A Farmacoepidemiologia e a avaliação do Impacto Positivo e Negativo do Medicamento na Saúde das Popu

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A Farmacoepidemiologia e a avaliação do Impacto Positivo e Negativo do Medicamento na Saúde das Populações

José Joaquim Costa Cabrita da Silva Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa

Editor: Manuel José Guedes da Silva, Lda. Rua Luiz Marques, Lote 8 - Alto dos Gaios 2765-448 Estoril Tel: 21 466 99 05 Fax: 21 467 57 99 E-mail: mguedes.silva@mjgs.pt Depósito legal: ISBN: 978-989-97000-1-7 Tiragem: 10.000 Impressão: G.C. - Gráfica de Coimbra, Lda.

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Indice José Joaquim Costa Cabrita da Silva

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1. Os Medicamentos e a Saúde Pública a) Referência histórica ao uso do Medicamento e ao seu impacto positivo e negativo no potencial de saúde das populações. b) As grandes epidemias de iatrogenia medicamentosa e o processo de regulamentação sobre a segurança e a eficácia dos medicamentos c) Introdução à Farmacoepidemiologia: conceito, objectivos e âmbitos de intervenção no circuito do medicamento

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2. Exposição e Efeito do Medicamento na Saúde das populações 14 a) Principais variáveis de interesse na caracterização da exposição e do 14 efeito do medicamento. Indicadores de exposição populacional. b) O efeito associado ao uso do medicamento. 18 c) Principais fontes de informação em Farmacoepidemiologia. Bases de 21 Dados e trabalhos de Campo 3. A metodologia epidemiológico no contexto do medicamento 24 a) Da observação e análise à formulação da hipótese explicativa e à com24 provação do nexo de causal entre a exposição e o efeito. b) Associação causais e não causais. Viés e confundimentos em estudos 29 epidemiológicos no contexto do medicamento.

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4. Modelos de Estudos Epidemiológicos no contexto do medicamento a) Classificação dos estudos epidemiológicos em função da orientação cronológica, da metodologia e do objectivo do estudo. b) Estudos de Epidemiologia Descritiva. Estudos casuísticos e estudos populacionais. Estudos de Utilização de Medicamentos. c) Estudos de epidemiologia causal. Estudos observacionais (Estudos de Coorte e de Caso-Controlo) e experimentais (Ensaios Clínicos). d) Novas abordagens de epidemiologia observacional (Estudos de Caso Controlo intra Coorte, Estudos de Caso-Coorte E Estudos de CaseCrossover) e) Vantagens e limitações dos ensaios clínicos vs estudos observacionais na avaliação da eficácia, efectividade e segurança dos medicamentos.

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Bibliografia

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A Farmacoepidemiologia

Curriculum Vitae José Joaquim Costa Cabrita da Silva

José Joaquim Costa Cabrita da Silva, 55 anos, casado, natural de Lagos - Algarve. Licenciado em Farmácia pela Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL), Mestre em Metodologia Epidemiológica, Estatística e Operacional pela Universidade Livre de Bruxelas, Doutorado em Farmácia (Microbiologia), com Agregação pela Universidade de Lisboa em Farmacoepidemiologia. Professor Catedrático da FFUL, coordenador do Sub-Grupo de Sócio-Farmácia, responsável por várias disciplinas na formação pré e pós-graduada no âmbito da Saúde Pública, Epidemiologia e Farmacoepidemiologia. Coordenador executivo dos Cursos de Mestrado / Doutoramento em Farmácia Comunitária, em Farmácia Hospitalar e em Cuidados Farmacêuticos Coordenador Científico da Linha de Investigação em Farmacoepidemiologia do iMED-UL (Institut for Medicines and Pharmaceutical Sciences - University of Lisbon) da Fundação da Ciência e Tecnologia. Orientador e co-orientador de diversos projectos de investigação no âmbito da Epidemiologia de Doenças Infecciosas, da Farmacoepidemiologia e da Farmácia Social. Autor ou co-autor de mais de 150 comunicações e apresentações sob a forma de painel em congressos e reuniões científicas nacionais e internacionais e de mais de 50 publicações em revistas nacionais e estrangeiras da especialidade.

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1. Os Medicamentos e a Saúde Pública a) Referência histórica ao uso do Medicamento e ao seu impacto positivo e negativo no potencial de saúde das populações Os medicamentos constituem um dos principais recursos de saúde das populações na prevenção e luta contra a doença, bem como na promoção da qualidade de vida. A história da Saúde Pública nos últimos séculos, mostra-nos como a valorização do potencial de saúde das populações está intimamente associada, não só ao seu desenvolvimento económico e progresso social, mas também a uma maior acessibilidade aos medicamentos e à sua adequada utilização. Nos países mais industrializados da Europa e da América do Norte observou-se em meados do século XX uma profunda alteração dos padrões de morbilidade e mortalidade, conhecida como a Transição para a 2ª Era da Saúde Pública, caracterizada por uma redução acentuada da mortalidade infantil e da mortalidade por doenças infecciosas, o que determinou por sua vez um aumento significativo da esperança de vida, e o consequente envelhecimento das populações, acompanhado por sua vez por um acréscimo da mortalidade por doenças crónicas e degenerativas, nomeadamente por cancro e patologias cardiovasculares. Esta alteração do padrão de mortalidade e morbilidade, que implicou importantes ganhos em saúde, quer na quantidade de anos de vida, quer na qualidade de vida das populações, resultou, pelo menos parcialmente, da sua maior acessibilidade a um arsenal terapêutico mais efectivo e diversificado. No segundo quartel do século passado iniciou-se a produção em larga escala de medicamentos que tiveram grande impacto na luta contra as doenças predominantes de então, nomeadamente os antibióticos. A produção industrial democratizou o acesso ao medicamento, que deixou de constituir um bem escasso, só ao alcance de alguns, para se tornar na tecnologia de saúde mais utilizada e eficiente na redução da morbilidade e da mortalidade evitável, bem como para um aumento da qualidade e da esperança de vida. No entanto, a maior acessibilidade ao arsenal terapêutico teve um efeito perverso, que se traduziu na ocorrência mais frequente de doenças ou síndromes associadas ao uso de medicamentos. Na verdade, os medicamentos são moléculas xenobióticas e biologicamente activas, pelo que poderão desencadear efeitos negativos, mais ou menos graves, na saúde dos seus utilizadores. Assim, o uso de medicamentos pode também gerar um impacto negativo na Saúde Pública. A percepção de que os medicamentos podem comportar riscos potenciais para a saúde dos seus utilizadores será tão antiga quanto a sua utilização que remonta à Pré-historia. Desde os primórdios da sua existência o Homem procurou lutar contra a doença e contra a morte recorrendo ao conhecimento empírico sobre os factores ou circunstâncias que lhe conferiam um risco acrescido para a sua saúde, bem como ao conhecimento sobre o efeito curativo, real ou imaginário, atribuído a produtos de origem animal, vegetal ou mineral que constituam o seu arsenal terapêutico. Mas,

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o Homem da Antiguidade também já percepcionava que algumas destas "mezinhas" poderiam ter efeitos perversos, originando novas maleitas, por vezes fatais. Na verdade, alguns documentos produzidos na Antiguidade, tais como o código de Hammurabi (2.200 AC), assim como alguns escritos de Hipócrates (Século V AC), de Galeno (Século II DC), entre outros mestres da medicina, fazem referência à ocorrência de doenças resultantes do uso de remédios ou de produtos utilizados para fins curativos. Mais tarde, no século XVII é pela primeira vez proibida a utilização de um fármaco devido à sua toxicidade. No entanto, é a partir do segundo quartel do século XX, quando se regista o grande desenvolvimento da produção industrial farmacêutica, que o potencial iatrogénico dos medicamentos se assume como um problema de Saúde Pública. Na verdade, a maior dimensão da população utilizadora de uma molécula terapêutica determinou uma maior ocorrência de reacções adversas a ela associadas. Além disso, o aumento progressivo da esperança de vida e o envelhecimento das populações, particularmente na Europa, originou uma maior prevalência de doenças crónicas e degenerativas, consequentemente uma utilização mais prolongada de medicamentos, bem como uma maior proporção de idosos, os quais apresentam uma vulnerabilidade acrescida para a ocorrência de reacções adversas a medicamentos resultantes do próprio envelhecimento, da coexistência de patologias crónicas e da frequente poli-medicação. Assim, a crescente exposição ao medicamento de grupos populacionais mais numerosos e vulneráveis gerou um impacto negativo na Saúde Pública. Já em 1922, Paul Ehrlich, pioneiro da produção por síntese química de medicamentos anti-microbianos se confrontava com o dilema do risco / benefício do medicamento. Na verdade, um composto arseniacal que sintetizara, o Salvarsan, revelara-se um medicamento eficaz no tratamento da sífilis, mas alguns dos doentes a quem o administrara morreram com icterícia, provavelmente resultante de falência hepática induzida pelo fármaco. Este facto levou-o a exprimir a sua inquietação com a toxicidade potencial dos medicamentos anti-microbianos considerando que "a função prioritária na terapêutica medicamentosa consiste em aprender a fazer balas mágicas que sejam letais para os agentes infecciosos, mas que nada afectem a saúde do paciente". Na verdade, os medicamentos não são inócuos nem absolutamente seguros, o que significa que a sua utilização pode originar, em determinadas circunstâncias, e em alguns dos seus utilizadores, reacções adversas graves e por vezes fatais. Mas, por outro lado eles são indispensáveis para lutar contra a doença e para promover uma melhor qualidade de vida dos seus utilizadores. Recordemos que já Paracelso (Século XVII) considerava que o efeito terapêutico ou tóxico de um medicamento só dependia da sua dose. Diversos autores procuraram quantificar os benefícios e os riscos para a Saúde Pública associados à utilização dos medicamentos. Entre eles, destacamos Heilmann que concluiu que, nos países industrializados na segunda metade do Século XX, a efectividade do arsenal terapêutico teria contribuído para um aumento de 15 anos na esperança de vida das populações, enquanto, por outro lado, a mortalidade resultante de reacções adversas originaria uma redução de apenas 37 minutos na respectiva esperança de vida. Assim, analisando o balanço entre ganhos e perdas torna-se

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inquestionável que o benefício do arsenal medicamentoso, considerado na sua globalidade, supera largamente os riscos inerentes à sua utilização, constituindo por isso um importante património da humanidade. Porém, em determinados grupos específicos de medicamentos que apresentam uma maior toxicidade a frequência de reacções adversas graves, ainda que baixa, pode constituir um importante problema de Saúde Pública se for elevado o número de consumidores desses medicamentos na população. É o caso do choque anafiláctico associado ao uso de Penicilina, que se estima ocorrer numa frequência de um caso por 40.000 utilizadores e que sugere um baixo risco individual, mas se tivermos em conta os milhões de utilizadores daquele grupo de antibióticos concluiremos que numa perspectiva de Saúde Pública o risco é considerável. Analisando a prevalência de exposição aos medicamentos em geral, ou a um grupo terapêutico em particular, e considerando as frequências estimadas de reacções adversas poderemos estimar o seu impacto negativo em cada comunidade. Foi sugerido por alguns autores que a frequência de ocorrência de reacções adversas graves e de reacções adversas moderadas seria respectivamente de 0,1 % e de 1 % por medicamento, considerando a globalidade dos medicamentos. Outros autores referiram que as reacções adversas graves seriam responsáveis por 3 % a 6 % dos internamentos hospitalares e que incidência entre os doentes hospitalizados seria de 10 a 20 %.

Reacção Adversa a Medicamentos (RAMs) - Reacção a um medicamento, nociva e inesperada que ocorreu com a dose normalmente utilizada no homem para profilaxia, diagnóstico, tratamento ou modificação de uma função fisiológica. (OMS 1972) Reacção Adversa Grave - Qualquer reacção adversa que ponha em perigo a vida, cause a morte, incapacidade, internamento ou prolongamento do mesmo. Reacção Adversa Inesperada - Qualquer reacção adversa que não é referida no RCM (Resumo das Características do Medicamento).

Um estudo publicado em 1998 no JAMA, uma das revistas científicas biomédicas de maior prestígio, referia que nos Estados Unidos da América, um dos países com legislação mais rigorosa sobre a segurança dos medicamentos, a incidência global de reacções adversas em doentes hospitalizados era de 6,7 % e a incidência de RAMs fatais de 0,3 %, concluindo que a iatrogenia medicamentosa se situava entre a 4ª e 6 ª causa de morte em meio hospitalar. A referência cada vez mais frequente, quer em revistas científicas, quer nos meios de comunicação social, da ocorrência de casos esporádicos ou de epidemias de reacções adversas graves, por vezes fatais e / ou inesperadas, abalou a confiança das populações e dos profissionais de saúde quanto à segurança dos medicamentos. Tornou-se indispensável que as autoridades sanitárias garantissem uma avaliação sistemática e rigorosa do impacto positivo e / ou negativo para a saúde das populações inerente à utilização de cada molécula ou de cada grupo terapêutico de forma a potenciar os benefícios e reduzir os riscos do arsenal terapêutico.

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O quadro seguinte apresenta os diversos parâmetros associados ao impacto positivo e negativo para a Saúde Pública associado ao uso de medicamentos. Impacto Positivo do Medicamento Menor Incidência de Doença Menor Duração dos Episódios de Doença Menor Incapacidade resultante da Doença Menor Risco de Mortalidade Maior Qualidade de Vida Maior Capacidade Produtiva

Impacto Negativo do Medicamento Incidência de Reacções Adversas (RAMs) Mortalidade associada a RAMs Incapacidade associada a RAMs Menor Qualidade de Vida associada a RAMs Necessidade de Avaliação da Segurança dos Medicamentos

O progresso do conhecimento no âmbito das ciências da saúde e do medicamento permite-nos compreender melhor os mecanismos através dos quais os medicamentos vão desencadear o seu efeito terapêutico ou tóxico, e consequentemente vão originar um impacto positivo e / ou negativo na saúde das populações. Assim ao ser introduzido um novo medicamento no mercado terapêutico importa ser capaz de responder de forma objectiva a estas simples, mas pertinentes questões: 1. Os riscos inerentes ao uso desse medicamento são conhecidos e são aceitáveis para o indivíduo e para a comunidade? 2. A mais valia terapêutica supera de forma relevante os riscos associados à sua toxicidade potencial.

b) As grandes epidemias de iatrogenia medicamentosa e o processo de regulamentação sobre a segurança e a eficácia dos medicamentos. A referência a casos de iatrogenia medicamentosa em revistas científicas de biomedicina iniciou-se no século XIX. O primeiro estudo sistematizado foi apresentado pela Sociedade Alemã de Cirurgia que comparou a toxicidade de diversos anestésicos, demonstrando que a ocorrência de reacções adversas quando se utilizava o éter era 3 vezes superior à do clorofórmio. Em 1880, um outro estudo associou o uso do clorofórmio como anestésico a um maior risco de morte por depressão cardíaca. Nos anos 20 do século passado foi evidenciada a toxicidade hepática de alguns medicamentos e no final da década seguinte, em 1938, surge nos Estados Unidos da América a primeira grande epidemia de iatrogenia medicamentosa, que originou 107 mortes devido ao consumo de um elixir de sulfanilamida contendo dietilenoglicol como solvente. Em 1954, em França, registaram-se 98 de casos mortais com manifestações neurotóxicas associados ao consumo de Stanilon, na maioria das vezes usado em auto-medicação para tratamento de infecções cutâneas. Poucos anos depois, a utilização durante os primeiros meses de gravidez de Talidomida, um sedativo considerado inofensivo e isento de prescrição médica obrigatória, provocou milhares de casos de malformações congénitas, centenas de mortes neonatais e um número indeterminável de abortos espontâneos em 49 países, entre 1958 e 1962. Uma verdadeira pandemia iatrogénica.

