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A arquitetura do transporte multimodal –desafios jurídicos constantes -Pedro Carvalho Esteves

A arquitetura do transporte multimodal – desafios jurídicos constantes

É com imensa honra que inicio esta minha colaboração com a revista APAT. Durante algumas edições da revista APAT anteriormente conjunta com a ODO e a AGEPOR, escrevi sobre temas de Direito Marítimo, com uma abordagem pragmática e multidisciplinar, porque o Direito Marítimo é muito mais do que simplesmente isso – é uma panóplia de institutos provenientes de outros ramos de Direito, que o tornam único, fascinante e desafiante. Todavia, a escrever agora para o universo de leitores APAT, terei que centrar as minhas dissertações no Direito Marítimo enquanto ramo de Direito ligado apenas a um dos meios de transporte possíveis, e regulador das relações jurídicas inerentes, e na forma como este ramo de Direito toca e interage com as demais. E o desafio começa precisamente na multimodalidade. Arrisco dizer que quase se dispensa aflorar a multimodalidade enquanto utilização dos mais variados meios de transporte possíveis para fazer movimentar determinada mercadoria do ponto A ao ponto B no mais curto espaço de tempo e ao melhor preço, com a segurança que se impõe. Há que ter em consideração que a evolução da ciência e da tecnologia fez aumentar a panóplia de recursos de transporte, havendo aqueles que consideraremos convencionais – rodoviário, ferroviário, marítimo e aéreo – e os não-convencionais, como sejam os oleodutos, os gasodutos, o transporte aeroespacial. Estes meios não-convencionais, cada vez mais presentes e cada vez mais dedicados, lançam desafios jurídicos diferentes, nomeadamente na definição do Direito aplicável (sobre isto não nos iremos debruçar, salvo se houver, de facto, interesse em explorar estes conteúdos). O pressuposto em logística, sempre se dirá, não é a simples venda de fretes, mas sim a venda dos melhores tempos de trânsito ao melhor preço possível. Claro que, nos dias de hoje, os Agentes Transitários já vendem muito mais para além disso: logística geral e armazenagem, consolidação e desconsolidação de cargas, preparação de volumes e contentores, procedimentos e formalidades de exportação, aconselhamento sobre processos de exportação e importação, seguros de carga, melhor INCOTERMS® aplicável, cartas de crédito, melhores destinos para determinadas cargas. Enfim, enquanto especialistas em Comércio Internacional e afirmando-se como os “Arquitetos do Transporte”, são estes profissionais os mais titulados para conhecer dos riscos e perigos da aventura da internacionalização. Acontece que os Agentes Transitários não são, de per si, transportadores (com exceção dos transitários operadores de NVOCC – mas, isto, são outras questões bem mais complexas) mas, sim, intermediários. Que não acrescentam custos aos seus clientes, mas acrescentam valor às operações. Daí a sua importância, essencialidade. Vejamos o seguinte exemplo: se pretender colocar uma carga não-perigosa, de meio metro cúbico, em Montevideu, posso optar pelo melhor preço – ou seja, o preço mais barato - com um tempo de trânsito de 40 dias. Assim, a minha mercadoria chegará a Montevideu por um (quase) irrisório preço, mas demorará imenso tempo, o que pode não ser compatível com a urgência ou simples rapidez da entrega, fazendo, naturalmente, aumentar os riscos de perda, extravio, perecimento. Neste caso, por exemplo, o navio com frete mais barato sai de Hamburgo, logo a carga terá que apanhar camião até França; lá, apanhará um comboio até Hamburgo; chegado ao porto, embarcará no navio que fará “n” escalas com baldeações sucessivas até que chegará ao porto de Santos. Aqui, a mercadoria será baldeada para um navio feeder que fará a cabotagem até Montevideu. Pelo

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Pedro Carvalho Esteves Advogado (maritimista) PMCE ADVOGADOS Pedro.carvalho.esteves@pmce.pt

O SEU DESAFIO A NOSSA SOLUÇÃO

... o estudo da responsabilidade dos sujeitos na cadeia logística multimodal impõe um estudo sério e coerente no sentido de atribuir confiança aos exportadores e importadores.

