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“Estamos perante uma reforma do SNS por parte do poder político que não é conversada com os parceiros do setor”

Carlos Cortes é o novo bastonário da Ordem dos Médicos (OM), eleito em fevereiro de 2023. Chega com força, ideias objetivas e com muita vontade de Mudar e Modernizar a Ordem algo que, afirma, não tem acontecido.

Simpático, acessível e profundo conhecedor do setor da Saúde, Carlos Cortes é jovem e determinado e quer deixar as suas marcas, enquanto bastonário e responsável da classe médica.

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Nesta entrevista à revista O Hospital, o novo bastonário diz que neste mandato vai lutar pela qualidade dos cuidados de saúde; pela ética e deontologia médica e vai igualmente exigir condições de trabalho adequadas para os médicos.

Não tem nada contra as ULS que se estão a definir, na nova estrutura de saúde do país, mas quer que a Ordem dos Médicos seja ouvida pelos responsáveis e decisores, algo que não está a acontecer. E deixa recados. Deixa também muitas ideias sobre o caminho a seguir, valorizando sempre o papel dos médicos, nos hospitais e nos CSP.

Foi eleito há relativamente pouco tempo para Bastonário da OM, mas já conhece bem a instituição devido a ter sido presidente da Secção Regional do Centro da OM. O seu trabalho vai ser feito tendo por base a continuidade ou tenciona mudar a Ordem? Se sim, em que domínios?

São duas situações bastante diferentes. Ao presidente de uma Secção Regional é exigido um trabalho muito mais local e de apoio ao Bastonário. A função do

Bastonário, por outro lado, assenta numa perspetiva nacional, sem nunca esquecer a regional. Neste âmbito, o Bastonário representa toda a OM e faz a interface com todos os organismos, nomeadamente com a tutela. São, portanto, funções e intervenções distintas. Enquanto Bastonário, a minha prioridade é potenciar uma vertente mais técnica da OM, demonstrando que esta é a instituição mais qualificada da área da saúde para apresentar soluções a quem tem de as concretizar.

Outra prioridade é a modernização. A OM não tem acompanhado a evolução da sociedade e vai ter de o fazer, ou seja, vai ter de se reorganizar internamente, bem como adotar e explorar as novas tecnologias de informação e comunicação, para atingir essa modernização. Os modelos de organização da Ordem também não podem ser esquecidos. Isto vai-nos permitir uma maior proximidade com os associados e também mostrar à opinião pública o nosso papel predominantemente técnico. É importante explicar às pessoas qual o contributo que damos, todos os dias, para a saúde da população, das mais diversas formas.

Quais as palavras de ordem que vão ser obrigatórias no seu mandato?

Em primeiro lugar, a qualidade dos cuidados de saúde. Em segundo lugar, a ética e a deontologia médica e, em terceiro lugar, condições de trabalho adequadas para os médicos. São essas as ideias centrais que quero promover e defender no meu mandato.

A saúde, no País, está em mudanças profundas na organização do próprio SNS e mesmo do setor privado. Por aquilo que tem visto, como encara as mudanças anunciadas pelo diretor executivo do SNS e pelo ministro da saúde?

Estamos perante uma reforma do SNS por parte do poder político que não é conversada com os parceiros do setor. Estão a ser operadas transformações que ainda não percebemos muito bem se são profundas ou não, nomeadamente em termos de organização do SNS. Falo em concreto das ULS. Naturalmente que encaramos estas mudanças com uma grande expectativa. Por um lado, uma expectativa positiva, porque temos a noção de que é preciso mudar, fazer alguma coisa. E esta mudança é algo que já era necessário há muito tempo. Por outro, temos uma expectativa menos boa, pela falta de envolvimento dos profissionais e da OM em todas estas questões. Somos um organismo técnico-científico que pode ajudar nestas mudanças, por isso fico surpreendido com decisões, como a da reorganização da urgência metropolitana de Lisboa, que são tomadas sem ter em consideração o contributo da OM. Note que a OM tem um papel técnico a desempenhar que lhe foi atribuído pelo próprio Estado, o qual acaba por não aproveitar todo este o know-how disponível. Por exemplo, na questão das áreas assistenciais, do ponto de vista do acesso e da qualidade dos cuidados de saúde e até mesmo da transferência dos doentes de um hospital para o outro. Estamos a falar de uma multiplicidade de assuntos que seria importante a OM ter analisado antes de ser tomada uma decisão. Mas também implicações que, infelizmente, a DGS não acautelou, como as implicações para a formação dos médicos. Neste momento, a OM vai ter de analisar o que está a ser feito para se pronunciar. Isto porque, se por um lado está a ser operacionalizada uma mudança, o que é positivo, por outro não conhecemos verdadeiramente o fundamento dessa mudança. Importa, por isso, perceber o objetivo final, ou seja, aquilo que efetivamente vai ser concretizado.

O país vai contar com novas ULS como já disse, estando previsto que o país fique, no total, com 27 ULS. Já percebeu como vão funcionar e pensa que esta nova organização e gestão vai trazer melhorias para a população e para os profissionais?

