Revista_ATLASPSICO_16

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ATLASPSICO comportamento

bailarinas com sapatilhas de chumbo

sociologia

Brasil, terra do acolho França, país da insensibilidade

relacionamento psicologia do amor

gestão rh o medo de errar esqueça o culpado

sexualidade

tattoo

a velhice travesti

a bioidentidades na cultura contemporânea

NÚMERO 16 | OUTUBRO 2009

A Revista do psicólogo


EXPEDIENTE REVISTA ATLASPSICO EDIÇÃO DE OUTUBRO 2009 Brasil | Curitiba | Paraná EDITOR-CHEFE Psicólogo Márcio Roberto Regis (CRP 08/10156) AGRADECIMENTOS AOS AUTORES... Carlos A. Porcino (Psicólogo) Sérgio Gomes da Silva (Psicólogo) Samuel Antoszczyszen (Psicanalista) Fernandes de Andrade (Psicólogo) Marcus Antônio Britto de Fleury Junior (Psicólogo) Raquel de Freitas Silva Cardim (acadêmica de Psicologia) Rosa José de Sousa (acadêmica de Psicologia) Daniel Migliani Vitorello (Psicólogo) Ana Artigas (Psicóloga) Armando Correa de Siqueira Neto (Psicólogo) Márcio Roberto Regis (Psicólogo) ARTE E DIAGRAMAÇÃO Márcio Roberto Regis SEJA UM COLABORADOR PARA A PRÓXIMA EDIÇÃO Encaminhe seu artigo para o email editorial@atlaspsico.com.br Um projeto do Portal de Psicologia ATLASPSICO www.atlaspsico.com.br | revista.atlaspsico.com.br Revista ATLASPSICO é uma publicação bimestral. Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. O uso de imagens e trechos dos textos somente podem ser reproduzidos com o consentimento formal do editor. ATENÇÃO: EDITORIAL ATLASPSICO INFORMA! O Portal de Psicologia ATLASPSICO NÃO ABORDA INTERNAUTAS E NEM REALIZA PUBLICIDADE NO ORKUT ou em qualquer outra rede de relacionamentos. JAMAIS repasse informações pessoais para internautas se identificando responsáveis pelo nosso projeto editorial. Em caso de dúvida, entre em contato com os endereços de email e telefone informados em nosso site no atalho contatos.atlaspsico.com.br

A Revista do Psicólogo

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ÍNDICE A Revista do Psicólogo

ATLASPSICO número 16 | outubro 2009

MATÉRIA DE CAPA

Modificações Corporais: e a produção de bioidentidades na cultura c ontemporânea

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EDITORIAL A tatuagem é tão antiga quando a civilização. A palavra tattoo é derivada de tatau, que era o som produzido por um martelinho batendo nos finos ossos em formato de agulha para marcar a pele com tinta. Alguns dados arqueológicos citam que a tatuagem já existia há mais de 2.500 à 5.000 anos a.C, encontrados em múmias no Egito e também uma prática frequente por nativos da Polinésia. A tatuagem era bastante utilizada por guerreiros nos rito de passagem, eventos religiosos e simbolizava status, coragem, poder. Tatuar o corpo significa obter uma identidade única, ímpar, personalizada. Nesta edição, o psicólogo Sérgio Gomes da Silva descreve um pouco mais das modificações corporais e a produção de bioidentidade na cultura contemporânea. Obrigado a todos pelo carinho! Boa leitura! Márcio Roberto Regis | CRP 08/10156

Psicólogo e editor ATLASPSICO | www.atlaspsico.com.br

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Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


PSICANÁLISE

O não-dito, O mal-dito, e o bem-dito. a palavra e o sujeito

SEXUALIDADE

A velhice travesti e suas dimensões psicossociais na contemporaneidade

COMPORTA MENTO

Bailarinas com sapatilhas de chumbo

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06 RELACIONA MENTO

Psicologia do Amor: a relação amorosa contemporânea entre o homem e a mulher

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GESTÃO RH Esqueça o culpado

COLUNA ATLASPSICO oH, Shift! Caps Lock, não!

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FILOSOFIA

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MOTIVACIONAL O medo de errar

Brasil, terra do acolho! França, país da insensibilidade?

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SEXUALIDADE

A VELHICE TRAVESTI E SUAS DIMENSÕES PSICOSSOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE

O presente trabalho possui como objetivo tecer de forma breve algumas considerações em torno da representação da velhice sob o olhar da travesti, bem como, as perspectivas enfrentadas por tais atores sociais, em especial no que diz respeito aos efeitos e suas dimensões psicossociais na contemporaneidade. Nesse sentido, algumas inquietações são suscitadas em função do trabalho com travestis em uma experiência para realização de pesquisa de campo com a finalidade de elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para a graduação em Psicologia1.

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As questões acerca da prática com esse público ocasionaram em um levantamento da literatura sobre a temática e despertaram reflexões que serão desvendadas ao longo do trabalho. No entanto, busca-se inicialmente discorrer sobre: a velhice, o processo de envelhecimento, a legislação sobre o idoso, questões éticas, em seguida propõe-se a descrever as repercussões desse processo objetivando relacionar a problemática do envelhecer da travesti, destacando possíveis desdobramentos.

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A partir dessas questões, é possível refletir e perceber a forma como as transformações sociais em torno da velhice na contemporaneidade têm dispensado sobre o lugar que os “velhos” ocupam na sociedade do espetáculo. Nesse contexto, o que é valorizado é o corpo escultural, mesmo que para isso, inexista a qualidade de vida, pois o que parece de fato ter valor é apenas a embalagem, a aparência e não o conteúdo. De certo modo, na sociedade atual “o descarte” é o lugar que é destinado ao bem ou utensílio que já está velho e não proporciona nenhum benefício e ou está deficiente. Sob essa perspectiva, é possível efetuar associações sobre ao sentido extremamente negativo que possui a velhice na contemporaneidade, visto que o lugar que em grande maioria são destinados aos idosos é feito inclusive através de uma espécie da apartahaid onde existem lares específicos para esta finalidade, ou seja, está velho, então vai para o asilo. No caso específico das travestis, que envelhecem e que não possuem condições financeiras para se manterem, que futuro lhes aguarda?

Diversas cidades brasileiras, como por exemplo, Maringá, Uberlândia, entre outras, anunciam a criação de um número de residências projetadas para atender de forma exclusiva “pessoas da terceira idade”, em local específico e adequado com rampas de acesso e outras necessidades, tornando assim um local para idosos. Frente aos fatos, algumas questões surgem: será que a pessoa idosa só deve ter a acessibilidade em condomínios construídos exclusivamente para eles? Será que com tais medidas não se promove uma segregação do idoso? Enfim, muitos pontos positivos existem, mas valem à pena? Mazo et al (2003) consideram o viver humano como um processo dinâmico, multifacetado e muito complexo, construído historicamente, de forma individual e coletiva, em âmbito local e global. Desse modo, englobam também outras dimensões, tais como: a psicológica pautada na concepção sobre o que é ser velho, não contemplando apenas nas perdas, mas valorizando o potencial humano durante o ciclo vital; a dimensão espiritual que se compreende como sendo a força vital, a essência que anima todas as coisas, convivendo com as demais dimensões humanas, porém, esta dimensão requer que o sujeito comungue uma crença religiosa, tamanha sua influência sobre o comportamento e modo de vida; enquanto que a dimensão cultural tem sua composição a partir de crenças, valores, hábitos adquiridos e desenvolvidos em cada contexto, que por sua vez, influenciará o processo de envelhecer respeitando-se sua individualidade, singularidade e subjetividades.

A VELHICE De forma geral, entende-se a velhice como a última etapa do ciclo vital em virtude de sua aproximação com a finitude. A partir desse ponto de vista, de acordo com Papalia e Olds (2000) o desenvolvimento humano ocorre durante toda a vida, com isso, o período de cada ciclo vital, sempre sofrerá influência pelo ocorrido anteriormente e conseqüentemente proporcionará mudanças no que virá depois. O que necessita ser valorizado pela sociedade é a importância que possui cada período da vida. Visto que, cada um possui características próprias, assim como, valores e significados especiais, o que os tornam, nem mais e nem menos importante que o outro. Deve-se considerar, e isso não há como negar, que com a chegada da idade adulta ocorrem mudanças de forma gradativas no equilíbrio do organismo. Assim, algumas qualidades, como o aumento do vocabulário, a sabedoria apareçam,

outras habilidades possam ter suas funções diminuídas. Nessa etapa da vida, denominada também, como terceira idade e/ou melhor idade, nos últimos anos as diferenças individuais tornamse mais evidenciadas e por conseguinte, a morte para alguns não deixa de ocasionar uma certa e inevitável preocupação, visto que em nossa cultura não há uma educação ou um preparo para o morrer. No entanto, ao desenvolver o presente trabalho junto às travestis na cidade de Salvador sobre como percebem e lidam com fenômeno do envelhecimento, apesar da morte aparecer em suas falas, fica evidente que não é uma preocupação especificamente relacionada à morte em si, mas a forma como isso pode ocorrer em função dos riscos a que estão submetidas ao realizarem o trottoir2, pois “[...] ao entrar num carro, para realizar um programa, nós sabemos que vamos, mas não temos a certeza de que vamos voltar”. (Informante 1)

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PROCESSO DE ENVELHECIMENTO Deve-se considerar que o envelhecimento não deixa de ser um privilégio e também uma conquista que é feita socialmente. Por outro lado, se transforma em desafios que devem ser enfrentados por todos, ou seja, o governo com o poder público, o poder privado, a sociedade, em função da tamanha complexidade que deve ser encaminhada a questão. Muito bem colocado por Machado (2003) “[...] envelhecer é degenerar-se, definhar, tornar-se incapaz, impotente, deixar de produzir, é tornar-se dependente” (p.276). Entretanto, o ser humano possui a potencialidade de experimentar o desenvolvimento através das várias fases desse processo, que vai da vida intra-uterina até a finitude. Onde cada sujeito tem a oportunidade de construir a sua história considerando o tempo e a especificidade individual, portanto “[...] em cada fase da vida humana, podem-se identificar potencialidades e imitações inerentes à ela. De acordo com suas habilidades, os indivíduos desempenham papéis relativamente característicos em cada fase (p.276). A travesti também envelhece, embora algumas pessoas não concordem com essa afirmativa em função do estilo de vida e os riscos a que estão submetidas, como a homofobia, a transfobia e tantos outros. Desse modo, para aquelas que de fato tem a possibilidade e oportunidade de envelhecer, não deixam de vivenciar as doenças próprias do envelhecimento, as que também são ocasionadas pelo uso excessivo de hormônios femininos e outras deixadas pela utilização do silicone industrial utilizados para fazer ou bombar3 o corpo. No momento em que se fala sobre a ‘não oportunidade’ em envelhecer, refere-se pelo alto índice de travestis que são assassinadas em plena juventude, tendo suas vidas ceifadas sem terem tido a oportunidade de envelhecer, pois a morte em fases ou períodos que antecedem a velhice é considerada como prematura, tendo em vista ser a velhice, a última etapa da vida. Há séculos, o fenômeno do envelhecimento têm sido motivos de interesse e objetos de estudo. No entanto, apenas recentemente os estudos voltados para esse campo passaram a ser desenvolvidos com critérios científicos rigorosos, tornando-se um campo multidisciplinar e com isso, possibilitando a atuação de diversos campos de saberes, sem, no entanto, promover a fragmentação, ou seja, o ser humano deve ser visto como um todo em sua integralidade. Vale salientar que a Gerontologia é a ciência que estuda o envelhecimento humano envolvendo a biologia, a psicologia, as ciências sociais entre outras, enquanto que a Geriatria é uma especialidade médica associada ao estudo, Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

prevenção e tratamento das e da incapacidade em idades avançadas. Portanto, [...] A abordagem da vida humana implica abrangência. O ser humano é, por natureza, complexo e indivisível. Ao assistilo, não se pode segmentá-lo; ao contrário, devese valorizar cada um de seus aspectos, sempre de forma a entender que o equilíbrio entre todos eles é que viabiliza o bem-estar. (MACHADO, 2003 p. 275) Em face da tamanha velocidade e o desenvolvimento tecnológico utilizados com a finalidade de proporcionar um retardamento no processo de envelhecimento, através de cremes, medicamentos, procedimentos cirúrgico entre outros, surge à seguinte questão: existe de fato, a possibilidade definir um período da vida para que então sejamos considerados como velhos? Como falar da velhice travesti, em virtude de utilizarem as mais diversas formas objetivando a (re)invenção do corpo? E mais, que lugar ocupa a travesti que é considerada como “velha” na sociedade do espetáculo? No contexto brasileiro percebe-se que a concentração de renda por parte das populações mais favorecidas proporciona e estabelece um nível acentuado de desigualdades e injustiças sociais de forma tão intensa que se observa através de relatos das travestis entrevistadas onde estas frequentemente experimentam formas de depressão, situações de desesperança, pânico e até desamparo. A partir dessas questões, é possível refletir e perceber a forma como as transformações sociais em torno da velhice na contemporaneidade têm dispensado sobre o lugar que os “velhos” ocupam na sociedade do espetáculo. Nesse contexto, o que

“Força e beleza são bens da juventude, comedimento, a flor da velhice. [...] O velho foi jovem, mas quanto ao jovem, é incerto se ele chegará à velhice. Portanto, o bem realizado vale mais que o que ainda está por vir e é incerto” Demócrito de Abdera (460-370 a.C.) filósofo grego 9


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é valorizado é o corpo escultural, mesmo que para isso, inexista a qualidade de vida, pois o que parece de fato ter valor é apenas a embalagem, a aparência e não o conteúdo. Com isso, percebe-se que no Brasil, diferente de outras culturas, ser “velho” tem sido um problema, para as pessoas tidas como “normais”, imagine então, o que resta para as minorias sociais condenadas a viverem ou sobreviverem à margem, ou seja, que sentem de perto e na própria pele as marcas deixadas pelo fenômeno da exclusão social. É exatamente, nessa categoria de excluídos, que encontramos as travestis, de forma mais específica, aquelas que são consideradas como “velhas”.

METODOLOGIA Como método utilizado para aprofundamento dessas informações buscou-se a análise de conteúdo com o intuito de analisar, sobretudo, as formas de comunicação verbais, escritas e não escritas, entre as travestis entrevistadas. Neste trabalho foram entrevistadas seis travestis, utilizando entrevista semi-estruturada, além da observação participante, pois segundo Minayo (2002) é através dela que o pesquisador obtém informações contidas nas falas dos atores sociais, caracterizando-se por uma comunicação verbal onde é reforçada a importância da linguagem e do significado da fala.