meio, apanhou a greve dos camionistas em Espanha, os “coletes amarelos” em França, a greve dos estivadores em Hamburgo, uma avaria do leme nas Canárias, uma retenção aduaneira em Santos… Irra, a mercadoria, além de enguiçada estava longe de chegar em tempo e, digamos, alguma segurança ao destino. Mas se eu pretender um tempo de trânsito de 48 horas, em que só tenho um operador logístico pelo meio, naturalmente optarei pela “carga aérea” – aqui, a mercadoria é despachada no aeroporto, chegará rápido ao destino e custará 20 ou 30 vezes mais do que se fosse despachada por camião, comboio e navio (todos juntos!). No primeiro exemplo, começamos por ter o Agente Transitário, regularmente constituído e autorizado pelo IMT a prestar a atividade especializada, titulada por Alvará, sujeito a regras estritas de atividade e funcionamento garantidas por seguro de responsabilidade profissional. Seguidamente, o camião, cujo transporte é regido pela convenção CMR, com regras muito especificas sobre direito de retenção e valores indemnizatórios em caso de perda da mercadoria. Seguidamente, o transporte ferroviário (cujas matérias jurídicas são das menos exploradas pelos juristas) mas regidas pela Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários (COTIF) e Regras Uniformes CIV e CIM, que constituem os apêndices I e II da Convenção –que, reitero, são pouco exploradas por Juristas. E no final, as muito bem estudadas regras relativas ao transporte de mercadorias usando navios. No segundo caso, só temos as regras relativas ao transporte aéreo de mercadorias por via aérea, o que delimita as normas legais aplicáveis e mais rapidamente identifica os responsáveis. Ambos os exemplos, ambos a pecar ou por excesso ou por defeito, são bem ilustrativos dos desafios que se colocam do ponto de vista jurídico – contratos sucessivos, em rede, e cadeias imensas de responsabilidades entre operadores que, naturalmente, sempre tentarão descartar as suas responsabilidades empurrando para o próximo. Daí que o estudo da responsabilidade dos sujeitos na cadeia logística multimodal impõe um estudo sério e coerente no sentido de atribuir confiança aos exportadores e importadores. E este estudo, que iremos fazer com calma, ao longo dos próximos artigos, será o caminho para a aclaração das dificuldades e novos desafios que a multimodalidade logística nos traz. Abrir-se-ão consciências? Talvez! – mas, sobretudo, começar-se-á a pensar mais em responsabilidades do que simplesmente em tempos. Sequencialmente, iremos ver a Lei da Atividade Transitária, o transporte marítimo, sobretudo o afretamento e o conhecimento de embarque, o CMR, a Convenção sobre transporte multimodal e a partilha das responsabilidades e o interesse do INCOTERMS® para a definição da responsabilidade pelos riscos e perigos em cada momento do transporte. O contrato de transporte marítimo por mar é aquele em que uma das partes se obriga, em relação à outra, a transportar determinada mercadoria de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária denominada de ‘frete’. Ora, desta definição legal, podemos desde logo retirar que a obrigação do transportador é uma obrigação de resultado: ele obriga-se a transportar a mercadoria de um porto para o outro. Por outro lado, que a retribuição é um elemento caracterizador do contrato de transporte marítimo de mercadorias. Sem retribuição não é aplicável o regime deste contrato, oque equivale a dizer que sem retribuição, não há transporte marítimo de mercadorias; haverá, sim, um contrato de prestação de serviços, de natureza análoga àquele. Como negócio jurídico que é, do contrato de transporte marítimo de mercadorias emergem obrigações para as partes: para aquele que encarrega outrem de transportar a mercadoria de um porto para o outro (vulgarmente designado por carregador) emerge, desde logo, a obrigação do pagamento do frete. Mas não só. Existe, desde logo, a obrigação de entregar a mercadoria ao transportador, bem como a obrigação de declaração dessa mesma mercadoria, as suas características, peso e volume; já o transportador tem a obrigação de, entregue e declarada a mercadoria, a fazer transportar do porto de embarque para o porto de destino e entregá-la ao seu destinatário. Esta entrega não é feita de qualquer forma, pois a mercadoria deve, em princípio, ser entregue ao destinatário nas mesmas e exactas condições que o carregador a entregou ao transportador. Temos, pois, que existem duas figuras fulcrais no contrato de transporte marítimo de mercadorias: o carregador e o transportador. Porém, facilmente verificamos que existe, desde logo, uma outra figura: odestinatário da mercadoria. A pergunta que se impõe é: será o destinatário da mercadoria parte do contrato de transporte marítimo de mercadorias?

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