Eu não tenho nada contra as ULS. À partida, do ponto

Grande Entrevista

vista teórico, favorecem a integração entre os vários níveis de cuidados, isto é, entre Saúde Pública, Medicina Geral e Familiar (MGF) e cuidados hospitalares. Na prática, a verdade é que não têm funcionado de forma adequada. As ULS de Matosinhos e do Alto Minho são os 2 melhores exemplos de uma boa integração. No entanto, todas as outras ULS incluem as áreas geográficas e hospitais que mais dificuldade têm tido em termos de resposta às necessidades da população. Estou-me a referir às ULS do Nordeste, da Guarda, de Castelo Branco, do Litoral Alentejano, entre outras. O feedback que tenho recebido é que essa integração ou é quase inexistente ou está muito dificultada. Neste sentido, mais do que modelos de organização, temos de perceber as várias realidades do país e temos de apostar nas lideranças, nas boas lideranças, nas lideranças médicas. Aliás, uma das propostas que a OM fez à Direção Executiva do SNS foi a de incluir nos Conselhos de Administração das ULS uma direção clínica hospitalar, à qual se devem somar a direção clínica de MGF e uma direção clínica de Saúde Pública. Integrar estas 3 áreas é absolutamente fundamental para as ULS conseguirem trabalhar em vertentes vitais como a literacia, a promoção da saúde e a prevenção da doença, além do diagnóstico, seguimento e tratamento dos doentes. O que eu pretendo, e não colocando reservas em nenhum modelo, é que seja acautelada a participação dos profissionais de saúde na construção das ULS. Aquilo que tem chegado à OM é que os cuidados de saúde primários, na sua vertente de Saúde Pública, não têm sido integrados de uma forma adequada, e, sem essas valências, as ULS não podem funcionar plenamente desde o início. Se um processo de reforma como este arranca mal, será muito difícil endireitá-lo.

Então que reforma dos CSP deve ser feita tendo por base que parâmetros e indicadores?

Não, temos de fazer uma nova reforma dos CSP porque já há uma reforma em curso, que se concretizou nas USF, em distintos modelos. Aquilo em que estamos mais focados é nas USF de modelo A e B. O que se pede ao Ministério da Saúde é que não se esqueça desta importante reforma, de concretizá-la e estendê-la a todo o país. É importante dar condições aos médicos para poderem criar essas USF, para oferecerem todas as condições aos utentes. Nos locais onde não existem USF, não podemos desvalorizar nem desqualificar as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), porque também prestam um serviço muito importante. Não podemos privilegiar um modelo em relação ao outro. Temos de permitir aos médicos a escolha do modelo de trabalho que preferem, desde que esse modelo corresponda às necessidades da população. Temos de dar capacidade para as USF e as UCSP darem uma resposta adequada ao país. Não podemos ter Médicos de Família a trabalharem em condições diferentes só porque escolheram um modelo de organização diferente.

Falemos então dos médicos: chega a bastonário e encontra uma classe profissional desmotivada, mal paga, em "fuga" para o setor privado ou para o estrangeiro e sem orientações. Como tenciona reagir e interagir com os seus colegas e com a tutela de forma a ajudar a mudar este paradigma?

Acredito que os médicos, fundamentalmente, querem trabalhar no SNS, mas para isso precisam de ter condições para poderem tratar os seus doentes. São essas condições que falham demasiadas vezes, quer nos centros de saúde quer nos hospitais. A desorganização dos processos e a falta de autonomia das instituições são outros aspetos que precisam de ser revistos, tal como a falta de liderança médica, que aqui já referi. A liderança médica na coordenação das equipas é absolutamente fundamental. É preciso uma valorização da profissão médica em variadíssimas especialidades. Apesar de ser uma questão sindical, a matéria salarial é também muito importante e, enquanto Bastonário da OM, estou naturalmente preocupado com a remuneração médica, pois esta tem de corresponder à diferenciação e ao papel de elevadíssima responsabilidade que os médicos têm nos hospitais e centros de saúde. O SNS tem de ser atrativo e competitivo e tem de dar sinais de que quer captar e fixar os médicos. Para isso, precisa de dar condições e mostrar que efetivamente quer esses profissionais. O Ministério da Saúde já deu um ou outro sinal, por exemplo com a celeridade dos processos de contratação de médicos depois destes terminarem o seu período de formação especializada. Essa celeridade tem de ser ainda aprofundada. Tem de ser dito logo desde o início do ano que vagas é que vão existir e onde, para os médicos poderem organizar a sua vida. É preciso criar condições de atratividade para os médicos se poderem fixar em zonas altamente carenciadas, não só no interior, mas também nas grandes cidades onde faltam recursos humanos em várias especialidades. Esses planos para fixar os especialistas ainda não estão concretizados e aguardamos que o Ministério da Saúde o faça com a máxima celeridade.

Como vai organizar a ligação dos médicos com os restantes profissionais de saúde?

Essa organização já está estabelecida, uma vez que as equipas interdisciplinares criadas funcionam com base numa liderança médica. A responsabilidade da coordenação dessas equipas é dos médicos e cada um dos elementos que as compõem tem um papel muito bem definido. O enfermeiro, o farmacêutico, o assistente operacional, o assistente técnico, os técnicos, todos têm uma função a desempenhar muito bem delineada. Cabe ao médico saber organizar e motivar estas equipas, obviamente respeitando as funções de cada um. Essa é uma responsabilidade acrescida do médico, de forma a dar a melhor resposta possível em termos de saúde às pessoas, porque o objetivo é esse: dar acesso e oferecer os melhores cuidados de saúde, respeitando sempre os parâmetros éticos e deontológicos da profissão médica e aplicando as leges artis.

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