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No início da década de setenta foi comprovada a associação entre a ocorrência de neuropatia mielo-óptica subaguda e o consumo de clioquinol, um antiséptico intestinal isento de prescrição médica obrigatória e largamente utilizado desde os anos 30. Aquela síndrome neurológica terá originado mais de 10.000 casos, principalmente no Japão. Em 1972 foi demonstrado a existência de um nexo causal entre a exposição "in utero" ao Dietilestilbestrol e a ocorrência de um tipo raro de adenocarcinoma vaginal em jovens cujas mães utilizaram durante a sua gravidez aquele medicamento, o que alertou para o longo tempo de latência potencial de reacções adversas a medicamentos. Em 1993 o uso de contraceptivos orais foi associado ao risco acrescido de tromboembolismo venoso e na última década têm sido emitidos frequentes alertas sobre a ocorrência de reacções adversas fatais e o uso de alguns fármacos, nomeadamente o Cisapride, o Itraconazole e o Rofecoxibe que foram associados a risco acrescido de morte cardiovascular, a Cerivastatina à rabdomiólise grave ou a Olanzepina à diabetes. Na tabela seguinte apresenta uma listagem não exaustiva de reacções adversas a medicamentos que foram devidamente comprovadas e documentadas. ANO 1880 1922 1923 1933 1938 1954 1961 1970 1972 1974 1977 1982 1983 1983 1990 1990 1993 1999 2000 2001 2001 2002 2003

Fármaco Clorofórmio Compostos Arsenicais Cincofeno Amidopirina Elixir de Sulfanilamida Stalinon Talidomida Clioquinol Dietilestilbestrol Practolol Fenilbutazona Benoxaprofeno Zomepirac Indometacina Fluoxetina Bromocriptina Contraceptivos orais Trovafloxacina Cisapride Itraconazole Cerivastatina Olanzepina Rofecoxibe

Reacção Adversa Depressão Cardíaca Falência Hepática Falência Hepática Agranulocitose Falência Renal Sequelas Neurológicas Focomélia, Morte Neonatal, Abortos Neuropatia Mielo-óptica subaguda Adenocarcinoma na vagina Síndrome Óculo-mucocutâneo Discrasias Sanguíneas graves Falência Hepática Reacção Anafiláctica Perfuração Intestinal Tendências Suicidas Crise Hipertensiva e Enfarte pós-parto Tromboembolismo Venoso Falência Hepática Arritmia Cardíaca Insuficiência Cardíaca Rabdomiólise Grave Diabetes Enfarte do Miocárdio

Assim, a comprovação do nexo causal entre o uso de um medicamento e a ocorrência de RAMs graves ou fatais originou que muitos medicamentos tenham sido retirados do mercado terapêutico, como por exemplo, entre alguns dos casos anteriormente referidos, a Cerivastatina e o Rofecoxibe. Porém, com outros medicamentos, como

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o Cisapride ou a Trovafloxacina, as Agências Reguladoras mantiveram-nos no arsenal terapêutico, mas restringiram a indicação da sua utilização apenas em casos específicos. Em muitos outros casos são apenas emitidos alertas aos profissionais de saúde. Compete às Autoridades Sanitárias assegurar a melhor relação risco / benefício do arsenal terapêutico disponibilizado às populações e aos profissionais de saúde, tendo em consideração as alternativas terapêuticas mais seguras e igualmente efectivas. A investigação sobre a segurança dos medicamentos e a respectiva regulamentação está intimamente associada à ocorrência de epidemias de iatrogenia medicamentosa. Na verdade, o primeiro marco na evolução histórica da regulamentação sobre qualidade, eficácia e segurança dos medicamentos terá sido a Pure Food and Drug Act, publicada em 1906 nos Estados Unidos da América, que visava proibir a publicidade enganosa e exigir a indicação da composição dos medicamentos e produtos alimentares. Porém aquela lei não fazia qualquer referência à toxicidade potencial dos medicamentos. Apenas em 1938, e na sequência das repercussões sanitárias, políticas e sociais da epidemia de nefropatias associadas ao consumo de dietilenoglicol ocorrida nos Estados Unidos da América, anteriormente referida, foi aprovada naquele país de uma lei federal, a Food, Drug and Cosmetic Act que impunha a realização de testes comprovativos da baixa toxicidade dos medicamentos antes da sua comercialização. A partir de 1960 a Food and Drug Admnistration (FDA) inicia o registo sistemático de RAMs e em 1962, foi introduzida uma adenda, a Kefauver Harris Amendments, à lei federal anteriormente referida exigindo a comprovação da eficácia terapêutica dos medicamentos. Assim, os Estados Unidos da América tornaram-se o primeiro país a ter regulamentação específica visando garantir a segurança e a eficácia de um novo medicamento. No ano seguinte e no rescaldo do trágico episódio da Talidomida a 16ª Assembleia Mundial da Organização Mundial de Saúde definiu como prioridade o estabelecimento de Sistemas Nacionais de Farmacovigilância. Em 1965 a Comunidade Económica Europeia (CEE) estabeleceu, através da Directiva 65 / 65, a exigência de comprovação da baixa toxicidade e da eficácia de um medicamento como um pré-requisito para a sua aprovação nos países que integravam aquele espaço económico.

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Para garantir a segurança e a eficácia terapêutica do medicamento todas as etapas do processo de desenvolvimento, produção, distribuição e utilização do medicamento tornaram-se alvo de cuidadosa investigação. Assim, a segurança e a eficácia terapêutica do medicamento antes da introdução no mercado terapêutico, é obrigatoriamente testada através de ensaios pré-clínicos e clínicos. Os ensaios pré-clínicos são realizados em animais e inserem-se no âmbito da farmacologia experimental. Os ensaios clínicos são efectuados em humanos para os quais o medicamento em análise constitui uma potencial mais valia terapêutica e integram-se no âmbito da farmacologia clínica. Nos ensaios clínicos habitualmente consideram-se 4 fases, sendo as 3 primeiras anteriores à aprovação da introdução do medicamento no mercado terapêutico, enquanto a fase IV se realiza após a sua comercialização, pelo que é habitualmente designada por estudos pós-marketing. Para medicamentos que à partida se conhece a sua elevada toxicidade os ensaios clínicos iniciam-se na fase 2, pois não seria ético administrá-los a populações saudáveis. As fases I e II inserem-se no âmbito da farmacologia clínica e a fase III e IV na investigação farmacoepidemiológica, embora alguns autores considerem que a fase III dos ensaios clínicos também deve ser incluída na farmacologia clínica. Na tabela seguinte são apresentadas as características de cada uma das etapas dos ensaios pré-clínicos e clínicos. Ensaios Pré-clínicos - Estudos sistemáticos de um medicamento em animais de experiência visando a sua caracterização química, toxicológica e farmacológica. Ensaios Clínicos - Estudos sistemáticos de um medicamento em humanos, saudáveis ou doentes com a finalidade de avaliar a sua segurança e eficácia utilizando métodos experimentais

Fase 1 - Perfis de Segurança e Farmacológicos. Efectuam-se num pequeno grupo (10) de voluntários saudáveis com o objectivo de realizar os primeiros estudos de farmacocinética clínica (absorção, distribuição, metabolismo, excreção e duração da sua acção), avaliar a tolerância em função da dose e rastrear efeitos adversos exclusivos em humanos. Fase 2 - Perfis de Eficácia Terapêutica. Efectuam-se num grupo restrito de doentes (50 a 300) para os quais o medicamento em estudo constitui uma potencial alternativa terapêutica com o objectivo de avaliar a eficácia terapêutica, determinar as posologias apropriadas e caracterizar os efeitos farmacodinâmicos do medicamento. Fase 3 - Ensaios Clínicos Extensos. Efectuam-se num grupo mais numeroso de doentes (500 a 3000) e durante um período mais alargado de tempo com o objectivo de rastrear reacções adversas e obter uma maior informação sobre a sua toxicidade e eficácia terapêutica. Vigilância Pós-Marketing (Ensaios Clínicos Fase IV) - Estudos de um medicamento após a sua introdução no mercado terapêutico visando rastrear reacções adversas e contribuir para avaliar a sua segurança e efectividade terapêutica nos consumidores em geral, recorrendo a métodos observacionais.

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Apesar de todos os esforços a ocorrência de reacções adversas graves persiste e provavelmente será inevitável a sua existência, pois em muitas circunstâncias só será possível conhecer o potencial iatrogénico de um medicamento após o seu consumo por muitos milhares ou milhões de doentes, o que evidencia a pertinência da avaliação sistemática do impacto positivo e negativo de cada medicamento na Saúde Pública. É neste contexto que a Farmacoepidemiologia é assumida como uma importante área científica no âmbito do medicamento face à necessidade de assegurar aos prestadores de Cuidados de Saúde e aos seus utilizadores, a população em geral, que o arsenal terapêutico de que disponível é cada vez mais poderoso, diversificado e eficaz, mas também cada vez mais seguro.

c) Introdução à Farmacoepidemiologia: conceitos, objectivos e âmbitos de intervenção no circuito do medicamento A Farmacoepidemiologia é frequentemente definida como a área científica que estuda a utilização dos medicamentos pelas populações, bem como o seu impacto positivo e negativo nas comunidades humanas Farmacoepidemiologia: Pharmakon (Fármaco)

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Epi (na)

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Demos + Logos (População) (Conhecimento)

O estudo dos medicamentos como determinantes de saúde (Spitzer) Aplicação dos conhecimentos e métodos da epidemiologia ao estudo dos efeitos, positivos e negativos, do uso de medicamentos em grandes populações (Porta e Hartzema)

A expressão Farmacoepidemiologia é referida pela primeira vez na literatura biomédica num artigo de Lawson publicado no New England Journal em 1984. No entanto, a investigação epidemiológica no contexto do medicamento teve o seu início algumas décadas antes. Nos anos 60, nos Estados Unidos da América são efectuados os primeiros estudos, visando caracterizar padrões de prescrição e consumo de medicamentos e inicia-se o registo sistemático de reacções adversas. Na década seguinte merece destaque os trabalhos pioneiros de Slone, Shapiro e Jick, também nos E. U. A., realizando os primeiros estudos de Caso-Controlo e de Coorte para confirmar ou infirmar a associação entre o consumo de medicamentos e a ocorrência de efeitos adversos. O êxito de alguns desses estudos contribuiu para o desenvolvimento desta área científica que se consolidou no último quartel do século XX, quando se generalizou a aplicação da metodologia epidemiológica no contexto do medicamento. Assim, a Farmacoepidemiologia é uma ciência muito recente, mas assume já um papel preponderante no âmbito das

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Ciências do Medicamento, como corolário da necessidade imperiosa em assegurar aos prestadores de Cuidados de Saúde e à população em geral que os benefícios do arsenal terapêutico de que dispõem superam os riscos inerentes à sua utilização. Para tal, a Farmacoepidemiologia fornece um amplo conhecimento e uma metodologia que permite avaliar e optimizar a relação benefício / risco inerente ao uso de medicamentos. A Farmacoepidemiologia é uma área científica que se encontra na interface entre a Farmacologia Clínica e a Epidemiologia, pois aplica a metodologia e o raciocínio epidemiológico ao estudo dos efeitos positivos e negativos do medicamento, o que, por sua vez, constitui o objecto de estudo da Farmacologia Clínica. A Farmacologia Clínica recorre à metodologia experimental e a unidade de investigação é o doente para o qual o medicamento constitui uma mais valia terapêutica, enquanto a Epidemiologia utiliza preferencialmente métodos de investigação observacional e a sua unidade de investigação é a comunidade no seu todo. A Farmacoepidemiologia tem como finalidade descrever, explicar, controlar e prever o uso e os efeitos das terapêuticas medicamentosas numa dada população, num espaço e tempo definidos, bem como avaliar o seu impacto no potencial de saúde da comunidade. Neste contexto, os objectivos prioritários são: a) Assegurar a vigilância sistemática dos efeitos adversos dos medicamentos através da Farmacovigilância; b) Estudar a evolução dos padrões de consumo de medicamentos na comunidade e a sua correlação com os seus indicadores de morbilidade; c) Estudar a existência de nexos causais entre o uso de medicamentos e a ocorrência de um efeito positivo ou negativo na saúde dos consumidores; d) Contribuir para a promoção do uso racional do medicamento. a) A Farmacovigilância rastreia e notifica a ocorrência de efeitos adversos associados a um determinado fármaco após a sua introdução no mercado terapêutico. Como referimos anteriormente, foi através da pesquisa sistemática e da caracterização de efeitos adversos de medicamentos que a aplicação da metodologia epidemiológica no contexto do medicamento teve o seu início nos anos 60 do século XX. No entanto, embora a Farmacovigilância permaneça intimamente ligada à Farmacoepidemiologia constitui actualmente uma área científica autónoma que desenvolveu aspectos metodológicos específicos, nomeadamente no que se refere à imputação de causalidade e à geração de sinais. b) A caracterização da evolução dos padrões de consumo de medicamentos na comunidade e a sua correlação com os seus indicadores de morbilidade é feita através de estudos, geralmente designados por Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM), que recorrem à metodologia epidemiológica para descrever e analisar o contexto em que são usados os medicamentos na comunidade e o seu impacto na Saúde Pública. Estes estudos identificam o arsenal terapêutico disponível numa comunidade ou instituição, caracterizam os padrões de consumo dos medicamentos e avaliam os resultados da sua utilização na saúde das populações.

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c) O estudo da existência de nexos de causalidade entre o uso de medicamentos e a ocorrência de efeitos positivos ou negativos na saúde dos seus consumidores constitui o objectivo mais emblemático da Farmacoepidemiologia. Para alcançar este objectivo a Farmacoepidemiologia recorre quer à metodologia experimental quer à observacional. Os ensaios clínicos constituem o paradigma da metodologia epidemiológica experimental no contexto dos medicamentos, pois decorrem em condições tão controladas quanto possível no que se refere à exposição ao medicamento e à detecção e avaliação dos seus efeitos terapêuticos e / ou tóxicos. São particularmente adequados para avaliar a eficácia terapêutica, mas apresentam limitações para avaliação da sua efectividade tendo em consideração os diversos parâmetros que afectam a prática clínica como a co-morbilidade e adesão à terapêutica. Eficácia - Grau ou medida de sucesso de um processo, actividade ou intervenção específica quando realizado em condições ideais (condições controladas ou experimentais) Efectividade - Grau ou medida de sucesso de um processo, actividade ou intervenção específica quando realizado no terreno nas condições habituais de utilização (condições não controladas) Eficiência - Grau ou medida em que os recursos (humanos, materiais, financeiros) utilizados para a obtenção de resultados (eficácia ou efectividade) são minimizados. Revelam também importantes limitações, inerentes à própria metodologia experimental, na avaliação da segurança, ou seu do grau de risco inerente à sua utilização. Assim, para a avaliação da efectividade e da segurança recorre-se a diferentes modelos de estudos de epidemiologia observacional. d) Quanto à promoção do uso racional do medicamento o contributo da Farmacoepidemiologia é muito valioso e diversificado, pois: a) contribui para uma melhor prescrição através da promoção da prática terapêutica baseada na evidência científica; b) auxilia na decisão terapêutica e na sua avaliação, na medida em que identifica grupos de vulnerabilidade acrescida e quantifica os riscos associados à utilização de medicamentos nesses grupos e na população em geral; c) identifica factores que dificultam ou promovem a adesão à terapêutica; d) fornece as bases para o estabelecimento de programas e protocolos educacionais sobre práticas apropriadas de prescrição, dispensa e utilização de medicamentos; e) avalia o impacto de alterações regulamentares no âmbito da segurança e da informação sobre medicamentos. Uso Racional do Medicamento Prescrição do medicamento apropriado, dispensado nas melhores condições, em tempo oportuno, com o melhor preço, e utilizado na dose adequada durante o tempo que prescrito.

