teatro crioulo
01 . 2018
edição
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editorial
Em 1997, a Associação Artística e Cultural Mindelact iniciava um novo projeto editorial intitulado “Mindelact Teatro em Revista”, com a edição e apresentação pública do número 0 de uma nova revista, na presença de inúmeros interessados e colaboradores. Durante 13 anos, até 2009, editaria 14 números impressos, o que viria a marcar de forma indelével o panorama da reflexão na vertente das artes cénicas, e
Coordenação Editorial João Branco PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇão Patrícia Cividanes fotografias Bob Lima Helena Moscoso colaboração Ana Sofia Paiva Airton Ramos Emanuel Ribeiro Fabiano Muniz Filinto Elísio Jorge Carlos Fonseca José Pinto Lisa Reis Marísia Silvestre Nuno Andrade Ferreira Vanisia Fortes Agradecimento especial à Rita Rainho e à Oficina de Utopias, autora de imagem e design do Mindelact 2017, incluindo o coração.
continua a ser, até hoje, a única publicação da historiografia cultural cabo-verdiana exclusivamente dedicada ao teatro feito em Cabo Verde. Muitos estudiosos, com teses de licenciatura, mestrado e doutoramento aproveitaram esta fonte nas suas investigações. Os 14 números da “Mindelact Teatro em Revista” e os seus artigos/autores, tem sido amplamente citados nesses textos académicos, o que só vem comprovar a importância de apostar numa publicação do género, mais ainda nas artes cénicas, onde o produto artístico só tem existência concreta no próprio ato de apresentação. As reflexões, imagens e factos que constam nesses números tornaram possível guardar para a posteridade muita informação que, de uma outra forma, se poderia ter perdido para sempre. Ditou a crise financeira que a revista deixasse de ser editada e hoje os novos tempos apresentam-nos outras possibilidades e soluções, mais baratas e com potencial para chegar num público mais vasto. Daí ter surgido o projeto da SENIKA cujo número experimental é agora concretizado. Temos que confessar que esta vontade de retornar a edição de uma publicação que permitisse incentivar a reflexão em torno do teatro crioulo e a fixação de textos, factos e depoimentos relacionados com o mesmo, sempre esteve presente e é com enorme alegria que hoje se concretiza. A ANTROPOSITIVO, revista brasileira dedicada às artes cénicas de ímpar qualidade e pertinência, foi nossa maior inspiração e o convite, aceite de imediato, para que a Patricia Cividanes pudesse assumir o design da SENIKA encheu-nos de alegria. Por isso somos gratos a ela, ao Ruy Filho e a todos que colaboraram com este número zero. A partir de agora, o teatro crioulo terá um espaço priviligiado para a reflexão, debate e troca de ideias. Bem hajam a todos! A Direcção
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especial mindelact 2017
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mensagem do Presidente da República
Caros amigos do Mindelact Prezado João Branco Artistas, produtores, realizadores, obreiros do teatro e das artes Amigas e Amigos Infelizmente neste certame não me foi de todo possível deslocar-me a Mindelo para convosco partilhar estes momentos únicos da festa do teatro no nosso país. Mesmo o esforço de última hora para estar fisicamente em Mindelo, neste momento, não foi coroado de êxito. As minhas desculpas. De todo o modo acompanhei através da comunicação social a pujança deste acontecimento único em Cabo-Verde, que, muito para além de proporcionar ao público espetáculos de elevado nível, o insubstituível intercâmbio artístico, bem como formação em diversas áreas das artes cénicas, ensina, mais uma vez, como se pode, com criatividade, rigor e muita dedicação ultrapassar o insuperável. A inestimável contribuição do Mindelact vai muito além do teatro e das actividades a ele ligadas, pois ela é a demonstração de que é possível, de forma sistemática, mobilizar energias para se atingirem objetivos nobres em condições muito difíceis. Em certo sentido encarna o espirito de perseverança e tenacidade da nossa gente. Durante estes vinte e poucos anos de actuação o Mindelact tem brindado a cidade, a ilha e, de algum modo, o país, com o que de melhor e inovador se vem fazendo nos palcos do mundo, transformando-se numa autêntica janela através da qual apreendemos essa importante realidade e nos associamos ao pulsar deste mundo que torna a vida menos penosa, mais real, mais completa, por vezes mais bela, ainda que dolorosa, mas, seguramente, mais humana. Esse importante movimento, há muito ultrapassou os limites da cidade e da ilha. Não apenas pelo facto de brindar, também, o público da capital com espectáculos de elevado nível, mas por se ter transformado numa referência para o teatro nacional, numa montra onde todos os actores e encenadores querem estar para mostrar, para aprender, para trocar. Participar do certame tornou-se um objectivo para muitos grupos teatrais que, quase sempre, consentem importantes sacrifícios para participar, mostrar e testar o seu talento, ampliar horizontes, trocar experiências.
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Pelo que pude acompanhar pela comunicação social, o teatro na rua, nas escolas no centro da cidade, nos palcos e nas zonas mais afastadas subverteu o ritmo normal das coisas. Divertiu as pessoas, animou as crianças, despertou a sua curiosidade, permitiu revisitar o passado, desfrutar linguagens cénicas inovadoras, mas, também, serviu de pretexto, neste contexto difícil em que o país se encontra, para reflexões sobre a condição humana, suas grandezas e misérias, o preconceito, o estigma, a solidariedade. Permitiu-nos ver-nos ao espelho com uma autenticidade nem sempre agradável de contemplar. Pude observar e, sobretudo, sentir à distância pelo contágio, que durante estes dias a nossa alma teve possibilidades reais de se libertar, de se livrar dos grilhões que a aprisionam e moldam. As centelhas de poesia, de loucura e arte, que habitam os interstícios insondáveis do nosso ser, terão sido tocadas, bafejadas pelo sopro da criatividade e do maravilhoso, desvendando essa outra face da nossa natureza. Operou-se o milagre. O riso, o choro, a perplexidade, as inquietações terão podido, pela mão da fantasia, libertar-nos das carapaças que, em permanência, nos enquadram, desfiguram e quase nos desumanizam. É como se pudéssemos retroceder quase um século e proclamar a vitória da imaginação e da liberdade. Os propósitos definidos para esta vigésima terceiras edições terão sido totalmente atingidos. A Arte, a Alma e o Afecto, apanágios do Mindelact, mais uma vez foram a espinha emocional do festival. Sim, mais do que contribuir para o teatro, a cultura, a sociedade, a Arte dos obreiros do Mindelact , com esse entrelaçar de corpos, propostas, culturas, continentes, línguas, emoções, modelos, desafios, afectos, suores, risos no corpo inteiro, vão-se transformando em verdadeiros construtores de Alma A Alma cabo-verdiana louva e agradece. Jorge Carlos Fonseca Presidente da República de Cabo Verde
