Diário Mindelact 2019 Nº08

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EDIÇÃO BODAS DE PRATA

DIÁRIO MINDELACT a par e passo, o evento dos afetos

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CABOCLAS PRODUÇÕES BETY TCHOMANGA ESTALEIRO ESCOLA ARTES


ESTÁS A OUVIR? Caplan Neves

Hoje no festival da Arte, Alma e Afeto se ouviu um ruidoso “estás a ouvir!?”. O “estás a ouvir?” ecoou através dos gritos fragmentados da Deusa Mami Wata de Betty Tchomanga, na zelosa pedagogia do “menos álcool mais vida” do Estaleiro Escola de Artes, no emocionado clamor de Caboclas Produções assaltando, do alto do palco, o mito da democracia racial brasileira.

""Mascarades" - Betty Tchomanga

"Os Dias de Birgitt" - Cia. Sikinada


“Estás a ouvir?” Em Betty Tchomanga o “estás a ouvir?” manifestou-se através do acontecimento. Um “estás a ouvir?” feito de sons, movimentos, gritos, ruídos, ritmos, contacto… mais do que palavras. O espetáculo evolui lentamente, ao ritmo de um ritual de possessão. Quando a performance começava a tornar-se incomodativa ao ponto de escutarmos sussurros compreensivelmente indignados (“então ela veio de tão longe para isto?”) algo invisível emerge através do corpo de Betty e faz a experiência valer a pena: “Estás a ouvir?”. Ouvi, embora não seja algo que eu queira, realmente, repetir com frequência.

""Mascarades" - Betty Tchomanga


"Contos Negreiros do Brasil" - Caboclas Produçþes


Com o Estaleiro e Caboclas encontramos um “estás a ouvir?” direto e sem rodeios. Um comprometimento explícito com temas sensíveis (o Alcoolismo e o Racismo), ancorado em dados da não-ficção e movidos por uma forte necessidade de comunicar uma ideia. Guardadas as devidas proporções, os dois espetáculos têm muito em comum: São ambas obras desenhadas com o intuito de mover as crenças, sentimentos e visões do espetador em determinado sentido. O Estaleiro adota, em sua atuação despretensiosa, rústica e direta, uma abordagem panfletária onde a ação dramática surge como pretexto para o slogan, informações didáticas sobre o alcoolismo e até dados estatísticos. No meio de tudo isto encontramos ainda espaço para breves lampejos daquilo que Brook denominou “teatro em estado bruto” – o teatro do barulho e, portanto, do aplauso. O “Contos Negreiros” de Caboclas produções oferece-nos uma abordagem sofisticada do mesmo princípio. Incorporando o chamado teatro documentário, relata o conto negreiro da alma e carne negra dilacerada por centenas de anos de escravatura e opressão racista. Um intolerável passado tão tristemente presente. Mais do que um pesado legado histórico, uma realidade atual. “Contos Negreiros” é um espetáculo emocionante, mas de um ponto de vista narrativo perde muito com o esforço de dizer ao espetador o que pensar e sentir. O compreensível desespero em passar a urgente mensagem da condição de negro brasileiro acaba por redundar numa linguagem menos indicada a iniciar a conversa do que terminá-la. O festival da Arte, Alma e Afeto cumpriu mais uma vez a sua função: impelir-nos a sentir e a pensar.


HOMENAGEM MINDELACT 2019 PARCEIRO - CÂMARA MUNICIPAL DE S. VICENTE


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