MINDELACT 2O22
DIÁRI
Mindelact, 24 anos de história que revolucionou o teatro em Cabo Verde. Neste momento, só temos saudades do futuro!
O1
www.mindelact.org
CELEBRAÇÃO
Deep Skin. Fotografia de @Queila Fernandes
PALCO 2 Deep Skin é uma parábola sobre os últimos tempos, em que a humanidade experimentou dois dos seus piores fleumas: Primeiro, o da Pandemia, que por dois anos, dizimou almas e prostrou economias, e no presente momento, o da Guerra, que, qual coice depois da queda, trouxe
no
seu
bojo
ameaças
de
maior
empobrecimento mundial, fome e exterminação nuclear. É nesse contexto que nasce a pele profunda, um texto original de Natália Block, que parte da experiência vivida pela actriz ucraniana, Nadia Marinka que viveu profundamente na pele a transição da Pandemia para a Guerra de Donbass. A dramaturgia da peça que se pretende próximo do universo Kafkiano, versa sobre uma presumível pandemia letal que seria veiculada por percevejos trazidos à Ucrânia pelo exército vermelho. Por Emanuel Ribeiro
DEEP SKIN In Impetus & Nadia Marinka & Mindelact
É uma metáfora - claro está- de que o ódio
Ora, o encenador de Deep Skin, o renomado
veiculado pela guerra é a pior das pandemias,
actor Português, Pedro Barão, tendo em mãos um
pois
marcas
monólogo, descritivo, narrado no passado e na
indeléveis na alma da humanidade. Ora, se por
primeira pessoa, sem diálogos, e por conseguinte
um lado a questão dramática colocada por esta
com pouca carga dramática por definição, acabou
proposta cénica é muito forte e sensível, porém a
optando e bem, por uma narrativa em montagem
resposta que lhe é dada pela dramaturgia de
audiovisual, com projeção de imagens da guerra
Block, acaba passando um pouco ao lado do seu
em paralelo com a ação dramática em palco.
objectivo fulcral, que era o de, pela emoção viva
Facilitou por outro lado a interpretação cénica da
do teatro, pôr o espectador e o mundo na pele
Atriz Oceana Basílio, com recurso a partes do
dos filhos da Ucrânia, e dessa empatia, alimentar
texto gravados em off, o que, quanto a nós,
mais uma centelha de esperança na reconstrução
diante da envergadura e da experiência da
da paz. E isso, talvez, por o processo de gestação
conhecida Atriz, pareceu-nos pouco desafiador,
da peça, que decorre entre a Ucrânia e Portugal,
mas que poderá ter sua justificação no facto de
acontecer de forma turbulenta, em plena guerra,
que esta só assumiu a interpretação do monólogo
o que faz da autora ela própria uma vítima do
por indisponibilidade (da atriz ucraniana Nadia
deep skin. E virá daí, com certeza, o paradoxo
Marinka) que supostamente seria a protagonista
presente no texto, em que a mesma personagem
da peça, não tivesse sido ela mesma apanhada
que na peça diz a assertiva máxima, de que “a
pelos efeitos colaterais da guerra. Devemos dizer
única forma de curar a guerra é a paz”, é a
que
mesma que minutos depois, num pensamento
sonoplastia terem contribuído à perfeição para a
bélico, diz : “Acho que deveríamos matar o Putin”
recriação
sublinhando a sua frase com a encenação de um
guerra, e que embora a interpretação de Basílio
fuzilamento
esta
pareceu-nos bem técnica e sincera, a comoção da
contradição aparente, acaba sendo um pouco a
separação e da guerra, talvez tenha chegado á
prova paradigmática, pretendida pela peça, de
primeira fila, mas já não nos atingiu a meio da
que na guerra, o mais difícil é nos mantermos
plateia. E se assim foi, ou é porque ela não estava
longe da narrativa do ódio e da vingança, isto é,
de
imunes ao deep skin.
consegue justificar o figurino do protagonista; ou
que
atravessa
por
a
pele
vários
e
tiros.
deixa
Porem
não
obstante em
permeio
o
cena
no
do
texto
desenho caótico
narrativo,
de
luz
e
ambiente
que
a de
sequer
porque havia mais sentido de missão cumprida na
interpretação
que
identificação
com
a
personagem; ou, então simplesmente porque nós também, como mediadores, não escapamos ao deep skin desta guerra deplorável.