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Identidade crioula O ano de 2017 foi pródigo em grandes eventos culturais e desportivos aqui nas ilhas verdianas. Muitos desses eventos já se repetem há muitos anos, em alguns casos, há décadas. O Carnaval do Mindelo, o mais antigo de todos, é já uma festa quase centenária, como também são as celebrações da Passagem do Ano na Baía do Porto Grande. Um pouco por todas as ilhas, as festas juninas e outros santos populares têm as suas raízes perdidas no tempo. Mais recentemente, os festivais de música espalharam-se pelas ilhas e concelhos, desde que um grupo de jovens da cidade do Mindelo resolveu criar na década de 80 do século passado o Festival de Música da Baía das Gatas, seguindo o exemplo de Woodstock, que aconteceu em 1969. É caso para dizer que este pequeno país não se pode queixar da falta de eventos culturais, cuja estatística per capita pode certamente deixar boquiabertas sociedades com recursos financeiros bem mais avultados e com populações que se contam aos milhões. Não é objectivo desta crónica analisar as razões para termos todo esse positivo frenesim de actividades culturais, nem tão-pouco tentar perceber a nossa relação especial e privilegiada com a música, que nos levou a produzir uma lenda da música mundial moderna como foi Cesária Évora. Fenómeno que, aliás, estamos longe de compreender e de dele tirar partido – basta ver que o país ganha muito pouco com o legado de Cise, se tirarmos o facto de a nossa Diva dos Pés Nus ter aberto e facilitado o caminho para muitos jovens artistas nacionais hoje com acesso a muitos palcos internacionais. Voltando aos grandes eventos nacionais, é voz corrente nas ilhas que a maioria dos eventos de 2017 excedeu todas as expectativas, catapultando os mesmos para um nível que os pode tornar excelentes produtos turísticos, para lá de agregar economias com carácter duradouro e por isso mesmo auto-sustentáveis. Significa que estes eventos atingiram uma fase crucial do seu crescimento e amadurecimento, o que coloca um enorme desafio aos seus promotores e à sociedade verdiana em geral: ou conseguem dar o salto e tornar-se eventos de referência capazes de serem cartazes turísticos que atraiam turismo exógeno e doméstico de forma regular, incluindo a nossa grande diáspora; ou ficam para trás na grande corrida aos patrocínios e fontes de financiamento, correndo o risco de se tornarem irrelevantes e desaparecerem. A vida é assim: os recursos serão sempre escassos e por isso mesmo não chegarão para todos. Citaria como bons exemplos os Carnavais do Mindelo e da Ribeira Brava, a Passagem do Ano em São Vicente, o 1º de Maio no Fogo, o AME e o Kriol Jazz Festival na Praia, as Festas Juninas um pouco por todo o país e alguns festivais de música. No meio de toda esta variedade de eventos que nos surpreenderam pela sua 8
Os eventos culturais verdianos de 2017. Mindelact, o evento do ano qualidade em 2017, para esta crónica o evento do ano foi, sem dúvida, o Mindelact 2017, sob o lema Arte, Alma e Afecto. Este festival de teatro que nasceu na cidade do Mindelo há 23 anos, e que tradicionalmente se realiza no mês de Setembro, mudou-se este ano para o mês de Novembro, evitando os constrangimentos que todos os anos se verificavam quando chovia no meio do festival, numa cidade que deixou de estar preparada para a chuva. Como é sabido, neste ano de 2017 não choveu na cidade do Mindelo, tendo sido um péssimo ano agrícola em todo o país. Caso para dizer que foi um autêntico golpe de teatro da Mãe Natureza, cansada de avisar, ao longo dos séculos, que este país não pode depender das chuvas para o seu desenvolvimento. Mas regressemos à nossa escolha do Mindelact como o evento do ano e apontemos as razões que nos levaram a essa eleição. Desde logo, a qualidade do evento, das peças exibidas e dos grupos escolhidos. Melhor seria e vai ser cada vez mais difícil, pelo que não invejo a sorte do João Branco e da equipa de promoção do festival nos próximos anos, apesar de saber que estarão à altura do desafio. Por outro lado, o fenómeno da internacionalização deste evento, per se um autêntico caso de estudo, com artistas vindos este ano de Angola, Argentina, Brasil, Cabo Verde, Espanha, Inglaterra, Japão, Moçambique, Portugal, República Checa, Senegal e São Tomé e Príncipe. Como explicar que um grupo de rapazes e raparigas que moram numa pequena cidade atlântica consiga atrair artistas de qualidade mundial e catapultar um pequeno festival de teatro para as bocas e palcos do exigente mundo artístico mundial... E por fim compreender como todo este sucesso local, e também mundial, foi conseguido sem a intervenção de entidades públicas, sejam elas locais, nacionais ou internacionais. Estamos, ao que tudo indica, perante um caso sério de empreendedorismo, um caso de sucesso, que, se recuássemos 23 anos, ninguém no seu juízo perfeito se atreveria a prognosticar. Nessa altura, o Festival começou com 5 peças de 3 grupos nacionais. Hoje, volvidos 23 anos, são 40 peças protagonizadas por 20 grupos e uma centena de artistas vindos dos 4 cantos do mundo. Dá para acreditar?! É, sobretudo, deste ângulo e por este prisma que gostaríamos de tentar compreender o sucesso do Mindelact e dele extrair exemplos a seguir. Num tempo em que o conceito de empreendedorismo entrou no léxico de todos, e que o seu ensino e fomento é quase feito por decreto, um caso de estudo destes aqui dentro de portas é um achado. 9
O Mindelact nasceu da iniciativa privada de cidadãos mindelenses amantes das artes e, especialmente, amantes incondicionais do teatro, para muitos, pai e mãe de todas as artes cénicas. Não foi uma criação nem do Estado de Cabo Verde nem da Câmara Municipal de São Vicente. A juntar a isso, em nenhum momento da sua história, o Mindelact foi gerido nem promovido por alguma entidade pública, contrariamente, por exemplo, ao Carnaval ou aos festivais de música, que, apesar das suas raízes populares, acabaram por ser absorvidos pelos poderes públicos, com todas as vantagens e as imensas desvantagens que isso acarreta num país onde ainda se politiza em demasia todos os grandes eventos. O cultivo das artes sempre foi sinal de avanço civilizacional ao longo de toda a história da humanidade. O desenvolvimento de um povo não se esgota nos indicadores económicos, sociais, ou mesmo ambientais do seu país, mas demonstra-se, sobretudo, pela educação dos seus cidadãos, o maior activo de qualquer país. O Mindelact tem tido um enorme papel na educação das populações, não só da cidade do Mindelo, mas indirectamente das outras ilhas, ao proporcionar palco e espaço para grupos de outros concelhos que assim conseguem ter acesso ao que de melhor existe no teatro mundial, através do convívio e das sessões paralelas de formação que acontecem todos os anos. Este ano, na cidade da Praia, foram exibidas várias peças a título gratuito com artistas internacionais, num incansável trabalho de divulgação da arte noutras ilhas. Traduzindo por miúdos, os promotores, os patrocinadores e até o público mindelense estarão nesta fase a financiar a afirmação do teatro no resto do país, algo que não é de somenos importância. Isto porque na cidade do Mindelo o público paga como sempre pagou ao longo destes anos, permitindo que este Festival chegasse aonde chegou. Por todos estes motivos, os promotores do Mindelact, os seus patrocinadores e o fiel público deste evento grandioso merecem todo o nosso respeito e admiração. Uma palavra especial ao João Branco, que tenho a honra de conhecer e de com ele conviver desde longa data. Os barcos não navegam sem comandantes, e as organizações, quaisquer que elas sejam, são embarcações que podem entrar em deriva se não tiverem uma mão firme e criativa ao leme. O João Branco é desde há muitos anos um admirado cidadão mindelense e um cabo-verdiano de corpo e alma. A história da sua vida personifica e explica a razão de estas ilhas se terem mantido teimosamente habitadas, apesar de todas as razões para não o serem, num teatro de sobrevivência que desafia a lógica mais básica da subsistência humana. Aqui sempre encontraram porto seguro os aventureiros deste mundo, porque ninguém está realmente preocupado com de onde cada um veio, talvez porque,
