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Secção Jurídica

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Ensino

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STAY AWAY, STAYAWAY COVID (?)

por Filomena Girão e Magda Rodrigues, FAF Advogados

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Os tempos incertos em que vivemos têm justifi cado a adoção de medidas, também elas, por vezes, incertas, exigentes e cujas consequências nem sempre se assomam de fácil diálogo com o normal. A app STAYAWAY COVID resultou de uma iniciativa levada a cabo no âmbito do programa INCoDe.2030 com o objectivo de desenvolver uma solução de rastreio digital de contactos para prevenir e mitigar a propagação da COVID-19. Este sistema destina-se a ser mais uma ferramenta ao serviço de uma estratégia global de resposta à pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2. A principal funcionalidade da aplicação é alertar o seu utilizador de exposições, consideradas de elevado risco, a outros utilizadores da aplicação a quem tenha sido, entretanto, diagnosticada a COVID-19. Em rigor, mais do que de uma solução de rastreio, trata-se de um sistema de notifi cação da exposição individual a factores de risco de contágio. De uma forma sucinta e muito simplifi cada, o sistema STAYAWAY COVID depende de uma aplicação móvel instalada nos telemóveis que, simultaneamente, emite identifi cadores únicos e que, tal como um radar, recolhe os identifi cadores únicos emitidos pelos telemóveis próximos. Assim, na posse dos identifi cadores recebidos, é simples para a aplicação verifi car se aquele telemóvel no qual está instalada esteve próximo de um determinado telemóvel. Desta forma, permite-se à aplicação de cada utilizador, no caso de lhe ser fornecido um identifi cador gerado pelo telemóvel de alguém doente, avaliar se terá estado em contacto com esse telemóvel e se este contacto representa ou não risco de contágio. Para que esta abordagem possa confi gurar uma solução efi caz e segura, é necessário, desde logo, que: i) os riscos de identifi cação dos utilizadores dos telemóveis sejam minimizados; que a associação de identifi cadores a diagnósticos positivos da doença seja legitimada por uma autoridade de saúde; ii) que a avaliação sobre um contacto de risco seja o mais precisa possível, de acordo com as directrizes da Organização Mundial de Saúde; iii) que todos os dados manipulados respeitem as leis europeias e nacionais em matéria de protecção de dados; e, iv) que a utilização do sistema seja o menos intrusiva e o mais cómoda possível para os seus utilizadores. Foi, de resto, esse o fi to do Decreto-Lei n.º 52/2020, de 11 de Agosto, que veio regulamentar a utilização dessa aplicação, explicitando, igualmente, a intervenção do mé-

dico no sistema, e definindo a DGS como entidade responsável pelo tratamento dos dados. Mais, tratou o referido diploma de restringir a utilização dos dados recolhidos apenas à finalidade de notificação dos utilizadores da exposição individual a factores de contágio por SARS-CoV-2, decorrente de contacto com utilizador da aplicação que posteriormente venha a ser confirmado com COVID-19. Esta aplicação começou por ser de utilização voluntária. Porém, o agravamento da situação epidemiológica, eventualmente associado à fraca utilização do sistema por doentes COVID, levou a que o Governo aquilatasse a possibilidade de impor essa utilização – o que, naturalmente, suscitou um acérrimo debate na opinião pública que, nos últimos dias se vem ocupando da (in)constitucionalidade dessa imposição com vincada paixão, dividindo-se os ânimos entre aqueles que defendem a imposição a contento de um bem maior – a saúde pública – e, outros, defendendo a manutenção do carácter voluntário a bem da manutenção da liberdade e privacidade individuais. As posições assim definidas são redutoras de um diálogo que não é simples e que remontam a tempos imemoriais e que entronca na (necessidade) de intervenção do Estado na vida das pessoas. Não é, por evidentes motivos de espaço, esse o diálogo que podemos propugnar hoje aos nossos leitores. Na verdade, o principal fito deste excurso é sensibilizar para a dificuldade do tema no actual contexto, de grande alarme social. Efectivamente, há quem entenda que obrigar ao uso da aplicação não é inconstitucional e responde, justamente, às exigências da situação de emergência em que vivemos, assim justificando a restrição de alguns direitos e da liberdade. Recorde-se que, em idêntico exercício, não há mais de uma década, o Tribunal Constitucional (TC) deu o seu beneplácito ao “corte” dos salários da função pública, justamente estribado na situação de emergência – desta vez financeira – vivida no país nos anos da crise, posto o que não seria inédita uma posição do TC que assentisse a esta medida, tendo por base razões de excepção. Por outro lado, a imposição da utilização da aplicação suscita inúmeras questões ao nível da protecção dos dados pessoais, sobre o qual já se debruçou a CNPD e que assinalou ao sistema deficiências de funcionamento. Porém, a mais flagrante falha da proposta parece ser, na verdade, a possibilidade de criação de uma Lei – geral, abstracta e coerciva – cujo cumprimento não é passível de ser sufragado e que, portanto, se esvaziaria em si mesmo: haja em linha de conta que não é possível, objectivamente, controlar quem tem e quem não tem a aplicação - o que redundaria numa lei que, na verdade, não o é e no consequente descrédito de um sistema que, tem, impreterivelmente, de ser credível – afinal, à mulher de César… As medidas de controlo da pandemia são, iminentemente, de natureza política, muitas vezes mais do que de jaez sanitária. Sem embargo, não podem esvaziar-se no fumo do momento político, sob pena de se tornarem medidas facilmente descredibilizadas pelos seus destinatários – todos nós! – o que, no actual contexto se assoma particularmente grave.

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