PALCO 1 Pantera, de Clara Andermatt é claramente um balet de
Então a palavra, o som, a luz, o cenário, os
“Pano di Tera”, uma obra prima que aclara o “Under
instrumentos musicais e os adereços também
Mat” da nova dança Cabo-Lusa. É a voz, a alma e o corpo
entram nesse rodopio de emoções, que redefine
do afeto e da saudade, mesclados a um enorme
uma nova dança, onde nem só da gramática do
manancial de Talentos que se envolveu nesta pungente
corpo vive a coreografia mas de toda metáfora
homenagem (em jeito de Dança-Teatro) a esse nosso
visual, plástica e sonora que vem do Reino da
saudoso “fidju di Tera”, que pôs o batuco na moda, e
Metonímia! E aqui, finalmente, nenhum inter-ator
partiu. Como arte que extrapola as diferentes formas de
é
artes, da expressão corporal, da mímica, da música, do
intervenientes
artesanato e do audiovisual, Pantera, de Clara e Lucas ,
chamava de artista-etc. O bailarino é músico e
se declara às nossas cucas, como uma uma ballet anti-
médium, o músico desdobra-se em actor e
expressivo onde a dança não é mais associada à
mímico, o coreógrafo é um contador de histórias
constante agitação e contínua mobilidade, e muito
e curador, e enfim, vem daí, a confirmação de
menos
de
uma dança que Andermatt já postulava no seu
movimentos. Com efeito, os criadores de Pantera, atuam
ultimo ballet feito em Cabo Verde, “A história da
na
Dúvida”,
se
zona
realiza de
por
mero
confluência
fluxo
entre
cadenciado
várias
linguagens,
apenas
uma
onde
são
ja
única o
valência.
que
Todos
Ricardo
experimentava
os
Basbaum
uma
outra
transitando entre a dança conceptual, as artes visuais, a
corporalidade, onde, na qual sem dúvida, todo e
performance de actor, a opereta, o teatro, e isto tudo
qualquer corpo (treinado ou não) pode dançar.
num giro transdisciplinar, cujo o resultado final é uma obra de arte que não precisa a legenda: “isto é arte”, pois está exclusivamente focada na criação do belo, na experiência do dar e receber emoções, no tocar da alma, e na sociabilidade da mensagem, e, neste comenos, sobretudo no trabalho de CURA-DOR da perda enorme pela partida dessa figura seminal do Folclore Caboverdiano, a saber: o incontornável Orlando Pantera.
Por Emanuel Ribeiro
PANTERA Cia. Clara Andermatt
Como então olhar para este espectáculo que, além de pleito sentido, trás consigo a intenção de descolonização do nosso imaginário colectivo e rupturas de clichês sobre a dança contemporânea? Ao abrir o pano, ou melhor, ao cair os primeiros feixes de luz sobre o plástico e orgânico cenário de alvos lençóis e panos de terra, e, enquanto os músicos-etc. tomam as suas posições, é preciso responder a primeira pergunta óbvia que nos toma: O porquê de toda a paleta de cor ser em branco se a peça falará de Luto, da pena da mulher de pano preto e dessa malograda despedida do nosso Pantera que aconteceria em Março de 2001.
Seguramente porque segundo o Próprio homenageado,
E entre os vários momentos apoteóticos da peça
“Morrer é apenas se sentar na esteira”. E também
que a renomada cantora personaliza um deles é
porque,
do
sem dúvida o hilário quadro no qual ela incarna
espectáculo, que a alva e luminosa energia criativa do
uma fulgurante rainha da Tabanca, numa ópera
Músico, actor, pedagogo e compositor-etc, Orlando
feita de gargalhadas e sons guturais. Magnífico!