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Assim, considerando os diversos âmbitos de intervenção da Farmacoepidemiologia constata-se que ela intervém em todos os sectores do Circuito do Medicamento, nomeadamente na investigação e produção industrial, na prescrição médica, no aconselhamento e dispensa nas Farmácias Comunitárias ou Hospitalares e nas Agências Reguladoras.

2. Exposição e Efeito do Medicamento na Saúde das populações a) Principais variáveis de interesse na caracterização da exposição e do efeito do medicamento. Indicadores de exposição populacional Como foi anteriormente referido a Farmacoepidemiologia consiste na aplicação da metodologia epidemiológica para identificar efeitos terapêuticos ou adversos resultantes da exposição ao medicamento. Assim, torna-se indispensável uma caracterização criteriosa e aprofundada da exposição e do efeito, que constituem as variáveis fundamentais na investigação farmacoepidemiológica. Os parâmetros habitualmente utilizados para a caracterizar a exposição ao medicamento são: a) a natureza do medicamento; b) o tempo de exposição; c) a intensidade da exposição; d) a indicação para a utilização do medicamento. a ) Natureza da Exposição - Refere-se à caracterização qualitativa e quantitativa do medicamento, da sua formulação, da via de administração e do seu produtor. Quanto à identificação da molécula terapêutica e dos grupos e subgrupos em que aquela se insere torna-se fundamental dispor de sistemas de classificação de medicamentos válidos, precisos e aceites internacionalmente. Existem diversos tipos de Sistemas de Classificação de Medicamentos, desenhados em função de diferentes critérios, tais como o modo de acção, a indicação clínico-terapêutica ou a estrutura química. A tabela seguinte apresenta alguns exemplos de Sistemas de Classificação de Medicamentos. Sistemas de Classificação de Medicamentos - ATC (Anatomic Therapeutic and Chemical Classification System) WHO Collaborating for Drug Statistics - 1969 - EPhMRA (European Pharmaceutical Market Research Association) - IDIS (Iowa Drug Information System) - NDC (National Drug Code) - BNF (British National Formulary) - Classificação Farmacoterapêutica de Medicamentos (Despacho 6914/98)

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A Farmacoepidemiologia

O Sistema ATC (Anathomic, Therapeutic and Chemical), reconhecido pela Organização Mundial de Saúde, (OMS - WHOCC. WHO Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology (www.whocc.no/atcddd/) é o mais frequentemente utilizado a nível internacional. Neste sistema os medicamentos são classificados de acordo com 5 níveis hierárquicos, tal como é apresentado no quadro abaixo.

1º Nível 2º Nível 3º Nível 4º Nível 5º Nível

Classificação ATC (5 Níveis Hierárquicos de Classificação) Grupo Anatómico Principal (Uma Letra) Grupo Terapêutico Principal (Dois Dígitos) Subgrupo Terapêutico (Uma Letra) Subgrupo Químico (Uma Letra) Entidade (Dois Dígitos)

Ex: Ibuprofeno corresponde ao código M01AE01 M - Sistema músculo-esquelético 01 - Fármacos anti-inflamatórios e anti-reumáticos A - Anti-inflamatórios e anti-reumáticos não esteróides E - Derivados do Ácido Propiónico Este sistema de Classificação, que tem 14 grupos anatómicos principais (1º nível), assenta em 3 princípios básicos: a) cada medicamento é classificado de acordo com a sua principal indicação terapêutica; b) os medicamentos pertencentes ao mesmo subgrupo não são necessariamente equivalentes terapêuticos, c) existe apenas um código ATC para cada formulação farmacêutica excepto quando a mesma substância está disponível em diferentes formulações ou dosagens para distintas indicações terapêuticas, com por exemplo: Ácido acetilsalicílico (500 mg) - N02BA01 - Analgésico e Antipirético Ácido acetilsalicílico (100 mg) - B01AC06 - Antitrombótico Em Portugal foi adoptado como sistema oficial de classificação um sistema designado por Classificação Farmacoterapêutica de Medicamentos (despacho nº 6914 / 88 - II Série, DR de 27/04/98), que veio a sofrer algumas modificações, de forma a estabelecer uma correspondência com a classificação de medicamentos proposta no sistema ATC, em 2004 (despacho nº 21844/2004 - II Série, DR de 26/10/04) disponível na página http://dre.pt/pdf2s/2004/10/252000000/1566615675.pdf . A caracterização da forma farmacêutica do medicamento, incluindo o processo de fabrico e dos seus excipientes, da via de administração (oral, intravenosa, tópica, etc), bem como do lote e da empresa produtora do medicamento poderão ser elementos cruciais na avaliação da segurança ou da efectividade terapêutica.

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b) Duração da Exposição - Refere-se à extensão do período temporal em que o utilizador está / esteve exposto ao medicamento, a qual poderá ser expressa em unidades de tempo (anos, meses, dias) ou através de variáveis categóricas (longa exposição, intermédia, curta). É fundamental diferenciar os utilizadores recentes do medicamento dos que o utilizam há muito pois o risco de ocorrência de um efeito adverso pode ser significativamente diferente nos dois grupos. Geralmente mais elevado nos utilizadores recentes. Em muitos estudos de farmacoepidemiologia os utilizadores de uma molécula terapêutica, quanto à duração da exposição são diferenciados em: a) utilizadores novos quando o consumo do medicamento é inferior a um ano; b) utilizadores recentes se a exposição medeia entre 1 a 3 anos; c) utilizadores antigos se o consumo tem uma duração superior àquele período. No entanto, esta classificação é arbitrária e deverá ser ajustada para cada medicamento ou grupo de medicamentos em função do conhecimento sobre o tempo médio de latência para o efeito. Para caracterizar um indivíduo ou um grupo populacional quanto à duração da exposição é necessário datar o seu início, o que em estudos epidemiológicos é habitualmente referido como Index Date. Este parâmetro, assim como o que se refere à data de início de manifestações do efeito, são fundamentais em farmacoepidemiologia, pois são geralmente indispensáveis para imputação de causalidade entre o uso de um medicamento e a ocorrência de um determinado efeito. Deverão ainda ser considerados o ritmo da exposição (contínuo, intermitente, acidental) e a frequência com que a exposição ao medicamento ocorre na comunidade em estudo (ubiquitária, comum, rara). Quanto ao ritmo da exposição importa diferenciar o uso continuado de um medicamento de situação de exposição intermitente ou do consumo acidental, pois para muitos medicamentos o efeito (terapêutico ou tóxico) só é plausível a partir de uma determinada concentração que poderá ser cumulativa em função da continuidade da exposição. Assim, medicamentos para tratar estados agudos podem conduzir a exposições substancialmente diferentes daqueles que são utilizados em patologias crónicas. c) Intensidade de exposição - Refere-se à quantidade de molécula terapêutica consumida por indivíduo numa comunidade durante uma determinada unidade de tempo. O conhecimento da intensidade de exposição pressupõe a adopção de uma unidade de medida estável e que permita comparar diferentes comunidades. Foram propostas diversas unidades de medida, como por exemplo o número de embalagens comercializadas, o seu valor económico ou o número de prescrições, mas verificou-se que qualquer destas unidades não assegurava a comparabilidade entre diferentes regiões, pois eram afectadas por factores políticos, económicos e sociais inerentes a cada uma delas. Para superar estas limitações o DURG (Drug Utilization Research Group) propôs, no início da década de 80, uma unidade técnica de medida, a Dose Diária Definida (DDD), que corresponde à dose do medicamento que deve ser consumida diariamente por um adulto de 70 kg no tratamento da situação clínica que é a indicação terapêutica principal do medicamento em análise. Assim, para cada medicamento a OMS aprova e revê periodicamente a DDD correspondente, que está disponível no respectivo site www.whocc.no/atcddd/.

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A DDD é expressa sempre que possível em unidades de massa (mg, gr) e quando tal não é possível em unidades de dosagem (UD). A intensidade de exposição populacional a um medicamento ou a um grupo terapêutico exprime-se em Nº de DDD por dia e por habitante da comunidade. Quando definido e interpretado correctamente o número total de DDD/1000 habitantes permite uma estimativa aproximada da proporção de doentes de uma comunidade que utilizam um determinado medicamento na unidade de tempo considerada. Quando se pretende estudar a utilização de medicamentos em meio hospitalar, entra-se em linha de conta com o Nº de estadias hospitalares, o nº de camas e a sua taxa de ocupação. Cálculo da Intensidade de Exposição Populacional (uso de medicamento) Em Meio Comunitário: Nº DDDs/1000 Habitantes/ Dia = Nº Unidades Consumidas x Peso da Unidade x 1.000 DDD x Nº de Habitantes x 365 Dias Em Meio Hospitalar Nº DDDs/100 Estadias Hosps/ Dia = Nº Unidades Consumidas x Peso da Unidade x 100 DDD x Nº de Camas x Taxa de Ocupação x 365 Dias Exemplos: a) Em Meio Comunitário

Numa dada comunidade de 10 milhões de habitantes o número total de comprimidos de ácido acetilsalicílico, de 500 mg, consumidos no ano em estudo foi de 400 milhões de comprimidos. A DDD daquele medicamento é 3 gramas.

DDD/ 1000 hab / dia =

Nº de comp x peso de cada comp x 1000 DDD x Nº hab. x 365 dias

400.000.000 x 500mg x 1000 hab = 18,26 mg DDD/ 1000 hab / dia = 3000 x 10.000.000 x 365 b)Em Meio Hospitalar

Num dado hospital com mil camas e uma taxa de ocupação média de 80 % o número total de comprimidos de ácido acetilsalicílico, de 500 mg, consumidos no ano em estudo foi de 1 milhão de comprimidos. A DDD daquele medicamento é 3 gramas. Nº de comp x peso de cada comp x 100 DDD/ 100 estadias hosp / dia = DDD x Nº camas x Taxa ocupação x 365 dias 1.000.000 x 500mg x 100 = 57,07 mg DDD/ 100 estadias hosp / dia = 3000 x 1000 x 0,8 x 365

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O recurso às DDD para avaliar a utilização de medicamentos baseia-se no pressuposto que os doentes são completamente aderentes à terapêutica instituída, isto é que tomam os medicamentos adquiridos segundo a posologia habitual e que as doses utilizadas para a principal indicação terapêutica correspondem às doses de manutenção. Estes pressupostos muitas vezes não se verificam, o que constitui uma limitação para a utilização das DDDs como unidade de medida da intensidade de exposição. Visando superar aquelas limitações alguns investigadores têm proposto outras medidas técnicas para caracterizar a intensidade de exposição, como por exemplo: a DDP - Dose Diária Prescrita, DDR - Dose Diária Recomendada, DDU - Dose Diária Utilizada e a DMM - Dose Mínima no Mercado que corresponde mais baixa dose comercializada na comunidade. No entanto, a DDD permanece como a unidade de medida mais utilizada para quantificar a exposição ao medicamento tendo-se revelado particularmente adequada para estudar alterações ao longo do tempo de padrões de utilização de medicamentos pertencentes aos mesmos grupos terapêuticos ou utilizados para o mesmo fim (por exemplo: antibióticos, anti-hipertensivos), para estudar comparativamente o uso de medicamentos em diversas comunidades, para avaliar o efeito de programas educacionais sobre prescrição e utilização de determinados medicamentos (por exemplo antibióticos), bem como para estimar prevalências de doenças e de internamentos hospitalares associados a doenças. d) Indicação do motivo da exposição ao medicamento - Refere-se à caracterização da doença ou dos sintomas que determinaram a prescrição, indicação ou aconselhamento do medicamento. Nalgumas situações as características da doença, nomeadamente a sua severidade, podem originar uma prescrição selectiva de determinadas moléculas terapêuticas, o que deverá ser tido em conta na investigação farmacoepidemiológica para evitar interpretações erradas na avaliação do risco (Confounding by Indication), a que faremos referência posteriormente. Neste contexto, importa ainda estudar a existência de co-morbilidades ou de terapêuticas concomitantes que possam afectar a segurança ou efectividade do medicamento, bem como o cumprimento de guidelines ou orientações terapêuticas. Poderão ainda ser estudados alguns outros parâmetros relacionados com a indicação do medicamento, nomeadamente a sua origem (médico, farmacêutico, familiar / amigo, publicidade, etc), a eventual existência de procedimentos administrativos ou legais para a aquisição do medicamento (auto-medicação, prescrição médica obrigatória, portarias específicas, etc), bem como os conhecimentos do utilizador do medicamento relativamente à doença e / ou à terapêutica.

b) O efeito associado ao uso do medicamento Como foi anteriormente referido a exposição de um indivíduo ou de um grupo populacional ao medicamento pode originar um impacto positivo (o efeito terapêutico) ou um impacto negativo (reacção adversa).