A CONCEPÇÃO DA VELHICE A PARTIR DA FALA DAS TRAVESTIS A partir dos recortes de suas falas, constatouse uma semelhança no que é dito por Beauvoir (1990), pois cada sujeito tem sua velhice de forma única e com isso tornam as velhices impossíveis de serem contadas. A velhice é considerada como algo irrealizável, visto que não podemos reconhecer a velhice em nós mesmos e que apesar disso vemola nos outros, embora tenhamos a mesma idade deles. [...] a velhice a gente só enxerga nos outros, parece que a gente nuca vai ficar velha. Eu particularmente, não me vejo velha. Para mim, uma travesti é considerada como velha quando entra nos seus 35 ou 40 anos, pois com esta idade viver da pista meu bem é difícil. (Informante 1) [...] a velhice é “uó”4! É uma coisa que a gente não deveria passar. Prá mim, velho é o mundo. No meu ver, uma travesti pode ser tida como velha quando entra nos seus 40 anos. Já tenho 42 anos, vivo exclusivamente de programas, digo lá fora na Europa pois lá ainda se ganha grana com esta idade e até mais, mas aqui no Brasil, é muito difícil, pois as travestis mais jovens, com seus 15 e 19 anos, dizem coisas horríveis. Chamam a gente de vovó, de matriarca, de mãe das outras. Você que existe um preconceito entre as próprias travestis. Quando na verdade deveria é respeitar. (Informante 2) [...] prá mim, velhice só sabem quem passa. É um momento que a gente tem que passar, se não morrer antes. Não é? Vejo este momento como positivo e negativo, pois por um lado a gente ganha experiência e por outro a gente perde o vigor. Hoje, com os 40 anos já me sinto velha prá pista. Com a quantidade de silicone que tenho no corpo não dá mais prá ficar subindo e descendo, pois as pernas doem. Existe muito preconceito por parte das travestis novas com as velhas. Quando na verdade deveriam é agradecer, pois as coisas já

estão mais fácil, do que a 15 ou 20 anos atrás. (Informante 3) [...] velhice? O que é isso (risos)? Prá mim a travesti é considerada velha com os seus 40 ou 45 anos. Nada mais fica no lugar! É um processo que só sabe a gente que ta passando. É muito dolorido. Tive uma amiga que se suicidou porque ficou deprimida e não aceitava a velhice, aí ela se matou. Ela tinha 50 anos. (Informante 4) [...] Elas sofrem porque são travestis, se transformou e hoje em dia estão velhas, a maioria. Muitos homens não gostam e não querem porque tá coroa, já tá velha. Muita gente olha e fala [...] olha o veado [...] olha o veado velho, bicha velha! A discriminação é essa! (Informante 5) [...] elas mesmas criticam! Chama de vovó, a vovó, a matriarca, a mãe das outras, tá velha, saia da pista, fim de carreira! Existe sim um preconceito. (Informante 6) É observado também em suas falas o sofrimento físico e psíquico como repercussão em função do processo de envelhecimento. Pois, independente da idade que possuem a cada dia se envelhece, e com isso se espera em algum momento um confronto com o processo de finitude. Nesse aspecto, Jerusalinsky (2001) afirma que não apenas as alterações que ocorrem no âmbito da cultura contribuem de forma a colocar as pessoas que envelhecem “na posição de obsolescência imaginária, o próprio ciclo real do corpo impõe restrições aos alcances de nossa simbolização da morte” (p.15). Para os atores sociais que compuseram o presente estudo, a morte aparece mesmo que de forma breve em seus relatos, pois quando não falam de si, em função de uma idade que não é considerada avançada, falam sobre as amigas, consideradas por estas como “velhas”, sobre as consequências e sofrimentos ocasionados nos âmbitos físicos e psíquicos marcados pelo envelhecimento. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


RESULTADOS Diante da análise dos dados, verificou-se omissão por parte de algumas travestis em falarem sobre o processo de envelhecimento, e outras que mencionaram que o envelhecimento somente é visto percebido em amigas e/ou conhecidas. Observou-se ainda, que os cuidados utilizados estão voltados de forma relevante para a manutenção do corpo (re)inventado e, não sobre métodos saudáveis que possam retardar o processo de envelhecimento. Para 80% das entrevistadas o processo de envelhecimento é considerado destino de todos os seres humanos, ou seja, independente de ser homem ou mulher. Outro dado relevante: 70% das entrevistadas demonstraram que a idade para que uma travesti seja considerada como “velha” gira em torno dos 35/45 anos, sendo que este dado encontra-se atrelado em função das suas atividades de “batalha”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista ser o processo de envelhecer universal a todos os seres vivos, percebe-se que para as travestis tal fenômeno não sofre diferenciação, apesar de algumas relatarem não perceberem tais fenômenos em si mesmas, se remetem sempre ao outro, ou seja, as amigas ou conhecidas para falar das repercussões físicas e psíquicas da velhice. As conclusões apontam que a partir dos discursos das travestis, o processo de envelhecimento vivido por elas é caracterizado de forma igual para todos, ou seja, iguais para homens, mulheres e até mesmo para elas. Sendo que cada uma visualiza e percebe o envelhecer como quer e "precisam perceber", pois para elas é como se o envelhecimento não fizesse parte do seu cotidiano, já que vivem o momento, o presente. É relevante retratar que para as travestis a idade cronológica denominada pelo Estatuto do Idoso, no Brasil o indivíduo é considerado idoso a partir dos 60 anos, isso não corresponde aos seus pensamentos, visto que para elas o que consideram como “velhas” está muito abaixo do que é previsto na referida lei, pois raras são as que conseguem chegar a tornarem-se de fato “idosas”, em função da exposição a fatores de risco extremamente altos, tais como: AIDS e DST’s, assaltos seguidos de morte, transfobia, agressões físicas e psíquicas, uso indiscriminado de medicações, utilização de drogas, aplicações de silicone industrial, dentre outras e as condições sub-humanas a que estão submetidas. Em virtude ter sido realizada uma amostragem por conveniência, as conclusões obtidas não podem ser generalizada a toda a população, mas limitase apenas ao público alvo estudado. Desse modo, as contribuições aqui apresentadas não possuem a pretensão de esgotar as reflexões acerca do envelhecimento da travesti, embora se espere que as contribuições apresentadas possam contribuir para futuros estudos.

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REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, S. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. | JERUSALINSKY, A. Psicologia do envelhecimento. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, Curitiba, ano 5, n. 5, p. 11-26, dez. 2001. | MACHADO, J. M. T. Bioética em geriatria. In: URBAN, C. A. (Org.) Bioética clínica. Rio de Janeiro: Revinter, 2003. p. 275-283. | MAZO G.Z; et al. O processo de viver envelhecendo no novo milênio. Texto & Contexto Enfermagem, 2003, jul-set; 12 (3): 361-369. | MINAYO, M. C. S.(Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. | PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W. Desenvolvimento humano. 7ª. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. Notas 1 O presente trabalho teve sua origem a partir reflexões extraídas do Trabalho de Conclusão de Curso para a graduação em Psicologia na Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC Salvador, elaborado por PORCINO, C.A. & LIMA, D.S. sob a orientação da Profª. Vélia Cotsifis, em 2007, com o seguinte título: “A percepção das travestis que (re)inventam o corpo na cidade de Salvador acerca do envelhecimento”. 2 Trottoir 3 Bombar é um termo êmico, utilizado por travestis ao se referirem as aplicações de silicone industrial com a intenção de realizar modificações corporais, ou seja, com o objetivo realçarem determinadas partes do corpo tornando-se “mais femininas”. O ato de bombar ou fazer o corpo é realizado por uma travesti que é denominada de “bombadeira”. 4 “Uó” possui uma conotação negativa, é uma coisa que não é boa ou bem vista.

AUTOR Carlos A. Porcino | CRP/ 03 IP 4547 Graduado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC Salvador), pós-graduando em Saúde Pública: Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL), graduando em Enfermagem na Faculdade Dom Pedro II - Salvador-BA e membro do Núcleo UNIsex (Núcleo Universalidade e Diversidade Sexual). Email: carlosporcino@ig.com.br

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COMPORTAMENTO

MODIFICAÇÕES

CORPORAIS e a produção de bioidentidades na cultura contemporânea

A busca pela verdade do sujeito dista de longa data. Desde os tempos em que a medicina passou a utilizar dos conhecimentos de anatomia, e que o olhar anátomo-clínico passou a fazer parte do saber médico, a busca pela interioridade fez da anatomia, a via mestra dos anatomistas do século XVI em diante.

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“Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores, cores que não sei o nome, cores de Almodovar, cores de Frida Kahio, cores. Passeio pelo escuro, eu presto muita atenção no que meu irmão ouve. E como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora, eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa, filtrar seus graus”.

Adriana Calcanhoto | Esquadros

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E

m 1632, enquanto numa próspera cidade de Amsterdan nascia o filósofo Espinosa, um jovem de 23 anos, chamado Rembrandt, pintava aquele que seria o quadro que daria início à sua carreira – A lição de anatomia do Doutor Tulp – famoso médico e cientista, na ocasião de uma palestra por ele proferida naquele ano. O quadro representa um dos mais famosos acontecimentos da época: a dissecação anatômica de um cadáver, acontecimento que não só atraia a curiosidade do grande público, como também dizia muito do saber médico. A interioridade do sujeito, seus segredos, sua intimidade e sua suposta verdade, ainda não estava referida à sua dimensão psicológica, pelo contrário, ela estava eminentemente centrada na materialidade e visceralidade da interioridade do próprio corpo, sob a pele, fazendo com que o período compreendido entre os séculos XVI e XVII fosse chamado de “o século visceral”. “Abram alguns cadáveres”, ordenou Bichat, e “logo verão desaparecer a obscuridade que apenas a observação não pudera fazer. A noite viva se dissipa na claridade da morte” (Foucault, 1977, p. 168). Era um período marcado pelas grandes aulas “teatrais” de dissecação anatômica do corpo. Sua interioridade estava comprometida com uma interioridade mental e espiritual e na produção do conhecimento do saber médico, porém, interpelado por um “corpo cadáver” cuja morte aos poucos foi sendo introduzida no pensamento médico, denominando aquilo que Foucault chamou de “dimensão biopolítica da medicina” (Foucault, 1977, 1979). A preocupação com o corpo, conforme sabemos, não é recente e nem muito menos chegou a um fim. Desde a última década vimos surgir um crescente interesse pelo corpo, seja através de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos, levando a formação daquilo que alguns autores vem alertando para a produção de novas identidades – bioidentidades, para ser mais exato (Foucault, 1980, 2000), Rabinow (1999) e Ortega (2002, 2003, 2004), que deslocou a construção do nosso eu e da nossa interioridade para a superfície do corpo1. Hoje, verifica-se, com certo assombro, a quantidade de modificações corporais que se vivencia em nossa sociedade, através do apelo da mídia, da moda, do uso do “corpo modificado” como um novo lugar que o sujeito contemporâneo precisa ocupar no registro simbólico, tais como tatuagens, piercings, branding, próteses diversas implantadas sob a pele, cirurgias plásticas, bronzeamento artificial, musculação, só para citar os mais conhecidos. 14

A própria indústria da moda e dos cosméticos também entram no mesmo rol de categorias descritas acima, ao considerar que o sujeito vale por aquilo que ele apresenta ser, reforçando no nosso imaginário que a aparência, de fato, virou essência. Mas o que todas essas modificações corporais têm em comum, além de terem produzido as novas bioidentidades? Se prestarmos atenção, verificamos que em todas elas, tem se usado, em maior ou menor grau, a superfície do corpo para registrar as modificações corporais vigentes, ou seja, a própria pele, fazendo do corpo um objeto para ser analisado e valorizado. Talvez não nos seja possível precisar o momento exato em que se deu a valorização do corpo como um objeto. Em um momento, a valorização da imagem corporal não era sinônimo de valor moral. No outro, com o avanço do capitalismo, da sociedade de consumo, do império da moda e da publicidade, da ascensão da cultura da imagem e do espetáculo, o ideal de beleza e bem estar físico e corporal mudou! De acordo com a antropóloga Mirian Goldberg, a segunda metade do século XX viveu um culto ao corpo e ganhou dimensão social inédita ao entrar na era das massas: industrialização, difusão generalizada das normas e imagens, profissionalização do ideal estético com a abertura de novas carreiras, inflação dos cuidados com o rosto e principalmente o corpo. A mídia, como não poderia deixar de ser, aliada à moda, teve influência sobre os indivíduos, generalizando a paixão pela moda, expandindo o consumo de produtos de beleza e tornando a aparência uma dimensão tão essencial da nossa identidade para um número cada vez mais crescente de homens e mulheres (Goldberg, 2002). Antes, éramos orientados por valores tradicionais (família, classe, cultura local, etc.) cujas identidades e papéis sociais eram atribuídos por herança, conforme nosso pertencimento a determinados laços sociais. Agora, a sociedade moderna, ou precisamente a sociedade contemporânea, diz que para sermos alguém, precisamos ser saudáveis, porém, a saúde não é mais “a vida no silêncio dos órgãos”, para usar a expressão de Leriche, e sim, o espetáculo proporcionado pela imagem “saudável” do corpo (Bezerra Jr., 2002). A saúde agora está subsumida àquilo que os autores vêm chamando de “healthism”, ou seja, uma ideologia que combina um estilo de vida hedonista junto a uma corpolatria cada vez mais encerrada na aparência (Crawford, 1980, 1994, Edgley e Bisset, 1990). Nesse sentido, o corpo passa a ser mote de higiene cuja impureza se dá através de corpos Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


ALGUMAS TÉCNICAS DE TATUAGEM

Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

AUTORRELEVO: Essa técnica de tatuagem, a pele é dissecada.

imagens capturadas da internet

poluídos e depositários de gordura, colesterol e flacidez, solicitando uma purificação para atender ao apelo da nova moral ética e estética do corpo, para não falar do ideal de pureza digital, tal como formulou Sibilia (2003, 2004, 2008). Ou seja, se antes o corpo era depositário da boa vida e da saúde (no sentido ascético que os gregos davam), agora, a saúde está submetida aos ditames do que a cultura diz que é e o que não é saudável. Se a aparência virou essência, as modificações corporais dão o tom da nova moda do mercado fazendo com que quem não se enquadre nesta categoria, esteja fora do circuito, portanto, faz parte do mundo dos excluídos. Agora, a nova moral nos faz perguntar: “Com que corpo eu vou?”. Quem não consegue alcançar esse modelo ideal, ou tenta sobreviver ao ditame imperioso da aparência, ou sucumbe às novas patologias somáticas. Adicione a isso, o “modismo” das modificações corporais que ganhou forma de modo mais enfático a partir da segunda metade do século XX: cirurgias plásticas; lipoaspiração; piercings, tatuagens que fazem do corpo um espaço de arte (body art); a indústria da moda, cujas roupas (ou até mesmo a falta delas) formam uma espécie de “segunda pele natural” identificando valores estéticos coletivos, tais como frisou Malysse (2001); rígidas e variadas dietas de emagrecimento; fisiculturismo e diversas modalidades de ginástica; práticas mutilatórias, tais como próteses corporais, stretchin (abertura e alargamento de orifícios em determinadas partes do corpo – língua e orelha, principalmente); cirurgias para redução do estômago; as formas mais comuns de patologias somáticas encarnadas na superfície do corpo ou ainda de drogadição; a cultura do healthism ou bodysm, cuja ideologia e moralidade da saúde e do corpo perfeito, faz com que sejamos escravos da estética; branding (queimar a pele), que faz da superfície do corpo um território, um lugar, uma área fronteiriça entre natureza e cultura, interno e externo, eu e outro, que é o domínio privilegiado das identidades, e tem transformado a relação entre o nosso eu e o mundo como uma espécie de encenação nos mais variados “teatros do corpo” (Macdougall, 1996), cuja exposição se dá tal qual uma ferida aberta em pleno ato cirúrgico, porém, apenas para ser apreciado como um espetáculo. Senão, vejamos. De acordo com o psicanalista Contardo Calligaris (1996), a marcação a ferro (branding) e escarificação são práticas antigas comuns na literatura etnográfica. Em determinadas tribos primitivas, as inscrições corporais são consideradas como inscrições simbólicas que asseguram e reafirmam a seus portadores o pertencimento a uma determinada comunidade.