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lá no fundo, tenhamos a consciência de que chegámos há bem pouco tempo a estas ilhas que ajudaram na aventura da criação do Novo Mundo, ilhas que sabem que deverão continuar a ter um papel importante no contacto entre povos. O Mindelact é um exemplo disso. O João Branco é um aventureiro que encontrou na cidade do Mindelo, em Cabo Verde, o seu porto grande seguro, onde se soube juntar a outros aventureiros que, como ele, sempre sonharam viajar pelo mundo através do teatro. Este grupo de aventureiros das artes é hoje uma prova viva de que quem sonha sempre alcança. Através do teatro, não só conseguiram viajar do Mindelo para fora do Oceano Atlântico, como trouxeram os quatro cantos do mundo para Cabo Verde. Em tempo de um ano que termina e em que se renovam as esperanças e sonhos para o novo ano que vai entrar, apetece-me sonhar que, daqui a alguns anos, o Mindelact acontecerá em todas as ilhas deste país, e será considerado o festival de teatro crioulo mais conhecido deste planeta. Pelo trajecto e vitórias conseguidos nestes anos de existência do Mindelact, este sonho é até modesto. Os meus votos de uma alegre Passagem de Ano a todos, e que 2018 seja um ano em que a capacidade criativa dos cabo-verdianos nos continue a surpreender e deliciar. PS: Uma nota de apreço ao Gugas Veiga, um conhecido empreendedor cultural da cidade capital de Cabo Verde. Ao ouvir o anúncio de que o Estado de Cabo Verde não estaria em condições de financiar a edição de 2018 do AME, na Praia, em tempo recorde este empreendedor reuniu as vontades de várias empresas do ramo da Praia, e até do Mindelo, e prontificou-se a realizar o AME 2018, tendo conseguido logo o apoio inequívoco da Câmara Municipal da Praia. É este o caminho para os eventos nacionais: a sua assunção pelas forças vivas das sociedades, sem depender dos apoios públicos. Uma palavra também especial de reconhecimento à nova equipa camarária do concelho do Porto Novo. Segundo consta, organizaram uma Festa de São João sem paralelo. Houve muitas críticas quanto aos recursos despendidos, mas eu prefiro realçar a visão de quem percebeu que esse evento tem de ser um cartaz turístico e uma referência nacional. Para terminar o ano da melhor forma, tive a oportunidade de assistir pela primeira vez à Noite Branca na cidade da Praia. Gostei do evento e da ousadia por detrás dessa iniciativa que ajuda a unir e democratizar a cidade capital do país, a primeira vítima de uma centralização que a fez crescer a ritmos incomportáveis e com todas as consequências que conhecemos. A cultura tem esse papel e essa capacidade de unir e melhorar a qualidade de vida das populações, e ainda bem que está a ser usada para esse efeito. José Manuel Almada Dias 11
entrevista
joão branco
presidente da direcção da Associação Mindelact
O Mindelact tem o ADN do Mindelo 12
por
nuno andrade ferreira fotos bob lima 13
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epois do sucesso da edição deste ano, a equipa do Mindelact já só pensa em 2018. O Mindelact é um caso de longevidade que encontra explicação nas três palavras que são o novo lema do Festival Internacional de Teatro do Mindelo, “arte, alma e afecto”. Recordando a 23ª edição do Mindelact, qual é a primeira imagem que te vem à cabeça? O coração. Que tatuaste no braço. Que eu tatuei e que mais pessoas tatuaram. E uma tatuagem é uma decisão radical, porque é algo que fica na pele. É definitiva. Tudo o que é definitivo é radical. Houve vários artistas que já tatuaram ou vão tatuar este coração, pela experiência que tiveram neste festival. Isto é sintomático da forma como este coração toca nas pessoas. Toca de forma radical. Houve uma pessoa com quem eu conversei há dias que me disse taxativamente “quero falar contigo com mais calma, porque este festival mudou a minha vida”. Foi a primeira vez que essa pessoa esteve no Mindelact. É incrível que isso continue a acontecer e para nós ainda é algo misterioso. Não aconteceu apenas este ano. É uma coisa que vem praticamente desde a fundação do Mindelact e que de certa forma sustenta o festival e é a razão da sua sobrevivência. Acho que é uma mistura de muitas coisas. Em primeiro lugar, Cabo Verde, com todos aspectos positivos, a alegria deste povo, a forma de bem receber. A capacidade que Cabo Verde tem de gerar simpatia Gerar simpatia. Um conceito muito interessante... … e que tem sido muito bem aproveitado, ao longo dos anos, até por quem dirige. Exactamente. Nós não podemos dizer nada em relação a isso, porque o Mindelact vive, exactamente, dessa metodologia de trabalho. E o papel da cidade? Mindelo é uma cidade aberta, cosmopolita, que proporciona uma espécie de assimilação, no bom sentido do termo. A forma como o Mindelo recebe as pessoas e muitas vezes torna essas pessoas em corpos próprios, em mindelenses de gema... ...e muito rapidamente. Eu costumo dizer a brincar que Mindelo é uma cidade perigosa. Nós ficamos, de facto, contaminados, também no bom sentido do termo. Depois, tem a ver com o facto deste festival ser feito e concebido por artistas e artistas entendem os artistas. A cabeça de um artista funciona de uma forma muito particular. Há
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uma sensibilidade especial na forma como se tem atenção a determinados detalhes, principalmente aqueles que estão relacionados com o trabalho dessas pessoas. Isso passa ao artista uma mensagem que conta muito. E temos ainda o público, não só do Mindelo, mas de Cabo Verde, com a sua capacidade de comunicação. O teatro é comunicação e se ela não existir, do palco para a plateia, da plateia para o palco, não funciona. Essa comunicação que o público cabo verdiano tem é uma novidade para muitos artistas que circulam pelo mundo. Quanto mais a plateia comunica, mais o artista se sente motivado. E em São Vicente, tens um público com uma boa cultura teatral. Gente que vê teatro ao longo do ano, há muitos anos. As pessoas têm cultura teatral e isso é resultado de um processo de mais de duas décadas. O Curso de Teatro do Centro Cultural Português e o Grupo de Teatro do Centro Cultural Portugues farão 25 anos em 2018. O Festival Mindelact fará 25 anos em 2019. Ora, eu diria que estas três efemérides consubstanciam, precisamente, as três actividades que mais tiveram influência nessa tal 16
formação de públicos. O curso, por exemplo, acabou por gerar novos grupos, que geraram novos espectáculos, que geraram novas formas de fazer teatro. Aquilo que chamas de cultura teatral é a diversidade. Se tens a possibilidade de ver coisas diferentes, a tua cultura teatral acaba por ser alimentada. A condição de ilhéu reflectese naquilo que é o Mindelact? Não poderia ser de outra forma. O festival nasceu aqui, logo, tem que ter o ADN do lugar. É uma pergunta muito interessante. O ilhéu provoca uma certa forma de estar provinciana, porque é um lugar pequeno, com as vantagens e desvantagens desse facto. O lugar pequeno torna mais visível o conceito de família, nós conhecemonos todos uns aos outros. E dito isso, o Mindelact faria sentido noutro sítio que não em Mindelo? Não. Eu sempre disse que o Mindelact só poderia acontecer, ser o que é, na cidade do Mindelo. As pessoas, às vezes, acham que é uma forma bairrista de ver a coisa, mas não é. O Mindelo tem estas características. 17
