Ano II
No 12
Abril/2017
Informativo jurídico especializado
Carlos André Ordonio Ribeiro
ENTREVISTA
O senhor prestou diversos concursos públicos – Ministério Público, Magistratura e Concurso para o Extrajudicial. Como foi sua preparação para estas provas? Na verdade, muito já foi escrito e falado sobre como obter sucesso em provas ou concursos públicos, de modo que entendo que não há, especificamente, um segredo a respeito. O que vale mesmo é dedicação, horas de estudo de modo concentrado e longe de distrações. Isso é o que funcionou e funciona para mim. Vale, também, estudar de maneira inteligente, analisando os detalhes do edital, pesquisando as provas anteriores, pois as questões tendem a se repetir. Pesquisar, também, a especialidade dos integrantes da banca examinadora, sobretudo para as fases mais avançadas do certame. O avaliador pergunta aquilo que ele conhece com profundidade, sobre o qual, muitas vezes, escreveu artigos e/ou livros.
Pensando no auxílio ao novo registrador – recém aprovado no 10º Concurso das Serventias Extrajudiciais de São Paulo – qual é a mensagem ou os principais conselhos que o senhor daria? Todos ou quase todos os novos tabeliães e registradores assumem a serventia com um desejo de mudança, de deixar claro que uma nova fase se inicia no cartório, o que é até certo modo natural e desejável. Entretanto, a minha recomendação é muito simples: vá com calma, sobretudo para aqueles que nunca estiveram nessa situação. É importante, antes de mais nada, conhecer a prática do serviço e as rotinas internas do cartório. O novo delegado não precisa fazer uma verdadeira revolução para ganhar o respeito dos colaboradores e usuários do cartório. O ideal é se familiarizar com o serviço e, aos poucos, realizar as mudanças e melhorias que se mostrarem necessárias. E, para isso, nada melhor ARISP JUS 3
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que expor as ideias e ouvir os funcionários do cartório (sim, alguns são muito bons e amam o que fazem). Dando a eles a chance de opinar, o novo chefe tem, ao menos, dois ganhos: a) evita ter que voltar atrás em alguma alteração, por falta de experiência, visualizados todos os aspectos da situação; b) obtém o engajamento da equipe para que a mudança seja bem sucedida.
riquezas, onde o crédito fica mais farto e barato, dadas as garantias inerentes a esse sistema. Além disso, o RI atua, fortemente, na fiscalização do cumprimento de normas ambientais e urbanísticas, o que traz impacto direto no cotidiano da população. Isso é pouco conhecido e merece ser divulgado.
Qual é a importância do Registro de Imóveis? Além do aspecto jurídico afeto ao registro imobiliário, o que se aprende em qualquer manual (aquisição de direitos reais, publicidade, segurança jurídica etc), chama-me muito a atenção para outros que, normalmente, ficam em segundo plano. Um deles é o econômico, pois diversos estudos revelam que os países que dispõem de um sistema imobiliário registral bem estruturado com maior circulação de
Qual é a opinião do senhor sobre o modelo de usucapião extrajudicial idealizada pelo Novo Código de Processo Civil? A ideia é muito boa e soma-se às outras iniciativas que visam desafogar o Poder Judiciário nos casos em que não há, verdadeiramente, um litígio, como nas retificações e inventários extrajudiciais. No entanto, no caso da usucapião, o legislador, no meu entender, foi receoso quanto aos efeitos dessa novidade, pois prevê
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a anuência expressa dos proprietários ou titulares de outros direitos sobre o imóvel objeto do pedido e também dos confrontantes. Na prática, como pude constatar, essa exigência torna a utilização desse novo instituto bastante limitada. Acredito que, com o tempo, a tendência é se caminhar para a regra prevista para a retificação administrativa: se não houver impugnação no prazo legal, presume-se a concordância de quem poderia ser prejudicado. Respondo, quase diariamente, a pedidos de orientações de advogados e outros interessados sobre o assunto e todos, sem exceção, mostram-se desapontados quando são alertados para esse requisito legal. Quais são as primeiras impressões do senhor sobre a Medida Provisória n° 759/2016? A MP em questão é bastante extensa e complexa, misturando assuntos diversos, o que não é novidade para os operadores do direito no nosso país. Não há dúvida da importância do assunto, até porque o registro imobiliário será tão mais relevante quanto espelhar a realidade fática dos imóveis urbanos e rurais. O crescimento desordenado, infelizmente, predomina na maioria das grandes cidades brasileiras. Fechar os olhos a essa realidade e buscar um “mundo perfeito”, que só vai existir no papel, não é a melhor saída. Com a regularização dos imóveis, um incontável número de famílias terá maior suporte econômico e acesso ao crédito mais barato, possibilitando um círculo virtuoso que a todos beneficia. Nesse contexto, entendo que o governo foi audacioso, inclusive criando novos direitos reais, como o de laje. Resta saber quais alterações serão feitas pelos congressistas e como tudo irá funcionar na prática.
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Art. 1.510-A. O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. § 1º O direito real de laje somente se aplica quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos.
DIREITO DE SUPERFÍCIE E LAJE
Des. Francisco Eduardo Loureiro
Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
§ 2º O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário do imóvel original. § 3º Consideram-se unidades imobiliárias autônomas aquelas que possuam isolamento funcional e acesso independente, qualquer que seja o seu uso, devendo ser aberta matrícula própria para cada uma das referidas unidades. § 4º O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade. § 5º As unidades autônomas constituídas em matrícula própria poderão ser alienadas e gravadas livremente por seus titulares, não podendo o adquirente instituir sobrelevações sucessivas, observadas as posturas previstas em legislação local. § 6º A instituição do direito real de laje não implica atribuição de fração ideal de terreno ao beneficiário ou participação proporcional em áreas já edificadas. § 7º O disposto neste artigo não se aplica às edificações ou aos conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não, nos termos deste Código Civil e da legislação específica de condomínios. § 8º Os Municípios e o Distrito Federal poderão dispor sobre posturas edilícias e urbanísticas associadas ao direito real de laje.” (NR)
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A MP 759/2016, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, criou o novo direito real de laje, acrescentando o artigo 1.510-A ao Código Civil. A localização escolhida pelo legislador não foi feliz, pois inseriu a nova figura no capítulo dos direitos reais de garantia, com os quais não guarda a mais remota afinidade. Mais adequada seria a inserção de novo instituto no capítulo que traça as regras gerais do direito de propriedade. O que desejou criar o legislador foi uma nova modalidade proprietária, de modo que o novo artigo ficaria melhor situado após o condomínio edilício, com o qual, de resto, não se confunde. O direito real de laje é instituto sui generis, com requisitos e efeitos próprios, que não se confunde com o direito de superfície (art. 1.369 e seguintes do CC), e nem com a amplitude da propriedade plena (art. 1.228 CC). O legislador procurou regularizar e solucionar situação de fato que aflige milhares de famílias no país, em especial as de baixa renda: o proprietário de determinado imóvel aliena a terceiros o direito de construir sobre a laje de sua edificação, e de se tornar o adquirente dono da nova construção erigida, independente daquela original, que se encontra abaixo. Define-se o direito real de laje como nova modalidade de propriedade, na qual o titular adquirente torna-se proprietário de unidade autônoma consistente de construção erigida sobre acessão alheia, sem implicar situação de condomínio tradicional ou edilício. Não se trata, como veremos, de condomínio tradicional (arts. 1.314 e seguintes CC), nem de condomínio edilício (arts. 1.331 e seguintes CC), muito menos de direito de superfície temporário. O direito de laje fica a meio caminho entre a superfície e a propriedade plena. Tem o mérito de solucionar situação irregular que afeta a população de baixa renda, e os defeitos de imprecisão de redação e de conceitos, o que certamente dificultará – e muito – a tarefa da doutrina e dos tribunais.
Seria convenente que o artigo traçasse de modo mais claro e minucioso a natureza do direito de laje, os seus efeitos, as causas e as modalidades de sua constituição e de sua extinção. Um exame ligeiro do direito real de laje leva à enganosa equiparação ao direito real de superfície, na modalidade de sobrelevação (direito real de superfície sobre superfície, ou superfície em segundo grau), que não se encontra regulado no Código Civil. A doutrina, amparada em lição de Ricardo Pereira Lira, já anotava a existência informal do direito de laje, presente em comunidades da baixa renda, mediante o qual “moradores permitem que um terceiro construa sobre sua laje, ficando de posse exclusiva desse terceiro a moradia por ele construída” (Gustavo Tepedino e outros, Código Civil Interpretado, vol. III, Renovar, p. 754), optou o legislador, porém, por não regular o direito real de laje como modalidade do direito de superfície. As diferenças entre os dois institutos são marcantes, segundo a figura positivada pelo artigo 1.510-A do Código Civil. A definição analítica do direito de superfície, de Ricardo Pereira Lira, diz que é direito real sobre coisa alheia, autônomo, temporário, de fazer uma construção ou plantação sobre – e em certos casos sob – o solo alheio e delas ficar proprietário (“O direito de superfície no novo Código Civil”. In: Revista Forense, 2003, v. 364, p. 251). O direito real de laje é mais amplo, pois não é temporário, mas sim perene, ou ao menos persiste até que a construção pereça. Confere ao seu titular direito próximo ao da propriedade plena sobre a segunda construção, tanto assim que os §§ 3º. e 5º preveem o descerramento de matrícula própria para a unidade autônoma, o que não se admite no direito real de superfície. De outro lado, embora o titular do direito real de laje tenha a propriedade plena sobre a construção que ergueu sobre a acessão alheia, o § 6º dispõe que a instituição não implica atribuição de fração ideal de terreno ao beneficiário. Em outras palavras, se criou nova modalidade de propriedade limitada à construção, mas sem implicar situação de condomínio, quer tradicional, quer ARISP JUS 7
edilício, entre o proprietário do solo/acessão (concedente da laje) que se encontra abaixo. Não resta dúvida que o novo direito real de laje tem a função de regularizar situações de fato, voltado à população de baixa renda, que levantou construções sobre construções, com titularidades distintas. Não pode e não deve o instituto ser usado por empreendedores imobiliários como válvula de escape das rigorosas regras do condomínio edilício (art. 1.331 e seguintes) ou do negócio complexo de incorporação imobiliária (L. 4.591/64), muito menos do parcelamento do solo urbano (L. 6.766/79). O § 7º ressalva expressamente que a figura “não se aplica às edificações ou aos conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não, nos termos deste Código Civil e da legislação específica de condomínios”. A redação do preceito não é a melhor, mas quer dizer que situações de condomínio edilício, cujos requisitos estão arrolados no art. 1.331 CC, não podem ser substituídas pelo direito real de laje. Não há, portanto, direito do titular da laje sobre fração ideal de terreno onde se assentam as duas construções. O terreno pertence com exclusividade ao proprietário do primeiro pavimento e concedente do direito real de laje. Esse curioso arranjo criado pelo legislador pressupõe a inexistência de áreas comuns entre a primeira e a segunda construção. É por isso que o § 3º exige que as novas unidades imobiliárias autônomas possuam isolamento funcional e acesso independente da primeira construção. Está claro que se procurou evitar a custosa instituição de condomínio edilício, que exige cálculo da fração ideal sobre partes comuns. Indaga-se: e se houver áreas comuns às duas edificações, como, por exemplo, escadas ou corredores de acesso? Nessa hipótese, a situação não se enquadra como direito real de laje, nada impedindo, porém, que os moradores instituam ou o direito real de superfície (art. 1.369 e seguintes CC), ou o condomínio edilício (arts. 1.331 e seguintes CC), de acordo com a operação econômica que desejem realizar.