Essa técnica de tatuagem, a pele é dissecada.

BRANDING: Esse tipo de técnica de tatuagem é extremamente dolorosa e de difícil cicatrização. Ocorre com ferro quente, a mesma técnica utilizada para marcar gado.

Nos Estados Unidos, continua o autor, as fratrias negras de algumas universidades do sul praticavam o ritual da marcação no corpo para confirmar o vínculo comunitário entre seus membros. A marcação, em certas culturas, é um rito de iniciação como a circuncisão o é para os judeus. Ela dispõe de um alto valor simbólico, significando que homens e mulheres são aceitos nas comunidades as quais almejam pertencer. Mas alerta: “Mais do que gostaríamos de admitir, nós, pós-modernos, nos tornamos gado sem dono, mas por sermos humanos, lamentamos nossas marcas perdidas. Oh, dai-nos uma comunidade tradicional, uma religião dos velhos tempos, dai-nos uma marca, ou enfim, marca-nos!” (Calligaris, 1996, p. 115). A marcação a ferro, diz um dos “marcadores” é um “ verdadeiro caminhar sobre brasas, uma coisa realmente primitiva... É dor, bem como um medo imenso. Ferro e fogo. Você tem que separar o corpo da mente para ter feito isso. O marcador tem que agir muito rápido. Quando você passa por isso, 15


mexe com muita emoção que tem a ver com o poder (Calligaris, 1996, p. 110-111). Nesse sentido, a dor é o mais honesto preço pago pelas marcas da pele, e seus usuários se concebem como a elite de nossos tempos de marcação, saturado na cultura das sensações, e do risco. O eu, exteriorizado desse modo, exerce uma tirania da estética, visto que o corpo é capturado cada vez mais pelo olhar do Outro, provocando não só um esvaziamento da interioridade, no sentido de um espaço íntimo e privado, da própria subjetividade, como também as novas modalidades de somatizações psíquicas – anorexias, distimias, bulimias, etc., conformando as novas bioidentidades. Com isto, entramos, pois, no campo da biopolítica, do biopoder (Foucault, 1980, 2000) ou da biossociabilidade (Rabinow, 1999), cujas identidades passarão a serem descritas e/ou reconhecidas através de regras e práticas de vigilância e auto-vigilância fisiológicas, ideais físicos e estéticos, sucumbindo finalmente à moral do espetáculo e das sensações (Costa, 2004). No mercado da aparência e da estética como espetáculo, por conseguinte, faz do corpo não só um espaço de teatralização, como também um meio de exteriorizar o nosso eu através da superfície da pele. Na sociedade contemporânea, fica cada vez mais evidente que nossa subjetividade tem se exteriorizado através dos sinais visíveis que o corpo emite, atraindo, ou melhor, capturando os olhares do Outro em um mundo saturado de imagens, refletindo um esvaziamento de nossa interioridade, da nossa vida privada. De acordo com Sibilia (2004), a subjetividade estruturada em função do corpo, torna-se um espaço constante de criação epidérmica e de expressão do eu. Esse esvaziamento da interioridade e transformação constante da superfície epidérmica do corpo está a serviço não só da captação dos olhares como também da espetacularização do eu. “Tudo é espetáculo”, diria Debord (1997). Assim, a pele tem atraído a atenção e interesse de diferentes especialistas. Estou me referindo não só a médicos dermatologistas, homeopatas, esteticistas, mas também a fisioterapeutas, higienistas, quiromancistas, polícia científica especializada em identificação digital, cartunistas, publicitários, fotógrafos, especialistas em imagens 16

A lição de anatomia do Doutor Tulp – famoso médico e cientista, na ocasião de uma palestra por ele proferida naquele ano. O quadro representa um dos mais famosos acontecimentos da época: a dissecação anatômica de um cadáver

digitalizadas, para não falar de escritores, poetas, músicos, que vêem na própria pele toda a dimensão da nossa subjetividade, traduzindo sentimentos, emoções e sensações em palavras, ou ainda psiquiatras e analistas que vez ou outra se deparam com as graves somatizações na superfície da pele de seus pacientes. A pele ainda é o lugar de investimento libidinal, lugar de sedução, reduto de prazer e dor, está submetida à recepção dos estímulos detectados pelo sistema nervoso central, é frágil para uns, adaptativas para outros de acordo com o clima e o tempo de determinada áreas ou região. É a mais perfeita encarnação de um corpo saudável ou doente na moral da estética vigente. Ela pode ainda comunicar, com poucos sinais, o estado de saúde, doença, bem ou mal estar. Empalidecemos quando ficamos surpresos ou ante a uma ameaça, ficamos ruborizados quando nos sentimos envergonhados, nos arrepiamos quando sentimos frio, medo ou estamos excitados. Enfim, a pele comunica-se com o mundo, e este também se comunica com o sujeito através da superfície da pele. Sendo assim, o eu parece deixar de ser o mínimo denominador comum entre a interioridade e a exterioridade, para tornar-se o máximo denominador comum de uma cultura que tem se submetido a todas as formas de incitação, agora, não mais baseado no discurso, e sim, na “linguagem do silêncio dos corpos”. O eu interior sobrevive, portanto, naquilo que você gostaria de ser, pensa que é ou ainda naquilo que você deseja ser. Quem fala agora, é a pele, tela branca que reflete as projeções, tal como em um filme, de uma cultura voltada eminentemente para o hedonismo, corpolatria, espetáculo, consumo e a moral das sensações. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


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PSICANร LISE

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O NÃO-DITO, O “MAL-DITO” E O “BEM-DITO” A PALAVRA E O SUJEITO Encontra em mim o que de belo tens. Odeia em mim o que de ruim possui. Adora o meu, pois parece teu. Exige de mim o que eu nunca fui. Samuel Antoszczyszen | Psicanalista

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o alicerce de toda palavra é a pulsão que insiste. Seguindo de perto as repetições, podem-se rastrear as pegadas e as identificações. A escuta adquire um lugar central na psicoanálise por ser esta uma coisa de palavras, ditas ou silenciadas. Palavras que enganam, mas que abrem um acesso à significação. No entanto, a psicoanálise, ao inaugurar o campo da escuta, produz uma verdaeira ruptura epistemológica, as características visíveis da ciência desapareceram e dão espaço para um novo olhar sobra a interpretação dos fatores psíquicos. O império da objetividade positivista que recolhe e anota todos os dados que aparecem perante o olhar dá lado para o “escutar”. Freud abre caminho para reconhecer as “doenças que falam” e que não temos o direito de ignorar o que elas nos dizem. Por isso Lacan diz que o inconsciente não é a sede dos instintos, mas o lugar privilegiado da palavra. Donde comparar Freud a Champollion, o decifrador de hieróglifos, comparando-os, apreendendo suas relações e articulações. Como o inconsciente fala em toda parte, Freud teve o mérito de nos ensinar a decifrar sua linguagem no sonho, nas neuroses, na loucura, etc. E todo esforço de Lacan consiste em ler Freud com o olhar da linguística a fim de descobrir, na linguagem, a verdade do inconsciente. Porque a verdade não se encontra numa pretensa relação com a realidade, mas nesse sistema de leis estudado pela linguística. É essa onipresença da linguagem que permite o diálogo. Mas é rejeitada a idéia de uma pessoa autônoma, mestra de sua palavra, pois não sou eu quem fala: é isto que fala em mim. Por isso, o recalcado não é uma coisa, mas um discurso estruturado que funciona fora do sujeito consciente.Não pensamos a linguagem como um instrumento de comunicação. Também o é. Alguém se propõe a comunicar algo e para isso se vale da linguagem. Porém, até aqui, a descoberta freudiana não está presente. Ao introduzir o conceito de inconsciente, Freud coloca a fala em outro lugar, alguém que fala e ao fazê-lo diz mais do que aquilo que se propõe. Nesta fala, em certos momentos, a lógica consciente se rompe, se desvanece, e algo diferente se torna presente, manifestando outra lógica. A lógica do processo primário, presente no lapso, no sonho, no chiste, no esquecimento, na frase contraditória, no duplo sentido. Na instauração da situação analítica, ao propor a regra fundamental- a livre associação e seu reverso, a atenção flutuante- se produz um desfraldar da palavra. No seio da associação livre

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vai-se produzindo um deslocamento da imagem, do fato como fixo, e este se vai incluindo em múltiplas imagens caleidoscópicas cujas combinações possíveis se multiplicam e onde o rítimo, a cadêcnia, a intensidade maior de alguns fonemas, a excitação explícita ao gaguejar uma palavra, o sentido duvidoso de uma frase mal construída, tudo dá tonalidade diferente a essas figuras que não passam desapercebidas à escuta sutil da atenção flutuante. Assim no alicerce de toda palavra, é a pulsão que insiste. Aquela que não fala, mas que evoca a palavra e que, levada pela compulsão à repetição, procura satisfazer-se. É seguindo de perto as repetições que acompanhamos as vicissitudes da pulsão e rastreamos as pegadas das intenções. É na escuta e na fala que encontramos a ciência da psicoanálise. A psicoanálise é uma prática, uma terapêutica procurando resistir ao sujeito humano o domínio de sua linguagem. Lacan não considera a linguagem como um sitema objetivo. Está preocupado com a dialética da linguagem que se impõem ao sujeito e da palvra que é a sua atualização subjetiva. É dessa dialética que decorrem os três objetivos da psicoanálise: da história de uma vida vivida como história; de sujeição às leis da linguagem, as únicas capazes de sobredeterminação; do jogo intersubjetivo por onde a verdade penetra no real. E quem se dispõe a escutar esse jogo subjetivo se depara com o inesperado e é isto o que acontece quando, no seio do processo de “falar”, o amor irrompe e tal irrupção surpreende. Surpreendeu a Breuer, que assustado fugiu. Também à Freud, que decidiu enfrentar os demônios, e disse que é na forma supreendente com a qual o sintoma irrompe, que está a força probatória do fenômeno da transferência. O conceito de inconsciente não necessariamente quebra a idéia de exterioridade presente no olhar do outro. Se o inconsciente é entendido como algo que está no sujeito, a nível de depósito de instintos, alguém de fora poderia observar isso que se encontra no sujeito, e a sessão analítica poderia converter-se em um espaço experimental onde alguém observa o que acontece com o outro e lhe comunica. É a noção de transferência que vem romper com esta possibilidade de objetivação. O objetivo da psicanálise consiste em permitir que o sujeito humano assuma sua fala, seus discursos, sua história nas redes culturais. E isto na medida em que essa história é constituída pela palavra dirigida ao outro. Trata-se de uma história que na psicoanálise, só pode ser mostrda na e pela linguagem. Por isso a psicoanálise não elimina o sujeito. Ela é mesmo uma ciência da subjetividade.

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outras informações | editorial@atlaspsico.com.br

AUTOR Samuel Antoszczyszen. Psicólogo formado pela Universidade Tuiuti do Paraná em 2003. Especialização em Filosofia e Psicanálise na Universidade Comunitária da Região de Chapecó | SC e-mail: samfeel@pop.com.br

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Esta se realiza na e pela intersubjetividade. Do ponto de vista terapêutico, a análise termina quando a satisfação do sujeito conseguir realizar-se na satisfação de cada um, isto é, de todos aqueles que ela se associa numa obra humana. Porque o sujeito humano começa a análise falando de si, não se preocupando em falar ao analista, ou então, falando ao anlaista, sem se preocupar em falar de si, a análise só termina quando o sujeito conseguir falar de si para o analista. O inconsciente é esta parte do discurso que não se encontra à disposição de ninguém para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente. Ele é o capítulo da história do sujeito marcado por um “branco”. O analista ensina ao sujeito a reconhecer este “branco” a fim de que possa resumir a totalidade de sua temporalidade. Pois a verdade de sua história já se encontra dada nele, embora lhe escape, embora ele não reconheça. É reconhecendo-a que tem condições de assumir a plenitude de sua dimensão histórica. Para tanto, precisa ser decifrada a lógica de seu inconsciente, que é uma lógica da palavra. O que se coloca em questão com a psicoanálise á a própria essência do estatuto do sujeito pensante, tal como foi definido pelo idealismo clássico. A psicanálise se apresenta como um questionamento radical, não somente desde ou daquele tema de reflexão filosófica, mas do conjunto do projeto filosófico. Portanto Freud abala profundamente a filosofia que se deu ponto de partida o Cogito cartesiano. Encontramo-nos hoje diante de um cogito ferido, que se põe, mas não se possui. Que só compreende sua verdade originária na e pela confissão da mentira da consciência atual. Freud fala da psicoanálise como de uma ferida e de uma humilhação do narcisismo, como o foram, a seu modo, as descobertas de Copérnico e Darwin, que descentraram o mundo e a vida relativamente à pretensão da consciência. Neste sentido, ele é, para as ciências humanas, o que Copérnico foi para a astronomia. A terra é bem menor que o Sol: não é o centro do mundo, mas uma comarca do sol. O homem não é o soberano de seus pensamentos. O “eu” não é mais unificado. O objeto do desejo não é nem interior nem exterior. É simplesmente parcial. Porque o eu é um lugar imaginário, uma miragem, uma ilusão eficaz de constituir os objetos dos desejos. É uma sequência de palavras não-ditas, mal-ditas e bem-ditas.