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A Farmacoepidemiologia

Relativamente a cada medicamento cerca de 30 % dos seus utilizadores não cumpre a terapêutica instituída , 30 % obtém o efeito terapêutico esperado, 30 % não obtém efeito terapêutico nem qualquer efeito adverso e 10 % tem efeitos adversos sem obter qualquer efeito terapêutico. (Peter Granfellow) Diversos autores têm estudado a variabilidade de resposta à exposição ao medicamento e a identificação das suas causas constitui uma questões de investigação farmacoepidemiológica mais aliciantes. A variabilidade de resposta à exposição ao medicamento depende, de um modo geral, de 3 tipos de factores: os relacionados com o próprio medicamento (farmacocinética, farmacodinamia, formulação e via de administração), os factores intrínsecos do doente (natureza e severidade da doença, idade e sexo, factores genéticos, estado geral, co-morbilidades e outras terapêuticas) e ainda factores sociais relacionados com a forma como a sociedade se organiza para a prestação de Cuidados de Saúde (atitude dos profissionais de saúde, acessibilidade e credibilidade do Sistema de Saúde, suporte social, etc). Tal como a caracterização da exposição ao medicamento também a caracterização do efeito adverso a ele potencialmente associado pressupõe a análise criteriosa de diversos parâmetros, nomeadamente: a) a frequência de ocorrência do efeito; b) o tipo de efeito; c) severidade; d) o período de risco. a) Frequência de Ocorrência - Refere-se à incidência do efeito adverso entre os utilizadores de medicamentos em geral, ou de um medicamento em particular, e que permite estimar o seu risco de iatrogenia medicamentosa. A frequência de ocorrência de reacções adversas é muito variável em função do medicamento considerado. Assim, a obstipação associada ao uso de opiáceos, a sedação associada ao uso de anti-histamínicos ou epigastralgias em utilizadores de anti-inflamatórios não esteróides são reacções adversas frequentes, enquanto a tendinite resultantes do uso de quinolonas é um exemplo de reacção adversa rara. Na tabela seguinte é apresentada a classificação da frequência de ocorrência de efeitos adversos proposto pelo CIOMS (Concil for International Organizations of Medical Sciences). Frequência da Ocorrência do Efeito (Reacções Adversas a Medicamentos) Muito comum > 1/10 (> 10%) Comum (frequente) > 1/100 e < 1/10 (> 1% e < 10%) Incomum (infrequente) > 1/1,000 e < 1/100 (> 0,1% e < 1%) Raro > 1/10,00 e < 1/1000 (> 0,01% e < 0,1%) Muito raro < 1/10,000 (< 0,01%) In: Council for International Organisations of Medical Sciences. Guidelines for preparing cor clinical safety information on drugs. Geneva: CIOMS, 1995

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b) Tipo de Efeito - Refere-se à natureza do efeito e à relação da sua ocorrência com a duração e intensidade de exposição. O tempo de latência para o efeito, isto é o tempo que medeia entre a administração do medicamento e a ocorrência do efeito, é muito variável, dependendo das características do medicamento, mas também do seu utilizador. Alguns medicamentos, como a penicilina, originam reacções imunoalérgicas, ocorrendo o efeito quase imediatamente após a administração do medicamento e a sua maior ou menor severidade é independente da dose administrada. Por outro lado, a toxicidade associada ao uso de digitálicos apresenta um tempo de latência maior e a sua severidade do efeito é dose-dependente. No caso dos medicamentos com efeito carcinogénico ou teratogénico o tempo de latência é de muitos meses ou mesmo alguns anos, podendo tornar difícil a associação entre a exposição a um dado medicamento e a ocorrência do efeito. Com alguns medicamentos, como os β-bloqueadores, a ocorrência de efeitos adversos verifica-se quando o seu uso é subitamente interrompido (Rebound Effect). Face à grande diversidade de tipos de efeito foi proposta um sistema de classificação em que o efeito é tipificado por uma letra (de A a E) que corresponde a uma mnemónica de uma sua característica, tal como é apresentado na tabela seguinte. Tipo de Efeito (Reacções Adversas a Medicamentos) Tipo Mnemónica Características resumidas Exemplos A Augmented Efeito Farmacológico Toxicidade por digitálicos Dose Dependente Bizarre Efeito Imunoalérgico B Alergia à penicilina Dose Dependente Chronic Uso continuado ou frequente do C Supressão adrenal por medicamento corticoterapia Delayed Efeito carcinogénico ou teratogénico Teratogénese por dietilestilbestrol D Longo tempo de latência E End of Use Efeito de privação do medicamento Resposta exagerada às catecolaminas por privação de β-Bloqueadores As RAMs do tipo A são as mais frequentes, constituindo cerca de 80 % do total, seguindo-se do tipo B, cerca de 20 %, enquanto as dos restantes tipos são pouco frequentes, representando cada uma delas menos de 1 % do total das RAMs detectadas. Os efeitos adversos são ainda classificados em esperados e não esperados em função de constaram ou não no RCM (Resumo das Características do Medicamento) c) Severidade - Refere-se ao impacto do efeito adverso do medicamento na saúde e qualidade de vida do seu utilizador. Neste contexto as Reacções Adversas a Medicamentos são habitualmente diferenciadas em Não Graves e Graves, sendo estas definidas como as RAMs que põem em perigo a vida, causam a morte, incapacidade ou internamento hospitalar ou o seu prolongamento.

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A Farmacoepidemiologia

d) Período de Risco - Refere-se ao período temporal em que a ocorrência de um efeito adverso pode ser imputada a um medicamento previamente administrado. Este período designa-se por Time Window e o período complementar, ou seja o período de tempo em que se considera que a exposição ao medicamento é irrelevante para a ocorrência do efeito, designa-se por Immortal Time. A probabilidade de ocorrência do efeito adverso dentro da Time Window é designado por Risk Window. A Time Window depende das características do medicamento e é definida relativamente a 2 momentos de referência, o início da exposição (Exposure Index Date) e o início dos sintomas do efeito (Effect Index Date). È estabelecida através de várias experiências onde é calculada a incidência do efeito adverso em curtos períodos de tempo após administração do medicamento, de forma a estimar uma Função de Risco Individual (Hazard Function) de ocorrência do efeito em cada momento (t). Esta função varia entre 0 e 1 e é obtida pela AUC (Área sob a Curva) definida utilizando no eixo das ordenadas o Risco de ocorrência do efeito e o no eixo das abcissas a variável Tempo, tal como é apresentado na figura seguinte.

O conhecimento do período de risco de um dado medicamento é fundamental não só para a imputação de causalidade como para estimar o risco de ocorrência de um efeito adverso que varia em função do tempo de forma diferente consoante o tipo de medicamento e de tipo de efeito que provoca.

c) Principais fontes de informação em Farmacoepidemiologia. Bases de Dados e Trabalhos de Campo Para a caracterização da exposição ao medicamento e do efeito a ela associado torna-se indispensável recolher a informação pertinente e seleccionar as fontes de informação mais credíveis e eficientes.

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Os métodos para recolha da informação mais frequentemente utilizados são: a) consulta de registos clínicos / terapêuticos; b) determinação de parâmetros biológicos; c) realização de estudos de campo; d) consulta de bases de dados. a) Registos Clínicos / Terapêuticos - A consulta dos ficheiros clínicos e terapêuticos é um método eficiente (rápido e de baixo custo), exaustivo e de fácil operacionalização que permite caracterizar a exposição e o efeito em grandes grupos de utilizadores e em subgrupos específicos (idosos, crianças, grávidas, portadores de determinadas patologias, etc). Permite ainda identificar consumidores do medicamento em estudo no momento presente (present users) e aqueles que os utilizaram no passado (past users), bem como detectar modificações na exposição ao medicamento ao longo do tempo (switching) e as suas repercussões clínicas. As principais limitações deste método resultam da eventual falta de concordância entre a prescrição e a utilização dos medicamentos, pois não há informação sobre adesão à terapêutica nem sobre o uso de medicamentos em auto-medicação ou prescritos por diferentes médicos e / ou dispensados em diferentes farmácias. b) Determinação de Parâmetros Biológicos - A pesquisa do medicamento em amostras biológicas, geralmente sangue ou urina, dos seus utilizadores é um método directo e rigoroso para aferir a exposição ao medicamento, pois supera as limitações associadas à não adesão à terapêutica ou ainda à credibilidade das respostas num inquérito. No entanto este método apresenta como desvantagens ter um custo elevado e ser difícil de implementar, pois exige recursos tecnológicos sofisticados, e não ser aplicável ou rigoroso para certos medicamentos cujos metabolitos não são específicos. Além disso, a determinação de parâmetros biológicos tem outras importantes limitações na investigação epidemiológica, nomeadamente não fornecer informação sobre o efeito potencialmente associado à exposição, não permitir a obtenção de qualquer informação sobre a utilização do medicamento no passado (past users) e ter uma baixa participação voluntária. c) Estudo de Campo - A recolha da informação sobre a exposição ao medicamento e o efeito a ela associado realiza-se através de inquéritos efectuados a amostras populacionais por entrevista, presencial ou telefónica, ou por questionários auto-administrados, em presença do inquiridor ou enviados por via postal. Este método de recolha de informação é frequentemente utilizado na investigação fármacoepidemiológica devido ao seu baixo custo, fácil operacionalização e sobretudo o facto de incidir especificamente sobre as variáveis pertinentes para o estudo. No entanto, tem algumas limitações importantes do ponto de vista epidemiológico, nomeadamente um menor rigor na quantificação da exposição e na detecção do efeito, podendo apresentar alguma vulnerabilidade relativamente a diversos viés de informação, como por exemplo o viés de memória, e viés de selecção dos participantes. Além disso, a sua validade pode ser afectada por um baixa taxa de participação da população-alvo, principalmente quando são utilizados inquéritos postais.

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A Farmacoepidemiologia

Para a realização de estudos de campo na investigação epidemiológica é indispensável considerar o ambiente sócio-económico e cultural dos inquiridos, a sua capacidade cognitiva e motivação em participar no estudo, bem como as características específicas das terapêuticas e morbilidades sob investigação. d) Bases de Dados Populacionais - São repositórios de informação exaustiva em formato electrónico sobre o uso de medicamentos numa comunidade (prescrição, comparticipação, dispensa) e o seu efeito terapêutico (evolução clínica) e / ou adverso (ocorrência de efeitos adversos), bem como sobre as características demográficas (idade, sexo), clínicas (diagnósticos, co-morbilidades) e de utilização dos serviços de saúde pela população-alvo (nº de consultas, nº de internamentos). As Bases de Dados Populacionais são um recurso muito importante na investigação farmacoepidemiológica devido à grande dimensão da população abrangida e dos longos períodos de seguimento que proporciona. Importa recordar que a frequência de ocorrência de efeitos adversos de medicamentos em comercialização é habitualmente baixa, pelo que o seu estudo pressupõe que a investigação decorra durante um período de tempo alargado e num número elevado de expostos, o que muitas vezes só é possível em estudos efectuados em bases de dados. As Bases de Dados Populacionais apresentam ainda a vantagem de ter suporte informático e ser alvo de rápida e permanente actualização, o que garante a qualidade da informação e a rapidez de processamento e análise de dados. Por outro lado, têm algumas importantes limitações, nomeadamente a acessibilidade condicionada, a inexistência de informação sobre adesão à terapêutica e a reduzida informação clínica, pois raramente contêm elementos sobre a história clínica, factores de risco e qualidade de vida. Além disso, a informação disponível pode ser insuficiente para responder às questões de investigação, pois como não foram construídas com essa finalidade específica. As Bases de Dados são geralmente pertença de entidades prestadoras de cuidados de saúde, públicas ou privadas, e têm como principal objectivo contribuir para a gestão dos cuidados de saúde prestados aos seus utentes. Assim, algumas bases de dados abrangem um grande número de utentes e dispõem de informação muito detalhada sobre as suas características sócio-demográficas e perfil clínico, sobre o uso presente e passado de medicamentos, bem como sobre a utilização de recursos de saúde, como por exemplo a Health Data base in Saskatcheawan, no Canadá, e a GPRD - General Pratice Research Database, no Reino Unido, que são frequentemente referidas em estudos de investigação farmacoepidemiológica. Em Portugal não existem Bases de Dados que agreguem simultaneamente informação clínica, nomeadamente relativa a diagnósticos de doença ou de ocorrência de RAMs, e informação sobre exposição a medicamentos. Quanto ao consumo de medicamentos merecem destaque as seguintes Bases de Dados: a) do Observatório do Medicamento e Produtos de Saúde do INFARMED que, a partir dos dados de prescrição do SNS, permite conhecer a evolução mensal do consumo de cada molécula terapêutica em cada distrito do continente português (DDD/1000 habitantes); b) do IMS-Health (Intercontinental Marketing Services) que através dos dados de

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distribuição de medicamentos dos grossistas às farmácias permite estimar a evolução do mercado total de medicamentos vendidos por região do país (nº de embalagens e valor PVP de cada medicamento); c) do SICMED (Sistema de Informação do Consumo de Medicamentos) do Centro de Farmacoepidemiologia da Associação Nacional de Farmácias) que utiliza os dados de vendas de medicamentos de um painel de 1.500 farmácias.

3. A metodologia epidemiológica no contexto do medicamento a) Da observação e análise à formulação da hipótese explicativa e à comprovação do nexo causal entre a exposição e o efeito Até meados do século XX a metodologia epidemiológica incidiu sobretudo no estudo das doenças infecciosas que constituíam então o principal problema de Saúde Pública. Porém, após a 2ª Guerra Mundial assistiu-se a uma profunda alteração do padrão de morbilidade predominante, que se caracterizou pelo aumento da esperança de vida e uma crescente incidência e mortalidade por doenças crónicas e degenerativas. Este facto determinou que a epidemiologia alargasse o seu âmbito de estudo primeiramente às doenças crónicas e degenerativas e depois a todo e qualquer tipo de patologia ou factor susceptível de afectar a saúde das populações. É nesse contexto que surge a epidemiologia do medicamento, ou seja a farmacoepidemiologia. A metodologia epidemiológica pode ser definida como a aplicação de diversas estratégias e métodos de raciocínio, que partindo da observação rigorosa dos factos e de um processo lógico da sua análise conduzem à formulação de hipóteses que depois de comprovadas permitem explicar, de forma coerente e plausível, os determinantes dos problemas de saúde duma comunidade. Assim, a metodologia epidemiológica integra 3 etapas sequencias: a) observação ou análise; b) explicação ou síntese; c) comprovação da hipótese. As 2 primeiras etapas inserem-se no âmbito da Epidemiologia Descritiva e a terceira no contexto da Epidemiologia Causal. a) Observação ou Análise do problema em estudo realiza-se através da construção de indicadores que permitem caracterizar os padrões de distribuição da exposição e do efeito (positivo ou negativo) em diferentes comunidades e subgrupos populacionais previamente definidos em função de parâmetros sócio-demográficos, clínicos ou outros que foram considerados pertinentes para a investigação, bem como analisar as tendências de evolução temporal da exposição e efeito. Os principais indicadores utilizados são os que traduzem a proporção de utilizadores do medicamento (exposição), a incidência e a prevalência do efeito e a mortalidade a ele associada em grupos de expostos, de não expostos ou na população em geral. Na Tabela seguinte é apresentada a forma de construção dos indicadores anteriormente referidos.

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Proporção de Utilizadores do Medicamento Proporção de Expostos = Total de Utilizadores do Medicamento x 10 2 População Total Incidência do Efeito Incidência Acumulada = Nº de Novos Casos do Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível no início do período Taxa de Incidência = Nº de Novos Casos do Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível x Tempo de exposição individual Prevalência do Efeito Taxa de Prevalência = Nº Total de Casos do Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível Mortalidade associada ao Efeito Taxa de Mortalidade = Nº Total de Óbitos pelo Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível

Exemplo: Admitamos que, em 1960, nas consultas de saúde materno-infantil de uma dada comunidade foram seguidas 100.000 grávidas, das quais 20.000 foram alvo de um programa experimental de suplementação terapêutica durante os primeiros 3 meses de gestação. No final do ano entre os 100.000 recém nascidos ocorreram 100 casos de malformações congénitas, 80 dos quais filhos de mães que foram alvo da suplementação terapêutica e 10 destes morreram por causas associadas aquelas malformações. Naquela consulta mantinham-se em tratamento 15 crianças nascidas com idêntica malformação no ano anterior. ?

Proporção de Expostos à Suplementação Terapêutica

Incidência Acumulada de Malformações (1960)

= Total de Utilizadoras do Medicamento x 10 2 Total de Grávidas 2 = 20.000 x 10 = 20 % 100.000 = Nº de Novos Casos do Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível no início do período = 100 x 10 5 = 10 /.... 100.000

Incidência Acumulada de = Nº de Novos Casos do Efeito no período em estudo x 10 5 Malformações em Expostos População Susceptível no início do período (1960) = 80 x 10 5 = 8 /.... 100.000 Taxa de Prevalência (1960)

Taxa de Mortalidade por Malformações (19609

= Nº Total de Casos do Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível = 100 + 15 x 10 5 = 15 /.... 100.000

= Nº Total de Óbitos pelo Efeito no período em estudo x 10 5 População Susceptível 5 = 10 x 10 = 15 /.... 100.000

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b) Explicação ou Síntese do problema em estudo realiza-se através da formulação de hipóteses por métodos de raciocínio indutivo ou dedutivo. Numa estratégia de raciocínio dedutivo o investigador parte de ideias gerais e desenvolve uma teoria que será testada pelos dados recolhidos e analisados (do geral ao particular), enquanto numa estratégia de raciocínio indutivo o investigador começa por recolher dados cuja análise conduzirá à formulação de hipóteses que após comprovadas validam uma teoria (do particular ao geral). A análise dos indicadores construídos permitirá a formulação de hipóteses sobre a probabilidade de existência de uma associação causal entre a exposição (uso do medicamento) e a ocorrência do efeito em estudo.