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Não se admite a criação de direito real da laje sobre laje, ou laje de segundo grau (impropriamente denominado de sobrelevação, termo destinado ao direito de superfície). O § 5º é expresso, em redação pouco clara, no sentido que não pode o adquirente “instituir sobrelevações sucessivas, observadas as posturas previstas em legislação local”. Como interpretar tal regra? A melhor interpretação é a da vedação do direito de laje em segundo grau. A observância das posturas municipais é requisito para a instituição do direito de laje em primeiro grau, vedada, em qualquer hipótese, a sua reprodução em segundo grau. A norma é cogente, razão pela qual não pode ser afastada pela vontade das partes. Os requisitos cumulativos para a instituição do direito real de laje são os seguintes: a) existência de construções sobrepostas, cujos direitos são de titularidades distintas; b) a inexistência de áreas comuns entre as duas construções, com acessos independentes entre si; c) aprovação das duas construções, em observância às normas administrativas; d) a irregularidade formal das construções sobrepostas, cuja solução é a instituição do direito real de laje. A constituição do direito real de laje, embora omisso o artigo, pode ocorrer mediante diversas modalidades. A primeira é mediante celebração de negócio jurídico inter vivos levado ao Oficial de Registro de Imóveis. Claro que o registro está subordinado à regularidade dominial do imóvel do concedente, pena de grave violação ao princípio da continuidade registral. O registro é constitutivo do direito real. Antes dele, existe entre as partes simples relação obrigacional de direito de laje, contrato translativo, mas que somente se converte em direito real após o ingresso no registro imobiliário, mediante descerramento de matrícula própria. Anoto que, na realidade, o negócio comportará duplo ato registrário. O primeiro, de averbação na matrícula do imóvel do concedente transmitente, que sofrerá o ônus. A averbação é de suma importância, para que terceiros tenham conhecimento que o imóvel não abrange a construção existente sobre a laje. O segundo ato é de registro em sentido estrito, a ser lançado na matrícula especialmente aberta para a nova
unidade imobiliária receber o direito de laje. A descrição do imóvel na matrícula deverá deixar absolutamente claro que o objeto é apenas a construção sobe a laje, e jamais o terreno onde ela se assenta. A menção ao terreno terá apenas a finalidade de localização da unidade objeto do direito de laje. Pode também o direito real de laje ser criado por negócio jurídico causa mortis, mediante testamento, no qual o testador atribua a primeira construção a um legatário, e a segunda construção, sobreposta, em favor de outro legatário. A aquisição do direito real, em tal hipótese, se dá pela morte, por força do princípio da saisine (art. 1.790 CC), e o registro terá natureza meramente regularizatória. A terceira possibilidade de aquisição pode ocorrer mediante usucapião, em diversas modalidades: extraordinária, ordinária, especial urbana, ou mesmo entre ex-cônjuges ou companheiros. Apenas as modalidades de usucapião especial rural e coletiva são incompatíveis com o novo instituto. Os requisitos de cada modalidade se encontram nos artigos 1.238 e seguintes do Código Civil. A usucapião pode ter por objeto a propriedade ou outros direitos reais. Logo, nada impede que o titular de posse prolongada e qualificada sobre a construção erigida sobre laje alheia possa requerer a usucapião somente da unidade que ocupa, sem abranger a acessão abaixo, nem o terreno onde se assenta. O problema pode surgir se o concedente, titular de direitos sobre o terreno, não tiver o domínio formal do imóvel. Embora singular, pode ser declarada a usucapião e descerrada a matrícula, levando em conta a natureza originária da aquisição, com descrição da construção e mera menção ao terreno onde está erigida. Nada impede, também, a usucapião administrativa, desde que com a concordância do titular dominial do terreno e confrontantes. Finalmente, a aquisição pode ocorrer mediante sentença judicial, especialmente útil nas ações de família. Tome-se como exemplo partilha judicial em divórcio, na qual, diante da impossibilidade da divisão, ou inconveniência da venda, determine o juiz que o primeiro piso
seja atribuído a um dos cônjuges e o segundo piso ao outro, mediante realização de obras que permitam acessos independentes. O direito real de laje tem por objeto construções erigidas sobre acessão alheia. Como acima dito, não admite a lei o direito de sobrelevação, ou seja, direito real de laje de segundo grau. Disso decorre que o concedente deve ser proprietário do terreno e da acessão, para que possa instituir direito real de laje em favor de terceiro. Não menciona a lei, contudo, o número de pavimentos, tanto da construção original, de titularidade do concedente proprietário do terreno, como do próprio direito de laje. Nada impede, assim, que o concedente seja titular de um prédio com dois pavimentos – um “sobrado”, na linguagem comum – e conceda o direito de laje para construção de mais dois pavimentos. Evidente que deve haver prévia aprovação administrativa para a construção, pena de sério risco à segurança e incolumidade dos ocupantes de toda a edificação. O § 2º dispõe que o direito de laje pode incidir tanto sobre o espaço aéreo como o subsolo de terrenos públicos ou privados. Vê-se que o instituto é mais amplo do que o direito real de superfície, que contempla preferencialmente o espaço aéreo. Não deixa de ser curioso que todo o instituto tenha por pressuposto a construção de pavimento superior, mas admita a cessão de subsolo. Há manifesta contradição a respeito do objeto do novo direito real. O direito de laje pode ter por objeto imóveis públicos ou particulares. Em relação aos primeiros, causa estranheza a inserção do tema no CC, que no livro do direito das coisas se limita a tratar dos direitos reais sobre a propriedade privada. Além disso, o preceito exige como requisito que a construção seja tomada em “projeção vertical”. Significa dizer que necessariamente as construções devem ocorrem em planos horizontais, uma (laje) sobre a outra (original). Não se admite a utilização do instituto para situações conhecidas como “condomínios deitados”, consistentes de conjuntos de casas sem sobreposição de umas sobre as outras (art. 8º. L. 4.591/64). ARISP JUS 9
Também não se admite que as edificações objeto do direito de laje se estendam sobre outros imóveis vizinhos, pertencentes a proprietários diversos do imóvel original. Significa dizer que a constituição do direito de laje pressupõe homogeneidade dominial do imóvel original. As limitações acima são de natureza cogente e não podem ser derrogadas pela vontade das partes. Ainda no que se refere ao objeto, § 1º dispõe que o direito real de laje somente se aplica “quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos”. A redação não prima pela clareza e exige interpretação prudente, pena de inviabilizar a aplicação do instituto. O termo “impossibilidade de individualização dos lotes” causa estranheza. Não há propriamente lotes, pois a imensa maioria dos imóveis será irregular e não situada em loteamento registrado. Além disso, se o direito real de laje pressupõe o registro do imóvel original e de seu terreno, a matrícula certamente conterá a descrição com medidas perimetrais e confrontantes, em atenção ao princípio da especialidade dos registros públicos. Interpreta-se a regra como impossibilidade de regularização da segunda construção, sem o uso do instituto do direito real de laje. Em termos diversos, o imóvel é individualizado, mas as construções sobrepostas são irregulares. A parte final do § 1º menciona o requisito alternativo da “sobreposição” ou “solidariedade” das construções. A questão da sobreposição das construções já foi acima enfrentada. O que, porém, significa “solidariedade” das construções? O conceito de solidariedade tem aplicação no direito obrigacional e, segundo os arts. 264 e 265 do CC, significa a concorrência, na mesma obrigação, de pluralidade de credores, cada um com direito à dívida toda, ou pluralidade de devedores, cada um obrigado a ela por inteiro. Não se vê como transpor tal conceito para o direito real de laje, em especial como requisito alternativo à sobreposição de construções. O que seriam construções solidárias? Sem o conceito de tal figura, temerário e inviável dizer que “solidariedade” dispensa a sobreposição.
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Questão interessante, não enfrentada pelo legislador, é se o direito de laje pode se dar somente por concreção, ou também por cisão. Na modalidade por concreção, prevista no caput do artigo 1.510-A, permite a lei que o concedente “ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída”. Cede-se a laje vazia e se concede o direito de construir. A construção é feita, portanto, pelo titular do direito real de laje. Já na modalidade por cisão, não prevista pelo legislador, o imóvel já se encontra construído sobre a laje. O proprietário aliena a parte superior da construção, mediante constituição de direito real de laje, remanescendo como dono do solo e do pavimento inferior; em outras palavras, transfere parte das construções já existentes (a parte superior). A doutrina admite tal possibilidade ao tratar do direito real de superfície (art. 1.369 CC). No direito real de laje, porém, a situação é diversa, pois existe vedação expressa da lei. Diz o § 7º que o “disposto neste artigo não se aplica às edificações ou aos conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si”. Em outras palavras, não deseja a lei que o direito real de laje crie uma nova modalidade de alienação de unidades autônomas já construídas pelo empreendedor ou concedente. Essa a razão pela qual a laje se dá somente por concreção: o concedente cria direito real de laje, para que o adquirente possa construir um novo pavimento, até então inexistente. No que se refere aos efeitos, o direito real de laje cria unidades imobiliárias autônomas, conferindo propriedade da construção sobreposta ao titular. Dispõe o § 5º que aludidas unidades serão objeto de matrícula própria e poderão ser alienadas e gravadas livremente por seus titulares. Isso significa que o direito de laje não é personalíssimo, mas, ao contrário, a transmissibilidade é de sua essência. A transmissão do direito de laje pode dar-se por negócio inter vivos ou causa mortis, sempre levado ao registro imobiliário. Ao contrário do direito real de superfície, não existe preferência recíproca entre concedente e titular da laje, na hipótese de venda a terceiros. Nada impede, porém, que as partes ajustem me-
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diante cláusula contratual expressa a existência de direito de preferencia, que será útil para proporcionar futura consolidação e litígios com subadquirentes. A prerrogativa de alienar abrange a de onerar. Pode o titular do direito constituir direitos reais de fruição, desde que compatíveis com a laje, ou de garantia, com uma exceção: não cabe a instituição de direito real de laje em segundo grau (sobrelevação), em razão de expressa vedação legal. Também a instituição de direito real de superfície sobre o direito real de laje é incompatível, porque importaria em construção de segundo grau, vedada pelo legislador. Nada impede, porém, a instituição de direito real de usufruto, uso, habitação, compromisso de compra e venda, ou direitos reais de garantia, inclusive a propriedade fiduciária. Claro que, na hipótese de excussão da garantia real, o arrematante se sub-rogará na titularidade do direito real de laje, e não terá direito sobre o terreno onde se assenta a construção, nem sobre o pavimento inferior. Finalmente, deixou o legislador, de modo inadvertido, de regular a extinção do direito real de laje. A regra geral é que tal direito é perene, e não temporário, como os direitos reais de gozo e fruição. É propriedade, e não direito real sobre coisa alheia. Como vimos, não é personalíssimo (tal como ocorre com o usufruto), de modo que a morte do titular não extingue o direito. Nada impede, porém, que as partes convencionem, mediante cláusula expressa, a aposição de termo ou de condição resolutiva, cujo implemento provoca a extinção de pleno direito da laje. No silêncio do contrato, a laje tende à perpetuidade. Se a propriedade plena pode ser resolúvel, também se admite a criação de tal modalidade para o direito real de laje.
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O perecimento da construção também é causa extintiva do direito real. Em tal hipótese, remanesce apenas o terreno, de titularidade exclusiva do concedente. Caso o perecimento seja causado por terceiro, ou a construção se encontre segurada, o titular do direito real de laje fará jus a indenização proporcional. Indaga-se: no caso de perecimento, se a construção original for novamente erigida, se restaura o direito de laje? Não há solução única. Se tiver ocorrido o cancelamento do direito de laje no registro imobiliário e o terreno vier a ser alienado a terceiro, que erige nova construção, não há restauração. Ao contrário, se o registro do direito de laje não for cancelado e o próprio concedente reconstruir o primeiro piso, a laje se restaura, e o titular pode erigir nova construção. São estas as primeiras impressões sobre o direito real de laje, que certamente provocará dúvidas aos operadores do direito. A interpretação do instituto deve ser sempre ampla, levando em conta o seu caráter social e a necessidade de promoção da regularização fundiária de imóveis irregulares ocupados pela população de baixa renda.
A desapropriação e a usucapião por terceiro possuidor também provocam a extinção da laje. Na desapropriação, a indenização será rateada proporcionalmente entre o concedente e o titular do direito real de laje. A usucapião somente da construção sobre a laje não importa aquisição do terreno onde se assenta.
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A FORMAÇÃO, ALTERAÇÃO E REVERSÃO NO LOTEAMENTOASPECTOS PRINCIPAIS. Dr. Hélio Lobo Jr. Promotor Público de novembro de 1971 a setembro de 1975. Magistratura, por concurso, de 24 de setembro de 1975 até 1 de fevereiro de 2002 – no período foi Juiz Titular da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital e Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça. Aposentou-se como Juiz do 1º Tribunal de Alçada Civil e foi alçado à Desembargador do Tribunal de Justiça já na inatividade. Atuação como advogado, atualmente, sócio do Escritório Lobo e Orlandi Advogados, cuja especialidade é a área imobiliária e, principalmente, registraria. Publicou diversos artigos e participou de livros sempre na área dos Registros Públicos.