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SOCIOLOGIA

BRASIL, “TERRA DE ACOLHO”! FRANÇA, PAÍS DA “INSENSIBILIDADE”?

da necessidade de indagar os estereótipos cotidianos… A comunicação é onipresente na vida cotidiana. Telefone, televisão, rádio, internet, etc., fazem parte da nossa vida pessoal, do mundo social e do trabalho. O presente trabalho trata do tema do estereótipo. O Ser Humano não é somente um receptor de estereótipos, ele comunica também estereótipos cotidianos. Mas por que é tão importante informar-se sobre os estereótipos individuais e socioculturais nas ciências humanas e sociais? O que é que eles escondem? É nesse questionamento sobre o impacto dos estereótipos na vida cotidiana que se situa o presente texto.

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ós vivemos em plena era da comunicação planetária. Os meios de comunicação chegaram a um nível tão grande que em um “clique” já estamos interconectados com uma boa parte do planeta. Por trabalhar em uma empresa de telecomunicação, todas as informações que vêm do mundo me interessam, sobretudo quando se trata da vivência de nossos compatriotas brasileiros na França. Quatro de Julho, onze horas da manhã, o telefone toca. É uma amiga que trabalha em uma instituição brasileira em Paris. Indignada, ela me anuncia a prisão de um amigo compatriotabrasileiro. Preso durante um “banal controle de identidade” parisiense. É impressionante saber que um amigo-compatriota vivia ilegal na França sem que ninguém soubesse. Tento questioná-la sobre o acontecido, porém minha amiga é categórica: não há nada a fazer! Meu amigo-compatriota já havia sido julgado pelo Tribunal Administrativo de Paris. O juiz ordenou sua “deportação” imediata ao Brasil. Surpreso, desço para comprar o jornal. Ao abrilo, vejo uma informação que me deixa eufórico. 24

Na edição do jornal francês “Ouest-France” do 4-5 Julho, primeiro cotidiano em termo de tiragem e um dos mais lidos da impressa regional francesa, vejo a foto do presidente Lula. Na manchete de capa, o jornal da amplo espaço ao título. Traduzido literalmente do francês para o português do Brasil lia-se “O Brasil regulariza os sem-documentos”. A notícia me deixa emocionado! De bom humor, ligo o rádio. E que escuto? Um debate na rádio francesa “France Culture”. Nesse debate discutese sobre a publicação de um estudo realizado pelo “Open Socity Institute de New York” que se intitula, na tradução do português do Brasil, “Polícia e minoridades visíveis: os controles de identidades em Paris”. O estudo confirma a tese segundo a qual a polícia francesa pratica o “délit de fácies” (delito de feição), ou seja, o crime de discriminação. O que é surpreendente é que um grupo sociólogo francês, trabalhando para um comanditário americano, decide tornar notoriedade pública crimes de discriminação cometidos pela polícia francesa. E isso algumas horas depois de receber a informação da “deportação” de meu amigo compatriota. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


Ligo a televisão e vejo outro debate sobre a publicação do estudo sociológico. O que choca é o impacto descritivo da informação. Pode-se demonstrar, empiricamente, que nesses controles de identidade o “estrangeiro” ou o “emigrante” é controlado nem tanto pelo que ele é como pessoa humana, mas pelo que aparentam ser. Ou seja, as pessoas controladas pertencem a “minoridades visíveis”. Elas são controladas por suas aparências étnicas (Negro, Árabes e outras minoridades vivendo no solo francês), por suas maneiras de vestir, por suas maneiras de falar, etc. É o que chamaria de “controle de polícia” fundado nos estereótipos sobre o “emigrante” ou o “estrangeiro” tipo. Racionalização estereotípica, vida cotidiana e mundo do trabalho Quem vive em Paris conhece as corriqueiras do cotidiano causado pelos “controles policiais” nos pontos ditos “quentes” da capital francesa. Quanto a isso é verdade que existe uma “banalidade” dos controles da polícia. Entretanto, a novidade da informação vem do processo de racionalização implicada nesses controles policiais. Ou seja, existem maneiras de pensar, de falar e de agir que denotam que nos “controles de identidade” os policiais utilizam dados estereotípicos como fonte de informação. Além disso, os “controles policiais” são organizados, planejados e calculados em função de conhecimentos práticos específicos: o da “aparência”, da “maneira de se comportar”, “de falar”, etc. das

pessoas. É a categoria populacional dos “Negros” e dos “Árabes” que são alvo privilegiado da escolha do controle policial. É a identificação da aparência étnica, vestimentária e linguística que seriam determinantes nesses controles de identidade. O que existe de terrificante nessas operações de trabalho é o fato de saber que eles são elaborados por pessoas trabalhando em um órgão institucional. O mais incrível é que esses diferentes aspectos da racionalidade implicada nos controles da polícia parisienses são em grande parte recusados nos debates organizados pelas mídias de comunicação francesa. No debate radiofônico, um dos jornalistas chega mesmo a declarar que “o resultado desse estudo não é nada surpreendente” (!), enquanto outro ressalta que “todo mundo sabe que os controles de identidades existem, que eles são fundados sobre a cor, a aparência, a maneira de vestir das pessoas, etc., porém o problema é que as pessoas tornaramse insensíveis a esses controles”. Será que o francês tornou-se “insensível” à discriminação estereotípica do “estrangeiro” ou do “emigrante” tipo? O que me interessa nesses eventos é o fato de que, por um lado, a discriminação estereotípica ganhou não somente um senso comum, mas tornou-se um ato rotineiro na vida da população parisiense. Por outro lado, o estereótipo do “estrangeiro” ou do “emigrante” tipo tornou-se componente de uma racionalidade prática de trabalho.

ESTEREOTIPIA E COMPORTAMENTO SOCIOCULTURAL: OS ENSINAMENTOS HISTORIOGRÁFICOS O problema colocado pelo processo da De fato, muitas crenças, opiniões e conhecimentos “banalização” do estereótipo do “estrangeiro” ou individuais se alimentam fundamentalmente em do “emigrante” tipo é a sua repercussão no âmbito estereótipos socioculturais. Todos aqueles que do comportamento humano e das interações conhecem a história da “República” brasileira ou sociais. Se considerarmos esses dois componentes que viveram os “anos de chumbo”, a perseguição, dentro das discussões que provocam a questão a violência das “patrulhas ideológicas”, a recessão das “minoridades visíveis” dentro das mídias de econômica da ditadura militar brasileira, sabem comunicação, nota-se que é o recalque social que muito bem o que representa a França como “país se situa no epicentro do problema. da liberdade”. Primeiramente, de maneira indireta, no sentido de que a prisão de meu amigo compatriota indaga Porém a necessidade de “liberdade” pela sobre os estereótipos individuais que certas pessoas “liberdade” é uma utopia. A “liberdade” implica, dão forma e conteúdo e que fundam maneiras muitas vezes, conhecimentos sobre as normas e de estar no mundo. A ideia que tinha meu amigo regras que estão em vigor no “país da liberdade”. compatriota da França é de que ele vivia no “país Nota-se que um dos focos do problema do da liberdade”. Ele foi um dos primeiros dançarinos estereótipo na vida de um indivíduo seria quando as negros a tentar integrar em um corpo de Balé crenças, as opiniões e os conhecimentos individuais Nacional brasileiro. Cansado de lutar contra a construídos sobre as bases estereotípicas não são recessão econômica e a discriminação do negro discutidos, ou seja, não são colocados à prova da dentro do mundo do espetáculo brasileiro dos anos realidade. E isso tanto no seu aspecto relacionado 70-80, ele escolheu a França para “viver livremente” como o “mundo” sociocultural quanto em seu e exercer sua arte. aspecto relacionado com “outra” pessoa. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

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Em segundo lugar, de maneira direta, observase que no mundo social o fenômeno de simplificação da informação do fato social contribui a criar um fenômeno de “banalização” da discriminação estereotípica, da “normalização” do comportamento ilegal de certos indivíduos trabalhando dentro das instituições sociais. Ora, esses comportamentos socioculturais se alimentam quase essencialmente de estereótipos. O título do jornal “Ouest-France” coloca em manchete o estereótipo do “Brasil, país de acolho”. Esse estereótipo é comum na França e ele se funda em um material empírico, informativo, antigo. O “Brasil” como “país do acolho” faz referência à “França Antártica”, ou seja, ao fato do “Brasil” ter sido uma das primeiras “terras do acolho” do colonialismo francês no solo brasileiro, mais precisamente no Rio de Janeiro, já que os “franceses antárticos” se instalaram na Baía da Guanabara. Nesse sentido, existe um fato irrefutável: o Brasil foi um dos primeiros “refúgios para os protestantes franceses”. Protestantes e colonos que fugiam das “perseguições”, das “guerras religiosas”, da “miséria” socioeconômica que marcaram a Europa do século XVI. As ideias associadas ao estereótipo “Brasil, terra do acolho” vêm da reminiscência da literatura de viagem. Jean de Lery, pastor, autor e missionário protestante, foi um dos primeiros a divulgar esse estereótipo na cultura Francesa. A repercussão desses conceitos foi tão grande na Europa que toda pessoa que leu os “Ensaios” de Montaigne é sensibilizado pela descrição humanista que o autor faz do “país dos selvagens”, dos costumes “indígenas” e dos “bons selvagens” brasileiros. Nesse sentido, o jornal “Ouest-France” enfatiza um deslocamento contemporâneo do estereótipo. Entretanto, poucos imaginam que o estereótipo “Brasil, terra do acolho” oculta toda uma estrutura estereotípica implícita. Ou seja, ele esconde um saber historiográfico sobre a atitude ao mal agir, à indiferença, ao sofrimento humano, ao tratamento desigual, à ação discriminatória, à dominação de uma cultura sobre outra, que estão intimamente imbricados uns nos outros. De fato, os franceses e portugueses, quando chegaram ao “Brasil”, foram “acolhidos” pelas populações “indígenas”. Porém vale ressaltar que, nesse período de “acolho”, a população “indígena” era estimada em 5 ou 6 milhões de “ameríndios”. Ninguém ignora que esse “encontro” teve consequências desastrosas: grande parte da população “indígena” foi disseminada por exterminação dita “natural”, como foi o caso das “doenças” como a varíola, transmitidas pelos europeus aos indígenas. 26

Mas ninguém ignora, também, que existem outros fatores sociopolíticos determinantes na exterminação das populações indígenas no continente americano. Entre eles me parece que o processo da racionalização colonialista foi um fator decisivo. Uma das formas de manifestação desse racionalismo situa-se a nível institucional. De fato, o Tratado de Tordesilhas garantia a Portugal o “domínio das terras conquistadas” e a “conquistar no Atlântico Sul”. A conquista da “terra” e a dominação dos “povos existentes nessas terras” fazem parte das decisões políticas do poder colonialista. Para atingir esses objetivos, ela utiliza meios, orienta ações fundadas em valores de “conquista” e “dominação”. Nesse sentindo, não é exagero dizer que o processo de exterminação das populações “indígenas” foi um processo racionalizado, metódico, organizado pela política colonialista século XVI. A “organização” de uma “bandeira” era fundada explicitamente sobre uma estrutura bem definida: era uma organização colonialista. Ou seja, grupos de homens ditos “valentes” eram contratados pelos portugueses com objetivos fixos: o de explorar as terras, suas riquezas, de “lutar” contra “indígenas rebeldes” e “escravos foragidos”. Mas existia também nessa estrutura “organizada” uma vontade implícita de capturar “povos autóctones”, “reduzi-los” a “servidão”, a “escravagem”. Ora, um dos valores veiculados pela organização das bandeiras era fundado sobre o estereótipo do “indígena rebelde”, “mal selvagem”. Assim, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a conhecer os efeitos mórbidos do comportamento discriminatório da política colonialista europeia. Durante séculos, a “organização” exterminadora das “bandeiras”, que tinha como fundamento ideológico o estereótipo discriminatório do “mal selvagem” e da identidade cultural “indígena”, perdeuse na historiografia da humanidade. Ela ressurge na Europa durante a Segunda Guerra Mundial com a “organização” do Holocausto, que foi um processo de exterminação planificado fundado na discriminação e na exterminação dos “judeus”.

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Porém observa-se que esses efeitos perversos dos comportamentos individuais ou socioculturais fundados em estereótipos, em preconceitos, são em grande parte recalcados do estudo sociológico e dos debates sobre o estudo. No estudo o que sobressai são as recomendações, entre elas o de reconhecer politicamente e pelas instituições policiais a natureza do problema. Nos debates o que sobressai é estereótipo fundado sobre a ideia de que a França é o país da “insensibilidade”, ou seja, as declarações visam confortar um estereótipo da França, país cartesiano, racional, “insensível”. Pelo fato de que os estereótipos encontram nas opiniões, nas crenças, nos conhecimentos, nos modos de vida implicados nos comportamentos humanos, na estrutura da personalidade e nas atitudes sociais um terreno privilegiado de ação, eles deveriam, me parece, ser discutidos, confrontados e questionados a esse nível. A desconstrução histórica de um estereótipo permite não só confrontá-los com uma visão

redutora, sistemática, desses estereótipos nas mídias de comunicação, mas também de abrir um espaço de discussão sobre a questão da estereotipia na nossa experiência individual, no mundo social e no mundo do trabalho. Um espaço onde se colocaria em perspectiva os riscos de “banalização” da discriminação estereotípica não somente no mundo social, mas também no mundo do trabalho. Enfim, ele abriria uma discussão sobre a necessidade da repreensão moral e jurídica que certas atitudes “normalizadas” impõem. No século XIX, as discussões públicas sobre a questão da escravidão abriram um campo considerável à consciência moral e coletiva sobre a condição desumana e miserável dos escravos brasileiros. O que era um fato “banal e normal” de escravizar o “outro” tornou-se um ato criminoso. Os testemunhos dos campos de Auschwitz-Birkenau foram determinantes para o reconhecimento das atrocidades “banalizadas”, “normalizadas”, pela Alemanha nazista.