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As aventuras que têm na Praia, as extensões, levam um pouco do ADN do festival ou o que por lá se passa é algo com uma natureza distinta? É importante sublinhar uma coisa que não é dita com maldade: grande parte do público que vai aos espectáculos da Praia é gente do Mindelo. Portanto, são pessoas que nasceram para o teatro no Mindelact, em São Vicente. Mais uma vez, isso acaba por ter um efeito de ‘contaminação’. Este ano foi particularmente impressionante. Quase que tivemos zangas a sério, com gente que não conseguiu entrar na sala, o que quer dizer que há muito público a querer ver teatro e isso é um sinal positivo. Mas vamos voltar a Mindelo. A edição deste ano reinventou-se. De certa forma. O Mindelact tem feito isso ao longo da sua história. Valeu a pena? Valeu. Já me perguntaram qual foi a grande diferença e o que digo é que procuramos aprender com os erros, fizemos uma análise daquilo que correu menos bem e tentámos resolver os problemas, um a um, com capacidade de antecipação, dando a cara, potenciando aquilo que, se calhar, é o maior património do festival e que é a tal economia dos afectos, que este ano foi muito visível. O que é que este conceito representa? Uma componente do festival que não consegue ser economicamente mensurável, mas que se refletem em custos que o festival poderia ter se não houvesse essa tal componente do afecto. O exemplo mais visível é a questão dos cachets. Explica-me. É importante que se diga que teríamos essa verba, para pagar aos artistas, se o festival fosse feito de outra forma. As companhias e os artistas são convidados a ficar todo o festival e isso acarreta custos. Poderíamos fazer um cálculo desses custos e pagar o trabalho do artista, que viria num dia, faria o espectáculo e iria embora no dia a seguir. Agora, o ganho que o artista teria seria incomensuravelmente menor do que aquele que tem, vindo ao festival na forma como ele é organizado. O artista não recebe cachet mas não se pode dizer que não ganha nada. Os artistas saem daqui como uma energia renovada, muitos deles com projectos para os anos seguintes, graças a essa possibilidade que o festival dá das pessoas se encontrarem e falarem umas com as outras. Este ano tiveram um festival com menos aflição de tesouraria? Nós tínhamos o dossier pronto com mais de um ano de antecedência e isso acaba por gerar confiança nos potenciais parceiros. Ao mesmo tempo, nós acabamos por ter melhores condições de trabalho. Gerar confiança, trabalhar melhor, gerar ainda mais confiança e continuar a trabalhar melhor. A prova de que tivemos um pouco mais de verba para fazer o festival é que tivemos 60 espectáculos e 14 países representados. 19
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“Os artistas saem daqui como uma energia renovada, muitos deles com projectos para os anos seguintes�
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“O festival é feito e concebido por artistas e os artistas entendem os artistas”
O que é que pode ser melhorado? Bastantes coisas. Acima de tudo, problemas que sentimos dentro da equipa, no desenrolar do festival, mas que são pouco sentidos pelos artistas e pelo público. E a mudança de data, de Setembro para Novembro, experimentada este ano? Olha, se o festival tivesse sido marcado para Setembro, ele não teria acontecido. Se te recordas, em Setembro houve uma gravíssima crise relacionada com os voos, as pessoas ficaram retidas várias semanas e, portanto, se tivéssemos tido o azar de ter marcado o festival para aquela altura, simplesmente este não tinha acontecido. A verdade é que Novembro permitiu-nos trabalhar com muito mais tranquilidade, permitiu-nos baixar os custos da logística. permitiu nos um contacto directo muito mais substancial com toda a rede do sistema de educação, o que permitiu que o circuito de contadores de histórias pudesse ir às escolas. Infelizmente para Cabo Verde, um dos factores que tínhamos anunciado como decisivo, a chuva, acabou por não acontecer. Mas sem dúvida que foi uma aposta ganha e que vamos manter. Basta dizer que o número de espectadores que tivemos na edição deste ano ultrapassou os 11 mil, quando em 2016 tínhamos tido três mil e tal. O que é que já me podes dizer sobre a edição de 2018? A data, que já está definida: 2 a 10 de Novembro. Além disso, que vamos procurar manter esta energia. vamos manter o coração como figura simbólica do nosso festival, vamos manter as palavras de referência, “arte, alma e afecto”. Outras das coisas que posso confirmar é que o Teatro na Praça, que foi uma 23
estreia desta edição, será mantido e com curadoria do Rafa Pikapau, que é um artista brasileiro que mora na ilha do Sal. Ou seja, vamos replicar o modelo do Ciclo Internacional de Contadores de Estóreas, que este ano também teve uma curadoria externa feita por quem sabe, no caso da associação RJ ANIMA e que melhorou substancialmente dada essa parceria. Portanto, vamos manter a curadoria do Ciclo de Contadores de Estóreas e repetir o modelo no Teatro na Praça. No fundo, vamos procurar que aquilo que teve maior impacto em 2017 possa continuar em 2018, tentando melhorar onde acharmos que possa ser melhorado. Há pouco falávamos sobre aquilo que festival, curso e grupo de teatro deram à cidade, nos últimos 25 anos. O que é que estas três instituições ainda não conseguiram dar a Mindelo? Desde 1997, data da primeira edição internacional do Mindelact, ainda não conseguimos que houvesse, da parte dos poderes públicos e dos privados, uma noção da importância que teria uma infraestrutura preparada para receber um festival como este. Antes pelo contrário, perdemos uma das salas com maior potencial, o Eden Park. Existe um projecto para um novo Eden Park, com um prédio e lojas, mas é um pouco assustador. Também há um projecto de um auditório, enquadrado num grande hotel na Laginha, com 700 lugares, mas vai demorar ainda vários anos. Nesse aspecto, este ano foi particularmente feliz, porque tivemos no Centro Cultural do Mindelo uma equipa, chefiada pelo António Tavares, que se preparou com semanas de antecedência para nos receber. E que que é que o João Branco, agente cultural, vai estar metido em 2018? Nos 25 anos do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português. Vamos estrear três espectáculos. O primeiro, em Março, que se vai chamar “Crónicas do Mindelo”, com texto de Rocca VeraCruz, conhecido cronista mindelense que se estreia nas lides da dramaturgia. Depois, em Setembro, faremos a encenação de “Tudojunto sepa rado”, que foi o texto vencedor do concurso nacional de dramaturgia, que o Centro Cultural Português e a Cooperação Portuguesa desenvolveram no ano passado e que teve como vencedora a jovem Lisa Reis. Finalmente, em Novembro, vou fazer mais uma estréia, no âmbito do Mindelact, com um projecto que tenho na gaveta há mais de 20 anos, que é uma versão cénica da Metamorfose, de Kafka, cuja dramaturgia já está a ser trabalhada há algum tempo pelo Caplan Neves. E ainda teremos as reposições: vamos repor alguns espectáculos ao longo do ano, de forma a ter uma comemoração em grande dos 25 anos do nosso grupo.
Nuno Andrade Ferreira é jornalista da Rádio Morabeza e Expresso das Ilhas.
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“O maior património do festival é a economia dos afectos” 25
Romeu e julieta
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fotos de Helena Moscoso 27
O ARRANQUE: “ROMEU MA JULIETA. UMA TRAGÉDIA CRIOULA” HARMONIA, SINTONIA! Pelo que em mim despertou, emoções, surpresa, uaauu! Que elenco, que talentos, que texto, que cenário, que adaptação! ESTE É O MEU CABO VERDE! Pelo orgulho que em mim inflamou e incontáveis, inexplicável emoções, até colocaria o HINO NACIONAL! Mas não falta nada, nada, nada a peça, a não ser nos deliciarmos! Adaptação de texto tão atual, tão hoje, sem perder nada para a originalidade e ganhando tudo para expontaneidade! Não tenho palavras além de EXCELENTE, aliás, pouquinho além, CELESTE, SUBLIME! TUDO! Cenário, sonoplastia ( que sensações e emoções)! Viu-se trabalho, muito trabalho de todos! Fico por aqui para não divagar porque ainda me emociono ao lembrar e sei que não conseguirei colocar todas as sensações e emoções em palavras. Por isso recebam todos o meu ABRAÇO! ABRAÇO BEM FORTE, DESTES QUE SUSPENDE A RESPIRAÇÃO! E Muito OBRIGADA! Ah, coloquem o HINO NACIONAL, por favor, não por que falta alguma coisa a peça, Mas pelo Orgulho que desperta em nós! ABRAÇO! Assisti Romeu ma Julieta e me orgulho, Centro Cultural do Mindelo 03 de Novembro 2017 Marisia Silvestre Força João Branco, força Mindelact!