Temos enfrentado, com frequência, aspectos relacionados com a formação, alteração e cancelamento, seja parcial ou total, do loteamento. Este breve estudo procurará destacar questões relevantes que, na maioria das vezes, já foram abordadas em precedentes normativos, de modo a tentar demonstrar os principais critérios utilizados e que decorrem do sistema adotado pela Lei nº 6.766, de 1979. Nem sempre é fácil resumir temas controversos, decorrentes de complexa legislação, mas a tentativa é válida para um norte mínimo ao operador do direito, que poderá alcançar conclusões mais profundas e, quiçá, mais adequadas. 1. O sistema da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Para que se compreenda o sistema contido na Lei que regulou o parcelamento do solo urbano é preciso que dela se extraiam alguns princípios lógicos, notadamente quanto à formação, alteração e reversão do loteamento, já que o desmembramento apresenta aspectos diversos e que poderão ser analisados em outra oportunidade. 1.1 – A formação, a alteração e a reversão do loteamento. A legislação que rege o parcelamento do solo urbano, além das diversas disposições urbanísticas, tratou explicitamente de sua formação, mediante o registro no cartório imobiliário, com a apresentação dos documentos exigidos e observância do procedimento a ser seguido, tudo com base nos artigos 18, 19, 20 e 21da Lei nº 6.766, de 1979. No artigo 22, ficou explícito, em consonância com a disposição urbanística prevista no artigo 17, da mesma legislação, que as áreas públicas constantes do projeto e do memorial descritivo passam a integrar o domínio do Município.
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A regra consagra o princípio da destinação, que que se opere uma substancial transformação no pressupõe a oferta, pelo particular, e a aceitação, pelo imóvel. Este, único, objeto de uma matrícula, passa Poder Público. a ser parcelado, conforme o plano aprovado pela Municipalidade. Surgem os lotes e áreas públicas, que Todas essas disposições, porém, devem ser se constituirão em individualidades autônomas. consideradas dentro de um contexto que inclui, também, o que se convencionou denominar de O loteamento nasce com as aprovações urbanísticas reversão do parcelamento e que prevê a possibilidade e com o formalismo registrário; implanta-se com de seu cancelamento, conforme os termos previstos a execução das obras de infraestrutura e venda dos no artigo 23 e incisos da legislação. lotes; e se exaure, em termos urbanísticos, quando as vias, praças e espaços livres, passam a integrar a Logo, dentro de um mesmo sistema normativo cidade. Cumpre um ciclo, que termina quando ocorre contemplou-se a forma de seu ingresso no mundo essa integração. A partir daí, deixa de incidir a Lei jurídico, com feição registrária, bem como as hipóteses nº 6.766, de 1979, quanto a determinados aspectos, de cancelamento. principalmente o urbanístico, passando aquele núcleo a ser regido exclusivamente pelas normas que se Não se pode esquecer, também, a possibilidade aplicam à cidade. do seu cancelamento parcial e a alteração do plano, dentro do mesmo contexto interpretativo, conforme Se assim não se entender, haverá inegável conflito explícita regulamentação prevista no artigo 28. entre as regras da lei do parcelamento e aquelas aplicáveis à cidade como um todo. Esse regramento normativo trata de situações excepcionais que devem prevalecer sobre disposições É por isso que temos defendido o entendimento de gerais incidentes a respeito da aquisição e alienação que a incidência da Lei nº 6.766, de 1979, é transitória. de bens públicos. O loteamento é um instrumento de urbanização. 1.2 – A Lei nº 6.766, de 1979, e a transitoriedade Embora as cidades possam surgir de outras maneiras, da incidência. uma das principais decorre de parcelamento do solo urbano e, quando isso acontece, a legislação prevê as Um dos aspectos mais importantes para a exegese fases e o momento de sua integração à cidade. da complexa legislação sobre o parcelamento do solo urbano, especialmente quando trata de Após as diretrizes iniciais e aprovações urbanísticas, aspectos urbanísticos e registrários, diz respeito a o projeto submetido à Municipalidade deverá trazer, transitoriedade da incidência. também, um cronograma anexo para a execução das obras mínimas de infraestrutura, a serem concluídas A transitoriedade leva em consideração o período no prazo máximo de quatro (4) anos (artigo 9º). em que o loteamento está em formação, cessando quando se completa, por ter ocorrido sua implantação Essa disposição precisa ser conjugada com o definitiva. disposto no artigo 12, da mesma legislação, que trata da aprovação pela Municipalidade e, no seu parágrafo Como antes afirmado, o loteamento, após as 1º, estabelece a pena de caducidade para os projetos aprovações urbanísticas, ingressa no registro para não executados no prazo constante do cronograma. ARISP JUS 13
Logo, esse é o prazo legal para a duração de um anuência da Prefeitura e do Estado. parcelamento durante a sua implantação. O parágrafo 1º do mesmo artigo, estabelece Tanto isso é correto que as Normas de Serviço no que “a Prefeitura e o Estado só poderão se opor item 187.1, Capítulo XX, exigem a fiscalização do ao cancelamento se disto resultar inconveniente Oficial para o prazo do cronograma e apresentação do comprovado para o desenvolvimento urbano ou se já tiver realizado qualquer melhoramento na área loteada termo de verificação da execução das obras – TVO. ou adjacências”. Concluídas as obras e expedido o TVO, integra-se Conforme a lição de Toshio Mukai, Alaor Caffé o loteamento à cidade. Até então, a responsabilidade pela execução e implantação definitiva das obras era Alves e Paulo José Villela Lomar, apenas do loteador. Após a integração, passa ao Poder “... o § 1º atribuiu uma discricionariedade restrita à Público, podendo ser considerado o loteamento como Prefeitura e ao Estado se opuserem ao cancelamento finalizado em termos urbanísticos. Logo, a conclusão é de que um loteamento não perdura indefinidamente. A conclusão das obras exigidas é o termo final de sua implantação urbanística. A partir daí, integra-se à cidade. Esta é governada por suas próprias leis, pelo plano diretor, onde houver, e pelas posturas locais. É certo que as questões obrigacionais com os adquirentes têm parâmetros diversos quanto à incidência da Lei nº 6.766, de 1979, mas a parte urbanística se define com a entrega, pelo loteador, das obras que lhe cabiam, ao Poder Público Municipal.
do registro do parcelamento. Poderão considerar inconveniente este cancelamento desde que o justifiquem e comprovem com base, unicamente, no prejuízo para o desenvolvimento urbano ou se já tiver sido realizado qualquer melhoramento na área loteada ou adjacências. Deverão fazê-lo com fundamento, seja na lei que tenha aprovado o plano de desenvolvimento integrado do município, seja em pareceres formulados por especialistas, tais como, urbanistas, sociólogos, economistas, sanitaristas, engenheiros e outros similares” (Loteamentos e Desmembramentos Urbanos – Sugestões Literárias – 1º edição – páginas 122/123).
Verifica-se, pois, que a legislação permitiu a A partir dessa interpretação fica bem mais lógico, desistência singela do loteador, enquanto nenhum lote fácil e razoável, entender os preceitos aplicáveis à tiver sido vendido ou, ainda, quando os adquirentes formação, alteração e cancelamento, total ou parcial, anuírem. de um loteamento. É fundamental, também, a anuência da Municipalidade ou, se for o caso, do Estado, que só 1.3 - O cancelamento poderão se opor mediante a comprovação de prejuízo O artigo 23 da Lei nº 6.766, de 1979, trata do a padrões urbanísticos, especialmente se obras já cancelamento que poderá ocorrer por (I) decisão foram realizadas no local ou adjacências. judicial; (II) a requerimento do loteador, com anuência Como mencionado na lição doutrinária, trata-se da Prefeitura, “enquanto nenhum lote houver sido de uma discricionariedade restrita, dependente de objeto de contrato”; e (III) a requerimento conjunto do loteador e de todos os adquirentes de lotes, com comprovação quanto aos eventuais prejuízos à cidade. 14 ARISP JUS
É interessante destacar que a legislação prevê um A alteração do plano deve seguir os mesmos procedimento que culminará com a homologação trâmites do registro do parcelamento, ou seja, será pelo Juízo competente (parágrafos 2º e 3º). objeto de requerimento do loteador, acompanhado do novo projeto aprovado pela Prefeitura, com Trata-se, pois, de regra excepcional e que se encerra as modificações pretendidas e das anuências dos com as exigências legais, sem necessidade de qualquer adquirentes efetivamente atingidos. outra providência envolvendo o Poder Público, entre as quais pode-se mencionar a desafetação, exigida O “caput” do artigo 18 da Lei nº 6.766, de 1979, exige apenas para os casos que não envolvam parcelamentos que o projeto aprovado pela Prefeitura seja submetido em execução e, apenas, os já implantados. ao registro imobiliário dentro de 180 dias (cento e oitenta dias), sob pena de caducidade da licença. Diz Embora colocado em outro capítulo da Lei nº 6.766, respeito à aprovação disciplinada no artigo 12. de 1979, o artigo 28 trata, também, do cancelamento, agora parcial, mostrando uma similitude com a A alteração do plano também deve ser aprovada alteração do plano. pela Prefeitura, atendidos os requisitos das regras municipais incidentes. O Poder Executivo municipal De qualquer modo, ao cancelamento parcial expede o ato administrativo de aprovação com parecem aplicáveis as mesmas regras exigidas para o fulcro na legislação de regência, sem necessidade de total, já que aquele é uma espécie do gênero. participação do Poder Legislativo. 1.4 – A alteração do plano de loteamento. A alteração do plano em loteamento é disciplinada na Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, no artigo 28, cuja redação é a seguinte:
Essa conclusão decorre do mesmo raciocínio aplicado às demais hipóteses de reversão do parcelamento.
Se o cancelamento pode ser feito sem qualquer providência legislativa, com maior razão a mera “Artigo 28 – Qualquer alteração ou cancelamento alteração do plano já aprovado, ainda que se parcial do loteamento registrado dependerá de modifiquem o traçado e localização de áreas públicas. acordo entre o loteador e os adquirentes de lotes atingidos pela alteração, bem como da aprovação pela Prefeitura Municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, devendo ser depositada no registro de imóveis, em complemento ao projeto original com a devida averbação”.
Quem pode o mais pode o menos. O que importa considerar é se incide, na espécie, o artigo 28 da Lei nº 6.766, de 1979, ou, ainda, se o loteamento está em execução.
Dois são os principais aspectos para a alteração Nesse caso, a anuência deverá ser apenas do do plano. Primeiro, a verificação sobre a existência Município quanto a eventual alteração de vias ou de eventuais adquirentes de lotes, com contrato registrado, que tenham sido diretamente atingidos. demais espaços públicos. Segundo, a natureza jurídica do ato que autoriza, em A análise desse aspecto tem provocado discussões, termos urbanísticos, essa modificação. mas, “data vênia”, a melhor exegese está com aqueles ARISP JUS 15
que dispensam qualquer providência legislativa, como desistência, cancelamento ou alteração parcial do plano a desafetação, conforme passaremos a discorrer. de loteamento. Não se pode esquecer que a Lei 6.766, de 1979, que contém normas de direito civil, registros 1.5 - A desafetação públicos, urbanísticas e penais, foi editada com base na competência que a União Federal detém a respeito de Essa é uma questão tormentosa, mas que foi tais matérias, sendo certo que poderia regulamentar, dirimida por diversos precedentes. como efetivamente regulamentou, a possibilidade da passagem dos bens que relaciona ao domínio público e o Se o loteamento já se exauriu em termos urbanísticos retorno destes, total ou parcialmente, para o particular, e se integrou à cidade, a alteração da destinação ou a nos casos de desistência, cancelamento ou alteração do alienação dos imóveis que passaram a ser públicos, plano de parcelamento”(pgs. 185/186). como bens de uso especial ou uso comum, sempre dependerá de sua prévia desafetação. Colacionamos trecho de parecer do saudoso jurista e professor Geraldo Ataliba, juntado ao processo nº Se, todavia, ainda não se completou o ciclo acima 69/86, da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, descrito, incidirá a lei especial. É dizer, se ainda não se que, em recurso à Corregedoria Geral da Justiça, completaram as obras de infraestrutura, estando em sob nº 86/86, deixou assentado que “pode-se, lógica curso o cronograma previsto no art. 9º da Lei nº 6.766, e juridicamente, concluir: quem pode o mais pode o de 1979, que é de 4 anos, as regras aplicáveis serão, menos, ou, quem pode cancelar loteamento registrado justamente, as desta lei. E isto se dá principalmente e, conseqüentemente, desistir de sua implantação – sem em relação ao plano inicial do loteamento, para sua autorização legislativa e prévia desafetação das áreas de alteração e para a desistência, com o cancelamento do uso comum do povo – pode, evidentemente, modificar registro no Registro de Imóveis. loteamento registrado, sem autorização legislativa e prévia desafetação das áreas públicas de uso comum do Se não fosse assim, as regras previstas nos artigos povo. O menor (a modificação) está, necessariamente, 23 e 28 seriam inócuas, pois, é sabido que o Poder contido no maior (o cancelamento)”. Público sempre pode desafetar e alienar ou alterar a destinação de seus bens. Esse entendimento restou consagrado pela decisão do então Corregedor Geral, o saudoso Desembargador A lei não contém palavras inúteis e, por isso, a Sylvio do Amaral, em 20 de julho de 1987, e se possibilidade de desistência do plano ou da sua alteração constituiu, praticamente, no primeiro precedente ainda ficam sob a regência da lei de parcelamento no específico sobre o tema. período em que o loteamento não se completou e não se integrou à cidade. Dispensa desafetação e rege-se Aliás, se, pelo artigo 22 da Lei nº 6.766, de 1979, as exclusivamente pelos dispositivos da Lei nº 6.766, de áreas públicas e vias de circulação só passam ao domí1979. nio público, formalmente, com o registro, do mesmo modo, a alteração de sua destinação será, igualmente, Em artigo publicado na Revista de Direito operada no Registro de Imóveis, por meio do procediImobiliário nº 47, edição RT, no ano de 1999, já tivemos mento previsto no artigo 23, que exige mera anuência a oportunidade de abordar o tema. Nele defendemos da Municipalidade, sem necessidade de desafetação, que não existe “a necessidade de desafetação para a apenas para os loteamentos ainda não implantados. 16 ARISP JUS
Os precedentes normativos não cessaram e colacionamos, por relevante, memorável parecer proferido no processo C.G. nº 945/95, pelo então Juiz Auxiliar da Corregedoria, atualmente Desembargador, Dr. Marcelo Martins Berthe, que tratou do tema e distinguiu entre o loteamento implantado e não implantado, reportando-se, ainda, a outro precedente, mais antigo (Proc. C.G. nº 925/94), que também abordou a questão concluindo que os artigos 23, III, e 28, que cuidam do cancelamento total e parcial, bem como da alteração do plano, só podem ser aplicados, sem desafetação, enquanto o parcelamento estiver em execução e ainda não implantado. Em trecho elucidativo afirmou que: “A desafetação, por ato do Poder Legislativo, como reclamada no recurso, só teria cabimento depois, ‘num segundo tempo’, quando implantado o loteamento. Nesse caso a simples concordância do loteador e proprietários que fossem atingidos, associada à aprovação da Prefeitura Municipal já não mais seria suficiente, porque ‘consumada aquisição do domínio público’ sobre aqueles bens, a partir de sua implantação e consequente ‘destinação dos bens ao uso comum do povo’. Na verdade, é lícito afirmar que a aquisição do domínio se dá com o registro, mas ‘tem eficácia pendente da implantação do loteamento’. Ou por outra, a esse evento está vinculada”.
