Diário Mindelact 2019 Nº04

Page 1

04

DIÁRIO MINDELACT EDIÇÃO BODAS DE PRATA

RADIM VIZVARY CIA. NOMADA KAORI ITO & THEO JOUVET a par e passo, o evento dos afetos


A ARTE E A PESSOA Rosário da Luz Nos dias de hoje, até as relações entre os familiares e amigos mais próximos são intensamente mediadas; crianças vivem perenemente fixadas num ecrã, raramente vendo alguém de carne e osso fazer algo que lhes interesse – muitas vezes, sequer ouvindo seus pais contar uma história. Por essa razão, parece-me fundamental a recuperação de uma relação direta entre a arte e a pessoa. no teatro juvenil, isto significa demonstrar a crianças, que raramente presenciam o fenómeno, a possibilidade de ter uma relação não mediada com a fantasia e a criatividade. Entre as suas numerosas virtudes, talvez seja essa a virtude fundamental de PAPER BOY, da Mime Prague, encenada e interpretada por Radim Vizváry – uma virtude potenciada pelo desenho íntimo do palco da ALAIM.

Radim Vizvary


Tinha visto Vizváry na noite anterior em VIP, no Palco 1, uma pantomima fenomenal, centrada em temáticas complexas – como o vedetismo, a projeção, a alienação e a autodestruição. Em PAPER BOY, dirigido a um público juvenil, Vizváry utiliza ferramentas muito semelhantes – luz, som, um único figurino, uma mise-en-scène minimalista e a sua incrível expressividade física – para construir um universo completamente diferente, em perfeita sintonia com a espontaneidade e a doçura do imaginário infantil; onde uma fantasia febril invade, contra corrente, o espaço físico do espetador. Voltei às 19h ao ALAIM para ver DULCES BIESTAS, um ensaio estilisticamente aparentado com a arte de Vizváry, e que muita gente gostou; mas que, a mim, deixou com uma sensação de déjà vu, diametralmente oposta à que experimentei tanto em VIP como em PAPER BOY. Não havia nada em DULCES BIESTAS que se comparasse à originalidade e à perpicácia com que Vizváry abordou os universos adulto e infantil.

"Dolces Biestas - Cia. Nómada


"Embrasse Moi" - Kaori Ito & Theo Jovet

Embrasse moi da japonesa Kaori Ito e do francês Théo Touvet, nessa noite, no Palco 1, foi para mim uma experiência de extremos: entre o mais profundo enfado e a mais viva satisfação. Aliás, nada poderia ilustrar melhor o abismo entre a simples experiência pessoal e a mesma experiência transformada arte – ou seja, processada em produto artístico – do que o contraste entre a primeira e a segunda parte da peça. No início do espetáculo, a audiência foi dividida em dois blocos, consoante o número que constava nos seus bilhetes: os portadores de bilhetes pares foram encaminhados para um recinto com Ito, enquanto os espetadores com bilhetes ímpares – eu, entre eles – foram encaminhados para outro recinto e uma “conversa” com Touvet. Uma conversa interminável.


O justificativo que Touvet nos ofereceu para esta “conversa” – que consistiu numa longa narração das suas experiências afetivas e amorosas – é a possibilidade de conhecer um pouco do artista antes da peça, para que esse conhecimento informe a apreciação do seu trabalho. Justificativo que, em mim, tocou um ponto nevrálgico: ao longo de uma vida plena de artistas favoritos, nunca tive o menor interesse pelos detalhes da vida de nenhum. A pessoa e as experiências dos artistas da minha predileção nunca me despertaram curiosidade; só me interessa a experiência transformada em obra. Contrariamente, o que ouvi de Touvet, ao longo de cerca de uma hora, foram experiências pessoais SEM transformação – sem arte. Ou seja, um papo que só poderia interessar ao seu círculo de amigos íntimos e para o qual – era visível pelo burburinho crescente dos espetadores – já ninguém tinha o menor saco. Por vezes ouvia com inveja, do outro lado da parede, as gargalhadas dos espetadores pares que, pelos vistos, tiveram muito mais sorte com Ito; e quando a “conversa” de Touvet finalmente acabou, segui para o auditório, já toda desconfiada e de mau humor. Contudo, o que aí me esperava era revelador: um ensaio honesto, cru e exigente sobre o sexo e o amor; sobre os desafios da comunicação entre amantes, pelo simples facto de cada um ser um indivíduo. Ou seja, o produto das experiências que me foram narradas por Touvet na sua “conversa”, mas agora transformadas em produto artístico; e, por isso, validadas. A posteriori, posso até admitir que essa “conversa” poderá ter servido para enquadrar melhor a performance; mas tudo o que eu aprendi com EMBRASSE MOI foi na performance. E, para mim, de entre todas as funções possíveis da arte – divertir, emocionar, encantar – a central é esta: a de fazer refletir; de levar o espetador a abordar a realidade da sua experiência de outro prisma; de ensinar. Rosário da Luz


TEATRO NA PRAÇA

Rafa Pikapau


HOMENAGEM MINDELACT 2019 VOLUNTARIADO - DANIEL MONTEIRO


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.