Exemplo: Admitamos que um investigador constata que a incidência de malformações congénitas em recém-nascidos de 2 grupos de grávidas, emparelhados por idade, paridade e grupo étnico, foi significativamente mais elevada num grupo em que as mulheres foram submetidas a suplementação terapêutica durante os primeiros meses de gestação. A diferente incidência observada (etapa de Observação) leva o investigador a formular a hipótese de que a referida terapêutica seria a causa ou parte da causa do efeito teratogénico observado (etapa de Explicação) Como os efeitos biológicos associados à exposição a um factor de risco são geralmente uma resultante multifactorial importa não só identificar os determinantes que contribuem para a ocorrência de um problema, mas também conhecer o tipo de contribuição desses determinantes, pois podem assumir-se como causa necessária, causa suficiente ou causa necessária e suficiente. Causa Suficiente: Factor ou conjunto de factores que quando presentes vão inevitavelmente produzir o efeito Componente Causal: Factor que contribui para a ocorrência do efeito, mas que isoladamente não é suficiente para o provocar Causa Necessária: Factor cuja presença é indispensável à ocorrência do efeito c) Comprovação da Hipótese sobre a existência de associação causal entre a exposição ao medicamento e a ocorrência de um dado efeito realiza-se através de estudos desenhados especificamente para o efeito cuja análise dos resultados obtidos permitirá primeiramente testar a hipótese em investigação e depois verificar os critérios de causalidade. Testar a hipótese consiste em verificar a existência de uma dependência estatística entre os valores das variáveis exposição ao medicamento (variável independente ou explicativa) e da variável efeito (variável dependente ou resultado) observados nos estudos delineados com esse objectivo (estudos causais). A hipótese em investigação e que traduz a existência de associação entre a ocorrência de um efeito e a exposição a um determinado factor, por exemplo o uso de medicamentos, designa-se por Hipótese Alternativa (H1). A hipótese de inexistência de

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A Farmacoepidemiologia

dependência estatística entre exposição e efeito, atribuindo ao acaso a maior concordância entre os valores observados, designa-se por Hipótese Nula (H0) e corresponde ao complemento lógico da Hipótese Alternativa. Os Testes de Hipóteses são procedimentos estatísticos inferenciais que conduzem à rejeição ou não rejeição da Hipótese Nula. A sua rejeição confirma a existência de associação estatística entre as variáveis em estudo, enquanto a não rejeição apenas permite constatar que com os dados disponíveis não é possível afirmar a existência de associação entre as variáveis. No entanto, ao decidir pela rejeição ou não rejeição da Hipótese Nula haverá uma determinada probabilidade do investigador cometer dois tipos de erro: a) Erro α ou de 1ª Espécie que consiste em rejeitar a Hipótese Nula quando ela é verdadeira; b) Erro β ou de 2ª Espécie que consiste em não rejeitar a Hipótese Nula quando ela é não verdadeira. A análise da significância estatística é indispensável para avaliar a força e a evidência da associação entre exposição e efeito. O valor de p associado a um valor observado da estatística de teste é a probabilidade de obter o valor observado assumindo que o H0 é verdadeiro. p >0,1 0,05 <p <0,1 0,01 <p <0,05 p <0,01 p <0,001

nenhum evidência de associação fraca evidência de associação evidência de associação evidência forte de associação evidência muito forte de associação

A existência de uma associação estatisticamente significativa não implica necessariamente a existência de um nexo causal entre exposição e efeito, pois no delineamento do estudo ou na análise dos resultados poderão existir viés ou confundimentos, que contribuem para ocorrência de associações estatísticas não causais. Assim, para comprovar que a associação é causal torna-se indispensável verificar, através dos resultados observados no estudo, a presença de um conjunto de circunstâncias sugestivas de existência de nexo causal, que se designam habitualmente por Critérios de Causalidade. Têm sido sugeridos diferentes Critérios de Causalidade, mas os mais frequentemente utilizados continuam a ser os propostos por Sir Austin Bradford-Hill em 1965, que são apresentados no Quadro seguinte. Critérios de Associação Causal de Bradford-H Hill 1. Intensidade ou Força de Associação - Exprime a relação entre o risco de ocorrência do efeito nos expostos e nos não expostos (Risco Relativo) ou entre a proporção de expostos entre os afectados e não afectados pelo efeito (Odds Ratio). 2. Sequência Temporal - A exposição ao factor em estudo deve preceder o efeito

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3. Relação Dose-Resposta - A incidência e a severidade do efeito aumenta com a duração e intensidade de exposição ao factor em estudo 4. Especificidade da associação - A exposição ao factor em estudo origina o efeito e este efeito ocorre apenas em presença da referida exposição. 5. Consistência da associação - Os mesmos resultados podem ser observados quando estudados em diferentes circunstâncias ou utilizando diferentes métodos. 6. Plausibilidade Biológica - A associação é compatível com os conhecimentos científicos sobre as respostas biológicas celulares ou tissulares aos estímulos de natureza semelhante aos em investigação. 7. Coerência - A associação não deve estar em contradição com os conhecimentos actuais da história natural da doença 8. Reversibilidade - O efeito desaparece na ausência da exposição ao factor em estudo 9. Analogia - Há maior probabilidade de associação causal quando efeitos semelhantes ocorreram em exposições consideradas semelhantes 10. Comprovação Experimental - Há maior probabilidade de associação causal entre a exposição e o efeito quando esta pode ser demonstrada experimentalmente Bradford Hill considerava que nenhum dos critérios poderia ser requerido como condição sine qua non para provar de forma incontestável a existência de nexo de causalidade e que a probabilidade de associação causal era tanto mais elevada quanto maior for o número de critérios verificados. No entanto, um dos critérios geralmente considerados com um dos mais importantes são a intensidade de associação que é avaliada em função dos valores calculados pelo Risco Relativo ou pelo Odds Ratio. O quadro abaixo apresenta os respectivos valores limite que orientam a interpretação da intensidade de associação. RR ; OR = 1 RR ; OR > 5 ou < 0,20 RR ; OR > 3 e < 5 ou >0,2 e < 0,33 RR ; OR > 1 e < 3 ou >0,33 e < 1

- Ausência de Associação - Força de Associação Elevada - Força de Associação Moderada - Força de Associação Moderada

Quando o valor do RR ou do OR é superior a 1 há uma associação directamente proporcional entre a exposição e efeito e quando é inferior a 1 a associação é inversamente proporcional. A investigação farmacoepidemiológica apresenta algumas especificidades no que se refere à comprovação do nexo causal, pois nem sempre é possível comprovar alguns dos critérios de causalidade referidos, nomeadamente a especificidade, a relação dose-resposta e a sequência temporal. No que se refere à especificidade constata-se que muitos efeitos adversos são comuns a diferentes medicamentos e, por outro lado que o uso do mesmo medicamento pode originar uma grande diversidade de efeitos.

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A Farmacoepidemiologia

Relativamente à sequência cronológica importa conhecer o período de risco (time-window) e nalguns medicamentos o efeito pode persistir para além do fim da exposição ou mesmo ocorrer apenas após o fim da utilização do medicamento devido ao efeito de carry-over, como anteriormente referimos. Quanto à relação dose-resposta importa recordar que as reacções adversas do tipo B se caracterizam pelo facto de não ser dose-dependentes.

b) Associação causais e não causais. Viés e confundimentos em estudos epidemiológicos no contexto do medicamento. Considera-se que existe uma associação entre 2 variáveis quando a probabilidade de ocorrência de um acontecimento ou quando o valor assumido pela variável dependente (efeito) depende, de forma estatisticamente significativa, da presença de uma característica ou dos valores assumidos pela variável independente (exposição). Quanto ao sentido da associação ela pode ser definida como associação positiva ou negativa. A associação é positiva quando os valores assumidos pela variável dependente são directamente proporcionais aos da variável independente e é negativa quando variam na proporção inversa. Quanto à natureza da associação poderão ser considerados 3 tipos de associações entre as variáveis: a) Associação Causal; b) Associação Indirecta; c) Associação Falsa a) Associação Causal, Directa ou Verdadeira - quando se verificam os critérios de causalidade. Neste caso a ocorrência de um acontecimento expresso na variável dependente B (efeito) resulta da presença de uma dada característica ou do valor assumido pela variável independente A (exposição), independentemente de outras variáveis .

b) Associação Indirecta - quando a associação observada entre a variável independente (A) e a variável dependente (B) resulta da presença de uma terceira variável (C) que se encontra associada a ambas, designada por Variável de Confundimento

c) Associação Falsa, Artefactual ou Espúria - quando a associação observada entre a variável independente (A) e a variável dependente (B) é devida ao acaso e resulta da incapacidade de controlar o efeito de variáveis externas, designadas por Viés.

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Na figura seguinte é apresentado um diagrama ilustrando as diversas etapas de comprovação da hipótese e os diversos tipos de associação entre as variáveis exposição e efeito.

Viés ( Bias) Os Viés ou enviesamentos podem ser definidos como variáveis externas à questão de investigação que desencadeiam um erro sistemático e originam uma interpretação errónea da causalidade, sugerindo uma associação onde ela não existe ou, pelo contrário, mascarando uma associação verdadeira. Os viés afectam a validade do estudo. Sacket identificou 56 tipos ou fontes de viés que poderão ser integrados em 4 grupos de acordo com as diferentes fases do delineamento do estudo epidemiológico: a) Viés na concepção e delineamento do estudo; b) Viés na selecção da amostra; c) Viés na recolha de dados; d) Viés na análise e interpretação de resultados a) Viés na concepção e no delineamento do estudo - Erros devido a ausência de definição clara do delineamento investigacional, de crenças incorrectas do investigador, da escolha inadequada do modelo de estudo, do processo de amostragem, dos critérios de inclusão e exclusão ou das técnicas para assegurar a randomização, ocultação, emparelhamento ou estratificação dos grupos. b) Viés na selecção da amostra - Erros devido a diferenças sistemáticas em certas características pertinentes para o estudo entre os que foram seleccionados para integrar a amostra e os que não foram.

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A Farmacoepidemiologia

Um dos viés de selecção mais frequentes é o Viés de Hospitalização, que resulta da utilização de amostras constituídas por doentes internados em estabelecimentos hospitalares e estes, independentemente da patologia de que são portadores, representarem uma amostra geralmente enviesada. Na verdade, existem diversos factores que condicionam o internamento, como a gravidade da doença, a dificuldade diagnóstica ou a acessibilidade, tornando a amostra não representativa dos doentes da comunidade no que se refere à incidência e à severidade da patologia em estudo. Outro importante viés de selecção é o resultante da inclusão na amostra de casos prevalentes, ou seja de indivíduos que já estavam doentes quando do início do estudo, que levaria a uma sobre representação na amostra dos casos de longa duração e sub-representado dos casos de curta duração (Viés de Nyman). O facto da duração da doença condicionar a probabilidade de inclusão da amostra pode originar um enviesamento pois pode estar associadas a factores pertinentes para a questão em investigação, como a severidade do efeito. A selecção de voluntários pode também originar um efeito de viés, pois os que se oferecem voluntariamente para participar num estudo podem diferir dos que não se oferecem relativamente a variáveis de interesse para o estudo devido às suas as convicções, aspirações ou receios. Além disso, o próprio facto de se saberem sujeitos a observação poderá levá-los a adoptar ou modificar comportamentos que poderão influenciar os resultados do estudo. c) Viés na recolha de informação - Erros devido a técnicas de medição pouco sensíveis ou inadequadas e das diferenças de medição inter e intra observador. Um dos viés de recolha de informação mais frequentes é o Viés do Entrevistador que resulta da tendência inconsciente, subconsciente ou mesmo consciente de alguns entrevistadores para inquirir de forma diferente os participantes que integram os diversos grupos em investigação, os expostos versus os não expostos ou os casos versus os controlos. Na investigação farmacoepidemiológica é particularmente importante o Viés de Memória, que consiste em erros na recolha de informação de carácter amnésico resultantes de diferenças sistemáticas nos grupos em análise quanto à capacidade de evocação por estarem associadas a experiencias vivenciadas. Os portadores de uma dada doença lembrar-se-ão mais facilmente de uma anterior exposição a um factor de risco comparativamente aos não doentes pertencentes ao grupo controlo. Outro viés importante na recolha de informação está associado a diferenças sistemáticas entre respondentes e não respondentes relativamente a variáveis pertinentes para o estudo (Viés dos Não Respondentes). Na verdade, os não respondentes podem recusar a participar no estudo por terem elevados níveis de exposição ou uma maior frequência do efeito em investigação comparativamente aos que acedem participar. d) Viés na análise de dados e interpretação dos resultados - Erros resultantes da tentativa de exploração de associações entre variáveis, após a colheita e análise preliminar dos dados, que não faziam parte das questões de investigação que orientaram a concepção do estudo ("Fishing espedition"). Outro importante viés em Farmacoepidemiologia é o Viés da Remanescência ou Viés Protopático que resulta do facto de não ser considerada a associação entre o dado

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efeito e uma exposição devido a esta ter terminado antes da ocorrência do efeito. Este viés é particularmente importante quando se analisa comparativamente o efeito de tratamentos sucessivos. Variáveis de Confundimento ( Confoundings) As Variáveis de Confundimento são variáveis que não constituindo o objecto do estudo, nem correspondendo a parâmetros intermédios entre a exposição e o efeito, estão simultaneamente associadas àquelas variáveis originando uma interpretação errónea sobre a associação entre as variáveis em análise, designada por associação indirecta. Estas variáveis interferentes resultam de um desajustamento na comparabilidade dos grupos em análise (expostos versus não expostos; casos versus controlos). A confirmação da presença de uma variável de confundimento realiza-se pela análise comparativa da intensidade de associação entre a exposição e o efeito no total da amostra estudo (risco relativo bruto ou odds ratio bruto), a intensidade de associação em cada um dos subgrupos estratificados em função da variável de confundimento e a intensidade de associação após ajustamento (risco relativo de Mantal-Haenzel ou odds ratio de Mantal-Haenzel). Na presença de uma variável de confundimento a intensidade de associação após ajustamento é significativamente superior à observada considerando o total da amostra não estratificada.

Exemplo: Nos anos 80, um estudo mostrou uma forte associação entre o uso de contraceptivos orais e a ocorrência de melanona maligno. No entanto, constatou-se que as mulheres que na amostra em estudo usavam contraceptivos orais tinham maior exposição ao sol comparativamente às não utilizadoras. Feita a estratificação em função da exposição solar a intensidade de associação após ajustadamento foi significativamente inferior à calculada para toda a amostra sem estatificação

Entre os confundimentos mais importantes na investigação farmacoepidemiológica destaca-se o Confundimento por Indicação (Confounding by Indication ou Chanelling) que se verifica em situações em que uma terapêutica é particularmente indicada em casos cujas características determinam um risco acrescido para o efeito em estudo

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A Farmacoepidemiologia

Exemplo: Um estudo observacional constatou haver um risco acrescido de morte súbita em doentes utilizadores do propranolol. A maioria dos utilizadores do propranolol tinha doença coronária para a qual aquele medicamento era particularmente indicado. Por sua vez a doença coronária determina um maior risco de morte súbita. Assim, a associação entre o uso do propranolol e o maior risco de morte súbita era um associação indirecta resultante da variável de confundimento Doença Coronária.