ESTEREÓTIPO, ESTRUTURA DA PERSONALIDADE E PROBLEMÁTICAS ESTEREOTÍPICAS Mas, afinal, o que é um estereótipo? A palavra estereótipo provém da que as “impressões” ou sensações pertencem ao conjunção de dois termos gregos: mundo. Ora, por pertencermos ao mundo vivemos “stereòs”, que quer dizer “rígido”, e no mundo de “impressões” ou sensações. “túpos”, que quer dizer “impressão”. As “impressões” ou sensações fazem parte da Se transpusermos essa definição experiência existencial de todo Ser Humano. Nesse no plano do conhecimento do sentido, é fundamental dizer que é ilusório viver Ser Humano, observaremos que a sem “túpos”, “impressões”. Isso porque a existência origem etimológica do termo coloca é feita, em grande parte, dessas impressões que em evidência duas ideias importantes. existem no mundo interior e no mundo exterior de De um lado ela coloca em evidência dois toda pessoa. modelos do sujeito. De outro, ela indica A vida corporal é feita do sentir, do escutar, do o que constitui a ambivalência de todo captar, do tato, do ver, já presentes na constituição estereótipo: o “stereòs” ou “rígido”. Ou seja, humana ou que se desenvolvem do contato com o de fixar impressões que são fundamentalmente “mundo”, com os “outros” seres humanos. Vive-se impermanentes. desse mundo sensível. Além disso, as sensações são No que diz respeito aos modelos do sujeito, essenciais à vida e à estrutura da personalidade (Eu um primeiro evoca um sujeito feito de “im- ou Ego, Superego e Id). pressões”. O prefixo latino “im-“ induz Entretanto, quando tentamos identificar as à ideia de que dentro de toda sensações, nota-se que grande parte do “sentir”, pessoa existem “pressões”. do “escutar”, do “tato”, do “ver”, são associados a Nesse sentido é o corpo objetos e conteúdos conscientes ou inconscientes. humano o epicentro das Do “sentir” na sua relação com si mesmo, com o “impressões”. Mas existe, “mundo”, de estar relacionado com as “coisas” também, outro modelo existentes no “mundo” com os “outros” seres do sujeito, que se situa existentes nele. na variação latina do Isso significa que a existência interior tem prefixo “im”. O sujeito uma parte de superdeterminação à estereotipia. receberia de uma maneira A existência seria em grande parte pré-construída “im” infinita “pressões” por “túpos”, ou seja, por “impressões” ou vindas do “mundo”. A sensações que atribuímos a uma existência convergência entre esses interior, ao corpo humano. Mas existiria também dois modelos é o fato de uma superdeterminação da existência exterior. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

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São aquelas “impressões” ou sentimentos que atribuímos ao “mundo” ou ao “outro”. Percebe-se, então, que as “impressões” ou sensações são, ao mesmo tempo, fonte, alvo constante de “pressões” (internas ou externas) que se investem em objetos conscientes ou inconscientes. De fato, se exploramos um pouco mais a definição etimológica do vocábulo “estereótipo”, observa-se que é possível fazermos descrições do que “vimos”, “sentimos”, “escutamos” ou “palpamos”. O “túpos” tem um objeto: é sua representação. Ele tem também um conteúdo: são as “impressões” ou sensações afetivas. Representação e conteúdo são intrinsecamente imbricados um ao outro. E isso na constituição do Eu ou do Ego, do Superego ou do Id de toda pessoa. É o que chamaria de estrutura de base estereotípica, ou seja, o objeto-conteúdo que é “stereòs”, “rígido”, ou fixo em toda estrutura da personalidade. Nota-se que em um conceito como “estereótipo” já se encontram todos os contornos de sua definição teórica. A novidade da análise do vocábulo é que ele dá a entender que existiriam duas estruturas de base estereotípicas importantes: 1) De um lado temos a estrutura de base estereotípica na estrutura da personalidade individual. Ela se exprime na história individual através da qual essa estrutura de base se constitui; 2) De outro lado temos também uma estrutura de base estereotípica específica ao mundo sociocultural. As estruturas de base estereotípicas da personalidade individual teriam uma organização soma-psíquica. Seriam os conhecimentos, ou seja, os saberes, as maneiras de “sentir” a existência no mundo. Nesse sentido, as estruturas estereotípicas da personalidade individual teriam representações e conteúdos pré-determinados. Podemos citar dois deles: é o fato de pertencermos à espécie humana e de estarmos no mundo. Por pertencermos à espécie humana, todo indivíduo tem um caráter comum. É o fato de sermos feitos para aparecer no mundo, ou seja, de ver e ser visto, palpar e ser palpado, sentir e ser sentido, escutar e ser escutado, etc. O Ser Humano é feito desses “túpos” (impressões) e “stereòs” (rígido ou fixo), ou seja, de receptores de aparências estereotípicas. É o fato de conhecer e reconhecer, de identificar e ser identificado, de desejar e ser desejado. O que aparece é o Ser Humano, mas na verdade o que se vê, se sente, se palpa, se escuta, se deseja, são os “outros” Seres Humanos. O que 28

nos uni é, de uma maneira, o fato pertencermos a espécie humana. É claro que o que nos diferencia é a aparência, ou seja, a parte visível do corpo humano. Porém, o que a aparência dissimula é o que, de outra maneira, nos une. Ou seja, o que a aparência dissimula é o que nos uni de maneira orgânica: os órgãos internos. Todo Ser Humano tem um coração, um cérebro, etc., iguais uns aos outros. Eles podem ser, inclusive, transplantados em “outros” Seres Humanos. Ora, nota-se que nos uni é quase sempre imperceptível ao ver, ao sentir, ao palpar, ao escutar, do que nos diferencia, ou seja, a aparência. Porém, o perceptível e o imperceptível fazem parte integrante de toda realidade humana. Toda história individual incorpora uma parte desses conhecimentos, de um saber de estar no mundo. E nela se investe, se “fixa”, se “stereòs” (“rija”) grande parte de nossas “túpos” (impressões) ou sensações conscientes ou inconscientes. Além disso, nota-se também que o fato de pertencermos ao mundo feito de “impressões” implica um mundo de ação. As estruturas de base estereotípicas têm, também, uma estrutura simbólica. As estruturas simbólicas seriam as representações, os afetos individuais que influenciam nossa maneira de sentir o “mundo”, as coisas existentes no mundo. Ou seja, da relação de nossas representações e de nossos afetos surgem os gestos corporais, as palavras, que são maneiras de produzir, de comunicar nossos conhecimentos sobre as estruturas de base estereotípicos da personalidade individual e do mundo socioculturais existente. Assim, por pertencermos ao mundo sensível e ao mundo das ações, somos criadores de símbolos. Somos ao mesmo tempo herdeiros, produtores e criadores de símbolos estereotípicos. Tais símbolos estereotípicos são incorporados, conhecidos, reconhecidos, inventados, reinventados e adaptados em cada interação comunicativa. Consequentemente, existem várias problemáticas imbricadas nos estereótipos: 1) Problemas relacionados com percepções, sensações individuais de estar no mundo que induzem maneiras estereotípicas de viver; 2) Problemas relacionados com as estruturas de base estereotípicas que influenciam maneiras de se relacionar com o “mundo” e com o “outro”; 3) Problemas relacionados com a racionalidade, ou seja, as maneiras de agir no “mundo” e na vida dos “outros” Seres Humanos. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


Entre maneiras estereotípicas de viver e ações incorporadas em estereótipos, ou seja, maneira pela qual interiorizamos, produzimos e criamos estereótipos, eis aí alguns campos abertos pela questão de saber o que é um “estereótipo”. A análise etimológica do termo demonstra que o conceito tem uma relação com a estrutura da personalidade. Não podemos, aqui, entrar em detalhes sobre todas essas problemáticas. A análise do vocábulo deixa em aberto hipóteses amplas e gerais sobre a questão estereotípica e as estruturas de base

que podem ser abordadas em diversos domínios das ciências humanas e sociais. Entretanto, o importante é saber que introduzimos no título da matéria uma controvérsia. Se afirmarmos que vivemos em um mundo composto em parte por “estereótipos”, ou seja, vivemos no mundo de “impressões”, de sensibilidades que são fixadas de maneira prédeterminada, como explicar então a declaração segundo a qual o francês tornou-se “insensível” à discriminação estereotípica do “estrangeiro” ou do “emigrante” tipo?

EXEMPLO DE RECONSTRUÇÃO DE UMA ESTRUTURA DE BASE ESTEREOTÍPICA SOCIOCULTURAL: O ARGUMENTO DA “INSENSIBILIDADE” FRANCESA De maneira geral, o fato de viver em um mundo uma dimensão jurídica. Ela é “fixada” no decreto sensível onde estruturas de base estereotípicas do Conselho Constitucional Francês. Assim, a subdeterminam, de certa forma, maneiras de pensar, racionalidade epistêmica tem uma proposição ou de falar, de agir é, de meu ponto de vista, algo um julgamento prático “fixado” em uma norma normal. A normalidade vem justamente da dinâmica jurídica: o de “organização”, de “regulação” da sensível existente, não somente no interior de todo população “estrangeira” ou de “manter a ordem” Ser Humano, como também da relação sensível que social em um contexto ou situação determinada. estabelecemos com os “outros” Seres Humanos Mas havíamos ressaltado, também, que uma existentes no “mundo”. estrutura de base estereotípica sociocultural tem Paralelamente, a questão da “insensibilidade” um conteúdo. De fato, de acordo como o decreto introduzida pelos debates sobre o estudo sociológico de lei de 1993, o “controle de identidade” diz ressalta o problema das atividades implicadas nas respeito a “toda pessoa estrangeira” circulando estruturas de bases estereotípicas, nos processo de no território francês. Assim a manifestação de um uso, de produção dos saberes, dos conhecimentos, conteúdo estereotípico exprimir-se-ia na expressão das decisões, onde essas estruturas se exprimem de “toda pessoa estrangeira”. maneira “sensível”. E isso tanto nos comportamentos O conteúdo seria o aspecto universal da norma individuais quanto nas interações socioculturais ou jurídica. “Toda pessoa” significa seja ele quem for no mundo do trabalho. O problema é que muitas ou qualquer que for o comportamento. O texto vezes essa sensibilidade é recusada, ou seja, são jurídico “fixa” as regras de controle de identidade a ditas “insensíveis”. Eu me explico. “toda pessoa” e “estrangeiro”. O “reconhecimento político e institucional da O fundamento dessa estrutura de base natureza do problema” do “controle de polícia” estereotípica tem uma herança greco-romana existe na França depois de 1945. Eles fazem que se desloca na revolução francesa. Dentro das referência a condições de “regulação da entrada e tradições clássicas antigas é notória a classificação, estadia” dos “estrangeiros” na França. Os “controles ou seja, a diferenciação que se fazia entre “polis” de identidade” são feitos nos espaços públicos, nas do mundo grego e as pessoas vivendo dentro estações ferroviárias, nos portos, nos aeroportos dessas “polis”. Assim, na “polis” grega antiga, se e nas auto-estradas francesas. Se partirmos da diferenciavam a “polis” democrática e “barbaria” ideia de que a estrutura de base de um estereótipo associadas aos povos bárbaros vivendo fora da sociocultural tem uma forma, observa-se então que “polis”, e se diferenciavam, também, a “massa” e a a formalidade seria aqui a racionalidade social. “elite” do poder. De fato, essa racionalidade social compõeDiferenciavam-se, também, “cidadãos”, se de uma racionalidade epistêmica. Ou seja, a homens livres que desfrutam de direitos, “escravos” formalização de um “controle de polícia” tem – aqui se denega toda personalidade humana – e

o fato de viver em um mundo sensível onde estruturas de base estereotípicas subdeterminam, de certa forma, maneiras de pensar, de falar, de agir é, de meu ponto de vista, algo normal. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

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“meteco”, aquele que instalado entre (metoi koi) os “cidadãos” e os “escravos”, não tem nenhum direito. Ou seja, o meteco era um emigrante antigo. O direito romano faz da “polis” uma “societas”, a “sociedade” romana. O período revolucionário francês estabelece o princípio de “igualdade” de todos os cidadãos diante da lei. Nota-se, então, que a estrutura de base de um estereótipo sociocultural formaliza um saber, um conhecimento. No exemplo aqui presente seria, por um lado, um saber prático da vida social. Por outro lado, exprime um saber jurídico e ideológico que ele mesmo se enraíza em uma tradição sociocultural específica. Subjacente a essa estrutura de consciência está o viver em sociedade, a representação moral e jurídica do “outro estrangeiro”. Assim observa-se que, como criação, uma estrutura de base estereotípica sociocultural se apoia em uma convicção racional social: o aparelho racional institucional da nação francesa. Porém essa convicção racional repousa sobre uma razão sensível: um desejo intencional explícito. A finalidade do “controle de identidade” é o desejo de manter a “ordem social”, porém o que esse desejo explícito recalca é, de certa maneira, um receio implícito: o de “desordem social”. A análise demonstra que o argumento da “insensibilidade” tem uma força de convicção. É fato de se afirmar a “insensibilidade” francesa. Porém ela tem, também, suas fraquezas. Um exame minucioso demonstra que uma estrutura de base estereotípica sociocultural se apoia, de maneira interna, em uma relação estrutural racional social, epistêmica, prática e sensível. Além disso, observa-se, no caso dos “controles de identidade”, que uma estrutura de base estereotípica abrange uma pretensão, ou seja, o fato de que essa norma jurídica apoia-se em uma proposição ou julgamento “verdadeiro” ou “falso” de sua existência. Assim poderíamos afirmar que é “verdade” que os “controles de polícia” existem. Podemos afirmar, também, que eles obedecem a uma norma legal institucional, mas é “falso” dizer que o mundo político e institucional ignora a natureza do problema dos “controles de identidade”. É igualmente “falso” dizer que os franceses são “insensíveis” ao problema. Até aí o nível do problema dos “controles de polícia” se situam dentro de uma estrutura de informação tautológica. Porém, para abrir um questionamento sobre as estruturas de bases implicadas em um estereótipo, seria necessário abrir um horizonte comunicativo. Nesse sentindo, podemos questionar o conteúdo da estrutura de base de um estereótipo sociocultural: será que os policiais controlam “todas” as pessoas, “todos” os “estrangeiros”? 30