patrimônio municipal, quer porque já não mais possível modificar ou cancelar o loteamento, quer porque haverá a ‘destinação desses bens ao uso comum do povo” (Decisões Administrativas da Corregedoria Geral da Justiça- 1995 – Ed. RT – Coordenador – Des. Antonio Carlos Alves Braga – páginas 134/135).
Aliás, o parágrafo único do artigo 22, da Lei nº 6.766, de 1979, acrescentado pela Lei 12.424, 16.6.2011, utilizou essa mesma terminologia quando se referiu ao parcelamento implantado e não registrado, conferindo, nesse caso, ao Município, o direito de providenciar a passagem das áreas públicas ao seu domínio. Nítida, pois, a diferença entre loteamento em execução e aquele já implantado, bem como a incidência da Lei nº 6.766/79 ao primeiro, ao passo que a regra normal, com exigência de desafetação, ao segundo. Destarte, tais precedentes, abonam, “data vênia”, as nossas conclusões a respeito do tema. 1.6 - Os adquirentes de lotes A singela leitura do dispositivo legal pertinente permite concluir que a lei não exige anuência de todos os proprietários de lotes.
Incursiona pelo magistério do sempre saudoso Hely Lopes Meirelles que distingue o ato Claramente, a lei exige acordo entre o loteador e os administrativo consumado do pendente, incluído o adquirentes dos lotes atingidos pela alteração (art. 28). de registro, concluindo, no exaustivo estudo contido no precedente que: A lei fala em adquirentes dos lotes diretamente atingidos pela alteração. Cuida de proteger os “Vê-se, pois, que se passível de cancelamento (total ou parcial), ou de modificação, enquanto não adquirentes das alterações materiais que os lotes implantado o loteamento, será o registro um ‘ato possam sofrer, por iniciativa do loteador. Se o lote administrativo pendente’, que só produzirá efeitos não sofre nenhuma modificação, isto é, se o lote não após a implantação, quando, então, efetivamente, é atingido pela alteração, seu adquirente não tem os bens destinados ao uso público ingressarão no interesse na alteração do plano. ARISP JUS 17
Tratando desse assunto, obra recente sobre o parcelamento do solo mostra que a interpretação da lei deve seguir critérios razoáveis e de bom senso. Não pode, a pretexto de impedir ofensa a direitos, conduzir à imutabilidade do plano. A lógica do dispositivo demonstra que, se existe possibilidade de alteração, ela não pode depender de providências impossíveis ou de difícil realização.
alteração ou cancelamento parcial interferem com os adquirentes. Essa análise será feita, em primeiro lugar, pelo Oficial Imobiliário e depois, se houver inconformismo, por seus superiores hierárquicos” (Decisões Administrativas da Corregedoria Geral da Justiça- 1995 – Ed. RT – Coordenador – Des. Antonio Carlos Alves Braga – página 136).
Interpretar extensivamente o art. 28, de forma a dele extrair que todos os proprietários de lotes Em “Como Lotear uma Gleba” (Editora Millennium, precisam dar anuência, é engessar o plano; é impedir 2ª ed., Campinas, 2003), que escreveu junto com o que o mesmo dispositivo quer permitir. seu pai, Vicente Celeste Amadei (que se encarregou dos aspectos não jurídicos), o culto desembargador Há que se considerar que algum adquirente sempre paulista Vicente de Abreu Amadei adota nosso antigo poderá negar imotivadamente a anuência, ou poderá, entendimento (RDI-47/183): “ uma primeira distinção simplesmente, não ser encontrado. há que ser feita, vale dizer, entre a influência direta e o prejuízo potencial. Quando houver direta repercussão Ademais, conforme precedente da Egrégia quanto ao lote, inegável a necessidade da anuência de Corregedoria Geral da Justiça, a expressão seu proprietário, como, por exemplo, nos casos de se “concordância dos adquirentes atingidos”, prevista alterar o traçado de uma rua, tornando-a sem saída, no art.28, abrange apenas aqueles que sofrem a supressão de uma praça ou área verde que com ele prejuízos patrimoniais ou não, imediatos e mediatos, confine etc. Dificuldade maior se apresenta quando a presentes ou potenciais, desde que plausíveis e repercussão for indireta, ou seja, a modificação de ruas objetivos (Processo C.G. 713/97 – parecer do hoje em outro extremo do loteamento, a diminuição das desembargador Francisco Eduardo Loureiro – 4.6.97). dimensões dos lotes etc. A expressão lotes atingidos pela alteração deve ser entendida de forma inteligente e não Assim, a anuência dos titulares de domínio das pode abranger, de maneira absoluta, toda e qualquer quadras diretamente atingidas atende à parte final modificação, sob pena de inviabilizar o próprio do artigo 28, porque eles, e somente eles, são os permissivo legal". diretamente atingidos. No parecer colacionado como precedente o tema também foi abordado, quando também se prestigiou nosso entendimento anterior:
E para saber quem são os adquirentes atingidos, bastará recorrer à matrícula em que registrado o loteamento, cuja certidão apontará os titulares dos contratos registrados. Apenas estes devem ser “Parece claro que a lei condiciona a alteração à considerados. anuência de todos os adquirentes que por ela possam ser atingidos, dispensou, inegavelmente, o chamamento de outros interessados por editais. Assim, o adquirente que é atingido deve anuir; em caso contrário nenhum interesse terá’. E com essas premissas, conclui como segue: ’O cerne da questão está, justamente, em se aquilatar até que ponto a
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2. CONCLUSÃO Destarte, para o cancelamento, seja parcial ou total, ou, ainda, para a alteração do plano de loteamento, não há necessidade de desafetação, bastando a
mera aprovação da Municipalidade ou do Estado, respeitados os eventuais direitos dos adquirentes diretamente atingidos, conforme o caso.
Só depois da integração será exigível a prévia desafetação para alteração da destinação de espaços que se tornaram públicos com o registro do parcelamento, como bem distinguiram os precedentes Aplicam-se aos loteamentos ainda em execução normativos e lições doutrinárias colacionadas. ou, melhor dizendo, ainda não implantados, as disposições específicas da Lei nº 6.766, de 1979. A expedição do termo de verificação de obras – TVO servirá como parâmetro final à fase de execução.
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DECISÕES EM DESTAQUE
DECISÃO ADMINISTRATIVA #1 REGISTRO DE IMÓVEIS – RECUSA DE INGRESSO DE FORMAL DE PARTILHA QUE REPETE DESCRIÇÃO QUE JÁ CONSTA EM TRANSCRIÇÃO ANTERIOR – DÚVIDA PROCEDENTE – DESCRIÇÃO QUE IMPEDE A PRÓPRIA LOCALIZAÇÃO DO IMÓVEL – PRECEDENTES QUE PERMITEM O INGRESSO DE TÍTULO QUE REPETE DESCRIÇÃO LACUNOSA E CUJO OBJETO É A INTEGRALIDADE DO BEM – INAPLICABILIDADE – LOCALIZAÇÃO MÍNIMA DO IMÓVEL QUE SE FAZ NECESSÁRIA – IMPOSSIBILIDADE DE INGRESSO DO TÍTULO – NECESSIDADE DE PRÉVIA RETIFICAÇÃO – APELAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. ACÓRDÃO
Selecionadas por Alberto Gentil de Almeida Pedroso
Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1006360-55.2015.8.26.0309, da Comarca de Jundiaí, em que são partes são apelantes VADETE SCAPINELLI FORTI, RAFAEL ISAAC FORTI, ERIKA APARECIDA FORTI RUIVO, MARLI SCAPINELLI LOURENÇÃO e DIVA SCAPINELLI DA SILVA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE JUNDIAÍ. ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente sem voto), ADEMIR BENEDITO (VICE PRESIDENTE), PAULO DIMAS MASCARETTI(PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA), XAVIER DE AQUINO (DECANO), LUIZ ANTONIO DE GODOY(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), RICARDO DIP (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E SALLES ABREU (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL). São Paulo, 10 de março de 2017. PEREIRA CALÇAS CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR
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Apelação nº 1006360-55.2015.8.26.0309 Apelantes: Vadete Scapinelli Forti, RAFAEL ISAAC FORTI, Erika Aparecida Forti Ruivo, Marli Scapinelli Lourenção e Diva Scapinelli da Silva Voto nº 29.729
inventariados, estava a fração ideal do imóvel objeto da transcrição nº 65 .732 do 1 º Registro de Imóveis de Jundiaí, que, na partilha, coube a Vadete Scapinelli Forti e aos filhos do casal (fls. 338 /339 e 341).
Registro de Imóveis – Recusa de ingresso de formal de partilha que repete descrição que já consta em transcrição anterior – Dúvida procedente – Descrição que impede a própria localização do imóvel – Precedentes que permitem o ingresso de título que repete descrição lacunosa e cujo objeto é a integralidade do bem – Inaplicabilidade – Localização mínima do imóvel que se faz necessária – Impossibilidade de ingresso do título – Necessidade de prévia retificação – Apelação a que se nega provimento.
Apresentado a registro, o Oficial desqualificou o formal de partilha, argumentando que a descrição do imóvel é tão vaga, que não permite sua localização no município. Ressaltou que embora haja precedentes desta Corregedoria Geral no sentido de permitir o ingresso de títulos com descrição deficiente, desde que em consonância com o registro a que se filia, a seu ver, essa exceção não pode abarcar descrições “ flutuantes” de imóveis.