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ROMEU MA JULIETA: UMA TRAGÉDIA “GENUINAMENTE” - CRIOULA
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Em cena a peça “Romeu ma Julieta: uma tragédia crioula”. Embora saibamos de cor e salteado a história desse par romântico, do amor proibido entre famílias rivais (Capuletos e Monteiros, in Romeu ma Julieta), de termos assistido a uma (outra) leitura pelo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português - Pólo do Mindelo, de termos lido (tal) obra de William Shakespeare, visto Leonardo DiCaprio a Romeuizar no cinema… era mister fazer um exercício de zerar a (nossa) mente, pré-preparar-nos para (este) novo banquete - e sublinho - que banquete! E a tarefa de análise da peça é ao mesmo tempo fácil e difícil - sentimo-nos quão júri de um Masterchef quando o prato servido tem todos os sabores, todos os aromas e todas as texturas necessárias! Por onde começar? Tarefa titânica - confesso. Quiçá pelo “início” - linha de concepção do espetáculo - minimalista! Quiçá porque - como dizem -“menos é mais”. Os objetos metamorfoseiam-se: mesa-banquete, mesa-palco de guerra, mesa-janela dos enamorados, mesa-púlpito-confessionário de um (paternal) Frei que adjuva o (trágico) amor de Romeu ma Julieta. Da mesma forma que o punhal não está lá mas se vê - com os olhos da imaginação - partilhado numa dimensão sensorial de ser cravado no peito de um outro e em nós mesmos. A magistral interpretação dos atores - lembrando que o teatro é sobretudo energia - sentimo-lA quão vibrante personagem - cada intérprete carrega-A, lança-A ao (à) colega, que A embrulha, A consome e… A arremessa para o público - provocando pulsantes calafrioemoções. Seria injusto destacar uma interpretação que me marcou, mas e se porventura me perguntassem qual, destacaria, em primeiro lugar Romeu (ganda entrega) ma Julieta (uma atriz com um futuro brilhante - palavras minhas e assumidas sem medo). E - o rol de elogios e aplausos - se estende - em equidade - a todos os atores e todas as atrizes: às que interpretam - respetivamente - a Ama, a Dona Capuleto (mãe de Juju), os compas de Romeu, o pai de Julieta, o (raivoso) primo da (nossa) bela apaixonada, o Frei, ao trio imponente e belo - Coro. Falando em coro , estaciono-me na encenação/direção (by Fabiano Muniz): o uso do Coro é uma feliz escolha e é uma singela evocação à fonte das tragédias - a GREGA - pois claro. Como adaptar Shakespeare para o crioulo? Não é tarefa virgem, por estas bandas - diga-se de passagem. Lembrar-nos-emos das bem-sucedidas peças Sonhos de uma noite de Verão, A tempestade, Rei Lear e outras leituras feitas em finais de curso de Iniciação Teatral. Para embrenhar neste mar de significações e recursos estilísticos shakespearianos há que ser (também) um cultor da língua - neste caso, a crioula. E Emanuel Ribeiro é sem dúvida esse artesão. Não é um simples trabalho de tradução ou de mudança(s) de nomes e topónimos. É um recriar artístico e servir Romeu ma Julieta como uma peça cabo-verdiana - vivida, sentida, rida, chorada… por cabo-verdianos. Melhor, uma peça “genuinamente” cabo- -verdiana. Pois Emanuel Ribeiro faz-nos sentir que Shakespeare ê nôs broda, nôs compas… que escreveu uma narrativa para nós! E o silêncio foi sepulcral, por vezes, não por enfado, mas para que se pudesse sorver as palavras e alimentar-nos das emoções. Uma fogueira de comunicação - tal qual sentarmo- -nos de mãos dadas à volta de uma lareira. Airton Ramos
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cartas
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fotos de bob lima e Helena Moscoso 35
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Sobre Cartas “Cartas” | peça exaurida do livro “Cartas de Amilcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem” (Rosa de Porcelana Editora) | organizado por Ivan Cabral, Márcia Souto e Filinto Elisio | estreou-se ontem no Mindelact | com sala a transbordar e muitos (como eu e tu) emocionados | Em estado de êxtase | e de beleza | pela interpretação de Cátia Terrinca e Renato Lopes | O que me encanta no teatro documentário é possibilitar a dialogia entre o factual e o ficcional | a dramaturgia (neste caso de Celeste Fortes) onde vários sub-géneros (tantos quanto possíveis) acomodam-se | como nos vídeos de Ângelo Lopes e Mariazinha Silva | no ‘musical’ de Dembele Mamadou e Vasco Martins | e no ‘bailado’ de Rosy Timas Tavares | refletindo-se tudo aos mínimos cuidados dos toques e sugestões da produção | e por todos que olharam a peça antes do acender das luzes na ribalta | E a encenação da História (crítica e reflectida de João Branco) nos permite recriar e transcriar | criar estórias existenciais | imaginar em arte mais que o inexorável deus Cronos permitiria | No momento em que a Editora trabalha mais uma obra de inéditos de Amilcar Cabral | experiência sempre venturosa| cada vez mais convence a imperiosa necessidade de nos documentarmos | em Arte... Filinto Elísio - Poeta Cabo-verdiano
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Sobre CARTAS Arrepios... Senti-me numa viagem no tempo... 1946 A sonoplastia ao vivo, outra coisa, REAL! sim era isso
uma viagem uma história de amizade e amor... um filme... um documentário... uma peça de teatro .....derrepente 1947...... Um amor a distancia...que futuro? O AMOR...uma satisfação dolorosa 1948... Chaves Uma amor em cartas... à espera de uma carta de resposta... o dia a dia ... separado pelo Atlântico. NARATIVAS DA VIDA DE CADA UM... cartas longas, não faltavam... 1949... A vontade de estarem juntos fala mais alto a cada ano que passa Os fantasmas de um amor a preto e branco... Será o Amor capaz de seguir passos um do outro? Parece que ele estava no Palco...não o conheci, mas senti-o próximo! 1951... Companheira e camarada numa única mulher... Lena! 1958... 1960... Ps: um espectáculo do caraças...cenário Cabral e Lena... Mindelo, 6 de Novembro de 2017 Vanisia Fortes Coordenadora Vila Leopoldina
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nota 10, actores do melhor que há . Um espectáculo completo, uma pesquisa a fundo da história... Um documentário ao vivo, vivido, visto e sentido....
Obrigado Mindelact!
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CARTAS Uma encenação inesperada para uma adaptação improvável São Vicente, 6 de Novembro de 2017 Caro Mindelact, Ousado! Arriscado! Fora de formato, Cartas, do encenador João Branco, dá cartas em dramaturgia, inovação Cénica e luminotecnia criativa. Não é um espectáculo de fácil absorção por provir de textos íntimos de um dos maiores pensadores Africanos da contemporaneidade política- Cabral- que, está visto, até no espaço amorso não deixa para trás o seu substracto filósofico e revolucionário. E então, consciente da logo-densidade do texto, o encenador, juntou com muita mestria outros signos plásticos e audio e visuais, agregando à peça outras boas competências artísticas do meio, no intuito de facilitar a catarse entre o actor e o público, o que, quanto a mim, foi desafio vencido. De facto o binómio Encenador/Dramaturgo, Joao Branco/Celeste Fortes, conseguiu a proeza de transformar em espectáculo teatral um documento literário denso baseado em cartas, sem plot, sem clímax, sem ritmo, sem curva de suspense, sem cena e contracena, sem diálogo e deixa, e que, por isso mesmo, se situa no lado oposto daquilo que define a boa dramaturgia teatral. É obra! Confesso que, enquanto dramaturgo, pessoalmente, nunca me ocorreria transformar esse documento em MELODRAMA, e, pelas razões que eu explico a seguir, desde primeira hora eu fiquei muito expectante de ver como Dramaturgo e encenador resolveriam a não teatralidade do texto original: É que a Leitura pontual de uma carta no contexto da linguagem dramatúrgico é um recurso muito usado por trazer mais Logos (palavra escrita) para o drama (acção); porém, uma encenação baseada exclusivamente em leitura de cartas intimas, tem que ser muito criativa para não transformar o espectáculo num melopeico Ensaio de leitura. Então o óbvio e o esperado seria que o encenador fugisse não apenas de toda e qualquer leitura em palco como também dos habituais cenários de escrita de cartas. O Engraçado porém é que João Branco, na sua construção do espectáculo, deliberadamente, rasga por assim dizer os cânones da dramaturgia, SENTANDO, boa parte do tempo, os seus interpretes, pausadamente em ESCRIVANINHAS e fazendo-os NARRAR longas EPÍSTOLAS amorosas.