4. Modelos de Estudos Epidemiológicos a) Classificação dos estudos epidemiológicos em função da orientação cronológica, da metodologia e do objectivo do estudo Os estudos epidemiológicos podem ser classificados em função de diversos aspectos, nomeadamente quanto à orientação cronológica, metodologia utilizada e objectivo do estudo a) Orientação Cronológica Os estudos epidemiológicos poderão ser diferenciados em estudos transversais e longitudinais, em função do período de tempo no qual os indivíduos que integram o estudo estão sob observação. Nos estudos transversais, a observação e recolha de dados é efectuada num único momento, no qual simultaneamente se regista a exposição presente ou passada ao factor de risco e a presença ou ausência do efeito em investigação. Nestes estudos os participantes não são submetidos a qualquer seguimento ao longo do tempo (follow up). Nos estudos longitudinais as observações são efectuadas ao longo do tempo recolhendo em diversos momentos a informação relativa à exposição e ao efeito, o que permite investigar eventuais alterações durante o período em análise. O seguimento temporal pode ser retrospectivo ou prospectivo. No seguimento retrospectivo parte-se do presente e investiga-se a exposição e o efeito em períodos do passado, recorrendo a registos clínicos e terapêuticos, a bases de dados ou a questionários, nos quais se apela à capacidade evocativa dos inquiridos. No seguimento prospectivo parte-se do presente e investiga-se a exposição e o efeito em períodos futuros. A qualidade da informação obtida é superior, pois os elementos pertinentes para o estudo são definidos antes do seu início e não são afectados pela diferente capacidade evocativa dos participantes (Viés de Memória).

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b) Metodologia Relativamente à metodologia utilizada os estudos epidemiológicos poderão ser classificados em estudos experimentais e observacionais. Na Metodologia Experimental o investigador controla as condições de exposição (duração, intensidade, ritmo, etc), e as variáveis susceptíveis de influenciar a resposta, como se tratasse de uma experiência laboratorial. Os estudos experimentais são estudos prospectivos através dos quais é comparada a incidência do efeito no grupo exposto com a observado num grupo testemunho. Alguns autores estabelecem uma distinção entre o que designam por estudos experimentais verdadeiros e os estudos quasi-experimentais. Nos estudos experimentais verdadeiros os participantes são alocados de forma aleatória nos diferentes grupos que constituem a amostra, assegurando assim um maior controlo sobre potenciais variáveis de confundimento. Nos estudos quasi-experimentais o investigador controla as condições de exposição, mas não tem a possibilidade de estabelecer de forma aleatória a alocação dos participantes no grupo exposto e no grupo testemunho. Na metodologia observacional investigador não interfere com o curso "natural" dos acontecimentos, não controla as condições de exposição nem distribui aleatoriamente os participantes, limitando-se a observar a exposição e o efeito ocorrido sem influenciar deliberadamente os acontecimentos. Os estudos observacionais podem ter uma orientação cronológica transversal ou longitudinal, com seguimento prospectivo ou retrospectivo. c) Objectivo do Estudo Os estudos epidemiológicos podem diferenciar-se em estudos descritivos, causais e de intervenção quanto ao seu objectivo ou finalidade. Os estudos descritivos visam caracterizar a distribuição da exposição ao medicamento e do seu efeito (positivo ou negativo) em função de características sócio-demográficas, geográficas, clínicas ou outras da amostra populacional em estudo, bem como a sua dinâmica de evolução temporal. Estes estudos são transversais ou longitudinais prospectivos e utilizam metodologia observacional. São mais fáceis de implementar e mais baratos, mas não permitem comprovar a existência de associação entre a exposição e o efeito. No entanto, são bastante úteis para formular hipóteses que serão posteriormente comprovadas ou infirmadas através dos estudos causais. São considerados como que uma primeira etapa na investigação epidemiológica. Os estudos causais têm como objectivo confirmar ou infirmar a existência de um nexo causal entre o uso do medicamento (exposição) e a ocorrência de um dado efeito (positivo ou negativo). Estes estudos utilizam sempre um grupo comparador, são obrigatoriamente longitudinais, com orientação cronológica retrospectiva ou prospectiva, e recorrem a metodologia observacional ou experimental. Os estudos observacionais de orientação prospectiva designam-se por Estudos de Coorte e os de orientação retrospectiva por Estudos de Caso-Controlo. No âmbito da

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A Farmacoepidemiologia

farmacoepidemiologia os estudos experimentais são designados por Ensaios Clínicos. Os Estudos de Caso-Controlo são os estudos de epidemiologia causal mais baratos e fáceis de implementar, mas são os que têm menor poder de inferência causal. Os Ensaios Clínicos devido às características da metodologia experimental, nomeadamente a aleatorização da alocação dos participantes por grupos, o controlo rigoroso da exposição e da medição do efeito, bem como o recurso a diferentes níveis de ocultação, asseguram o maior nível de inferência causal. Os estudos de intervenção visam avaliar o impacto de uma intervenção na optimização da relação benefício / risco associado ao uso de medicamentos. A avaliação do impacto na saúde e qualidade de vida em doentes integrados num um programa de Cuidados Farmacêuticos pode ser considerado como um estudo de intervenção no âmbito da Farmacoepidemiologia.

b) Estudos de epidemiologia descritiva. Estudos casuísticos e estudos populacionais. Estudos de Utilização de Medicamentos. Os vários modelos de estudos de epidemiologia descritiva poderão ser diferenciados em estudos casuísticos, quando integram um grupo muito restrito de participantes, e estudos populacionais, quando incidem em grandes amostras populacionais. São estudos casuísticos os Estudos de Caso (Case Study) e os Estudos de Série de Casos (Serial Case Study) e são estudos populacionais os Estudos de CoorteExposição (Exposure-Cohort Study), os Estudos de Tendência Secular (Trend Study), Estudos Ecológicos (Ecological Study) e os Estudos de Prevalência (Cross Sectional Study). Estudos Casuísticos a) Os Estudos de Caso são relatórios detalhados de casos que descrevem a resposta de um doente a um dada terapêutica. Estes estudos são os mais simples e espontâneos constituindo muitas vezes o ponto de partida da descrição de um sindroma novo, ou de sinais ou sintomas pouco habituais ou ainda de RAMs importantes ou desconhecidas. Estes estudos permitem não só gerar sinais e formular hipóteses sobre a etiologia dos efeitos, mas também inferir sobre o grau de imputabilidade do medicamento na reacção observada, recorrendo para tal a algoritmos, como os sugeridos por Jones ou por Naranjo. b) Os Estudos de Séries de Casos consistem em descrições de consequências clínicas verificadas em séries de doentes com características comuns, nomeadamente a exposição a um mesmo medicamento. Estes estudos são uma extensão dos Estudos de Caso que para além das aplicações referidas para estes permitem analisar as características gerais do conjunto de pessoas atingidas pelo mesmo tipo de problema de saúde (idade, sexo, profissão, etc), assim como sobre os factores associados à doença, prognóstico, tratamento e a prevenção.

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Os Estudos de Caso e de Série de Casos apresentam algumas limitações do ponto de vista metodológico que condicionam a generalização e a validade das suas conclusões, que resultam fundamentalmente do pequeno número de seleccionados em função da disponibilidade de dados e da sua representatividade, e ainda da ausência de grupos controlo ou testemunho com quem comparar os dados observados. No entanto têm-se revelado muito úteis para a formulação de hipóteses. Alguns autores questionam a integração destes estudos no âmbito dos estudos epidemiológicos tendo em conta o reduzido número dos participantes que integram. c) Os Estudos de Coorte-T Tratamento, são estudos nos quais grupos seleccionados de doentes com uma terapêutica específica são seguidos ao longo de um período de tempo para detectar e caracterizar os efeitos ocorridos. Estes estudos são longitudinais o que permite estimar a incidência dos efeitos em análise, nomeadamente reacções adversas a medicamentos. São adequados não só para formular hipóteses, mas também para gerar sinais de reacções adversas, pelo que constituem instrumentos importantes de farmacovigilância sendo também designados por Estudos de Farmacovigilância Activa. No âmbito dos estudos de coorte-tratamento merecem particular destaque o Prescription Event Monitoring, realizado em Inglaterra desde a década de 80 e o Prescription Sequence Analysis implementado na Holanda. No Prescription Event Monitoring são seleccionadas coortes de utilizadores de medicamentos recentemente introduzidos no mercado terapêutico, os quais são investigados através do seu médico prescritor sobre a ocorrência de efeitos adversos durante o período de seguimento que geralmente é superior a um ano. No Prescription Sequence Analysis são investigados retrospectivamente os utilizadores de terapêuticas usadas no de potenciais reacções adversas já ocorridas, tentando relaciona-las com uma exposição prévia a medicamentos. d) Os Estudos de Tendência Secular são estudos de orientação longitudinal em que se analisa comparativamente as tendências de exposição ao medicamento e de ocorrência do efeito adverso em estudo visando determinar o seu grau de concordância. Neste tipo de estudos o investigador repete a mesma investigação em períodos ou momentos distintos. Geralmente considera-se um mínimo de 3 momentos ou períodos diferentes. Estes estudos revelaram-se muito úteis para monitorizar a segurança de medicamentos ao analisarem a evolução da exposição e do efeito através do tempo estabelecendo correlações entre uma mais frequente exposição a um medicamento e a ocorrência de reacções adversas. Um estudo deste tipo efectuado na Nova Zelândia evidenciou que as taxas de mortalidade por asma tinham aumentado de forma significativa após a comercialização do fenoterol, na década de 70, e que diminuíram bruscamente após a sua retirada do mercado terapêutico no início da década de 90. e) Os Estudos de Ecológicos são estudos em que a unidade de investigação são grupos populacionais, como por exemplo a população residente, e os dados em análise são expressos em indicadores de grupo, como por exemplo quanto à exposição o consumo médio de um dado medicamento ou grupo de medicamentos, e relativamente ao efeito a taxa de incidência ou de mortalidade por uma determinada reacção adversa.

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A figura abaixo apresenta uma comparação do consumo de antibióticos nos diversos países da União Europeia em 2006, utilizando um indicador de grupo a DDD/1000 habitantes que corresponde ao número de DDDs (doses diárias definidas) que foi consumida por cada 1000 habitantes de cada país no ano em estudo ESAAC Yearbook 2006

Os Estudos Ecológicos são muito fáceis de implementar e são muito úteis para descrever diferenças nas populações, que poderão conduzir à formulação de hipóteses. No entanto, têm como desvantagem a sua vulnerabilidade a viés e confundimentos, em particular o Viés de Agregação (Ecological Bias) que resulta do facto da exposição e do efeito serem expressos em indicadores de grupo, pelo que se referem a valores médios na população, não tendo em conta o efeito de características individuais, o que pode desencadear uma interpretação errónea dos resultados. f) Os Estudos de Prevalência são estudos transversais que analisam a frequência da exposição e da ocorrência do efeito em investigação em diversos subgrupos populacionais, particularmente em função das características das pessoas, do lugar e do tempo. Estes estudos são muitos úteis para formular hipóteses sobre a existência de nexos causais. No entanto, a sua orientação cronológica transversal dificulta o conhecimento da sequência cronológica entre a exposição e o efeito e não permite calcular a incidência do efeito, pelo que o risco é estimado através da análise comparativa da prevalência do efeito nos expostos e não expostos. Estas limitações tornam estes estudos pouco conclusivos relativamente à existência da associação causal.

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Os estudos de Epidemiologia Descritiva, e especialmente os Estudos de Prevalência, que têm como objecto de investigação a caracterização da exposição ao medicamento e do seu impacto na saúde das populações integram-se nos designados Estudos de Utilização de Medicamentos. Os Estudos de Utilização de Medicamentos podem ser definidos como estudos que investigam aspectos quantitativos e qualitativos dos determinantes do uso de medicamentos e dos seus efeitos em doentes específicos, ou na população em geral. Têm como principal objectivo a caracterização do padrão de utilização dos medicamentos e constituem uma ferramenta importante para a promoção da sua segurança e efectividade. A caracterização do padrão de utilização de medicamentos numa comunidade consiste na descrição do seu consumo nos diversos subgrupos populacionais visando conhecer quem usa, quando usa, quanto usa, para que usa e finalmente qual o efeito obtido. A idade, o sexo, o grupo étnico e a condição socioeconómica, o perfil clínico dos doentes, bem como o desenvolvimento sócio-sanitário da comunidade são factores que influenciam significativamente os padrões de consumo de medicamentos, quer em geral, quer no que se refere a grupos farmacoterapêuticos específicos. A análise do padrão de utilização de medicamentos em patologias específicas permite avaliar a forma como é gerido o respectivo arsenal farmacológico e a sua adequação às orientações terapêuticas. Os Estudos de Utilização de Medicamentos permitem ainda conhecer a evolução das doenças na comunidade e estimar a sua prevalência, desde que a terapêutica seja específica como é o caso da diabetes. Além disso, fornecem estimativas sobre o número de expostos a um medicamento na comunidade, o que é imprescindível para a avaliação da incidência de reacções adversas notificadas pelos Sistemas de Farmacovigilância. Estes estudos fornecem ainda informação pertinente para avaliar e monitorizar o efeito de alterações regulamentares ou de programas de informação / educação sobre o uso adequado do medicamento. Existem diversos tipos de classificação dos Estudos de Utilização de Medicamentos, mas estes podem ser agrupados de acordo com a sua finalidade, tal como é apresentado no quadro seguinte. - Oferta de Medicamentos - Consumo de Medicamentos - Prescrição - Indicação - Indicação - Prescrição - Esquema Terapêutico - Dispensa - Uso-Administração Laporte

Os Estudos de Oferta fornecem uma descrição quantitativa e qualitativa do arsenal terapêutico disponível num país, numa comunidade ou numa instituição e permitem o enquadramento necessário para interpretar os resultados dos estudos de consumo.