Trata-se de recurso de apelação interposto contra a sentença de fls. 433/435 , que julgou procedente a dúvida suscitada pelo 1º Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Jundiaí e manteve a recusa do registro de formal de partilha extraído do inventário dos bens deixados por Alcides Isaco Forti, que tramitou na 3ª Vara Cível de Jundiaí. Sustenta o apelante que a qualificação feita pelo Oficial deve ser sempre tendente a promover o registro dos títulos; que o título está formalmente em ordem; e que não há violação ao princípio da especialidade objetiva, uma vez que a descrição que consta no formal de partilha, embora vaga, repete a que consta na transcrição (fls. 243 /262). A Procuradoria de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 445 /447). É o relatório. De acordo com a transcrição nº 65 .732 do 1 º Registro de Imóveis de Jundiaí, Vadete Scapinelli, Laerte Antônio Scapinelli, Marli Scapinelli e Diva Scapinelli, no ano de 1966 , receberam em doação com reserva de usufruto um imóvel de Benjamin Scapinelli e de Maria Luiza Costa Scapinelli ( fls. 211 /214 ). Vadete Scapinelli casou- se com Alcides Isaco Forti, passando a se chamar Vadete Scapinelli Forti ( fls. 313 ). Com o falecimento de Alcides em 16 de julho de 1991 ( fls. 312 ), seus bens foram inventariados em processo que tramitou perante a 3 ª Vara Cível de Jundiaí ( fls. 309 /343 ). Entre os bens
No registro, assim como no título que o repete, o imóvel transcrito sob o nº 65 .732 no 1 º Registro de Imóveis de Jundiaí é descrito da seguinte forma: “Um terreno contendo uma casa, um galinheiro, duas garagens, 4 .000 pés de uvas, com a área de dois alqueires de terras, mais ou menos, situado no bairro de Corupira ou Engordador, neste município, dividindo com Orlando Scapinelli, Antônio Passilongo, Yutaka Korogui, e com propriedade remanescente dos doadores” (fls. 211). A vagueza da descrição do imóvel objeto do formal de partilha é tal, que nem o posicionamento que assegura o ingresso de título que repita descrição precária já constante no fólio real justifica o acolhimento da pretensão do apelante. Pela leitura da descrição do bem, nota- se que além de sua área ser aproximada (“dois alqueires de terras, mais ou menos”) e de suas confrontações fazerem referência a vizinhos (“dividindo com Orlando Scapinelli, Antônio Passilongo, Yutaka Korogui, e com propriedade remanescente dos doadores”) fato que, isolados, não impediriam o registro do título chama atenção a circunstância de que não há qualquer identificação da medidas perimetrais do bem que encerram os aproximados dois alqueires, nem da distância de qualquer ponto identificável até algum ponto do imóvel. Essa falta de identificação das medidas dos lados do terreno, aliada à referência ao nome dos vizinhos cuja titulação não se conhece (proprietários, possuidores, detentores...) e que provavelmente não estão mais no local impede a localização do bem. E não há como se negar que é função precípua do Registro Imobiliário possibilitar a identificação um imóvel ARISP JUS 21
por meio da leitura de sua descrição, ainda que essa seja antiga, imprecisa e lacunosa. Não se trata, portanto, de um retorno à posição mais formal que já vigorou na Corregedoria Geral e neste Conselho Superior da Magistratura, que, ao exigir estrita observância ao princípio da especialidade objetiva, condicionava o ingresso do título que repete a descrição do registro à prévia retificação da descrição do bem. Nessa época, não se admitia que imprecisões das transcrições de origem contaminassem a nova matrícula a ser descerrada. Aqui, tenta- se evitar apenas que descrições que não permitem sequer a localização do imóvel sejam repetidas e utilizadas para o descerramento de novas matrículas. Outro não é o entendimento do Desembargador Francisco Eduardo Loureiro, que, em comentário ao artigo 236 da Lei nº 6.015/73 , antes da mudança de entendimento deste Conselho, consignou: “De um lado, o maior rigor na abertura das matrículas aperfeiçoa o sistema, mas, de outro, cria embaraço às partes que adquirem imóveis fiadas aos dados já constantes do registro, ainda que imperfeitos. A necessidade de prévia retificação pode conduzir, assim, a um indesejado atraso nos registros dos títulos e consequente insegurança aos direitos dos adquirentes. Parece que o posicionamento ideal é o anterior, de rejeitar apenas as descrições com imprecisões de tal modo grave que impeçam a própria localização do imóvel, ou causem riscos concretos de sobreposição” (Lei de registros públicos: comentada; coordenação José Manuel de Arruda Alvin Neto, Alexandre Laizo Clápis, Everaldo Augusto Cambles. Rio de Janeiro, 2014 grifei) . E como já adiantado pelo Oficial em sua suscitação ( fls. 294 /299 ), os julgados deste Conselho que modificaram posicionamento anterior e passaram a dispensar a prévia retificação na hipótese de descrição precária do imóvel, desde que o título repetisse essa descrição e a transação abrangesse a totalidade do bem, pressupõem que ele esteja minimamente identificado: “Inobstante a precariedade da transcrição e os precedentes do Conselho Superior da Magistratura mencionados pelo Oficial, o posicionamento que atualmente prevalece, manifestado em julgados recentes, é no sentido de que não ofende 22 ARISP JUS
ao princípio da especialidade a abertura de matrícula que abranja a totalidade do imóvel e que esteja de acordo com a descrição contida no registro anterior, desde que suficiente à sua identificação” (Apelação nº 3025524 - 04.2013 .8 .26 .0224, Rel. Des. Elliot Akel, j. em 7/10/2014 - grifei). “Como lembra Alyne Yumi Konno (Registro de Imóveis Teoria e Prática, Memória Jurídica, p. 20 /21), tem-se admitido a mitigação da especialidade a fim de não obstar o tráfego de transações envolvendo imóveis, permitindo- se a manutenção de descrições imprecisas, constantes de antigas transcrições, quando da abertura da matrícula, desde que haja elementos mínimos para se determinar a situação do imóvel, e que ele seja transmitido ou onerado por inteiro, ou seja, desde que a nova matriz a ser aberta o abranja por inteiro ” (Apelação nº 0015003 - 54 .2011 .8 .26 .0278 , Rel. Des. Elliot Akel, j. em 2 /9 /2014 - grifei). Correta, portanto, a decisão que jugou a dúvida procedente, sendo indispensável a prévia retificação da descrição do imóvel a que o formal de partilha se refere. Ante o exposto, nego provimento à apelação. PEREIRA CALÇAS Corregedor Geral da Justiça e Relator
DECISÃO ADMINISTRATIVA #2 REGISTRO DE IMÓVEIS – Título judicial – Adjudicação compulsória – Proprietário tabular não integrou o polo passivo da ação judicial – Ofensa ao princípio da continuidade registral – Tempus regit actum – Impossibilidade de examinar, no âmbito administrativo, a pertinência de cancelamentos de inscrições resultantes de ordens judiciais exaradas em processos contenciosos – Formação defeituosa do título – Confirmação do juízo de desqualificação registral e, portanto, da r. sentença impugnada – Dúvida procedente – Recurso desprovido.
ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1000328- 93.2015.8.26.0451, da Comarca de Piracicaba, em que são partes é apelante MARCO ANTONIO CHIARELLA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TITULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DE PIRACICABA SP. ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente sem voto), ADEMIR BENEDITO (VICE PRESIDENTE), PAULO DIMAS MASCARETTI(PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA), XAVIER DE AQUINO (DECANO), LUIZ ANTONIO DE GODOY(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), RICARDO DIP (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E SALLES ABREU (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL). São Paulo, 10 de março de 2017. PEREIRA CALÇAS Corregedor Geral da Justiça e Relator Apelação nº 1000328-93.2015.8.26.0451 Apelante: Marco Antonio Chiarella Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis, Titulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Piracicaba SP. Voto nº 29.613 REGISTRO DE IMÓVEIS – Título judicial – Adjudicação compulsória – Proprietário tabular não integrou o polo passivo da ação judicial – Ofensa ao princípio da continuidade registral – Tempus regit actum – Impossibilidade de examinar, no âmbito administrativo, a pertinência de cancelamentos de inscrições resultantes de ordens judiciais exaradas em processos contenciosos – Formação defeituosa do título – Confirmação do juízo de desqualificação registral e, portanto, da r. sentença impugnada – Dúvida procedente – Recurso desprovido.
Com amparo no princípio da continuidade registral, a r. sentença impugnada julgou a dúvida procedente[1]. Inconformado, o interessado interpôs apelação, com vistas ao registro da adjudicação compulsória do imóvel identificado na mat. n.º 15.226 do RI de Piracicaba, a ser antecedido pelo cancelamento da av. 7 e das inscrições subsequentes. Argumenta que a av. 7 lançada na mat. n.º 15.226 é nula de pleno direito e não serve, tal como o r. 11, a obstar o acesso ao álbum imobiliário do título judicial, injustamente recusado pelo Oficial[2]. Com o recebimento do recurso[3], os autos foram enviados ao C. CSM e, ato contínuo, abriu-se vista à Procuradoria Gera da Justiça, que propôs o desprovimento da apelação[4]. É o relatório. Pretende-se o registro da adjudicação compulsória do bem imóvel descrito na mat. n.º 15.226 do RI de Piracicaba, resolvida nos autos n.º 0022764-83.2003.8.26.0451, mediante sentença transitada em julgado, proferida pelo Juízo da 4.ª Vara Cível de Piracicaba[5]. A origem judicial do título não torna prescindível a qualificação registral: a conferência voltada ao exame do preenchimento das formalidades legais atreladas ao ato pretendido é indispensável[6]. Nessa linha, justifica-se a confirmação da r. sentença proferida pelo MM Juiz Corregedor Permanente[7] e, portanto, do juízo negativo de qualificação registral[8], mormente, mas não só, em atenção ao princípio da continuidade registral.
1 Fls. 105-108. 2 Fls. 118-161.
3 Fls. 162. 4 Fls. 178-181 5 Fls. 3-54. 6 Apelação Cível n.º 39.487-0/1, rel. Des. Márcio Martins Bonilha, j. 31.07.1997, e Apelação Cível n.º 404-6/6, rel. Des. José Mário Antonio Cardinale, j. 08.09.2005. 7 Fls. 105-108. 8 Fls. 55-58. ARISP JUS 23
O bem imóvel objeto da adjudicação invocada pelo recorrente pertence, atualmente, de acordo com a mat. n.º 15.226 do RI de Piracicaba, a Fábio Minharo Filho[9], estranho ao processo judicial.
questionadas pelo recorrente, inviabilizado estará o registro por ele intencionado, que, além do mais, apenas na via contenciosa, poderá buscar o cancelamento da averbação e do registro impugnados.
Quero dizer, o proprietário tabular não integrou o polo passivo da ação de adjudicação compulsória, de modo que o princípio do trato sucessivo está a obstar o acesso do título ao fólio real.
Ao reverso da compreensão do recorrente, não cabe, neste processo de dúvida, nem mesmo em outro processo com natureza administrativa, qualquer deliberação a respeito da eficácia desses atos registrais, especialmente, então, sobre a pertinência do cancelamento da retificação objeto da av. 7, resultante de ordem judicial lançada, após nota devolutiva, em processo contencioso trabalhista.