Observa-se, então, que o simples fato de uma questão abre um horizonte ao problema implicando na estrutura de base de um estereótipo sociocultural. Em ocorrência, os das relações socioculturais entre “policiais” e população civil em geral. De acordo com a lei os policiais devem controlar “toda pessoa estrangeira”. A expressão faz referencia ao princípio de “igualdade” republicana. Ora, o estudo sobre o “controle de polícia” e as “minoridades visíveis” deixa bem claro que, na atividade de trabalho, certos policias escolhem as pessoas que obedecem a características estereotípicas precisas. Dois pressupostos são evidenciados na atitude dos policiais. De um lado, o que está em questão é a atividade instrumental. Ou seja, as operações, os cálculos implicados na atividade do “controle de identidade”. O estudo mostra que um árabe tem 14,8 vezes mais risco de ser controlado que um branco; um negro 6,2 vezes a mais de ser controlado em um lugar público. Mostra-se, claramente, que as atitudes dos policiais fundamse sobre decisões, ou seja, sobre “impressões” precisas e “fixas” em estereótipos. Entre a decisão de escolher “toda pessoa estrangeira” que implica o princípio de igualdade e pessoas pertencentes a “minoridades visíveis” (negros, árabes e outros) que induz o princípio de desigualdade, os policiais escolhem como critério de controle de identidade as “minoridades visíveis”. De outro lado, pressupõe-se também que nessa decisão intervém a escolha de controle fundada sobre a “aparência”. Ou seja, aparência de “toda” pessoa “estrangeira” pertencente à população francesa e aparência das pessoas negras, árabes e outras. O ponto comum é que a “aparência” fisiológica das pessoas tornou-se um fator importante na decisão de um controle: os policiais fundam-se em estereótipos para a realização do trabalho de controle. Do meu ponto de vista, existem aí dois problemas intrinsecamente ligados com a “aplicação” de uma estrutura de base de um estereótipo sociocultural: 1) Problema relacionado à interpretação das normas jurídicas. É o que chamaria de atitude interpretativa estereotípica das normas e regras jurídicas. 2) Problema relacionado à discriminação estereotípica. Eles desacreditam definitivamente a tese da “insensibilidade” francesa. Assim, os policiais seriam não somente sensíveis a normas e valores jurídicos, isso porque eles utilizam essas normas e regras de maneira consciente na realização do trabalho de controle, mas ainda por cima eles as interpretam de maneira ilegal. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


1) Problema relacionado com a interpretação 2) Problema relacionado com a discriminação das normas jurídicas: agir racional estereotípica: o ato ilegal A ilegalidade da discriminação estereotípica O problema dos “controles de polícia” seletivos se encontra fixada na Declaração Universal dos diz respeito ao agir racional, ou seja, às decisões Direitos Humanos. O art. 1º dispõe que “todos orientadas visando atingir objetivos precisos de os seres humanos nascem iguais em dignidade e trabalho. Não somente os policiais são conscientes direitos”. Em junho de 2000, o jornal oficial da de que eles têm objetivos precisos a realizar, isto é, comunidade europeia publica uma diretiva relativa “controlar as pessoas”, mas o fazem ainda com mais ao princípio de “igualdade de tratamento entre cuidado. Ou seja, não só se empenham em cumprir pessoas sem distinção de raça ou origem étnica”. O as normas jurídicas, mas produzem “outras” normas direito de “toda pessoa à igualdade diante da lei” é que induzem à desigualdade social: o controle de um direito que visa proteger contra a discriminação. identidade fundado na “aparência” das pessoas. Essa diretiva vai ao senso dos direitos universais do Ser Humano. Observa-se que os “controles de identidade” Além disso, a atitude interpretativa das estão no centro das cotas produtivas de trabalho. normas e regras jurídicas dos policiais franceses Os policiais obedeceriam a um sistema de cota seria influenciada pela manipulação consciente produtivo. A eficácia, o sucesso do trabalho policial, das estruturas de base do estereótipo individual seria avaliada em parte segundo os objetivos fixados e sociocultural. São os negros, os árabes e as por essas cotas de produção. Ora, ninguém ignora “minoridades visíveis” que constituem o alvo que essas cotas de produção são produtoras de privilegiado dos “controles” policiais. Nesse sentido ilegalidade e desigualdade social: elas seriam uma é a “aparência” fisiológica que constitui a estrutura ameaça constante aos que prezam à “integração informativa receptiva “sensível” dos policiais. Falar social”. de “insensibilidade” seria uma forma de denegação de uma realidade discriminatória. A “INSENSIBILIDADE” E ESTRATAGEMAS SOCIOCULTURAIS Através desta análise de uma estrutura de base passiva, e o transformando em atividade estereotípica sociocultural pode-se constatar que “as pessoas tornaram-se insensíveis não é tanto o problema da “insensibilidade” que é o a esses controles”. centro dessas estruturas, mas sim da “normalidade” Nota-se, também, o estratagema e da “anormalidade” implicadas em uma atividade da denegação da realidade: recusade trabalho de “controle de identidade”. Observa-se se a “sensibilidade” e afirma-se que a normalidade é o resultado de um compromisso a “insensibilidade”. Constata-se, entre decisões visando atingir objetivos precisos de também, a presença do estratagema da trabalho e atitudes interpretativas das normas e amálgama estereotípica. Ela consiste regras jurídicas socioculturais. não somente em justificar um ato ilegal, Observa-se que no mundo do trabalho policial, o mas a “banalizar” uma ação discriminatória controle de identidade fundado sobre o estereótipo dentro de uma instituição. Na verdade, os funciona como um estratagema de trabalho. Eles argumentos de “insensibilidade” são estratagemas contribuem a conciliar o inconciliável: os objetivos de comunicação. Eles servem de suporte a uma de produções de controle de identidades, de manter racionalidade individual ou sociocultural a a “ordem social”. No mundo social, percebe-se justificar muitas vezes o injustificável. que as racionalizações fundadas em estruturas de O problema maior é que a base estereotípicas criam justificativas que visam racionalidade estratégica não “banalizar” a discriminação: é o fato de afirmar que para de produzir sintomas de o resultado do estudo sobre as “minoridades visíveis” estigmatização, de recalque, não é “nada surpreendente”. A racionalização cria de medo e de dominação também uma forma de “normalização” do ato consentida nas “minoridades ilegal: “todo mundo sabe que os controles de visíveis”. Ela reclama identidades existem, que eles são fundados sobre a análises mais profundas cor, a aparência, a maneira de vestir das pessoas”. e isso não somente da Observa-se, também, o estratagema da inversão parte das ciências sociais, ou transformação estereotípica no contrário. Assim, mais também das ciências recusa-se a realidade da sensibilidade, postura humanas. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

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Assim, no que diz respeito à polaridade estereotípica, toda questão está no referencial da “normalidade” em função da “anormalidade” de um ato. Nesse aspecto, a estereotipia discriminatória tem uma infinidade de funções. Podemos aqui citar três delas: 1) função dicotômica. Entre normas de direito que correspondem ao direito jurídico e normas privadas que são maneiras de interiorização e de interpretação das normas de direito positivo; 2) função produtiva. As normas privadas obedecem à necessidade de validação ou de invalidação; 3) função motivadora, ou seja, o fato de agir sobre a influência de um amálgama estereotípico. Em que diz respeito à significação dos estratagemas, me parece importante que muitos deles sejam identificados na superdeterminação e na coprodução de estereótipos como forma de conhecimento sobre o indivíduo, sobre o “outro”, e isso tanto na vida individual quanto na vida sociocultural. Todo problema da estereotipia se situa, em parte, na dinâmica sensível existente na relação de uma pessoa com o “mundo” ou o “outro”. Uma dimensão normal da existência. De outra parte, na dinâmica sensível implicada nas estruturas que influenciam o comportamento individual, social ou laboral, que são estruturas individuais ou sociocoletivas sensíveis modificas ou que se fixam e que servem como instrumentos de manipulação individual ou social.

O problema, então, não é tanto da sensibilidade ou da “insensibilidade” estereotípica, do reconhecimento ou do não reconhecimento, e sim da estrutura polar da “normalidade” e da “anormalidade” que estão fundamentalmente implicadas nas estruturas estereotípicas. Existe, também, o problema de validações de uma estrutura de base implicado dentro de um estereótipo. O fato de aceitar ou recusar padrões sociais que se referem a normas e valores injustos, ilegais ou malfeitores, ou seja, o fato de dizer “sim” ou “não” ou de se abster de uma ação implicando num estereótipo que se julga normal ou anormal, legal ou ilegal, bom ou mal, pode mudar radicalmente uma maneira de ser de uma estereotipia discriminatória. Em suma, se nas estruturas de base estereotípicas aparecem maneiras de pensar, de falar sobre os valores, convicções e crenças socioculturais é, de meu ponto de vista, um fenômeno “normal”. O que me aparece “anormal” é o conjunto de fatores implicados em certas atividades socioculturais. Ou seja, são as condutas metódicas fundadas em estereótipos, são os fundamentos motivadores das ações. Em primeiro plano, as ações interpretativas e as ações manipuladoras fundadas sobre a consciência do “outro” e da instrumentalização que certos indivíduos fazem das normas e das regras jurídicas institucionais. Entre eles, a amálgama entre normas jurídicas, prescrições e avaliação de normas e regras jurídicas.

Todo problema da estereotipia se situa, em parte, na dinâmica sensível existente na relação de uma pessoa com o “mundo” ou o “outro”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar da brevidade desse estudo é possível tecer algumas considerações sobre a questão estereotípica. Um estereótipo é um objeto do mundo. Como todo objeto do mundo, ele pode se investir de formas e conteúdos diversos. As estruturas estereotípicas seriam associadas aos nossos conhecimentos sobre nós mesmos, sobre o “mundo” ou sobre o “outro”, interiorizadas de maneira pré-construída. Nesse sentido, o objeto estereotípico oferece um produto simplista “pronto para pensar e sentir”. Eles são, e isso de maneira econômica, um objeto pronto para nos economizar uma reflexão pessoal, o que explica essa maneira esquemática e simplista de pensar o “Brasil, como terra de acolho” de certas mídias francesas.

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Porém observa-se, também, que o estereótipo traduz uma inscrição na maneira sociocultural de pensar. História política, socioideológica, relação estereotípica com o “outro”, elementos que mostram maneiras de se servir, de manipular um estereótipo. Servir-se do estereótipo como fonte de prazer ou de sofrimento para si mesmo ou para com o outro. Esse fenômeno está em grande parte implicado no uso do estereótipo como objeto de racionalidade pessoal, sociopolítica e institucional. Assim, se os estereótipos servem a justificar comportamentos “normais”, nossas observações tendem a mostrar que eles são, na verdade, pervertidos e racionalizados para justificar um “mal”, um ato injusto social, como também um tratamento injusto com uma “outra” pessoa ou a um grupo de pessoas vindas de universos culturais diferentes. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


Nesse sentido, os estereótipos são ambivalentes: se eles servem para rasurar, para tranquilizar, servem também para racionalizar uma ação ilegal ou reforçar uma dominação sociocultural, de um ser sobre outro ser. Por outro lado, se existe um determinismo estereotípico pré-fabricado, nada nos impede de compreender o que está em jogo em um estereótipo. A contingência estereotípica abre um espaço de liberdade, de autonomia. Por exemplo, comunicar, relacionar-se, pensar, interrogar-se se um estereótipo é “verdadeiro”, “justo”, “equitável”, “coerente”, “benfeitor”, etc. Isto não somente para si mesmo, para o mundo dentro do qual vivemos, mas também na nossa maneira de nos relacionarmos com o “outro”. Finalmente, qual seria a utilidade de analisar as estruturas de base de um estereótipo? Do meu ponto de vista, o importante é a compreensão pela(s) pessoa(s), do comportamento implicado dentro da estrutura de base de um estereótipo. Existe também o fato da identificação das estruturas de base estereotípicas individuais ou socioculturais implicadas nas atitudes conflituais. Eles poderiam servir de suporte de análise ao tratamento utilizado. Além disso, do ponto de vista psicossociológico, a questão crucial sendo o da “integração social”, o foco analítico da estrutura de base estereotipia, deveria estar no(s) problema(s) subjacente(s) à desintegração social, nos sintomas de estigmatização, de recalque, de fobia patológica persistente e de dominação consentida, que muitas vezes se encontra na população estrangeira ou emigrante. O foco analítico da estrutura de base estereotípica abriria um horizonte de possibilidades novas, indo da necessidade de desenvolver estratagemas mais saudáveis a lidar de uma maneira mais madura com os problemas que se colocam ao Eu ou Ego, ao Superego ou à consciência moral.

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AUTOR Fernandes de Andrade Franco-brasileiro, trabalha e mora em Paris desde 1983, psicólogo clinico formado pelo Conservatoire des Arts e Métiers (CNAM) de Paris, psico-sociólogo formado pela Ecole de Hautes Etudes en Science Sociales (EHESS). Autor de vários estudos sobre a questão intercultural para à Marie de Paris. Atualmente trabalha para France Télévision onde exerce como consultante na área clínica de desenvolvimento professional. Ministra regulamente palestras e cursos na França e no Brasil nas áreas da interculturalidade dentro do desenvolvimento profissional. Email: fernand.joseph.deandrade@wanadoo.fr Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

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COMPORTAMENTO

BAILARINAS

COM SAPATILHAS DE CHUMB

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enho escutado vozes, dessas que fazem dos fatos outrora não discutidos o trampolim do oportunismo; desses que, de tempos em tempos, estabelecem aos comportamentos, bem como às personalidades, estigmas, gerando a desconfiança coletiva e a análise superficial que formam o preconceito e desencadeiam uma série de situações onde, seres pensantes, são colocados à prova por alguns “seres demasiadamente humanos” para que sejam, através de uma intensa mobilização, expostos aos discursos maquiados com a “excelência” dos títulos e com a prepotência das falas treinadinhas repletas de frágeis razões, cujo intento, nada mais é que formar sujeitos com sentido e objetos dóceis. Esses, mais tarde, farão o mesmo aos seus filhos, tornando-os emudecidos pelo baixo preço pago por aquilo que eles poderiam fazer de melhor e, mesmo que nada fizessem, seriam muito melhores. Bom, se tenho escutado vozes, (hummm) devo ser esquizofrênico, e, se o for, caso assim seja considerado, será ótimo, pois, tudo que eu disser poderá à luz da hipocrisia científica ser considerado apenas alucinações e delírios. Certamente, então não haverá motivo para nenhuma galhardia histérica, afinal, “tudo não passará de um mal entendido” diante dessa sociedade póscontemporânea onde tanto classificam quanto definem da forma como convêm, diante das inúmeras propostas e, proporcionalmente, não posso quantificar o número de desacertos, mas, qualitativamente, penso que tudo está aí diante de quem ainda dispõe enxergar.