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A Farmacoepidemiologia

Os elementos descritos neste tipo de estudos são o nº de princípios activos, o nº de especialidades e de formas farmacêuticas, o nº de associações, o número de fármacos "me too", o nº de medicamentos genéricos ou o nº de medicamentos comparticipados. A análise destes elementos fornece informação importante sobre a política do medicamento e sobre as tendências do mercado farmacêutico. Na verdade, a oferta de medicamentos numa comunidade é um condicionante do seu consumo. Os Estudos de Consumo descrevem de forma qualitativa e quantitativa o uso de medicamentos numa comunidade ou numa população específica e fornecem indicadores que permitem uma análise comparativa da exposição ao medicamento ao longo do tempo em diferentes subgrupos populacionais, em diferentes comunidades ou instituições. Os Estudos de Prescrição-IIndicação são desenhados para permitir o conhecimento sobre as patologias para as quais é prescrito um fármaco ou conjunto de fármacos. Prescrição têm uma orientação inversa, isto é são Os Estudos de Indicação-P desenhados em função da patologia investigando quais as terapêuticas que nela são utilizadas. Estes estudos são muito úteis para verificar em que medida a abordagem terapêutica de uma dada patologia está de acordo com as orientações terapêuticas ou guidelines existentes. Os Estudos sobre Esquema Terapêutico visam descrever as características da utilização prática dos medicamentos numa dada instituição ou serviço, nomeadamente no que se refere à selecção do fármaco, à dose e duração do tratamento, ao cumprimento da terapêutica, etc. Os Estudos de Dispensa visam caracterizar a qualidade da dispensa dos medicamentos (interpretação das prescrições médicas, da indicação farmacêutica em medicamentos que não exijam prescrição médica, da qualidade da informação prestada, etc). Administração visam caracterizar a qualidade da utilização Os Estudos de Uso-A do medicamento pelos profissionais de saúde ou pelo doente (correcta administração e cumprimento da prescrição médica). Incluem os estudos sobre auto-medicação e sobre as atitudes e conhecimentos dos utilizadores relativamente a sua medicação.

c) Estudos de epidemiologia causal. Estudos experimentais (Ensaios Clínicos) e Estudos observacionais (Estudos de Coorte e de CasoControlo) A Farmacoepidemiologia recorre a metodologia experimental e à metodologia observacional para estudar a existência de nexos causais entre o uso do medicamento e a ocorrência do efeito, como anteriormente referimos. A) Estudos Experimentais Causais Os Ensaios Clínicos constituem o paradigma dos estudos experimentais no contexto do medicamento. São utilizados desde meados do século XX para avaliar a eficácia e a segurança de uma terapêutica medicamentosa. O primeiro Ensaio Clínico reconhecido com relevante para a Medicina pelo Medical Research Concil foi efectuado em 1946 por Bradford Hill e investigava a eficácia da estreptomicina na terapêutica anti-tuberculosa

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Os Ensaios Clínicos podem ser definidos como qualquer estudo experimental realizado em seres humanos com o objectivo de avaliar os resultados de uma intervenção preventiva, terapêutica ou de diagnóstico. Investigam a incidência do efeito num grupo submetido à terapêutica em investigação comparativamente à observada num grupo testemunho exposto a um placebo ou a um comparador activo.

Placebo - Substância biologicamente inerte utilizada nos ensaios clínicos para limitar efeitos psicológicos associados à intervenção que poderiam desencadear uma falsa interpretação de efeito terapêutico nos indivíduos em investigação Comparador Activo - Substância biologicamente activa, por exemplo uma terapêutica já existente, face à qual se compara a efectividade e segurança do fármaco em investigação. Importa considerar que a resposta observada no grupo submetido a terapêutica em investigação pode não depender apenas desta, mas também de outros factores, nomeadamente à evolução da história natural da doença, ao efeito placebo ou ainda ao efeito da atenção da atenção acrescida. Efeito da História Natural da Doença A evolução favorável da doença não resulta da intervenção terapêutica mas do próprio curso da doença que evolui naturalmente para a cura Efeito Placebo A evolução favorável da doença não resulta da intervenção terapêutica mas da expectativa do doente relativamente ao sucesso da intervenção Efeito da Atenção Acrescida (Efeito Hawthorne) A evolução favorável da doença não resulta da intervenção terapêutica mas do facto dos doentes saberem que estão a ser alvo de uma intervenção em estudo Para minimizar o viés associado aos efeitos acima referidos os Ensaios Clínicos recorrem a diversas estratégias, nomeadamente a alocação aleatória dos participantes em 2 grupos, o grupo intervenção, submetido à terapêutica em investigação, e um grupo testemunho exposto a um comparador activo ou a um placebo, bem como a utilização de diferentes níveis de ocultação quanto ao grupo que o doente integra. A ocultação destina-se a evitar interpretações erróneas quanto ao resultado do estudo devido a ideias pré-concebidas do investigador ou do próprio doente. Ensaios Cegos - Quando os investigadores conhecem a que Grupo pertence cada doente, mas estes desconhecem se integram o Grupo Intervenção ou o Grupo Controlo Ensaios Duplamente Cegos - Quando os investigadores e os doentes não têm conhecimento do grupo a que cada doente pertence Ensaios Triplamente Cegos - Quando os investigadores, os doentes e os promotores do estudo não têm conhecimento a que Grupo os doentes pertencem. Somente o Comité de Segurança tem esta informação

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Os Ensaios Clínicos seguem fielmente um protocolo previamente estabelecido onde estão definidas objectivamente as questões a serem respondidas pelo estudo e especificados todos os detalhes, nomeadamente a selecção dos intervenientes, a caracterização da exposição e do efeito a investigar, a duração do estudo e a frequência de observações. Numa primeira etapa deve ser definida a população de referência, isto é o grupo para o qual se pretende extrapolar os resultados obtidos nos indivíduos incluídos no estudo. Seguidamente, de acordo com critérios de inclusão e exclusão, é seleccionada a amostra a estudar que é constituída pelos indivíduos que concordam em participar e que cumprem os critérios de elegibilidade para o estudo. Após consentimento informado esta amostra é estratificada por alguns parâmetros que se considera poderem condicionar a resposta à terapêutica (idade, sexo, história clínica, etc) e distribuída aleatoriamente pelo grupo intervenção e pelo grupo testemunho. Os 2 grupos devem ser tão semelhantes quanto possível e devem ser alvo de procedimentos idênticos de forma que a única diferença entre eles seja, se possível, a substância a que cada grupo é exposto. Os Ensaios Clínicos podem utilizar diferentes tipos de controlos, nomeadamente controlos independentes, controlos cruzados, controlos históricos e auto-controlos. Nos controlos independentes os doentes que foram alocados em cada um dos grupos (investigação e comparador) seguem sempre o mesmo protocolo durante todo o período de seguimento findo o qual os resultados terapêuticos são avaliados comparativamente. Nos controlos cruzados após um determinado tempo de seguimento os doentes do grupo investigação passam a seguir o protocolo dos que constituíam o grupo controlo e vice-versa. Nos controlos históricos os resultados obtidos no grupo submetido à terapêutica em investigação após o período de seguimento são comparados a dados pré-existentes de outros estudos ou da prática clínica. No auto-controlo os resultados obtidos no grupo submetido à terapêutica em investigação após o período de seguimento são comparados com os que o próprio grupo apresentava antes da exposição àquela terapêutica. Os ensaios clínicos podem ser diferenciados em explicativos e pragmáticos em função das condições de aplicação da terapêutica em que se pretende estudar a sua eficácia. Os ensaios explicativos visam avaliar a eficácia da terapêutica em condições ideais enquanto os pragmáticos estudam-na nas condições usuais da sua administração. Esta diferença de objectivos determina diferentes delineamentos do protocolo do estudo. Assim, os estudos explicativos recorrem a grupo tão homogéneo quanto possível (por exemplo do mesmo sexo e grupo etário) e testam a terapêutica em condições muito controladas de forma a garantir que a toma do medicamento decorreu de acordo com o previsto. Nos estudos pragmáticos os grupos são mais heterogéneo e a toma do medicamento é menos controlada, tal como ocorre no dia a dia. Este estudo dá uma estimativa mais conservadora do benefício da terapêutica. Na análise dos resultados poderá ainda considerar-se o total de expostos em cada grupo, procedimento habitual nos ensaios explicativos ou pelo contrário considerar-se apenas os que cumpriram efectivamente o protocolo, respeitando o princípio da intenção de tratamento (analysis by intention to treat) característico dos ensaios pragmáticos.

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A eficácia terapêutica é estimada através de medidas de risco calculadas em função da incidência dos efeitos (outcomes) observada ao longo do período no grupo exposto à terapêutica em investigação e no grupo controlo. As medidas de risco mais usuais nos Ensaios Clínicos são o Risco Relativo (RR), o Risco Evitável (RE), a Redução de Risco(Red R) e o Nº de Pessoas a Tratar para evitar a ocorrência de um caso do evento em estudo (NTT). Estas medidas de risco são calculadas de acordo com as fórmulas apresentadas no quadro abaixo.

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B) Estudos Observacionais Causais Os estudos observacionais de epidemiologia causal utilizam a metodologia observacional, anteriormente referida, com o objectivo de confirmar ou infirmar a existência de um nexo causal entre a variável exposição (variável independente ou explicativa) e a variável efeito (variável dependente). A confirmação observacional da existência de associação causal pode ser efectuada através de 2 tipos de estudos, que se diferenciam fundamentalmente em função da variável (exposição ou efeito) a partir da qual é delineado o protocolo de investigação. Os Estudos de Caso-Controlo partem da variável dependente (efeito), isto é seleccionam um grupo de indivíduos que apresenta o evento em estudo e um grupo que não o apresenta (grupo controlo). Inversamente os estudos de coorte partem da variável independente (exposição) seleccionando um grupo de indivíduos expostos ao factor de risco suspeito e um grupo de não expostos. Controlo a investigação é delineada a partir da Como referimos nos Estudos de Caso-C variável dependente, sendo estudada a história clínica e o passado dos indivíduos afectados (casos) e de um grupo de indivíduos não afectados (controlo) com o objectivo de detectar eventuais diferenças no que refere à intensidade ou duração de exposição ao atributo suspeito. A medida de risco utilizada para quantificar a intensidade de associação entre exposição e efeito nos Estudos de Caso-Controlo designa-se por Odds Ratio de Exposição e exprime a razão entre a proporção de expostos no grupo dos casos e a proporção de expostos no grupo dos controlos. Como a orientação cronológica do estudo é retrospectiva, pois a investigação parte do presente para o passado, não é possível calcular incidências e consequentemente não é possível calcular o Risco Relativo, que é a medida mais fiável para estimar a intensidade de associação nos estudos epidemiológicos. No entanto, quando o evento em estudo é pouco frequente e os controlos são representativos da exposição na comunidade considera-se que o Odds Ratio de Exposição tem um potencial semelhante ao Risco Relativo como medida de intensidade de associação. Na página seguinte é apresentado um modelo de delineamento dos Estudos de Caso-Controlo e a fórmula de cálculo da Odds Ratio de Exposição.

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Ao delinear o estudo os investigadores deverão assegurar que o Grupo dos Casos e o Grupo dos Controlos são tão semelhantes quanto possível relativamente a factores que possam influenciar a probabilidade de estar exposto ao factor de risco (idade, sexo, etc), o que poderá ser alcançado através do emparelhamento. O grupo controlo tem como função avaliar a frequência de exposição na população não afectada pelo problema de saúde em estudo. A selecção dos casos e dos controlos constitui um dos aspectos mais importantes no delineamento deste tipo de estudos. A selecção dos casos realiza-se habitualmente a partir de registos médicos e de admissões hospitalares, sendo desejável a inclusão de apenas casos incidentes para evitar um importante viés de selecção anteriormente referido, o Viés de Nyman. A selecção de casos hospitalares poderá ser vantajoso relativamente à qualidade da informação disponível e à logística necessária para implementar o estudo, mas pode originar um viés importante relacionado com a severidade da doença, ou ainda factores geográficos ou socioeconómicos que poderão condicionar a hospitalização, pelo que os casos hospitalizados poderão não ser representativos dos casos na população em geral. Na selecção dos controlos haverá que assegurar a sua representatividade face à população em geral quanto à probabilidade de exposição ao factor de risco e por outro lado que a recolha de informação deverá seguir um protocolo idêntico ao dos casos. Os controlos podem ter a mesma origem dos casos, nomeadamente o hospital, recorrendo nesta circunstância a doentes internados noutros serviços que aparentemente não se relacionem com o problema em estudo. Por outro lado, os controlos poderão ser originários da comunidade, por exemplo serem provenientes de uma amostra representativa da população da mesma cidade. Alguns autores têm questionado o recurso a controlos hospitalares por considerarem que eles constituem uma importante fonte de viés. No quadro abaixo são apresentadas vantagens e limitações dos controlos hospitalares e comunitários

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Vantagens e Limitações dos controlos comunitários vs Hospitalares Caracteristicas Controlos Comunitários Controlos Hospitalares População em Estudo Bem definida Mal definida Proveniência dos Casos e Bem definida Mal definida dos Controlos Exposição dos Controlos Representativa da Não Representativas da ao Factor em Estudo exposição dos não doentes exposição dos não doentes na população em estudo na população em estudo Acessibilidade aos Casos e controlos difíceis Casos e controlos fáceis de Indivíduos em Estudo de recrutar recrutar Colheita de Informação Difícil Facilitada pelo acesso aos dossiers clínicos A exposição ao medicamento é geralmente avaliada através de registos clínicos ou terapêuticos e por informações prestadas pelos próprios indivíduos integrados no estudo ou por proxis, através de inquéritos, o que torna estes estudos muito vulneráveis ao Viés da Memória. Nos estudos de Farmacoepidemiologia recorre-se frequentemente a fotografias das embalagens comerciais do medicamento para minimizar aquele viés A dificuldade de eliminar alguns viés de selecção e de informação anteriormente referidos constitui uma importante limitação dos Estudos de Caso-Controlo, o determina um menor poder de inferência causal. No entanto têm algumas vantagens relativamente a outros estudos causais, nomeadamente o facto de poderem investigar simultaneamente diferentes factores de risco, serem rápidos e muito adequados para investigar eventos pouco frequentes, pois a investigação parte da variável efeito, e não necessitarem de grandes números de participantes o que os torna mais baratos e fáceis de implementar. Os estudos de Caso-Controlo são utilizados no contexto do medicamento desde meados da década 60 e persistem como os estudos de epidemiologia causal mais utilizados em Farmacoepidemiologia porque são particularmente úteis na investigação de ocorrências raras e com intervalos de latência prolongados, como é o caso dos efeitos adversos de medicamentos já previamente submetidos a ensaios clínicos pré-marketing. Além disso, são rápidos o que é de grande importância quando se estuda efeitos adversos de um medicamento já comercializado, e podem efectuar-se com um número reduzido de participantes, pelo que são menos dispendiosos. A importância dos estudos de Caso-Controlo na investigação farmacoepidemiológica foi bem ilustrada pelo estudo de Herbst que recorrendo apenas a 8 casos e 32 controlos comprovou a associação causal entre a exposição in útero ao dietilestilbestrol e o adenocarcinoma vaginal em mulheres jovens. Este estudo constitui um marco histórico na farmacoepidemiologia. Como referimos nos Estudos de Coorte a investigação é delineada a partir da exposição (variável independente ou explicativa), pelo que é constituído um grupo de indivíduos expostos ao factor de risco em investigação (grupo exposição) e um grupo de indivíduos não expostos (grupo controlo) que serão seguidos ao longo de um período de tempo determinado para analisar comparativamente a incidência do evento em investigação

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Coorte - Um grupo de indivíduos seleccionados em função de uma ou mais características comuns e seguidos ao longo de um período de tempo com o objectivo de identificar, descrever ou quantificar um evento posterior. No estudo de coorte anteriormente descrito, que poderemos considerar o modelo clássico de estudo de coorte causal, a orientação cronológica é prospectiva pois a investigação parte do presente para o futuro. No entanto, podem ser considerados modelos de estudos de coorte com orientação retrospectiva, designados por Estudos de Coorte Retrospectivos, e ainda com uma orientação mista que apresenta uma componente retrospectiva seguida de orientação prospectiva, designados por Estudos de Coorte Histórico. Nos Estudos de Coorte Retrospectivos os investigadores seleccionam no presente uma coorte de indivíduos que se sabe terem estado expostos ao factor de risco em estudo desde um determinado momento no passado (grupo exposição), bem como uma outra coorte de indivíduos que se sabe não terem estado expostos durante o mesmo período de tempo (grupo controlo). Essas coortes são seguidas desde esse momento no passado até ao presente para avaliar comparativamente a incidência do evento em investigação. Nos Estudos de Coorte Históricos os grupos exposição e controlo são seleccionados tal como nos Estudos de Coorte Retrospectivos, mas o período de seguimento iniciado num momento do passado projecta-se até um momento no futuro. É no total desse período de seguimento que são calculadas as incidências do efeito em cada grupo para quantificar a intensidade de associação entre exposição e efeito. A medida de risco utilizada para quantificar a intensidade de associação nos Estudos de Coorte é o Risco Relativo (RR), que exprime a razão entre a incidência do efeito no Grupo dos Expostos e a incidência do efeito no Grupo dos Não Expostos. Os Estudos de Coorte permitem ainda calcular outras medidas de risco como o Risco Atribuível (RA) e a Fracção Etiológica de Risco (FER). Estas medidas de risco são calculadas de acordo com as fórmulas que apresentamos na página seguinte. Os estudos de Coorte apresentam como principal vantagem o facto de serem menos vulneráveis a viés e variáveis de confundimento, estimando com maior rigor a intensidade de associação e garantindo um maior poder de inferência causal entre os estudos observacionais. Permitem estudar em simultâneo a ocorrência de diferentes efeitos associados à mesma exposição e são particularmente indicados na investigação de exposições raras ou únicas, visto que são delineados a partir da variável exposição. Mas, precisamente por essa razão têm a desvantagem de não permitir gerar novas hipóteses etiológicas. Não são indicados para investigar ocorrências raras e como os períodos de seguimento são geralmente longos estes estudos são demorados, caros e potencialmente afectados pelo viés de erosão, que consiste no abandono durante o período de seguimento de indivíduos que integram os Grupos em estudo.