Por ocasião da prenotação, no dia 5 de dezembro de Apelação Cível n.º 39.487-0/1, rel. Des. Márcio Martins Bonilha, j. 31.07.1997, e Apelação Cível n.º 404-6/6, rel. Des. José Mário Antonio Cardinale, j.08.09.2005. Por ocasião da prenotação, no dia 5 de dezembro de 2014[10], os réus no processo de adjudicação compulsória, os promitentes vendedores do imóvel, Henri Felix Ruffieux e Rosemarie Ruffieux[11], não mais figuravam, na tábua registral, como proprietários desse bem. Perderam essa condição, então, com a retificação averbada em 17 de novembro de 2014, por meio da qual a propriedade do bem imóvel passou, por deliberação em processo contencioso, para Antonio Chiarella e Olga Therezinha La Selva Chiarella, sucedidos, na mesma data, por Fábio Minharo Filho, que a adquiriu mediante registro da carta de adjudicação n.º 01/2014, expedida pelo Juízo da 1.ª Vara do Trabalho de Piracicaba[12]. Pouco importa, aliás, para hipótese vertente, que, ao tempo do ajuizamento da ação judicial de adjudicação compulsória e, em particular, à época do trânsito em julgado da sentença, os promitentes vendedores, réus naquele processo, ainda constassem como proprietários tabulares do imóvel adjudicado. De fato, no sistema dos registros públicos, vige o princípio tempus regit actum. Em outras palavras, a registrabilidade do título é aferida por ocasião da prenotação. Destarte, enquanto subsistirem aquelas inscrições 9 Fls. 65-68, r. 11 10 Fls. 5 e 55. 11 Fls. 7-15 e 21-27. 12 Fls. 65-68, av. 7 e r. 11. 24 ARISP JUS
as
Essa a vetusta compreensão do C. STJ, expressa, por exemplo, no RMS n.º 193/SP, rel. p/acórdão Min. Sálvio de Figueiredo, j. 4.8.1992, onde se assentou, consoante trecho abaixo transcrito, ser vedado ao Corregedor, ainda que orientado pela guarda da regularidade dos registros públicos, rever ordens exaradas em processo contencioso: É certo que, à primeira vista tudo está a indicar que a decisão do MM Juiz de Direito da 3.ª Vara Cível não se afeiçoou ao bom direito, haja vista que não deveria aquele r. Juízo, através de cautelar inominada, ter determinado a indisponibilidade dos bens, com a respectiva averbação no álbum imobiliário. É de convir-se, contudo, que, se assim agiu, bem ou mal, somente por meio das vias jurisdicionais próprias é que tal decisão poderia ser impugnada, contrariada e reformada. Com efeito, não obstante o MM Juiz da Vara dos Registros Públicos estivesse no exercícios da sua atividade correcional, podendo determinar medidas com lastro no art. 214 da Lei n.º 6.015/73, vê-se que as averbações, bem ou mal, repita-se, tinham sido determinadas e realizadas sob o império de uma decisão proferida em feito jurisdicionalizado. Em síntese, tenho que autoridade judicial em função administrativa não pode modificar decisão jurisdicional, que somente pode ser desconstituída pelas vias adequadas. Posição contrário, receio, poderia constituir perigoso precedente, de efeitos indesejáveis. Com idêntica diretriz, há outros julgamento do C. STJ: CC n.º 14.750/RS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 10.04.1996; CC n.º 21.413/SP, rel. p/acórdão Min. Barros Monteiro, j. 4.04.1999; CC n.º 30.820/RO, rel. Min. Antônio de Pádua
Ribeiro, j. 22.08.2001; CC n.º 31.866/MS, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.8.2001; CC n.º 41.042/PR, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 25.5.2005; e CC n.º 106.446/SP, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 26.3.2010. Na mesma linha, inclusive, segue a jurisprudência administrativa desta E. CGJ: parecer n.º 340/2010-E, do Juiz Assessor Hamid Charaf Bdine Júnior, aprovado pelo Des. Antonio Carlos Munhoz Soares, no processo CGJSP n.º 82.153/2010, em 18.11.2010; parecer n.º 298/2012-E, do Juiz Assessor Marcelo Benacchio, aprovado pelo Des. José Renato Nalini, no processo CGJSP n.º 58.237/2012, em 28.8.2012; e parecer n.º 52/2013-E, do Juiz Assessor Luciano Gonçalves Paes Leme, aprovado pelo Des. José Renato Nalini, no processo CGJSP n.º 12.566/2013, em 22.2.2013. Nada obstante, porém sem reflexo na prevalecente orientação e, assim, no desfecho deste recurso de apelação, vale realçar a preocupação e as expectativas exteriorizadas pelo e. Min. Ruy Rosado de Aguiar, tanto no CC n.º 31.866/MS, do qual foi relator, como no voto que declarou no CC n.º 30.820/RO: Confesso que não deixo de encontrar defeito na orientação adotada, pois as ordens judiciais expedidas em processos de execução muitas vezes não levam na devida conta os princípios do registro público, cuja rigorosa formalidade é fator de segurança social. Daí a conveniência de que somente seja ordenado o registro de documento hábil. No entanto, mais difícil será submeter a decisão de um Juízo à revisão do outro, criando infinitas disputas. Assim, parece mais conveniente autorizar o cumprimento da decisão do Juízo da execução, ficando reservado à parte prejudicada, que tenha ou não tido oportunidade de se defender no curso do processo, exercer seu direito nas vias judiciais. Fica, ainda, ressalvado a qualquer interessado o direito de discutir os efeitos do ato praticado com ofensa ao sistema registral e sua legislação específica. Confiase em que a juiz da execução, ao expedir mandados dessa natureza, previamente atenderá ao disposto na Lei dos Registros Públicos. E, uma vez observada a dificuldade pelo Oficial Público, não tomará isso como uma ofensa à autoridade, mas sim como boa oportunidade para regularizar o registro e assim evitar futuras demandas, com grave prejuízo aos
interessados que confiam na correção dos registros, especialmente naqueles ordenados pelo juiz. (grifei) De qualquer maneira, enfim, no caso em apreço, o registro pleiteado resta desautorizado; não é respaldado pela titularidade de direito inscrita na matrícula; não assegura, não garante a preservação da integridade da cadeia de titularidades; não se justifica, portanto, à vista das inscrições antecedentes. No mais, os cancelamentos objetivados, pretendidos com a finalidade de possibilitar a inscrição da adjudicação compulsória, não comportam, já se sublinhou, exame na via administrativa. Em arremate, e independentemente da denominação atribuída ao instrumento que materializa o título judicial (mandado ao invés de carta de sentença), é certo que sua formação cuja exatidão, em contraposição à justa e correta exigência feita pelo Registrador[13] foi defendida pelo interessado em impugnação[14] , revelou-se deficiente, precária. Não se observou, com efeito, em sua integralidade, a regra do art. 221 das Normas de Serviço dos Ofícios de Justiça, em detrimento do princípio da segurança jurídica. Por exemplo, o título não contempla termos de abertura e encerramento, numeração de folhas e a indicação do número destas, isto é, dados necessários a garantir ao Oficial a inocorrência de acréscimo ou subtração de peças ou folhas. Isto posto, nego provimento ao recurso. PEREIRA CALÇAS Corregedor Geral da Justiça e Relator
13 Fls. 55-58, item 1, 61-64 e 82-87. 14 Fls. 70-74. ARISP JUS 25
DECISÃO ADMINISTRATIVA #3 REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida inversa – Escrituras públicas de venda e compra – Condomínio pro-indiviso – Situação de indivisão que persiste – Ausência de elementos indicativos de divisão fática, com anuência dos condôminos – Alienações de frações ideais com medidas certas – Negócios jurídicos que mascaram transmissão de posse localizada e indevida divisão da coisa comum – Ofensa ao item 171 do Cap XX das NSCGJ e ao princípio da disponibilidade qualitativa – Pertinência da exigência relativa ao CCIR, que deve referir-se à área total do imóvel rural – Erros passados não justificam os registros pretendidos – Exclusão das exigências atinentes às certidões negativas de débitos e ao ITR (subitem 119.1 do Cap XX das NSCGJ) – Adequação da exigência referente à reserva legal florestal – Falta de pagamento dos emolumentos que não pode obstar os registros, se não houve exigência de depósito prévio – Dúvida procedente – Recurso provido.
Apelação nº 1016790-38.2015.8.26.0577 Apelante: Ministério Público do Estado de São Paulo Apelado: Erica Aparecida Agostinho Voto nº 29.632 REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida inversa – Escrituras públicas de venda e compra – Condomínio pro-indiviso – Situação de indivisão que persiste – Ausência de elementos indicativos de divisão fática, com anuência dos condôminos – Alienações de frações ideais com medidas certas – Negócios jurídicos que mascaram transmissão de posse localizada e indevida divisão da coisa comum – Ofensa ao item 171 do Cap XX das NSCGJ e ao princípio da disponibilidade qualitativa – Pertinência da exigência relativa ao CCIR, que deve referir-se à área total do imóvel rural – Erros passados não justificam os registros pretendidos – Exclusão das exigências atinentes às certidões negativas de débitos e ao ITR (subitem 119.1 do Cap XX das NSCGJ) – Adequação da exigência referente à reserva legal florestal – Falta de pagamento dos emolumentos que não pode obstar os registros, se não houve exigência de depósito prévio – Dúvida procedente – Recurso provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1016790-38.2015.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que são partes é apelante MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, é apelada ERICA APARECIDA AGOSTINHO.
A interessada, por meio da dúvida inversa suscitada, expressando seu inconformismo quanto ao juízo negativo de qualificação registral, pretende o registro de duas escrituras públicas de compra e venda[1], recusado pelo Oficial de Registro[2], mas determinado, pelo MM Juízo Corregedor Permanente, em sentença[3], depois impugnada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso para julgar procedente a dúvida inversa, de sorte a restar desautorizado o acesso das escrituras públicas ao álbum imobiliário, v.u. Vencido na preliminar o Desembargador Ricardo Dip, que declarará voto.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.
Nas razões de apelação, o recorrente argumenta não ser admissível alienar frações ideais de bem imóvel rural expressas, nas escrituras públicas e não se sabe se de maneira fidedigna, em partes certas e delimitadas, a mascarar extinção anômala de condomínio, sequer antecedida de concordância dos demais condôminos. Pondera, por fim, que erros pretéritos não se prestam a legitimar o ato registral pretendido[4].
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, LUIZ ANTONIO DE GODOY, RICARDO DIP E SALLES ABREU.
A suscitante ofereceu contrarrazões[5], instruídas com documentos[6], os autos foram encaminhados ao C. CSM, a Pro-
ACÓRDÃO
São Paulo, 10 de fevereiro de 2017. PEREIRA CALÇAS Corregedor Geral da Justiça e Relator
26 ARISP JUS
1 Fls. 2-9. 2 Fls. 99-102. 3 Fls. 113-114. 4 Fls. 117-123. 5 Fls. 128-148 6 Fls. 149-170.
curadoria Geral da Justiça opinou pelo desprovimento do recurso[7] e, no mais, as certidões das matrículas n.ºs 31.490 e 45.736, respectivamente do 2.º RI e do 1.º RI de São José dos Campos, foram juntadas aos autos[8]. É o relatório. A interessada, recorrida Erica Aparecida Agostinho, inconformada com o juízo negativo de qualificação registral, suscitou dúvida inversa, criação pretoriana historicamente admitida por este C. CSM[9] e disciplinada pelas NSCGJ[10]: ao invés de requerer a suscitação de dúvida ao Registrador, dirigiu sua irresignação diretamente ao MM Juiz Corregedor Permanente. Ao reverso do alegado pela apelada, não há óbice ao conhecimento do recurso. As razões de apelação guardam relação com a exigência registral pertinente à inadmissibilidade de alienações de frações ideais com medida certa. Retomam tema arguido no parecer oferecido pelo apelante antes da prolação da sentença[11]. Enfim, o exame da questão ventilada na apelação, em cuja peça também se questiona a ocorrência de extinção anômala de condomínio, foi devolvido a este C. CSM. Ademais, a requalificação dos títulos, com reapreciação da dúvida em sua plenitude, é própria deste procedimento administrativo. O dissenso versa sobre a registrabilidade de duas escrituras públicas: a primeira, lavrada no dia 10 de junho de 2003, mediante a qual Thiago, André, Felipe da Cunha Alcântara Corrêa, Ana Lúcia da Cunha e Pedro Alcântara Corrêa alienaram a Erica Aparecida Agostinho, interessada, a parte ideal equivalente a 2 ha (hectares) ou 20.000 m² (ou 0,8264 alqueires paulistas) do imóvel descrito na mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos[12]; e a segunda, ajustada em 27 de dezembro de 2012, por meio da qual a interessada,
7 Fls. 174-176. 8 Fls. 184-186 e 190-192. 9 Apelação Cível n.º 23.623-0/1, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 20.2.1995; Apelação Cível n.º 76.030-0/8, rel. Des. Luís de Macedo, j. 8.3.2001; e Apelação Cível n.º 990.10.261.081-0, rel. Des. Munhoz Soares, j. 14.9.2010. 10 Item 41.1. do Cap. XX. 11 Fls. 109 12 Fls. 26-29
lastreada na aquisição anterior, vendeu a Aparecida Mendes Santos a parte ideal correspondente a 0,1180% do todo[13]. Os primeiros alienantes, convém anotar, dispuseram de direitos inscritos em extensão inferior aos então por eles titulada: ora, titulares de 2,64 alqueires (em imóvel rural com área de 7 alqueires ou 16,94 ha) equivalentes, consoante a retificação objeto da av. 1 da mat. n.º 31.490, a 37,7143% do bem imóvel[14] , venderam 2 ha (ou 0,8264 alqueires paulistas). Da mesma forma, a interessada, anos depois, com base na aquisição feita, dispôs de menos do que havia incorporado ao seu patrimônio, porque, tendo adquirido 2 ha (ou, a partir de simples regra de três, 11,80637% do todo), alienou parte ideal correspondente 0,1180% do imóvel rural. Vale dizer, as operações econômicas realizadas não ofenderam o princípio da disponibilidade quantitativa. Ao lado disso, em ambos os títulos, a descrição do imóvel sobre o qual recaem as partes ideais negociadas coincide com a identificação tabular, ou seja, está em conformidade com a lançada na mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos. Em suma, reportase aos dados descritivos da matrícula, a descartar, sob esse enfoque, a vulneração do princípio da especialidade objetiva. Ao expor as razões da recusa, o Oficial, contudo, de modo a ratificar as devoluções pretéritas, ponderou, inicialmente, a impossibilidade do título do primeiro, então fazer alusão a partes ideais com medida certa, porque devem ser expressas em percentuais incidentes sobre a área total do bem imóvel. Entretanto, ressalvou a inexistência de indícios de fraude à lei de parcelamento do solo ou de transmissão de posse localizada[15]. Quanto a essa exigência, observo que o bem imóvel envolvido nos negócios jurídicos especificados, objeto da mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos (com origem na mat. n.º 5.736 do 1.º RI de São José dos Campos, em cuja circunscrição territorial aquele se situava), pertence a mais de uma pessoa e se encontra em estado de indivisão. O condomínio (no caso, tradicional), com origem convencional, é pro-indiviso: não há sequer elementos mínimos a 13 Fls. 90-92. 14 Fls. 185. 15 Fls. 99-100, item 1, e 101, item I, parte final. ARISP JUS 27
indicar a efetiva divisão fática da coisa tabularmente indivisa, muito menos a sugerir uma divisão fática que tenha contado com a anuência (ainda que tácita) de todos os condôminos. Não se pode afirmar, realmente, que cada condômino está localizado em parte certa e determinada do imóvel comum. Enfim, a situação de indivisão persiste. Assim sendo, na justa lição de Caio Mário da Silva Pereira, “a cada condômino é assegurada uma quota ou fração ideal da coisa e não parcela material desta.”[16] (grifei) Consoante esclarece Luiz Edson Fachin, cada condômino exerce o domínio (elemento interno do direito real de propriedade) sobre a totalidade da coisa, enquanto, sob outro prisma, exerce a titularidade formal (abstrata, elemento externo, de ordem obrigacional, que é a relação jurídica que se estabelece com o sujeito passivo universal) sobre uma parte ideal da coisa indivisa.[17] Na mesma linha segue Francisco Eduardo Loureiro, ao apontar as duas características básicas do condomínio geral: ... A primeira é a cotitularidade dominial sobre uma mesma coisa. A segunda é o regime jurídico de cotas ou partes ideais sobre a coisa, cabendo a cada condômino uma fração ou percentagem sobre o todo, sem que o direito incida sobre uma parte fisicamente determinada. Os direitos dos condôminos, assim, são qualitativamente iguais, porque incidem em partes ideais sobre a totalidade da coisa, embora possam ser quantitativamente distintos, proporcionais à força de seus quinhões.[18] (grifei)
Logo, correta a objeção apresentada pelo Oficial, em relação a qual, porém, cabe uma ressalva, para sublinhar que os negócios jurídicos mascaram, sim, indevida transmissão de posse localizada. A fragmentação física, e fática, da coisa comum indivisa, idealizada pelos contratantes, avulta. Ressai tanto, e principalmente, do primeiro título, da menção a fração ideal com metragem certa, como ainda da subsequente 16 Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. 20.ª ed. Atualizada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 151. v. IV. 17 Comentários ao Código Civil: Direito das Coisas (arts. 1.277 a 1.368). Antônio Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 169-170. v. 15. 18 Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Cezar Peluso (coord.). 7.ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 1.315-1.316.