Deixe para os nossos burocratas e para a nossa polícia ver se nossos papéis estão em ordem, ao menos, nos livrem da moralidade quando escrevemos”. Michel Foucault

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Semana passada, ouvi em inúmeros lugares, pessoas conversando sobre a possibilidade de seus familiares apresentarem personalidade psicopática (sociopatia, transtorno dissocial ou transtorno sociopático), afinal, há em uma novela, determinada pessoa que discorre em suas aulas as características, traços e sintomas, bem como, “o grau de periculosidade” que tais indivíduos apresentam à sociedade. Pode ser interessante que discussões estejam sendo formadas, entretanto, torna-se visível que tais informações quando não aprofundadas podem estabelecer grandes feridas em decorrência dos estigmas e preconceitos que vão sendo definidos, afinal, quantos foram os que abandonaram-se a si mesmos em virtude da forma como sentiram-se tratados em determinados momentos, deixando de manifestar qualidades e passando a vê-las como sinalizadores de algo que os pode deformar, levandoos a verem-se como elementos que a qualquer momento podem cometer algum desatino. Quantos deixaram de manifestar as diferenças, essa bela grandiosidade que nos engrandece nesse mundinho de “tão certinhos e tão normais”, onde os comportamentos, bem como, os conceitos padronizados, nada mais fazem, senão facilitar o trabalho dos controladores sociais e seus associados, além do grande mercado que vende soluções mágicas e prazeres imediatos. São os olhos que não nos perdem de vista, o panóptico que nos vigia, esperando apenas um breve momento para fazer de nós os mais novos execrados, proprietários de uma classificação definida e preparada para inserir-nos em um grupo controle. O tema de tão grande enfoque, nesse momento, fez com que uma revista de grande circulação, em sua última edição, trouxesse a entrevista de um psicólogo canadense, criador de uma escala que ele acredita mensurar graus de psicopatias. Não vou me ater a discutir o PCL-R, método desenvolvido por Robert Hare. Precisaria de mais informações e pelo visto, assim como a emissora da novela, tal revista, também de forma superficial, traz um assunto de grande seriedade, afinal, trata-se de pessoas, independente se elas apresentam ou não transtornos de personalidade ou qualquer outro. Muito bem, convincente e próprio ao momento, mas, por que tais assuntos, que não são observações recentes, vieram justamente nesse momento onde o mundo desintegra-se em sua farsa de prosperidade econômica, social, cultural, religiosa entre outras que preconizavam uma humanização além do bem e do mal? 36

Conhecemos, na microfisica do poder, as engendradas redes e as relações de poder que as aproximam e, ao mesmo tempo, as comprometem; entretanto, diante das características próprias a todos nós, torna-se extremamente oportuno aos que estão ameaçados ecomicamente-socialmenteculturalmente-religiosamente criar e propagar um olhar de desconfiança, medo e exclusão em relação a quem se apresenta aos demais, não conformado, nem mesmo, silenciado, nem tampouco, contido naquilo que acredita e o faz percebido pelas diferenças que não nega. Não me preocupo com os que fazem da produção do discurso científico o único argumento para provar alguma coisa, explicando aquilo que crêem; mas, se assim eles fazem, os compreendo, mas, não vejo porque silenciar-me diante de tal limítrofe mundinho. Obviamente, reconhecemos o papel e a importância de algumas descobertas, principalmente quanto aos processos neurocientíficos, entretanto, sabemos que aquilo que não pode ser visto, por nenhum mecanismo incomoda e perturba a aparente sutil e tão bem educada ciência, tornando algumas descobertas diante da complexidade dos fenômenos psíquicos, bem como, os processos subjetivos e determinados processos neuroquímicos, verdadeiras bailarinas com sapatilhas de chumbo, preparando passos que não saem do tablado e, pelo visto, não atingirão o ápice do complexidade psíquica que não mostra, mas permite-se ser analisado e interpretado, porém, jamais ser definida de forma tão cartesiana. A liberdade assusta e atormenta justamente por que somente passa a existir diante da possibilidade em libertar os que se sentem cativos em “suas crenças”, surpreendendo o discurso construído sob uma razão frágil e punitiva, essa mesma que aí está tentando fazer das diferenças a mais nova vítima da intolerância, cujo intuito nada mais é que promover padrões e modelos que facilitem o desempenho dos controladores sociais e seus associados.

AUTOR Marcus Antônio Britto de Fleury Junior CRP 09/4575 Psicólogo e coordenador do Atelie de Inteligência. E-mail: ateliedeinteligencia@gmail.com

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O CONHECIMENTO CIENTÍFICO NA ÍNTEGRA A discriminação feminina TAG: a ansiedade generalizada Chorar faz bem Drogas e a redução de danos ... e muito mais...

Paternidade Punição na adolescência A educação no ambiente hospitalar ... e muito mais...

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RELACIONAMENTO

PSICOLOGIA DO AMOR

a relação amorosa contemporân entre o homem e a mulher

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ste artigo é uma análise crítica voltada para a compreensão dos fenômenos amorosos entre o homem e a mulher. Tratase de um estudo baseado na descrição de uma capa de revista representada pela figura de uma mulher intitulada “mulher alfa”, caracterizando uma suposta feminista feminina. O trabalho percorre a história no que se refere às muitas concepções que existiram sobre a relação amorosa, passa pelas conquistas femininas, chegando até os dias atuais. Utiliza as teorias de Sigmund Freud para explicar que as consequências das conquistas femininas e o aumento do explicitamento dos desejos femininos vêm provocando mudanças na subjetividade da mulher e, consequentemente, no homem ao se reposicionar perante essas mudanças. 38

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Este trabalho foi realizado em um projeto de iniciação científica denominado “Psicologia do Amor: O Homem, a Mulher e a Sexualidade”, do Centro Universitário de Santo André Anhanguera. Realizamos uma pesquisa tendo como tema “O Encontro Amoroso Contemporâneo”. Dentro deste tema tomamos como objeto de estudo a forma da mulher amar e ser amada pelo homem. O estudo realizado foi fundamentado por intermédio de pesquisas descritivas, com base em textos psicanalíticos de Sigmund Freud, assegurando a tentativa de um trabalho de caráter qualitativo. Tivemos como objetivo descrever e analisar o feminino, ou melhor, a mulher da atualidade que, a partir da revolução feminina, após mudanças subjetivas nas mulheres, produziu mudanças na maneira de homens e mulheres se relacionar. O corpus de trabalho utilizado para a análise foi uma capa de revista, que caracterizava, segundo a proposta da mesma, um tipo de mulher moderna, intitulada “mulher alfa”. A capa destacava uma mulher de terno, cabelos curtos, unhas curtas, fumando um charuto, retratando essa suposta mulher, e os seguintes dizeres: “Ela nasceu com as conquistas do feminismo. É independente, mas precisa de um companheiro. E não se importa em ser admirada pela beleza. Ela é a Mulher Alfa”. (Revista Época, 2007). Além disso, foram utilizados alguns trechos da matéria, a qual a capa apresentava. De acordo com a revista essa suposta “mulher alfa” não é uma feminista radical, apenas leva consigo alguns aspectos e descartam outros, apesar de também ser independente financeiramente, conquistar espaços antes pertencentes aos homens e lutar por direitos iguais aos deles, não descarta a necessidade de ter um companheiro, como muitas feministas diziam descartar. De acordo com a pesquisa da revista, as mulheres que se enquadram nessa categoria são caracterizadas por serem “... uma combinação entre a figura da feminista clássica, aquela surgida nos anos 60, que, para conquistar espaço e independência, teve de ser durona, agressiva e por vezes masculina, e a mulherzinha dos anos 90...” (Revista Época, 2007). Em torno dessa suposta nova mulher a revista aponta que há grande admiração, respeito e esperança, além de depositarem grandes expectativas da parte das mulheres, dizem ser pessoas com grandes capacidades e qualidades que as mulheres anteriormente não possuíam, como as que seguem:

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“... criatura nascida para ser líder, dona de uma segurança e uma auto-suficiência sem precedentes, competente na vida acadêmica e no universo profissional. Um tipo de mulher que nasce pronta para enfrentar tudo, capaz, também, de viver sem eles...” (Revista Época, 2007). A partir das características dessa suposta mulher, ou melhor, essa idéia sustentada pela revista, levantamos a seguinte questão: como poderia ser a relação entre essa e um homem? FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para pensarmos sobre isso se fez necessário primeiramente entender como vem se estabelecendo a relação amorosa e desejante entre o homem e a mulher no decorrer dos tempos. Podemos considerar que esse tema em hipótese sempre foi uma questão para ambos os gêneros, notamos que houve, de acordo com a história, muitas concepções: através do amor cortês com a idealização da mulher; em “O Banquete”, Platão escreveu sobre quando os homens se reuniam para falar sobre o amor; na Grécia antiga existia o amor culto que se refugiava em outra parte, isto é, no homossexualismo; na época da santa inquisição, muitas mulheres foram consideradas bruxas e queimadas na fogueira, aquelas que demonstravam erotismo ou aquelas que fabricavam poções, sendo que os homens também fabricavam, mas eram chamados de magos, e mais adiante chamados de farmacêuticos; e há uma ou duas gerações antes da nossa em que a mulher era submetida e depreciada pelo homem. A partir deste breve resgate histórico podemos supor que a mulher vem representando possível medo no homem, como se fosse um perigo a ele e, que, devido a isso o machismo parece ter sido utilizado para negar muitos direitos às mulheres, como o direito ao voto, ao prazer sexual, ao trabalho fora de casa, etc.; e com tudo isso alguns homens achavam possuir controle sobre as mulheres, inclusive com essas maneiras de lidar com o feminino houve um tempo em que a nosografia da histeria era muito comum entre as mulheres, como uma forma de expressão de seus desejos. Freud (1918) mencionou sobre esse receio do homem em relação ao misterioso ser que é a mulher, apontando-a como um ser muito diferente do homem, sendo um tabu que talvez nunca seja desvendada por completo por serem muitos os mistérios que estão em torno dela: “... Talvez este receio se baseie no fato de que a mulher é muito diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa, estranha, e, portanto, aparentemente hostil. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado por Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


sua feminilidade e, então, mostra-se ele próprio incapaz...” (pág.206). E parece que os homens concordam com Freud sempre que utilizam a frase popular “eu não entendo as mulheres!”. Apesar do homem sempre ter procurado maneiras para lidar com o “enigma do feminino”, com o “continente negro” (Freud, 1926) que é a vida sexual das mulheres, com o surgimento do feminismo a mulher não aceitou mais essa posição de repressão. Podemos supor que com essa mudança subjetiva, ela tenha passado a representar mais perigo que antes, se tornando tão independentes que até diziam que não precisavam de homens para nada, havendo um enorme crescimento no campo do trabalho e da vida pública, e ainda, de um maior explicitamente dos seus desejos, houve muita criação e inovação de objetos sexuais masturbatórios femininos. Cabe mencionar sobre o fato da mulher sempre ter lutado para ser emancipada, Freud (1918) apontou, através da teoria do complexo de castração, que as lutas pela emancipação e as produções literárias nada mais são do que uma indicação da amarga hostilidade da mulher contra o homem por causa da inveja do pênis. Assim, considerando que Freud se refere ao pênis não apenas como um órgão do corpo humano, mas ao que representa, ou seja, a mulher não inveja o pênis, mas tudo o que se refere ao homem, podemos supor que as feministas explicitam, inconscientemente, a grande inveja pelo pênis e ainda um complexo de masculinidade, ao querer fazer e ter tudo o que o homem faz e tem, se vestir como homem, cortar o cabelo como tal, tomar atitudes antes masculinas, fazer convites sexuais, tomar iniciativas, etc. Levando em consideração os apontamentos de Freud (1932) sobre o funcionamento da feminilidade, a menina, a partir do complexo de castração, escolhe uma entre três possíveis: uma conduz à inibição sexual, abandonando sua atividade fálica, ou à neurose; a outra à feminilidade normal; e a outra à modificação do caráter para um complexo de masculinidade,

desejando por toda a vida conseguir um pênis e se tornar um homem. Analisando alguns trechos da matéria, parece que podemos reafirmar as nossas hipóteses quanto ao que a capa representa, segundo a revista, as supostas mulheres alfa “... gostam de ter um companheiro, mas não precisam da maternidade para se sentir completas...” (Revista Época, 2007), o que pode significar a não feminilidade normal, em que transfeririam o desejo pelo pênis para o desejo de terem um filho, mas acabam por desejar sempre ter o pênis, querendo ser como os homens, sem necessariamente partir para a homossexualidade, segundo Freud (1932) “...a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis...” (pág.128). A mulher alfa de fato não existe, mas a revista fez uma mistura das características individuais de cada uma das mulheres entrevistadas, colocando o resumo como um novo tipo de mulher, como se esta existisse realmente. Cada uma possuía algumas das características específicas para ser “mulher alfa”, algumas eram empresárias, outras eram funcionárias; algumas eram casadas, outras divorciadas, outras solteiras; algumas diziam não precisar da maternidade, outras eram mães; enfim, várias características diferentes, porém nenhuma delas possuía exatamente todas as características dessa suposta nova mulher. No entanto, algumas realmente sustentavam essa idéia, achando que realmente eram esse tipo de mulher ideal, como um modelo teoricamente perfeito para elas mesmas. Apesar dessa mulher não existir, com o crescimento do feminismo já notamos mudanças subjetivas nas mulheres e consequentemente nos homens, pois estes precisam aprender a se reposicionar perante essas mulheres, o que dificulta a relação amorosa contemporânea. Então, respondendo a questão inicial, podemos considerar que se as mulheres se tornassem esse tipo de

“... criatura nascida para ser líder, dona de uma segurança e uma auto-suficiência sem precedentes, competente na vida acadêmica e no universo profissional. Um tipo de mulher que nasce pronta para enfrentar tudo, capaz, também, de viver sem eles...” Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

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mulher, grande parte dos homens não conseguiria desejá-las, pela falta da depreciação, já que um dos principais fatores que levaram o feminismo a alterar a subjetividade dos gêneros nos relacionamentos é o fato de dificultar a depreciação. Freud (1910) apontou que a depreciação do homem sobre a mulher faz-se absolutamente necessário para que o homem consiga desejá-la, ou seja, somente a colocando na posição de objeto depreciado é que o homem consegue obter o controle da relação e o prazer necessário:

Freud (1910) apontou essa necessidade de alguns homens colocarem a mulher numa posição inferior a ele, podendo ser “... uma mulher eticamente inferior, a quem não precise atribuir escrúpulos estéticos” (pág. 191), questão que diz respeito à depreciação sexual, no caso de envolvimento com uma prostituta ou alguma mulher que tenha valores colocados em dúvida, mas também em relação a outros fatores como classe social, isso é freqüentemente notado na tendência dos homens das classes mais altas da sociedade, a escolher uma mulher de classe mais baixa para sua amante permanente ou mesmo para “...quando amam, não desejam, e quando sua esposa. Isso porque qualquer semelhança que desejam, não podem amar. Procuram objetos a mulher possa ter com a mãe, pode lhe trazer a que não precisem amar, de modo a manter sua lembrança da estrutura edipiana em que viveu; por sensualidade afastada dos objetos que amam... isso ele precisa criar personagens para a mulher, Logo que se consuma a condição de depreciação, a “disfarçá-la” e torná-la inferior a ele. sensualidade pode se expressar livremente e podem se desenvolver importantes capacidades sexuais e alto grau de prazer” (pág.189).