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Os Estudos de Coorte são utilizados no contexto do medicamento desde o início da década 70 sendo então orientados sobretudo para investigação do efeito teratogénico de alguns medicamentos. No entanto, o facto da incidência de reacções adversas em medicamentos já comercializados não ser habitualmente muito elevada limita a eficiência dos Estudos de Coorte em investigação farmacoepidemiológica pois implica a integração de um número elevado de participantes para obter resultados conclusivos. Vários autores têm questionado a sua eficiência, tendo em conta o elevado custo e o facto de serem raros os estudos deste tipo que permitiram comprovar nexos causais entre o uso de medicamentos e a ocorrência de reacções adversas ainda não reportadas pelos ensaios clínicos pré-marketing.

d) Novas abordagens de epidemiologia observacional (Estudos de CasoControlo Intra Coorte, Estudos de Caso-Coorte e Estudos de CaseCrossover) Nas últimas décadas foram propostas novas abordagens de epidemiologia observacional propondo novos modelos de estudo causal de forma a superar as limitações dos Estudos de Caso-Controlo e dos Estudos de Coorte, que anteriormente foram

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referidas. De entre estes novos modelos destacam-se, no âmbito da Farmacoepidemiologia, os Estudos de Caso-Controlo Intra Coorte (Nested Case Control), os Estudos de Caso-Coorte e os Estudos de Case-Crossover. Controlo Intra Coorte são estudos que partem de uma Coorte de Os Estudos de Caso-C indivíduos expostos a um factor em investigação, nomadamente um medicamento, e na qual após o período de seguimento são detectados casos incidentes do efeito em estudo, por exemplo reacções adversas, que serão analisados comparativamente com os não-casos, isto é elementos da Coorte sem o referido efeito, quanto ao seu estatuto de exposição a um outro factor de risco, ou seja, a um atributo diferente do que originou o delineamento da coorte. Os casos e os respectivos controlos são emparelhados relativamente a parâmetros que possam constituir variáveis de confundimento de forma que os grupos sejam comparáveis. Os Estudos de Caso-Controlo Intra Coorte partem de um seguimento prospectivo que é complementado com um seguimento retrospectivo. A associação entre a exposição a este atributo e a ocorrência do evento em estudo é testada comparando a proporção de expostos ao factor entre os casos e entre o grupo testemunho. O delineamento do estudo é o cálculo do Odds Ratio é apresentado na página seguinte. Estes estudos permitem optimizar os resultados do seguimento de uma Coorte e são particularmente indicados quando a hipótese a testar é gerada após o início do seguimento prospectivo da Coorte ou ainda quando se pretende estimar a influência de potenciais variáveis de confundimento. O estudo delineado por Jick para avaliar a intensidade de associação entre os hábitos tabágicos e o Índice de Massa Corporal na ocorrência de tromboembolismo venoso recorrendo a uma Coorte de utilizadoras de contraceptivos orais é um exemplo da aplicação deste tipo de estudo em Farmacoepidemiologia.

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Coorte têm um delineamento semelhante aos Estudos de CasoOs Estudos de Caso-C controlo intra coorte. A investigação inicia-se pelo seguimento de uma coorte cujos casos incidentes do efeito em estudo, serão comparados quanto à exposição a novos determinantes com um grupo controlo que é seleccionado aleatoriamente a partir de uma população de referência. É a constituição do grupo controlo que diferencia os Estudos de Caso-Coorte dos Estudos de Caso-controlo Intra Coorte, pois nestes, como referimos anteriormente, os controlos são seleccionados entre os não-casos. Este facto torna a análise estatística mais complexa, mas tem a vantagem de facilitar a selecção de testemunhos e de permitir utilizar o mesmo grupo de indivíduos como testemunhos de outras comparações no interior da coorte. Os testemunhos podem ser seleccionados do conjunto de todos os habitantes de uma região desde que seja possível identificar todos os novos casos da doença em estudo e selecciona-los aleatoriamente e finalmente conhecer com precisão a exposição dos testemunhos. Tal como Estudos de Caso-Controlo Intra Coorte a associação entre a exposição ao atributo em investigação e a ocorrência do evento em estudo é testada comparando a proporção de expostos ao factor entre os casos e entre o grupo testemunho. O delineamentodo estudo é o cálculo do Odds Ratio é apresentado na figura seguinte.

Os Estudos de Caso-Coorte são muito úteis na vigilância pós-marketing e particularmente indicados quando, quer a exposição, quer a ocorrência de efeitos adversos são raras como por exemplo após o início da comercialização de um novo medicamento. Como exemplo deste tipo estudo podemos referir o delineado por Van der Klauw et al., na Holanda, para avaliar o risco de ocorrência de anafilaxia associada ao uso de

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glafenina. Foram identificadas todas as hospitalizações por anafilaxia e a exposição foi avaliada com base na informação de dispensa de medicamentos de uma rede de farmácias comunitárias em toda a Holanda, abrangendo um total de cerca de 150.000 utentes e representando mais de 800.000 prescrições. Este estudo comprovou que o risco de anafilaxia associada ao uso de glafenina era muito superior ao risco de ocorrência da mesma síndroma associada ao consumo de outros medicamentos, o que determinou a retirada daquele analgésico do mercado terapêutico na Holanda e noutros países europeus em 1992. Crossover são particularmente indicados para investigar Os Estudos de Case-C a associação entre exposições breves e intermitentes e efeitos súbitos. Têm sido muito utilizados na investigação epidemiológica de acidentes de viação, de enfarte de miocárdio e de reacções adversas a medicamentos. Nestes estudos a investigação incide exclusivamente em indivíduos que experimentaram o efeito em estudo, sendo comparada a probabilidade da sua ocorrência enquanto expostos ao medicamento num período de tempo considerado de risco (Time Case Period) comparativamente à da sua ocorrência fora do período de risco ou na ausência da exposição (Time Control Period). Na ausência de associação entre a exposição e o efeito a proporção de casos ocorridos dentro e fora do período de risco será semelhante. A intensidade de associação é estimada através do cálculo do Odds Ratio em amostras emparelhadas em que são considerados apenas os pares discordantes da tabela de contingência. O delineamento do estudo é o cálculo da Odds Ratio é apresentado na figura seguinte.

O delineamento deste tipo de estudo assemelha-se ao dos ensaios clínicos cruzados, embora nos Estudos de Case-Crossover não seja possível qualquer aleatorização nem controlo da exposição. Importa ainda considerar que para realização deste tipo

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de estudos é indispensável garantir a detecção de todos os casos que ocorram no período do estudo, conhecer o estatuto dos casos quanto à exposição e assegurar que este se alterou durante o período de seguimento. Além disso, o risco de ocorrência do efeito deve ser constante dentro de cada time window, que por sua vez deve ser curta relativamente à duração do seguimento. Estes estudos têm como principais vantagens garantir um maior controlo sobre o viés de selecção e variáveis de confundimento, pois os casos são controlos de si mesmo, e são mais fáceis de implementar por não requererem a selecção de participantes como controlos. Têm como principal desvantagem a estimativa de risco poder ser afectada pelo Viés de Memória e pelo Viés de Tendência Temporal (Time Trend Bias), particularmente se o período de risco for longo, e não são adequados para investigar exposições com efeito cumulativo nem efeitos adversos com período de latência longo. Um exemplo interessante da aplicação desta metodologia na investigação farmacoepidemiológica é apresentado por Barbonne num estudo sobre a associação entre o consumo de benzodiazepinas e acidentes rodoviários, no qual a intensidade de associação é estimada comparando a probabilidade do acidente ocorrer no período considerada de risco, isto é no dia em que foi tomada a benzodiazepina, com a probabilidade da ocorrência do acidente se verificar em período considerado não exposto, ou seja fora daquela time-window.

e) Vantagens e limitações dos ensaios clínicos versus estudos observacionais na avaliação da eficácia, efectividade e segurança dos medicamentos. Os ensaios clínicos são reconhecidos como os estudos mais poderosos para avaliar a eficácia de um medicamento pois, como anteriormente referimos, os modelos de investigação experimental asseguram uma maior robustez na inferência causal, devido à aleatorização dos seus participantes, ao controlo mais rigoroso da exposição e da detecção do efeito, assim como ao recurso a níveis de ocultação, o que contribui para minimizar o efeito de viés e de variáveis de condundimento. No entanto, estes estudo apresentam importantes limitações na avaliação da efectividade e da segurança dos medicamentos que decorrem da própria essência da investigação experimental, em particular do seu artificialismo, ou seja do facto de nos ensaios clínicos, os doentes serem expostos aos medicamentos em condições que em nada se assemelham ao cenários em que os vão consumir na prática quotidiana. Além disso, a sua curta duração, o número reduzido de participantes e as restrições impostas na sua selecção limita a probabilidade de detecção de reacções adversas menos frequentes, de longo período de latência ou em populações de risco acrescido. Quanto ao número de participantes importa recordar a grande maioria dos ensaios clínicos na fase III integra menos de 5.000 elementos, o que será insuficiente para detectar reacções adversas inesperadas ou raras. A incidência deste tipo de RAMs situa-se entre 1 caso para 500 expostos e 1 caso para 50.000 expostos. Se considerarmos

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uma incidência intermédia, ou seja de 1 caso de RAM em cada 5.000 expostos ao medicamento, seria necessário que o estudo seguisse cerca de 10.000 indivíduos para, com um nível de confiança de 99 %, detectar um caso da reacção adversa. Nestas circunstâncias, a metodologia experimental usada nos ensaios clínicos fase III seria inviável, tendo a conta a grande dimensão exigida para a amostra, o que tornaria o estudo muito oneroso. Na tabela seguinte é apresentada a probabilidade de detecção de reacções adversas em função da incidência esperada e do número de participantes em seguimento. Probabilidade de detecção de 1 caso de RAM segundo a sua incidência e o nº de indivíduos expostos Total de Expostos 1/100 1/500 1/1.000 1/5.000 1/10.000 1/50.000 1/100.000 100 0,63 0,39 0,095 0,05 0,01 0,005 0 500 0,99 0,63 0,39 0,095 0,05 0,01 0,005 1.000 1 0,99 0,63 0,39 0,095 0,05 0,01 5.000 1 1 0,99 0,63 0,39 0,095 0,05 10.000 1 1 1 0,99 0,63 0,39 0,095 50.000 1 1 1 1 0,99 0,63 0,39 100.000 1 1 1 1 1 0,99 0,63 Para 99% de probabilidades de detecção de 1 caso de RAM com incidência de 1/5.000 é necessário seguir 10.000 pessoas

Além disso, os ensaios clínicos estão condicionados pela urgência da sua conclusão de forma a permitir a sua introdução rápida e oportuna no mercado terapêutico, pelo que o tempo de seguimento é geralmente curto. No entanto, a história da iatrogenia medicamentosa já demonstrou que alguns efeitos adversos têm um longo tempo de latência. Assim, a curta duração da maioria dos ensaios clínicas inviabiliza a detecção de reacções adversas com um longo tempo de latência ou induzidas por medicamentos que são utilizados pelos seus consumidores durante longos períodos da sua vida. O reduzido tempo seguimento dos participantes foi bem evidenciada numa revisão de Stolley e Laporte sobre ensaios clínicos revelando que a duração habitual dos ensaios com medicamentos anti-hipertensivos não ultrapassa os 6 meses embora estes medicamentos sejam usados durante longos períodos pelos seus consumidores. Também as restrições impostas na selecção dos participantes, condicionando a integração de doentes com patologias concomitantes ou poli medicamentados, de mulheres, crianças e idosos podem limitar as conclusões dos ensaios clínicos sobre o risco de ocorrência de reacções adversas em populações mais vulneráveis e que por vezes constituem os principais destinatários dos medicamentos em estudo. Este facto é bem demonstrado numa outra revisão de Laporte sobre 214 ensaios clínicos efectuados com medicamentos utilizados no enfarte agudo do miocárdio onde verificou que apenas 40 % dos doentes incluídos tinham mais de 75 anos, quando é neste grupo etário que ocorrem 80 % das mortes por aquela causa.

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Com o objectivo de solucionar estas limitações dos ensaios clínicos recorre-se cada vez mais frequentemente à metodologia epidemiológica observacional, que tem vindo a aperfeiçoar os seus métodos de investigação, tornando-os mais adequados às especificidades da exposição e do efeito do medicamento. Os Estudos Observacionais apresentam a vantagem da investigação decorrer durante mais tempo, com um maior número de elementos, num cenário menos artificial onde as inclusões são menos restritivas e os participantes serão mais representativas do universo de consumidores para o qual se pretende extrapolar as conclusões do estudo. A grande limitação dos estudos observacionais é a sua vulnerabilidade aos viés e variáveis de confundimento, o que afectará o seu poder de inferência causal. No entanto, a própria natureza da metodologia observacional impõe, por vezes, estes estudos como a única alternativa para estimar o risco de ocorrência de reacções adversas, pois o recurso à metodologia experimental não é eticamente aceitável, nomeadamente no que se refere à exposição voluntaria e consciente de um grupo populacional a um factor de risco, nomeadamente um medicamento, para comprovar que essa exposição originaria um efeito nocivo para a saúde. A análise dos diferentes contributos da metodologia epidemiológica para o estudo do impacto positivo e negativo na saúde das populações associado ao uso do medicamento permite-nos concluir que os estudos experimentais estão particularmente indicados para avaliação da eficácia terapêutica, portanto do benefício, enquanto os observacionais estarão preferencialmente orientados para a avaliação da segurança dos medicamento ou seja do risco.

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