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Ora isto é tudo o que um encenador com provas a dar não faria. Mas João pode se dar a esse luxo, primeiro porque o seu histórico lhe dá essa liberdade criativa para ousar; em segundo lugar porque a maturidade de quem passou o cabo das 50 encenações, exige-lhe não replicar formulas de sucesso, mas a descontrução do óbvio e do teatralmente correcto; e por último, porque dominando a semiologia das artes dramáticas ele sabe que consegue, pela coerência estética, pelo equilíbrio dos elementos , pela beleza plástica das cenas , e aquele toque «Joanino», resolver o todo, alargando balizas, agradando público mas exigindo também dele algum crescimento. E acho que João, ajudado por alguns truques dramaturgicos da Celeste, resolveu a encenação de forma mais inesperada . Não sei se o grande público partilha a minha opinião, mas não é mesmo que, aquilo que, quanto a mim era à priori uma adaptação muito improvável, resulta, pelo profissionalismo dos actores que respondem muito bem a papéis intimistas difíceis, mas também pela força da roupagem plástica, numa experiência sensorial que agrada os nossos sentidos! Para terminar esta carta (opinião crítica) um reparo e um agrado (entre vários): O Reparo a fazer é o mesmo que eu faria ao outras produções Nacionais neste festival: Falta o tempo neessário para maturação de propostas ousadas como esta, e, no caso, nomeadamente um prazo mais longo para a afinação da embocadura da peça, que consiste numa ideia interessante, uma espécie de baralhar (sonoro) de todas as cartas, mas que quanto a mim precisava ainda de ser equalizada. O agrado tem a ver com a feliz ideia do encenador de usar um microfone e um púlpito para sublinhar que atras das cartas Românticas de Cabral a Maria Helena existe um discurso eminentemente político. É o momento de clímax também para o actor Renato Lopes que dá asas a sua expressividade verbal e corporal nos lembrando o herói nacional. Termino com a expressão da minha admiração ao encenador João Branco, por mais esta fuga em frente em vez de se acomodar e amoldar os seus exímios actores, músicos, grafistas e bailarina às receitas cómodas para o sucesso. E concluo esta carta com Um abraço para ti, Mindelact, e Mantenhas ao bom teatro Cabo Verdiano. Emanuel Ribeiro
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bob lima ensaio fotogrรกfico VENCEDOR DO CONCURSO DE FOTOGRAFIA DO FESTIVAL MINDELACT 2017
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“Cocoon” Robson Catalunha (Brasil) 43
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“Cegos” Desvio Coletivo (Brasil) 45
“Ikiru Réquiem por Pina Baush” Tadashi Endo (Japão)
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“Sólo” Rádim Vizvary (Rep. Checa)
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“Sólo” Rádim Vizvary (Rep. Checa) 49
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Entrada para o auditรณrio do Centro Cultural do Mindelo
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“Cartas” GTCCPM & Um Coletivo (Cabo Verde / Portugal) 52
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Rideau sur le Mindelact 2017 “Se queremos comover o mundo temos primeiro que mover o cu” [Emanuel Ribeiro] E assim caiu a cortina sobre o ultimo espectáculo do Mindelact 2017 e chega assim ao fim o melhor festival de Teatro que se faz na Africa ocidental. Hoje, sábado, não vai ter off no quintal da Alfândega velha AKA centro cultural do Mindelo; o momento é de despedida e na hora di bai o afecto se sobrepõe á arte. Abraços se dão, êxtase partilha-se, porque o que aqui se passou durante pouco mais de semana de Festival é incomensurável. Além da qualidade insofismável dos espectáculos, gerou-se á volta desta edição do festival um redemoinho de energia benfazeja que alimentou as nossas almas e regenerou a nossa força criativa. E sinto-me um privilegiado por ter feito parte desse Vórtice energético e estético à la fois, e, o mesmo vou ouvindo, aqui e ali, de um artista ou de um espectador. Estou aqui no átrio do CCM, num arrasta-pé de encerramento do Festival, sacudindo a carapinha ao som de Beats modernos, misturados deliciosamente com música tradicional, e entre os scratchs duma fabulosa DJ que veio da Praia e o sopro de clarinete do virtuoso Nhanhe (yanick almeida) , eu realizo que neste preciso momento somos artistas teatrais dos quatro continentes do planeta, pulsando no mesmo compasso neste espaço a céu aberto, do coração da minha cidade. E eu penso com os meus botões: Sou deveras um privilegiado e Soncente é de facto “uma pedrinha de Cristal” nessa encruzilhada entre todos os mundos. Tenho aqui ao meu lado um GRANDE encenador da América do Sul , O Fabiano Muniz, abrindo os meus olhos para eu enxergar até que ponto somos verdadeiros eleitos apesar das dificuldades, da incompreensão política e da tendência para o “cada um por si Deus contra” (como disse um dos personagem de Roumeu ma Julieta). Diz-me ele que na nossa pequenez não temos consciência do quão importante é a energia criativa que o MINDELACT irradia para o TODO GLOGAL, a partir do colo deste Mindelo pequenino que acalenta este festival com o seu público, com os seus artistas, e os seus poucos Santuários
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culturais, o CCM, o ALAIM, e a ACADEMIA J. MONTE. Porque naturalmente fazemos parte desse melting Pot cultural e artístico sui generis, não medimos o seu alcance e força, e estranhamos até, quando, artistas conceituados que recebemos dos quatro cantos do mundo, nos dizem que o que damos ao mundo é, na nossa escala, imenso. Acredito hoje nisso, e dou razão aquela letra daquele ritmo mandinga que diz : Soncente é especial. Ora, não o fosse, que outro motivo poderia me permitir de côtoyer no átrio do Centro cultural do Mindelo, ao som do “Bem di fora” um figura tão mítica como a de TADASHI, esse vulto de Artista de 70 anos que nos maravilhou dias antes com o seu Réquiem àquela que foi a lendária e icónica Balilarina e coereógrafa Alemã: Pina Baush - , num espectáculo de uma interioridade e beleza quase que transcendental, cobiçado pelos maiores palcos do mundo! Mérito, claro ao João Branco e sua equipa, que tudo fez para materializar até os sonhos ditos impossíveis. Diz-me joão que chorou como uma criança no dia em que recebeu a resposta do Sr. Tadashi dizendo que que sim, iria estar presente no Mindelact e que inclusive abria mão do seu habitual cachet fora do alcance do festival. Então, somos ou nao somos especiais por merecer tanta arte e afecto de gente com tanta alma? Este Mindelo tem ou não aquele regaço fecundo e acolhedor de um Olimpo da Cultura? Vendo aqui à minha frente a actriz excepcional Avital Lvova que também me maravilhou com a sua performance em Angels, agora completamente “caboverdianizada” dançando com o grande Renato Lopes que personificou Cabral em Cartas, ao som da voz do saudoso Bana misturado com musica electrónica, e a volta deles outros grandes artistas daqui e de acolá, tenho a plena certeza que sim. E digo mais: quando acreditarmos na força conjunta que temos, quando seguirmos na música, no carnaval, na dança, no teatro, nas artes plásticas, na literatura e em todas as franjas da alma exemplos simbióticos como este de João Branco, Tony Tavares, os dois grandes anfitriões desta festa, quando descobrirmos que todos temos em nós um astral importante de espíritos que o Monte Cara pariu ou moldou, como Cabral, Paulino Vieira, Ti Goi, Antone Tchitche, Cesária Évora entre outros anónimos, aí, a ARTE vencerá a ARTIMANHA e estaremos prontos para ser nós mesmos e cumprir a nossa verdadeira vocação: FAZER DE MINDELO UM VERDADEIRO OLIMPO INTERNACIONAL DA CULTURA. Viva o Mindelact! Viva Soncente!
