é com certo ressentimento que o baiano comenta essa experiência com os tropicalistas negando veementemente esse rótulo. “Gil e Caetano podem atender ao lado contemplativo ao fazer canções que batem fundo na alma. Meu trabalho é jogar um anzol no cognitivo. Então, se eu fui tropicalista, eu não sei. Fiquei debaixo do telhado do tropicalismo durante o começo. Quando eles acabaram, até me expulsaram porque fo-
ram pra Inglaterra. Quan- Tom Zé tocaria suas múdo eles foram pra Inglater- sicas em qualquer lugar ra [Caetano e Gil], que eu da Europa ou nos Estados não fui, todo mundo tinha Unidos. Enquanto no Braa porra duma inveja. Todo sil permaneceria restrito a mundo que tinha algum um público pequeno. dinheiro no bolso tinha Como no anfiteatro uma vaga no tropicalismo. Guilherme Ferraz, conheAí as pessoas começaram cido pelos estudantes da a falar mal de mim”. Unesp de Bauru como O prestígio depositado Guilhermão, relativamenem Caetano e Gil pela im- te lotado na abertura do prensa e as disencontro na“Então, se eu fui cional dos putas pessoais de ego acaba- tropicalista, eu não “XX Anos da ram por ofus- sei. Fiquei debaixo Luta Por Uma car totalmente do telhado do tro- S o c i e d a d e sua tentativa de picalismo durante Sem Manicôprogresso na o começo. Quando mios”, onde carreira e qual- eles acabaram, até me Tom Zé faria expulsaram” quer relevância a abertura no cenário nacional. num show de graça. A “Eu vou contar como platéia assistiu ao comeaconteceu pra você ver ço do show um tanto discomo é a linguagem des- persa, desatenta e, quem se povo: Gil chegou, eu sabe, desinteressada. Patava sentado no meio, ele recia até que todos ali, bateu no meu peito assim: onde que se supunha estar ‘Quê que tem de errado os mais interessados nas com você?’. Parecia que desconstruções musicais ele ia me dar uma surra. Aí de Tom Zé, estavam dianeu comecei a desconfiar te de um Zé qualquer. que aquilo era como serNa altura da terceira mão de Pe. Vieira pra São música, o baiano, basBenedito que começava tante contrariado, pediu ladrão, sujo, vagabundo. que os músicos parassem Isso que chama reducio e bronqueou com todo ad absurdo, de começar mundo: “Vocês não quecomo que xingando. rem ouvir? Não acham Ele me disse assim: que é burrice vir aqui e ‘Essas suas músicas ficar conversando?” O novas que você cantou duvidoso happening, que aí são muito melhor do no começo pareceu brinque você fez até hoje e cadeira, foi o impulso nepode cantar em qual- cessário para que as atenquer lugar da Europa, ções se voltassem a ele dos Estados Unidos, do num domínio tão seguro, Inferno! Quê que é que contrariando a época em tem de errado você?’. que teve de lidar com acuComo se Gil previsse, sações e um sentimento
de inveja que supunham tê-lo tomado por inteiro. “Anos depois [de Gil e Caetano irem a Londres], Caetano voltou. Estava na casa de Augusto de Campos, o poeta concreto, e Augusto disse: “O show da Gal com o Macalé foi uma porcaria”. E Caetano disse: “Foi mesmo? Orra!” (com voz de cínico). Aí eu virei e disse pra Caetano “Ô Caetano, eu não te contei numa carta que aquele show foi ruim?”. Ele me chegou e disse: “Ah, pensei que fosse inveja”. Eles mesmos começaram a acreditar que eu tava invejando. Aí quando eles voltaram já tinha uma certa coisa de me evitar. Eu era delicadamente evitado.” Talvez tenha sido o carisma que contornou a platéia [e a música] e a fez cantarolar, dançar e bater palmas. Talvez tenham sido os incessantes esforços em manter a platéia atenta, contorcendo-se, rebolando, quase arrancando a camisa, em performances viscerais, revezando vocais baixi-nhos com surtos de euforia. Tom Zé passou o show todo tentando mostrar quem ele era, ensinando suas letras, pedindo pra que cantassem juntos, gritassem, fruíssem, fa-zendo todos prestarem a devida atenção nele mesmo. Tentando negar um passado em que “era delicadamente evitado”. Mas, hoje em dia, Irará tem site na internet.
Fotos Rafael Pedroso
“Eu não entrei nem saí, nem virei, nem mexi. Eu fazia assim por causa dos meus problemas. Continuei fazendo assim durante o tropicalismo. O tropicalismo acabou e eu só sei fazer isso. Não é que eu seja coerente. É que eu só sei fazer isso” Tom Zé
Tom Zé