Pantera, que é incorporada por cada um dos elementos
Uma última pergunta que não quer calar sobre
do espectáculo, estará na vibração do branco, ou seja na
este espectáculo é sobre a eleição do seu
celebração e no júbilo do seu grande legado, e não na
momento
cor luto. Dito isto, o primeiro quadro que explica a
concorrer
origem da alcunha Pantera, por semelhança do seu
“brinca sucundida” de Avê e Bulu, passando pelo
inconfundível gestual com o da Personagem do Pantera
sensual e acrobático dueto entre Bulu e Jorge
cor-de-rosa, é um intróito que não carece de mediação
Almeida, até o dilacerante final em que a voz de
nem legendas, porquanto a interpretação fabulosa do
Maira quase Chora “Mim ca fazi nada”. Mas eu
tema da famosa banda desenhada (proposta pelos
fico
músicos-etc. Diogo Picão Oliveira, Kabul e Zeca Cardoso
Sócrates- Avê, em jeito de homenagem a esse
) tanto como a “cartúnica” e excelente performance da
grande vulto da nossa música, com quem teriam
bailarina ( Nikita Bulu) não precisa de legendas. Porém
os dois partilhado esse mesmo palco mais de
um facto a entender é que é esse famoso cartoon que dá
duas décadas atrás. Momento magistral esse em
o mote a toda a sonoridade e coreografia da peça:
que
Passos largos e espaciais, de clara comicidade, como se
Andermat é a própria provocação discursiva do
os bailarinos e músicos se conversassem entre si
seu Ballet. E do muito que fica por dizer sobre
animados do espírito Pantera. Então uma pergunta, a
este ballet moderno, que propõe outras formas
meio do espectáculo é inevitável, a saber, de onde vem a
de se fazer arte e de pensar possibilidades
bonita gramática corporal, usado à exaustão pelo exímio
estéticas sem “fetichização” do corpo e da dança
Bailarino Principal (Avelino Chantre, Aka, Avê) e pelos
negra, devo acrescentar que comungar toda essa
seus pares, os extraordinários Djam Niguim, e Jorge
plasticidade
Almeida? Ora, essencialmente do universo que medeia o
eletrizante
gestual típico do Orlando Pantera e da comicidade da
saborear a onda desses poderosos e mediúnicos
personagem animada que lhe valeu o cognome. Aliás é
bailarinos e músicos é uma emoção e um prazer.
ainda nesse universo, que mistura ficção e realidade,
Chora-se e ri com esta audaciosa homenagem e
Pano di tera e Paletó, ópera e batuque, onde se foi
sai-se dela com uma impressão visual gloriosa e a
buscar não só os sugestivos figurinos da peça, bem
certeza de que por quase duas horas esta
como as magistrais incursões operísticas de Sócrates, a
proposta criativa ligou o chão e o céu, e que
comicidade das performances do percussionista Kabul,
Pantera esteve vivo nesse Palco e sobretudo que:
ou ainda a hilaridade gutural, com que a portentosa
“Obra de Pantera ca é p’antera. El é iterna
entenderemos
aos
poucos,
ao
longo
cantora Maira Andrade, presença de destaque nesta homenagem, interpreta algumas das mais emblemáticas composições de Orlando.
clímax. a
com
se
esse
aquilo
prova
Vários título,
que
que
a
chamo
tocante,
o
o
ao
visceral
podem
antológico
Diálogo
dramaturgia
estonteante, e
quadros
desde
de
mesmo e
de
Clara
tempo
elevado,
e
FICHA TÉCNICA
Emanuel Ribeiro Articulista convidado
Queila Fernandes fotografia
Caplan Neves Coordenação, edição e paginação
Mindelact 2022 Festival Internacional de Teatro do Mindelo
NOVEMBRO 2022
ARTE | ALMA | AFETO