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alienação feita pela interessada, que dispôs de menos de 1% da fração ideal anteriormente adquirida: aliás, na primeira operação econômica, os alienantes venderam, também, e com metragem certa (já se pontuou) para piorar, quota inferior a que titulam. De resto, a situação fica ainda mais clara quando a interessada, nas contrarrazões, afirma que o condomínio é pro-diviso[19]. Embora o argumento não tenha respaldo nos autos, evidencia que, no plano fático, as frações ideais alienadas estão sendo destacadas da gleba maior; revela (reforça a conclusão de) vendas de partes ideais como se unidades autônomas fossem, com posse, portanto, localizada. A hipótese dos autos desnuda a violação do item 171 do Cap. XX das NSCGJ, de acordo com o qual “é vedado o registro de alienação voluntária de frações ideais com localização, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra. ...” O contexto expõe, ademais, o propósito disfarçado de divisão (parcial) da coisa comum, sem, no entanto, o indispensável consentimento de todos os condôminos, que, prescindível, é verdade, para disposição da fração ideal, exsurge necessário, ainda que divisível o imóvel, para fins de divisão (extinção) amigável do condomínio. No tocante a esse ponto, é oportuno assinalar que, se a controvérsia se limitasse a simples alienações de frações ideais, de quotas ideais sobre o todo e cada uma das partes do bem comum indiviso (em estado de indivisão) sob titularidade dos alienantes, a falta de prévia notificação dos demais condôminos para eventual exercício do direito de preferência (art. 504 do CC) não obstaria a inscrição dos títulos causais. E isso porque seriam válidas, embora ineficazes temporariamente (pelo prazo decadencial de cento e oitenta dias) em relação aos preteridos[20]. A conjuntura, entretanto, não é essa; é bem diversa, destacou-
19 Fls. 137. 20 Cf. Francisco Eduardo Loureiro, op. cit., p. 1.317. E também Ronaldo Alves de Andrade, in Comentários ao Código Civil Brasileiro: direito das obrigações (arts. 421 a 578). Arruda Alvim; Thereza Alvim (coords.). Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 802-803. v. V.
-se acima. Inclusive, para agravar, expressa violação de outro princípio registral, o da disponibilidade, em sua vertente qualitativa. Ora, até a divisão da coisa comum (em estado de indivisão), não se saberá o quinhão individuado que tocará a cada um dos condôminos, com valor proporcional à fração ideal deles; não terá ocorrido, com registro na serventia predial, a modificação patrimonial qualitativa ínsita à divisão. Ou seja, por enquanto, o que é abstrato, ainda não se tornou concreto. Portanto, também por isso, em prestígio do princípio da disponibilidade, os títulos qualificados, contemplando alienações de frações ideais localizadas, não comportam acesso ao fólio real, à mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos. Estão em desconformidade com o efetivo poder de disposição dos alienantes; em desacordo com a titularidade formal a eles atribuída. E aqui, novamente, calham as lúcidas considerações de Luiz Edson Fachin: Quanto à possibilidade de alienação, gratuita ou onerosa, ainda que se origine no poder de disposição, projeta-se para a seara da titularidade na qual não incide a comunhão: nesse âmbito, há propriedade individual sobre partes ideais da coisa indivisa. Trata-se de dimensão que não concerne ao poder direto sobre a coisa, elemento interno que caracteriza o domínio, mas de dimensão que se projeta externamente, para produzir relação jurídica de natureza contratual com terceiros, que terá o bem como objeto mediato. Consoante essa ordem de ideias, como é evidente, o condômino só pode alienar sua parte ideal, sobre a qual exerce titularidade formal. Sobre a cota-parte, que se projeta no âmbito da titularidade incide exclusividade, podendo o condômino aliená-la gratuita ou onerosamente, sem necessidade de anuência dos demais[21]. (grifei e sublinhei)
No que se refere ao registro anterior (antiquíssimo) de escritura pública de venda e compra tendo por objeto parte ideal com metragem certa[22], é de rigor recordar, e reafirmar, a jurisprudência administrativa desta Corte, segundo a qual erros pretéritos não justificam nem legitimam outros; quero dizer, não se prestam a respaldar os atos registrais pretendidos, na justa compreensão deste C. CSM[23].
21 Op. cit., p. 177. 22 R. 2 da mat. (matriz) n.º 45.736 do 1.º RI de São José dos Campos fls. 190. 23 Apelação Cível n.º 20.603-0/9, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 9.12.1994; Apelação Cível n.º 19.492-0/8, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 17.02.95; e Apelação Cível n.º 024606-0/1, rel. Des.
Por sua vez, a respeito da exigência atinente ao CCIR[24], a cada imóvel, em atenção ao princípio da unitariedade, deve corresponder uma única matrícula. E a identificação do imóvel, por força do princípio da especialidade objetiva e, especialmente, da regra do art. 176, II, 3, a, da Lei n.º 6.015/1973, supõe os dados constantes do CCIR. Esse, portanto, o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, deve referir-se a sua área total (16,94 há, no caso), de modo a singularizá-lo, e não, sob essa ótica, reportar-se a fração ideal da coisa, a parte da extensão do bem (14,5 há, como o apresentado[25]). Destarte, na hipótese, porque os negócios jurídicos abrangem alienações de frações ideais de imóveis em estado de indivisão, exige-se CCIR correspondente ao todo, não atendendo o rigor legal alusão a certificado de parte do bem. A exigência de exibição do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) expedido pelo INCRA, previsto no Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964[26]), não é nova: consta do art. 22 da Lei n.º 4.947/1966 e, mais recentemente, do art. 1.º do Decreto n.º 4.449/2002, que regulamentou a Lei n.º 10.267/2001, diploma legal que, entre outras, promoveu alterações no art. 176 da Lei n.º 6.015/1973 para fazer constar a necessidade da identificação do imóvel rural contemplar seu código e os dados constantes do CCIR. Em síntese, a deficiente identificação do bem imóvel rural, presa ao CCIR, também está a impedir as inscrições perseguidas, porquanto em desconformidade com os princípios da legalidade e da especialidade objetiva[27], conforme, aliás, recente deliberação deste C. CSM[28]. De mais a mais, a superação de exigência símile em procedimento de dúvida anterior, resolvido em primeira instância[29], não basta para relevá-la. Vale, aqui, o que acima se afirmou sobre os erros pretéritos.
Antônio Carlos Alves Braga, j. 30.10.1995. 24 Fls. 100, itens 2 e 1, e 101-102, itens I e II. 25 Fls. 30, 36, 82. 26 Cf. art. 46. 27 Cf., ainda, itens 59, II, e 59.1, do Cap. XX das NSCGJ. 28 Apelação n.º 9000002-83.2015.8.26.0099, de minha relatoria, j. 9.6.2016. 29 Fls. 13-22 e 84. Cf., ainda, r. 2, r.3 e av. 4 da mat. 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos fls. 185-186. ARISP JUS 29
Agora, não se justifica, por variadas e diferentes causas, a exibição de CNDs (certidões negativas de débitos tributários e previdenciários), seja porque sem relação com o registro pretendido, seja diante da atual compreensão do C. CSM, iluminada por diretriz fixada pela Corte Suprema[30], a dispensá-la, pois, mantida fosse a exigência[31], prestigiaria vedada sanção política[32]. A confirmação dessa exigência importaria restrição indevida ao acesso de títulos à tábua registral, imposta então como forma oblíqua, instrumentalizada para, ao arrepio e distante do devido processo legal, desatrelada da inscrição visada e contrária à eficiência e segurança jurídica ínsitas ao sistema registral, forçar, constranger o contribuinte ao pagamento de tributos[33]. Levaria a restrição de interesses privados em aberto desacordo com a orientação do E. STF, a qual se alinhou este C. CSM; incompatível com limitações inerentes ao devido processo legal, porque mascararia uma cobrança por quem não é a autoridade competente, longe do procedimento adequado à defesa dos direitos do contribuinte, em atividade administrativa estranha à fiscalização que lhe foi cometida, ao seu fundamento e fins legais, dado que as obrigações tributárias em foco não decorrem dos atos registrais intencionados. Conforme Humberto Ávila, “a cobrança de tributos é atividade vinculada procedimentalmente pelo devido processo legal, passando a importar quem pratica o ato administrativo, como e dentro de que limites o faz, mesmo que e isto é essencial não haja regra expressa ou a que seja prevista estabeleça o contrário[34].” 30 ADI n.º 173/DF e ADI n.º 394/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, j.25.9.2008
31 Fls. 100, itens 3 e 2, e 101-102, itens I e II. 32 Apelação Cível n.º 0013759-77.2012.8.26.0562, rel. Des. Renato Nalini, j. 17.1.2013; Apelação Cível n.º 0021311-24.2012.8.26.0100, rel. Des. Renato Nalini, j. 17.1.2013; Apelação Cível n.º 001369347.2012.8.26.0320, rel. Des. Renato Nalini, j. 18.4.2013; Apelação Cível n.º 9000004-83.2011.8.26.0296, rel. Des. Renato Nalini, j. 26.9.2013; e Apelação Cível n.º 0002289-35.2013.8.26.0426, rel. Des. Hamilton Elliot Akel, j. 26.8.2014. 33 A respeito da proscrição das sanções políticas, cf. Hugo de Brito Machado, in Curso de Direito Tributário. 32.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 509-511. 34 Sistema constitucional tributário. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173. 30 ARISP JUS
Na mesma trilha, sob inspiração desses precedentes, escudado, assim, no ideal de protetividade dos direitos do contribuinte, na eficácia e na função bloqueadora próprios do princípio do devido processo legal[35], segue o subitem 119.1. do Cap. XX das NSCGJ, in verbis: “com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais.” Com essas considerações, suficientes para afastar, in concreto, toda e qualquer exigência ligada à comprovação de pagamento ou inexistência de débitos fiscais despegados dos registros idealizados, é oportuno, em acréscimo, e particularmente quanto ao ITR (imposto sobre propriedade territorial rural), tendo em vista o comando emergente do art. 21, caput, da Lei n.º 9.393/1966[36], realçar, à luz do argumentado, a desnecessidade de comprovação de seu pagamento, a ser fiscalizado e perseguido pela União, pela Fazenda Pública Federal ou, nos termos do art. 153, § 4.º, III, da CF[37], pelos Municípios. Dela (a comprovação), por isso, também independe o registro. À dispensa afirmada, ademais, conduz a intelecção do par. único do art. 21 da Lei n.º 9.393/1966[38], que, ao fazer remissão à regra do art. 134 do CTN, condicionou a responsabilidade solidária (e subsidiária) dos tabeliães e re-
35 A propósito dessa estrutura do princípio do devido processual legal, cf. Humberto Ávila, op. cit., p. 173-176. 36 Art. 21. É obrigatória a comprovação do pagamento do ITR, referente aos cinco últimos exercícios, para serem praticados quaisquer dos atos previstos nos arts. 167 e 168 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), observada a ressalva prevista no caput do artigo anterior, in fine. 37 Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: VI propriedade territorial rural; § 4.º O imposto previsto no inciso VI do caput: III será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal. 38 Art. 21. (...) Parágrafo único. São solidariamente responsáveis pelo imposto e pelos acréscimos legais, nos termos do art. 134 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 Sistema Tributário Nacional, os serventuários do registro de imóveis que descumprirem o disposto neste artigo, sem prejuízo de outras sanções legais.
