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EDIÇÃO BODAS DE PRATA
DIÁRIO MINDELACT ABERTURA TEATRO NACIONAL S. JOÃO JANICE GRAÇA QUEILA FERNANDES a par e passo, o evento dos afetos
PRATA, DEBAIXO DA PELE Janice da Graça
Estende-se o tapete de prata em Mindelo. A multidão caminha em festa, rumo ao Centro Cultural do Mindelo. Personagens extravagantes ao lado de mulheres e homens que se poderiam dizer comuns, não fosse o toque de prata. Prata nas vestes das bonitas crioulas do protocolo, numa gravata-borboleta vermelha e nos olhos de atores, músicos, políticos e público. Essa é a prata que mais me cativa: aquela que luz nos olhos de gente. Diz-se, muito acertadamente, que os olhos são o espelho da alma. Prata nos olhos é apenas o reflexo da prata por baixo da pele. Na alma. No coração. Prata nos olhos não se vê, sente-se. Fecho os olhos e respiro fundo, afinando os ouvidos do coração.
Vêm-me um sentimento de sintonia. Senta-se à minha direita um homem de vestes surradas, que cheira levemente a grogue. Na minha esquerda, uma amiga jornalista. Na minha frente, o Ministro da Cultura, O Presidente da Câmara Municipal de São Vicente e o Presidente do Mindelact. Poderia ser futebol, assim unindo gente de propósitos e ambientes diferentes. Mas é teatro, o que me dá esperança no porvir. Abro os olhos e varro a sala com o olhar, ao som de músicas da terra, no momento de abertura já. Cumprimento amigos. Uma piscadela de olho para ali, um aceno para acolá, um aperto de mão do outro lado. São atores, que já fizeram deste evento anual casa, tecendo amizades que vêm regar, são espetadores frequentes e atores locais, amigos dos dias em que me meti a fazer teatro, que quase só vejo assim. Reencontro. Uma casa de afetos que se levanta para acolher corações que se querem ver. Lá está o Enano. Vem de saias. Rio-me. Já tinha visto um post no Facebook nesse sentido. Não estranho nem acredito que alguém tenha estanhado. Metade da sala já o terá visto, em palco, desnudo. Que é um homem de saias senão a coisa mais normal do mundo? O que é o Mindelact senão um espaço que expande o conceito do normal?
Fotografia Queila Fernandes
descontração Parte do público senta-se no chão, parte de pé, parte nas cadeiras disponibilizadas pela organização. A abertura está marcada para as sete. Faltam alguns minutos mas a sala já está cheia e os oradores prontos para intervir. Sinto o respeito criado em torno do tempo, num esforço contínuo, ano após ano. Olhos e câmaras postas nos oradores. E eu, observando, intrusiva mas discretamente, a prata por baixo da pele, denunciada nos olhos, palavras e gestos dos presentes. Fala o representante dos atores, Elísio Leite. É todo emoções. A mais bonita foi a vontade de ver mais e melhor teatro, de fazer mais e melhor teatro, de ver braços unidos em torno dessa arte, o Mindelact como uma escola de formação de atores que abre Mindelo para o Mundo.“Bodas de Prata, 25 pulsações”, diz o Tony, diretor do Centro Cultural do Mindelo, esse espaço que tem sido a principal casa do Mindelact. “Festival dos afetos foi um slogan muito bem conseguido”, diz o Ministro da Cultura que, tal como os demais oradores, falou com mais alma do que protocolo. Uma sintonia, uma batida.
Entrega. O João Branco, de fato, laço vermelho ao pescoço e brinco na orelha, qual personagem retirado de alguma peça clássica montada no auge da modernidade, irreverente, declara aberto o festival Mindelact 2019. A palavra final (e inicial) é de gratidão, que se estenderá para os dias que por aí virão, distinguindo-se atores, publico e parceiros, importantes personagens dessa “economia dos afetos” que torna o festival possível. “O essencial é invisível aos olhos”, disse Saint-Exupéry na sua icónica obra, “O Principezinho”. Mas se ouvires com o coração, consegues sentir a prata, por baixo da pele. Sabores, saberes, conforto estético, conexão. O público dialoga enquanto se prepara para assistir à peça “Bella Figura”, do Teatro de São João (Portugal). Um abrilhante escolha onde, enquanto as personagens se despem dos seus personas e expõem a força e fragilidade de se ser humano, com todas as paixões e medos que nos assolam, os atores se despem das vestes, nús mas não vulneráveis. Fortes, no abraçar das suas verdades e vontades. Janice da Graça Mindelo, 6 de outubro de 2019
estabilidade . entrega . conexão
Há uma certa calma no ar. Estabilidade. Três terços dos presentes sabem o que por aí vem. Que bom que aí vem! Há uma certa curiosidade. Há pessoas novas a chegar e como disse o Abrãao Vicente, braços de uma “Morabeza escancarada e descarada” a espera para os receber. “Mindelo, a nossa Capital Nacional da Cultura, berço de interessantes movimentações culturais é, provavelmente, a Capital da Morabeza de Cabo Verde”, acrescenta, finalizando por convidar: “aos que vieram este ano, que fiquem, Cabo Verde precisa de todos os que venham para construir”. Entusiasmo. Um espírito aventureiro que se abre para receber e almas que se preparam para se dar.
HOMENAGEM BODAS DE PRATA PÚBLICO - SÓNIA MORAIS