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Ciclo Internacional de Contadores de Estรณreas
Clara Haddad. Fotografia de Carlos Casimiro 56
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Nós de Nós “O general só tem oitenta homens e o inimigo cinco mil.” Córtazar “A utopia está lá no horizonte...” Galeano Cabo Verde, nossa relação é um caso sério... Intensa e delicada. Uma desassombrada história de amor. Pisei tuas ilhas pela primeira vez no final dos anos 90, fruto de um intercâmbio escolar pensado com muito carinho por um grupo de professores portugueses e cabo-verdianos. Um ano lectivo de cartas trocadas entre alunos, urdindo com palavras de amor o encontro que se daria em Julho de 1997. Foram duas intensas semanas de trabalho artístico, de partilha de Arte, Alma e Afecto - três “As” de “Amor” que assinaram a 23ª edição do Festival Internacional de Teatro do Mindelo – Mindelact. Na época não sabia, mas 97 terá sido um ano particularmente marcante para o festival (aprendi com César Shofield Cardoso): tornou-se internacional. Um ano antes, nascia a Associação Mindelact. E um ano depois, chegarias tu, João Branco, ao leme desse navio. Vinte anos depois (quem diria), junto-me eu à equação de nós. Tudo isto para dizer: já viste como a vida se entrelaça? Como ela fia e se desfia, laçando nós de nós? João: por todos os nós de nós que o Mindelact me ensinou a entrançar, não é exactamente sobre ele que quero falar. É sobre as pessoas. Sobre todos estes nós formando nós impossíveis de desatar. É sobre as pessoas – artistas, público, equipa: corações. É sobre todos os sonhadores que conheci. É sobre o humanismo de António Tavares, a sua rara e deliciosa capacidade de ser mastro, fibra, génio, festa e sombra ao mesmo tempo; é sobre o encanto de Janaina Alves Branco, essa fortaleza de serenidade, atenta, vertical, ardente; é sobre a audácia e a generosidade de Adriano Reis, que abraçou a pioneira curadoria de um Ciclo Internacional de Contadores de Estórias que se afirma, inda menino, ao lado da excelência de programação a que o Mindelact nos habituou. (Foi pela tua mão que cheguei a esta família, Adriano. Obrigada.) É sobre todos os nós que quero falar: sobre o cuidado maduro e requintado de Zenaida, o brilho rigoroso e forte de Patrícia, a fé como água corrente de Rosalina, o sorriso certo, franco e confiante de Nick e Renato. O carinho firme de Daniel. A electricidade vital de Jeff. Sobre a exímia equipa na Praia: Suzy, Bety, Fabrisio: Bravi!Tantos nós, João... Tantos, que transbordam. Mordo a língua dos dedos por não poder falar sobre eles todos, um a um. “Eram mais de cem, eram mais de mil” a ser a mudança que queremos ver. Fiz amigos de supetão para toda a vida. Vi espectáculos arrebatadores. Assaltou-me o amor bruto e inesperado, sem cerimónias. (Não tenho medo de assaltos. Asseguram-nos de que estamos vivos.)
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“Operou-se o milagre”, como escreveu o Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, na sua tão fraterna e comovente mensagem ao festival. Tornou-se possível o impossível, com as armas do amor. Por tudo isto, João, não é sobre o Mindelact, é sobre nós. É sobre ti. Terás lido certamente o que escreveu o Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, Abraão Vicente: “Seria tão bom termos mais gente que escrevesse minuciosamente sobre o trabalho que tens feito. Tua obra é ruidosamente visível.” Pois é, João. Pois é. Em Cabo Verde, em Portugal e um pouco por todo o mundo. Nós sabemos. E o que posso acrescentar (com toda a humildade) ao tear dessa urgente escritura, é que o Mindelact avultou em nós a esperança. És também um último dos moicanos, um advogado da utopia. Tu és um dos últimos resistentes sonhadores que efectivamente faz acontecer. Por fim, João, é sobre o entretecer de nós compassivo da arte que quero falar; sobre o humanismo e a guerrilha que é o teatro; sobre as casas, as pedras, as águas, os sangues e os barros das almas todas que nos acolheram. É sobre storia, storia e era uma vez, sobre a língua do coração, esse crioulo pássaro, esse nómada, essa liberdade. É sobre Mindelo, Praia, Santo Antão. Sobre um sonho na ilha. Sobre todos os sonhos e todas as ilhas. Sobre a universalidade concreta e a beleza cumprida que vivemos a cada instante deste encontro. É sobre o ser-se simultaneamente português e cabo-verdiano e a real possibilidade de o sermos, juntos. (Obrigada por este ensinamento. Não desisti de aprender a enraizar-me nessa terra que tornaste tua.) Mandela disse: “A luta é a minha vida.” Amílcar disse: “Luta tremenda, esta luta do Homem”. Brindo contigo à Arte, mãe de todos os mundos; à Alma, outro nome para dizer quem realmente somos; e ao Afecto, João, porque “salvo pelo amor… só se pode ser salvo pelo amor.” E afinal, porque talvez tudo isto seja ser, fazer, dizer MINDELACT. Amílcar continua: “E beberei de novo – sempre, sempre, sempre – este sangue não sangue, que escorre do meu corpo, este sangue invisível – que é talvez a Vida!” Selo aqui meu compromisso. Obrigada por tudo, tanto. Saibamos honrar estes nós de nós, a amplitude, a coragem, a fé na humanidade do coração mindelactiano. Ana Sofia Paiva
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Performance + Mindelo = Poesia Anunciamos: Arte! Alma! Afeto! Local: Rua 5 de julho. Artistas: vários. Como o poeta João Manuel Varela: luz intermitente que nos indica a estrada. A nós: oficina M50, oficina Ganga, oficina Sukrinha, 50 Pessoa, à Whitney e ao Quintino e à Leonor (Chapitô) e à Banda Municipal. Vês aquela senhora de camisola vermelha sentada no asfalto? Tem o mundo encostado ao peito. E aquela rapariga a fazer acrobacias no ar enquanto a morna é chão? Mais atrás, mais atrás, ele e ela dançam e param a ‘pick up’: param a civilização. Contra todas as evidências em contrário, a alegria. Abraços a desconhecidos. E desconhecidos atrás da banda até que suceda ‘outra humanidade’ no andar de uma criança. Renascer. Já pensaste nisso? Acordar para um mundo novo. Quem sabe, depois da sesta. Acorda! Só vamos no primeiro dia e o ‘Arlequim em levitação’ faz-te levitar por momentos e por momentos a Terra do Nunca. Nun-ca. Bem à tua frente. Nunca lá foste? Espera um pouco, deixa-me ver o programa. Amanhã de manhã vai ao Museu do Mar ou a Torre de Belém, como queiras, e ficas a saber ‘Como entrar no mar’. Só há bilhete de ida e dois olhos para brilhar. Tocar a vida é outra coisa, ancorar, por exemplo, e coisas que nos fazem acreditar na segurança. Mas mais uma vez o ‘Arlequim em levitação’ desafia São Vicente-mundo a olhar a vida sempre por cima. Armas-te em durão, entras na ‘Tenda do riso’ e sais de lá a chorar de rir. Venham ver venham ver! Um médico em velocidade a puxar uma cadeira de rodas a atravessar a passadeira a parar o trânsito com um megafone na mão. Consegues ouvir daí a beleza da loucura? Achavas que era a revolução e que as respostas às tuas perguntas