CONCLUSÃO Em relação à mulher alfa, considerando o que Freud disse sobre a necessidade da depreciação para o homem desejar a mulher, nos parece que isso é difícil ocorrer se essa mulher fosse uma “alfa” que biologicamente significa “a mais forte da espécie” e, sendo a mais forte, dificilmente poderia ser depreciada e desejada satisfatoriamente; se trataria de uma mulher mais forte, mais segura, que explicitaria seus desejos, totalmente independente, não precisando de homem para quase nada, e que por isso causaria ainda mais receio aos homens. É possível que, inclusive, a falta desse importante fator, a depreciação, seja um facilitador para a ocorrência de algumas questões da atualidade como: impotência sexual, solidão, depressão, ansiedade, suicídio, crescimento na diversidade das formas de satisfação sexual, etc., porém isso ainda não está sendo claramente percebido, pelo fato de que, aparentemente, é uma situação que favorece a mulher, muitas mulheres querem mais mudanças, inclusive ser “mulheres alfa”. Isso não significa que as mulheres não possam ser bem sucedidas financeiramente; que não possam ocupar o papel de chefe de família; que sustente a casa enquanto o marido cuida dos filhos; que não possam tomar iniciativas ou demonstrar a sexualidade. O importante é a identificação da subjetividade de um homem com a de uma mulher, já que, como vimos, para alguns a depreciação da mulher é necessária para que o homem possa desejá-la, o que não pode ser simplesmente da ordem do imaginário, mas algo natural e inconsciente. E essa naturalidade na busca pelo amor, ou seja, a busca constante de um sexo pelo outro, conforme apontou Platão (1991) ao mencionar o “Mito do Andrógino”, parece que será incessante, tanto o homem quanto a mulher continuarão a buscar um pelo outro, sem necessariamente entender os fins e os meios para isso. Contudo, não cogitamos a hipótese de que a estrutura da sociedade vai se modificar, tampouco que a espécie humana irá se extinguir por conta das mudanças na subjetividade de ambos os gêneros. No entanto, tanto homens quanto mulheres precisam perceber e entender o funcionamento uns dos outros para continuarem percorrendo o caminho incessante pelo amor por meio da naturalidade, evitando, assim, desvios pelo caminho e consequentemente diversos sofrimentos. 42

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREUD, Sigmund. “Sobre a Tendência Universal a Depreciação na Esfera do Amor (Contribuição a Psicologia do Amor I)” (1910). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XI. Imago Editora: Rio de Janeiro. _____, Sigmund. “Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens (Contribuições à Psicologia do Amor I)” (1910). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud.. Vol XI. Imago Editora: Rio de Janeiro. _____, Sigmund. “O Tabu da Virgindade (Contribuição a Psicologia do Amor III) (1918)”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XI. Imago Editora: Rio de Janeiro. _____, Sigmund. “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XIX. Imago Editora: Rio de Janeiro.

_____, Sigmund. “A Questão da Análise Leiga: Conversações com uma Pessoa Imparcial” (1926). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XX. Imago Editora: Rio de Janeiro. _____, Sigmund. “Fetichismo” (1931). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XXI. Imago Editora: Rio de Janeiro. _____, Sigmund. “Sexualidade Feminina”. (1931). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XXI. Imago Editora: Rio de Janeiro. _____, Sigmund. “Conferência sobre Feminilidade” (1932). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Vol XXIII. Imago Editora: Rio de Janeiro. PLATÃO. “O Banquete”. Edições 70: Lisboa, 1991. REVISTA ÉPOCA. Edição de Março, 2007. UNIVERSO DA MULHER. universodamulher.com.br.

AUTORES Raquel de Freitas Silva Cardim | Estudante de Psicologia do Centro Universitário de Santo André Anhanguera, Santo André/SP, reside em Mauá/SP | E-mail: raquelpsique@ig.com.br Rosa José de Sousa | Estudante de Psicologia do Centro Universitário de Santo André Anhanguera, reside em São Bernardo do Campo/SP | E-mail: rosasspecial@yahoo.com.br Orientador | Daniel Migliani Vitorello | Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, estudou filosofia na Universidade Metodiasta de São Paulo e psicologia no Centro Universitário de Santo André, onde leciona e coordena os cursos de extensão em psicanálise. Professor e psicólogo escolar no Colégio São José. Professor no Colégio Rainha da Paz. Tem experiência na docência em psicologia e filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise freudiana e lacaniana, clínica, constituiçào do sujeito, filosofia contemporânea e epistemologia.

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GESTÃO DE PESSOAS

ESQUEÇA O CULPADO H

á ocasiões em que situações não programadas acontecem e podem ser encaradas como oportunidades ou tragédias, porém, de fato, mudam completamente nossa vida. Geralmente são momentos decisivos e verdadeiros, reais divisores de água na nossa busca da felicidade ou das nossas realizações.

O importante é que pare de apontar o dedo, lembre-se que quando aponta, um dedo é direcionado ao outro, mas os outros quatro voltam em direção a você.

Pense o pior que pode acontecer. Pensou? Você ainda está vivo? Então tem solução, mesmo que demore um pouco mais. Se você quer realmente Você já passou algum momento assim na sua retomar o rumo e seguir seu caminho, mire no vida pessoal ou profissional? sonho e não se desvie do alvo. Os obstáculos fazem parte do caminho e você inclusive já devia tê-los Como você reagiu? Fez da lima uma limonada previsto. Não é vidente, eu sei, mas deve ser no ou conseguiu deixá-la ainda mais amarga? mínimo um pouco estratégico para analisar, forças, fraquezas, obstáculos e ameaças. O mais importante nestas situações é de que forma reagimos a ela, principalmente se for Agora se lembre que apesar de tudo, é uma realidade imutável! A tendência da maioria empolgante lutar. Não se preocupe neste momento das pessoas é procurar culpados, entendo que em vencer ou perder, pense em ultrapassar o você tenha esse ímpeto, mas terei dificuldade de obstáculo e continuar em direção ao alvo. entendê-lo se teimar em continuar fazendo. Pare de procurar quem foi, canalize suas forças e sua Pare de pensar no outro, pare de procurar energia para resolver o problema e não para achar culpado, senão corre o risco de deixar a solução o culpado! passar bem debaixo do seu nariz. Sucesso sempre! AUTORA Ana Artigas | CRP 08/05494 Psicóloga, Diretora de Projetos da Tekoare Vending e Entretenimento Corporativo, Especialista em Carreira Email: ana@tekoare.com | Site: www.tekoare.com 44

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MOTIVACIONAL

O MEDO DE ERRAR A vida é surpreendente, pois nunca se sabe quando ocorrerá uma importante aprendizagem abrindo portas a horizontes até então desconhecidos. E foi assistindo a um ensaio de uma orquestra jovem que compreendi um aspecto crucial ao desenvolvimento humano. O maestro que ali regia os músicos, preparando-os para uma apresentação que se aproximava, interrompeu-os, dizendo: “Percebo que alguns estão tocando com medo, deixando a música sem vida! Não tenham receio! Toquem pra valer! Se tiverem que errar que errem feio! Só assim conseguiremos extrair a beleza que a música oferece!”. A sua intervenção causou um silêncio profundo naquela sala, e ao mesmo tempo provocou um intenso barulho dentro das várias cabeças ali presentes, forçando-as a refletir sobre o medo de errar. Assim, o ensaio prosseguiu mais vigoroso. Alguns dias depois, novo fato me estimulou a rever o caso ao assistir pela televisão uma apresentação de patinação artística no gelo. Algumas jovens patinadoras eram avaliadas por um júri bastante crítico. Os dois comentaristas do evento apontavam o receio que a maioria delas tinha em errar, preocupadas em não cair na pista, levandoas a certo engessamento durante as coreografias. Uma delas, contudo, segundo eles, chamava a atenção por sua conhecida ousadia, coisa que lhe rendeu um colossal tombo, tal como se previra. A moça não hesitou, e logo continuou a apresentação. Ao final, de acordo com a soma dos pontos, adivinha quem venceu a disputa? Justamente ela, a corajosa, que se expôs muito, mas brilhou bem mais. As outras não caíram no chão (talvez tivessem se petrificado de vergonha ante tal cena), porém empalideceram diante da colorida e viva apresentação daquela que tombou, perdeu pontos, mas ganhou. Fui tomado por uma convicção e disse a mim mesmo: “o maestro estava certo!”. Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009

Por que temos tanto medo de errar, se é através do erro que alcançamos o aperfeiçoamento e algumas vitórias na vida? O que nos leva à sujeição da mediocridade se há tanto a conquistar? Que razões nos impedem de transitar do pouco ao muito? Quem nos obriga a permanecer na sombra, com tanta luz ao redor? Por que nos engessamos na vida profissional ao apresentarmos coreografias tão tímidas e limitadas? Que tipo de estímulo nós oferecemos aos nossos filhos: empobrecido talvez? Será que assim também cerceamos o desenvolvimento da nossa motivação ao reduzir as metas e possibilidades de conquistas a que temos tanto direito? Que mal há em cair no chão ao tentar superar-se? O que há de errado com o erro? Quem define os limites das nossas conquistas? O medo de errar é maior do que a esperança de ultrapassar as próprias limitações? Quem pode tocar, com ânimo e coragem, o instrumento da evolução, autorizandose a vibrar exuberantes notas do crescimento que impressionam por sua magnitude? O maestro estava certo! AUTOR Armando Correa de Siqueira Neto é psicólogo (CRP 06/69637), palestrante, professor e mestre em Liderança. Coautor dos livros Gigantes da Motivação, Gigantes da Liderança e Educação 2006. E-mail: selfcursos@uol.com.br

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COLUNA ATLASPSICO

oH, Shift! Caps Lock, não! P

ossivelmente você já deve ter recebido algum email ou uma mensagem de texto de celular com as letras todas em caixa alta. Quando um texto aparece todas maiúsculas é porque o remetente deixou a tecla “caps lock” ativada. Escrever um email ou mandar mensagens de texto com todas as letras em maiúsculas pode acarretar problemas futuros, como aconteceu recentemente à uma funcionária da Nova Zelândia. Vicki Walker trabalhava numa empresa de plano de saúde. O e-mail tratava de uma lista para checar o preenchimento de formulários e alguns itens estavam destacados em caixa alta, em negrito e na cor azul aonde dizia: "PARA GARANTIR QUE O REEMBOLSO DO SEU PESSOAL SEJA PROCESSADO E PAGO, POR FAVOR SIGA A LISTA ABAIXO".

evitar negrito. Caixa alta pode expressar uma excitação, um frisson, uma alegria em receber o email de uma pessoa ou parabenizá-la de alguma conquista, em contrapartida, também pode expressar toda sua ira ou raiva. Depende muito do contexto e o tom da conversa. Caixa alta e em negrito é como A empresa alega que demitiu sua contadora se estivesse gritando ainda mais alto. O tamanho da porque sentiu um tom rude no email e que fonte também é importante: se colocar algo acima gritava com os demais funcionários e que seu de 12 ou 14 pontos, potencializa ainda mais sua comportamento online desencadeou muita indignação ou raiva. desarmonia entre a equipe. Mas nem toda caixa alta significa que a pessoa Um exemplo mais próximo, aconteceu também está gritando. Título de email e de artigos ou com a Rainha dos baixinhos, a Xuxa, ao postar uma palavra no corpo do texto serve apenas para mensagens no seu twitter em caixa alta ao comentar destacar algum termo e para chamar a atenção. com os internautas um convite do Zeca Pagodinho: Cada um com seu JEITINHO. “ZECA CHAMOU PRA IR A XEREM. E ELE JA SABE EU NAO BEBO, NAO FUMO E NAO COMO CHURRASCO, MAS FICO COM AS CRIANÇAS. TIPO BABÁ.VOU AMAR XEREM.” Após os internautas avisarem que ela (Xuxa) estava gritando no twitter, ela responde: “EU NÃO ESTOU GRITANDO, NEM QUERO SER MAL EDUCADA, GALERA. SEMPRE QUE ESCREVO NO COMPUTADOR, ESCREVO ASSIM. É O MEU JEITINHO!”

AUTOR

Márcio Roberto Regis | CRP 08/10156 Psicólogo Especialista em Psicologia Clínica Comportamental pela Universidade Tuiuti do Paraná e MBA em Gestão Estratégica de Pessoas - RH na Faculdade OPET (em curso). E-mail: atlaspsico@atlaspsico.com.br

Na internet ou mensagens de texto de celular, o ideal é não escrever em caixa alta e principalmente, 46

Revista de Psicologia ATLASPSICO nº 16 | out 2009


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