gistradores pelas obrigações não cumpridas pelo contribuinte à existência de um vínculo entre o tributo não pago e o ato praticado, ausente, em se tratando do ITR, cujo fato gerador, sendo a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel rural, é alheio aos registros visados.
desautorizado o acesso das escrituras públicas ao álbum imobiliário. PEREIRA CALÇAS Corregedor Geral da Justiça e Relator
Nessa trilha, os registros, inviabilizados por razões outras, independem de certidões negativas de débitos e Documento de Informação e Apuração do ITR DIAT e demonstração de quitação desse tributo.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO Conselho Superior da Magistratura Apelação 1016790- 38. 2015.8 .26 .0577 – SEMA Dúvida de registro
No que se refere à averbação da reserva legal, a especialização exigida[39] (porque a qualificação envolve transmissão de domínio) é imprescindível, mormente porque não consta o registro da reserva legal florestal no órgão ambiental competente, então por meio de inscrição do bem imóvel rural no CAR; está, dessarte, em harmonia com recente precedente deste C. CSM[40].
VOTO DE VENCIDO (Voto n. 45. 605 )
Em arremate, uma última observação, à vista dos emolumentos exigidos[41]. Sem dúvida, assim como as despesas relativas às inscrições recusadas, o Registrador, por ocasião da apresentação e da prenotação dos títulos, pode exigi-los, a título de depósito prévio. Isto é, eram passíveis de cobrança, antecipadamente aos atos pretendidos[42]. Condicionariam legitimamente a recepção, a prenotação dos títulos e o juízo de qualificação registral[43]. Em outras palavras, a suscitação de dúvida pode depender mediatamente do depósito prévio: sem este, realmente, se exigido, o que é uma faculdade do Oficial, não haverá protocolização do título, qualificação nem juízo de qualificação negativo, antecedente da dúvida. Todavia, se dispensado, e superadas as exigências, a falta de pagamento dos emolumentos e das custas não pode travar a marcha dos procedimentos registrais. Isto posto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso para julgar procedente a dúvida inversa, de sorte a restar
39 Fls. 102, parte final. 40 Apelação n.º 1000891-63.2015.8.26.0362, de minha relatoria, j. 2.6.2016. 41 Fls. 100, item 4. 42 Cf. art. 14, caput, da Lei n.º 6.015/1973, art. 13 da Lei Estadual n.º 11.331/2002 e item 69 do Cap. XIII das NSCGJ. 43 Cf. subitem 26.4 do Cap. XX das NSCGJ.
1. Registro, à partida, adotar o relatório lançado pelo insigne Relator da espécie. 2.Sem embargo, da veniam, permito- me lançar um reparo. Já é tempo de deixar de admitir o que se convencionou chamar dúvida “inversa”, ou seja, aquela levantada pelo próprio interessado, diretamente ao juízo corregedor. A prática, com efeito, não está prevista nem autorizada em lei, o que já é razão bastante para repeli-la, por ofensa à cláusula do devido processo ( inc. LIV do art. 5 º da Constituição), com a qual não pode coadunar- se permissão ou tolerância (jurisprudencial, nota) para que os interessados disponham sobre a forma e o rito de processo administrativo, dispensando aquele previsto no estatuto de regência (Lei n. 6.015, de 31 -12 -1973, arts. 198 et seqq.). Se o que basta não bastara, ainda há considerar que ao longo de anos a dúvida inversa tem constituído risco para a segurança dos serviços e mesmo para as justas expectativas dos interessados. É que, não rara vez, o instrumento vem sendo manejado sem respeito aos mais elementares preceitos de processo registral (o primeiro deles, a existência de prenotação válida e eficaz), de modo que termina sem bom sucesso, levando a delongas que o paciente respeito ao iter legal teriam evitado. Meu voto preliminar, pois, julgava extinta a dúvida, sem apreciação de seu mérito, prejudicado o exame do recurso de apelação. 3. Superada a preliminar, entretanto, voto pelo provimento do recurso, porque, havendo fundados indícios de que o pretendido registro stricto sensu sirva para parcelar solo sem ARISP JUS 31
o cumprimento das exigências urbanísticas pertinentes, a dúvida é de fato procedente. Mais que isso ( e como faz notar o voto de relatoria), também impedem a inscrição a falta de certificado de cadastro do imóvel rural (CCIR) e a ausência de averbação de reserva legal, exigíveis in casu. DO EXPOSTO, por meu voto preliminar, julgava extinto o processo, sem resolução de mérito, prejudicado o recurso de apelação do Ministério Público do Estado de São Paulo. No mérito, dou provimento ao recurso, para o fim de que, reformado o r. decisum da inferior instância, não se proceda ao rogado registro stricto sensu. É como voto. Des. RICARDO DIP Presidente da Seção de Direito Público
DECISÃO JURISDICIONAL #1 Processo REsp 1450344/SC RECURSO ESPECIAL 2014/0053043-2 Relator(a) Ministro HERMAN BENJAMIN (1132) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 06/12/2016 Data da Publicação/Fonte DJe 19/12/2016 Ementa PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. OFENSA AO ART. 535 DO CPC/1973 NÃO CONFIGURADA. ITR. ÁREA DE RESERVA LEGAL. AVERBAÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. NECESSIDADE PARA FINS DE GOZO DA ISENÇÃO. 1. Trata-se de Recurso Especial em que se discute se o direito à isenção do Imposto Territorial Rural-ITR sobre Área de Reserva Legal está ou não condicionado à sua prévia averbação no Registro de Imóveis. CONHECIMENTO 2. Deve ser afastada a alegação do recorrido, de que o Recurso Especial do ente fazendário é inadimissível porque se refere a outro processo. 3. O processo tramitou por meio eletrônico, e disso faz prova a certidão de fl. 485, e-STJ, que atesta que a interposição do Recurso Especial foi assinada eletronicamente pela Procuradora da Fazenda Nacional, Dra. Berenice Ferreira Lamb. 4. Nesse contexto, presume-se que o ato processual foi praticado pela parte nos respectivos autos, pois foi necessária a prévia vinculação eletrônica da peça recursal ao processo específico. Registre-se, ainda, que diante da interposição eletrônica do recurso, nem mesmo era obrigatória a identi-
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ficação, no corpo da petição, dos dados do processo (tal qual ocorreu, por exemplo, com a petição de interposição dos Embargos de Declaração, que se limitou a indicar o objeto do ato processual, isto é, não descreveu o número de autuação do feito, nem tampouco as partes da relação jurídica processual - fl. 454, e-STJ), também transmitida eletronicamente (fl. 453, e-STJ) e julgada pela Corte local sem qualquer questionamento. 5. Enfim, a questão decidida no acórdão impugnado e combatida no Recurso Especial consiste na definição a respeito da necessidade ou não da averbação da Área de Reserva Legal, para fins de isenção do ITR. Assim, o acréscimo de outros elementos narrativos, inseridos em petição padronizada (modelo) de recurso, devem apenas ser desconsiderados, sem entretanto comprometer o julgamento do mérito recursal em relação ao ponto controvertido. Afasto, portanto, a incidência das Súmulas 182/STJ e 283 e 284 do STF.
9. Recurso Especial parcialmente provido, com determinação de retorno dos autos para prosseguimento do feito, em relação aos pedidos sucessivos apresentados pela autora (ora recorrida). Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: ""Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista regimental do Sr. Ministro Herman Benjamin, dando parcial provimento ao recurso, a Turma, por unanimidade, deu-lhe parcial provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator." O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques e a Sra. Ministra Assusete Magalhães (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
MÉRITO 6. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC/1973.
Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Og Fernandes e Francisco Falcão, nos termos do art. 162, § 4º, do RISTJ."
7. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que, para assegurar o direito à isenção do ITR, é imprescindível a averbação da Área de Reserva Legal no respectivo registro de imóveis.
Referência Legislativa
8. Assiste razão à recorrida no que diz respeito à existência de pedidos sucessivos formulados na inicial. Com efeito, na petição inicial foi pedido, caso não fosse anulado o Auto de Infração, que ao menos fosse determinada a sua retificação, para o efeito de modificar a base de cálculo do tributo (com lastro no valor real de mercado da terra nua) ou aplicada a menor alíquota de ITR vigente ao tempo do fato gerador, considerando-se o imóvel com grau de utilização de 100%. A parte acrescentou, durante a tramitação dos autos, a informação de que em outra demanda entre as mesmas partes, relativa ao exercício de 1998 (a presente versa sobre o exercício de 2000), a Corte local e o STJ confirmaram o direito à isenção, devendo ser aplicado o mesmo entendimento a este feito. Tais pedidos não foram apreciados porque o fundamento então adotado - de que é isenta a Área de Reserva Legal, independentemente de averbação - era suficiente para a composição da lide. Com a sua superação, não é possível ao STJ decidir a respeito, sob pena de supressão de instância.
LEG:FED LEI:005869 ANO:1973 ***** CPC-73 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 ART:00535 Veja (PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS FINALIDADE DO ATO) STJ - AgRg no AREsp 229327-RS (NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL) STJ - REsp 927216-RS, REsp 855073-SC (ISENÇÃO DO ITR - AVERBAÇÃO DA ÁREA DE RESERVA LEGAL) STJ - AgRg no REsp 1429300-SC, AgRg nos EDcl no REsp 1342161-SC, EREsp 1027051-SC
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DECISÃO JURISDICIONAL #2 Processo AgInt no RMS 49361 / CE AGRAVO INTERNO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2015/0243001-3 Relator(a) Ministro FRANCISCO FALCÃO (1116) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 16/02/2017 Data da Publicação/Fonte DJe 08/03/2017 Ementa ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. REGISTRO DA SENTENÇA NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. ISENÇÃO DE EMOLUMENTOS. EXTENSÃO DA PRERROGATIVA DA UNIÃO AO DNOCS (DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS). POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. I- De acordo com o art. 1º do Decreto-Lei n. 1.537/77, a União é isenta "do pagamento de custas e emolumentos aos Ofícios e Cartórios de Registro de Imóveis, com relação às transcrições, inscrições, averbações e fornecimento de certidões relativas a quaisquer imóveis de sua propriedade ou de seu interesse, ou que por ela venham a ser adquiridos". II - Conforme estipula o art. 31 da Lei n. 4.229/63, ao DNOCS "serão extensivos a imunidade tributária, impenhorabilidade de bens, rendas ou serviços e os 34 ARISP JUS
privilégios de que goza a Fazenda Pública, inclusive o uso de ações especiais, prazo de prescrição e regime de custas correndo os processos de seu interesse perante o Juiz de Feitos da Fazenda Pública, sob o patrocínio dos procuradores da autarquia". III - A isenção do pagamento de custas e emolumentos relativas a quaisquer imóveis de propriedade da União ou de seu interesse, ou que por ela venham a ser adquiridos, prevista no art. 1º do Decreto-Lei n. 1.537/77 é extensiva às autarquias federais. IV Agravo interno improvido. Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negou provimento ao agravo interno, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)Relator(a)." Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Og Fernandes, Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
EXPEDIENTE GESTÃO Francisco Raymundo COORDENAÇÃO Alberto Gentil de Almeida Pedroso DIAGRAMAÇÃO Alessandra Giugliano Russo Vaner Caram FOTOGRAFIA Nelson Oliveira Vaner Caram
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