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finalmente era gritadas na rua... Falso alarme. O grito mais agudo é o silêncio. Mas o sorriso mais lindo é o olhar. Não achas? Não me digas que somos ‘Cegos’ e tudo não passa afinal de uma brincadeira aleatória do destino. Dos tais seis ou sete invisíveis, como falámos nesse dia, a jogar Guerra dos Tronos em tabuleiro e a descontar em nós. Já andávamos desconfiados disso, não era, que afinal queremos só aquele cantinho no assento, que alguém nos dê a comida à boca, que delícia! Corre para ‘A família’. Quantas cores tens além das que aparecem nos álbuns de fotografias que tiraste com os teus pais e irmãos? Há uma luz que é tua, diz a ‘Afrobarbie’, e não deixes que o mundo a não veja. Senão passas a fazer parte das ‘Estátuas vivas’ entre as 8 e as 19. Em todo o caso põe os phones e ouve o som da poesia na ‘Casa-partida’. Não sabias que a poesia tem som? Quando escutas pode acontecer que o amor nunca mais te largue. Quando escutas. Dois corações ligados num tempo e num espaço deslocado 46 centímetros acima da estratosfera, na órbita da lua cheia, com o ruído que tu ouves quando a televisão dessintoniza o canal. É isso. É estranho. E belo. Mas no fim de contas somos a maior ‘Brigada de palhaços’ de todos os tempos. Só é preciso fazer bem as contas. Fazer bem o ‘Exercício’. José Pinto Coordenador das Performances Mindelact 2017
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Yuran Henrique o festival Mindelact em traรงos indisciplinados
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mindelact 2017
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galeria de fotos fotos de bob lima
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Robson Catalunha (Brasil) 73
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Fatou CissĂŠ (Senegal) 83
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Cia. Raiz di Polon (Cabo Verde) 85
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RedBeard Theatre & Gilded Balloon Productions (Inglaterra) 86
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laรงos de sangue
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Núcleo Experimental de Teatro (Angola) 89
RITA MIRANDA
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PAULO CUNHA e JOSÉ MENA ABRANTES
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Vem a Mim Lisa Reis Dezembro 2017
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Mendigo - Sou. (pausa) Sou mendigo. Mendigo de sorriso. Mendigo invejado. Sou aquele de quem o Homem desesperadamente precisa. Sou aquele que ninguém quer ser, mas em quem todos se apoiam para se lembrarem que ainda são Homens. (pausa) Sou pobre. Pobre livre. Não me prendo. Quando já não me sentir em casa, mudo de rua. Não tenho ninguém que me impeça de ir para onde quero. Pelo contrário, quanto mais longe melhor. Mas não longe de mais. (pausa) Quando não apreciar mais as ruas que vejo, levanto-me, olho para os dois lados e vou rumo à decisão dos meus pés. (pausa) (O personagem é interrompido pelo som de risos sarcásticos que se fazem sentir vindos do fundo da sala. Pausa longa enquanto olha para trás. Olha para o público. Pausa) Sou filho da lua (pausa) Sou filho do sol. Sou preto, porque o sol que aquece sem queimar, arranjou em mim casa para os raios mais fortes. (sorriso sarcástico) Não tenho casa, mas fiz um acordo com o Pai-Sol de dar abrigo aos seus raios vermelhos. Que estes raios me tornem tão preto que nunca mais consiga ter quatro paredes só para mim. Ter as quatro paredes é a mesma coisa que dizer que aceito que me prendam. (pausa com sorriso sarcástico). Se me prender (pausa) quem é que liberta os outros? (O personagem é novamente interrompido pelo riso que vem do fundo, agora mais alto. Olha para trás. Irritado, olha para o público e sorri. Pausa.) Eu digo (grito) vem a mim. Que depois das grandes festas, quando já comeste que nem um porco, que olhes para mim e que também me possas dar de comer para limpar a tua alma suja e com pena de mim. (No fundo do espaço cénico, uma outra personagem é iluminada por um pontual. É uma criança do sexo feminino, sentada no chão. Tem a cara virada para o chão. Quando levanta a cara, nota-se que tem os olhos fechados por linha.) Criança – Achas? Mendigo – (Ignora a pergunta) Porque quando me alimentas, esqueces-te que és um ser meramente imundo. Sujidade interior. E quando pensares estar limpos de egoísmo (pausa e diminui o volume da voz) que te sintas mais Homens. 95
Criança – Achas? Mendigo - Vem a mim. Que quando eu estender a mão para pedir e me disserem que não, que este momento se congele nas vossas mentes e que vos leva ao desespero. E que na manhã seguinte, quando me virem, que me dêem mais do que necessário. E deixo-te criar a ilusão de que és um ser de caráter. Criança – Achas? Mendigo – (silêncio) Criança – Achas? Achas mesmo? Diz-me. Ach… Mendigo – (grito) Acho sim. Qual é o erro? Criança – Erro? O erro é a tua ideia de importância que não existe. Mendigo – Não é ideia. É paradigma. Criança – Paradigma é facilmente desacreditado. Mendigo – Não quando é banhada em factos. Factos que são verdades. Verdades que me permitam afirmar a minha importância. A minha importância. Minha (pausa) importância. (grita com a criança) Criança – (Pausa. Levanta-se bruscamente avançando para o mendigo. Pára. Pausa. Sussurra) Verdadeiros até que se prove o contrário. Mendigo – (Pausa. Assustado) Como é que tu sabes o que é verdadeiro ou não? Não respondas. (pausa) Como é que sabes? Está calada. Não respondas. Não és revelante. Criança – No entanto perguntas. (sorriso sarcástico) Simplesmente não queres permitir que os teus pensamentos sejam eclipsados pela verdade. Não queres permitir que os teus ouvidos sejam corroídos pelo que não queres ouvir. Mendigo – Pergunta! No entanto não pergunta! “A”! Não é no “entanto não 96
perguntas”. Fala-me com respeito. Não és mais do que uma criança. Criança – Não és mais que um adulto. Mendigo – (pausa) Mas o que te faz pensar que está certo o que dizes? Criança – Porque a minha tentativa falhada de ter importância fez-me desacreditar. Mendigo – Qual é a tua importância? O seres uma criança? (riso sarcástico. Pausa) Que triste. Criança – É triste mas não me consegues deixar de ouvir. Mendigo – (silêncio) Criança – Estes pontos (toca suavemente os olhos) fui eu quem os deu. Só. Um por um. Não tive dor. O que me doía era a alma. Quando o que sente dor é a alma, todo o resto deixa de ser sentido. (pausa) Fi-los porque assim deixo de ver a podridão dos meus irmãos. Deixo de conseguir ver e as lágrimas deixam de ter por onde sair. (pausa) Ouve. Ouve e aprende que esta importância é fictícia. A mente é traiçoeira. Faz-nos acreditar nas coisas mais bonitas para que quando caírem as defesas que autorizam fazer parte deste mundo, é o próprio mundo que te engole. Mendigo - Aprende tu. E digo vem a mim e te deixo ser gente. Ser gente de uma forma que nunca foste antes. (pausa) Não existe muita gente como eu. Mendigos há muito. Mas daqueles que criam em ti a sensação de agonia e de desespero (sussurra) somos raros. Não me queres ao teu lado, por ser tão difícil carregar tal responsabilidade. Então (pausa) sou expulso. Mas não te culpo. Os sábios sempre andaram sós. Mas vem a mim que te posso curar. Pelo menos temporariamente. Até que caias outra vez nas mãos do não humano. Do não gente. Mas aí, vens outra vez. E outra vez. E outra vez. Criança – Sou eu a acolhedora. A que aceita para ter o prazer da companhia de todos aqueles se acham importantes. Vem a mim, ser meu acolhido. (Oferece ao mendigo uma agulha com linha). Vem a mim. Vem. (grita) Vem. Vem a mim.
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duas revistas irmãs amor além mar Para conhecer a revista brasileira Antro Positivo, uma publicação gratuita sobre artes cênicas e pensamento contemporâneo, visite www.antropositivo.com.br
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