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AS FORMAS DE VERIDICÇÃO E A PARRESÍA SOCRÁTICA NAS PRIMEIRAS PRELEÇÕES DE FOUCAULT NO CURSO “A CORAGEM DA VERDADE”

Lília Barbosa Xavier Filosofia /UFCA lilianbx@hotmail.com

Geislane Lopes Rodrigues Filosofia /UFCA geislanelopes@outlook.com Jonathan Sales da Silva Filosofia /UFCA jonascoroinha@hotmail.com

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Cícera Ferreira de Sousa Filosofia /UFCA ciceraferreiradesousa@hotm ail.com Eliúde Ferreira Lima Filosofia /UFCA eliudelima@hotmail.com Regiane Lorenzetti Collares Professor /UFCA regianecollares@hotmail.com

1 Introdução

O presente relato de pesquisa compreende o detalhamento das formas de veridicção apresentadas por Foucault, sendo a parresía, a fala franca de incidência ético-política, destacada por um lado como um conhecer-se a si mesmo e, por outro lado, como uma prática de si de suma importância para a vida e a formação de si e do outro na Antiguidade. Na sequência da pesquisa, buscou-se investigar de que modo Sócrates se apresenta para Foucault como um parresiasta par excellence. Neste sentido, esboçaremos os passos iniciais do projeto de pesquisa intitulado Produção de verdade e práticas de si: a interface entre ética e política em Michel Foucault, vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC 2014/UFCA), a partir das primeiras preleções de Foucault, em 1984, no Collège de France.

2 Fundamentação teórica

As preleções de Foucault do curso intitulado “a Coragem da Verdade”, proferidas no ano de 1984, dão cabo de uma revisão das formas de veridicção presentes na Antiguidade, bem como da explicitação enfática da parresía como modo de veridicção de incidência ético-política. Mas, no contexto do último período do estudo de Foucault, o que significa a retomada da verdade? Wellausen comenta o seguinte a respeito do tratamento da verdade no último período da pesquisa foucaultiana:

verdade não é adequação da mente com a realidade; não é paradigma do conhecimento ou regra para tudo a ser descoberto; não é caminho que conduz o sujeito do conhecimento ao seu objeto, nem experiência originária; não é universal, nem eterna por sua natureza, porque a verdade não tem essência. Foucault negligencia as construções lógicas, pela ausência de uma hierarquia rigorosa de conceitos provenientes dos universais, preferindo analisar as práticas discursivas, que são heterogêneas e historicamente condicionadas. A verdade é luta, estratégia, conquista e vitória; é uma força imanente inteiramente atravessada por relações de poder. (WELLAUSEN, 1996, p.113-114) Foucault menciona inicialmente que diversos homens que foram grandiosos no que faziam, tinham sempre alguém que os aconselhava, ou melhor, que os fazia dizer a verdade sobre si. No decorrer da história vários homens importantes tinham pessoas de confiança para se aconselhar e isso ocorria por uma espécie de orientação ou formação dada a partir da verdade. Desse modo, as formas de veridicção se dão como um dizer implicado na formação do sujeito. Por exemplo, os diários encontrados no decorrer da história de certo modo já atestam que o ato de escrever para si mesmo aquilo que se faz no decorrer do dia, as dúvidas e desejos, os sonhos que se pretende realizar, ou, ainda, as fantasias mais secretas, tudo isso já sinalizaria um modo de ligação do sujeito com a verdade, de constituir a verdade de si. Inicialmente na Grécia Antiga a verdade dita nas escolhas democráticas supunha uma relação com o outro pautada na liberdade e nunca no domínio. No decorrer da história, o outro, que diz e escuta a verdade, vai assumindo diferentes formas; a igreja e várias outras instituições constituíram esse outro que, por vezes, proferia a verdade seja no diagnóstico e tratamento do médico, nas palavras de perdão do confessor, nos conselhos de um diretor de consciência, no veredito do juiz, nas aulas do professor etc. Todavia, o dizer a verdade, em qualquer época da história, passa a ser identificado por Foucault a partir de três elementos primordiais: os saberes, as relações de poder e as práticas de si. Os saberes possibilitam que a fala da verdade seja articulada

Caderno de Experiências corretamente; as relações de poder atravessam tanto aquele que diz a verdade como o que a escuta; e as práticas de si se atrelam ao conhecimento, de mesmo modo que na antiguidade o conhece-te a ti mesmo se implicava no cuidado de si. Na dimensão da parresía, forma de veridicção com incidência política e derivação moral estabelecida na Antiguidade, o dizer a verdade presume coragem, pois, o dizer a verdade da parresía é realizado sem rodeios e mascaramento, dito diretamente. A coragem do parresiasta se resume então em dizer a verdade francamente e em aceitar a verdade dita pelo outro.

A parresía é, portanto, em duas palavras, a coragem da verdade naquele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade de que pensa, mas é também a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ferina que ouve. (FOUCAULT, 2011, p. 13) Assim, a fala franca deve ser pronunciada, mas deve principalmente ser ouvida. É nesse momento que a verdade da parresía se destaca, pois o parresiasta não apenas é aquele capaz de dizer a verdade, mas também aquele capaz de conceder um novo caminho, que se seguido pode levar a algum lugar ou não, mas pelo menos a verdade em questão foi dita, de modo que o “outro tão necessário para que eu possa dizer a verdade sobre mim mesmo, esse outro na cultura antiga pode ser um filósofo de profissão, mas também qualquer um.” (FOUCAULT, 2011, p. 06). Portanto, esta forma de veridicção, adotada na Antiguidade, expressava uma ligação ética entre os cidadãos, entre a formação de si e do outro. Foucault, além da parresía, elenca mais três formas de veridicção, quer sejam: a técnica, a profecia e a sabedoria. Esclarece Foucault sobre as dimensões dessas formas de veridicção:

[...] as dimensões clássicas da verdade: em vez de ser o objeto de uma descoberta com vocação universal, a verdade é produzida por rituais, procedimentos e tecnologias historicamente datadas; em vez de se conformar com um real pré-dado, a verdade é inventada e criadora de realidades; em vez de se referir a um sujeito conhecedor autônomo, ela é técnica de sujeição e de normalização dos indivíduos. (FOUCAULT, 2011, p. 307) Foucault, no transcorrer de seu curso, passa então a diferenciar tais formas de veridicção. A primeira e mais conhecida é a tékhne, verdade proferida por todo aquele que “recebeu a verdade e vai transmitila, encontramos esse princípio em uma obrigação de falar” (FOUCAULT, 2011, p. 24). O técnico é assim aquele que ensina e trabalha com a verdade, ele o faz por obrigação, pois, a sua profissão é o dizer ou o agir conforme verdade que detém. Nesta forma de veridicção, a questão principal de Foucault é identificar a racionalidade da técnica que pode em seus amplos limites tanto produzir quanto condicionar toda uma população. A segunda forma de veridicção é apresentada pelo sábio, sendo que sua verdade é dita “quando quer e sobre o fundo de seu próprio silêncio, o ser e a natureza (a physis).” (FOUCAULT, 2011, p. 25). O sábio não age de forma corajosa em relação à verdade nem transmite sua sabedoria por função de sua profissão ou obrigação, mas sim pelo prazer e pela única determinação do seu querer e de sua sabedoria. Já o terceiro modo da veridicção se dá nas palavras do profeta, que diz a verdade “em nome de outro e enigmaticamente, o destino” (FOUCAULT, 2011, p. 24). O profeta fala do destino, e ele é corajoso e fala de modo franco, todavia, ele não diz em nome de si mesmo, ou da verdade em si, mas em nome de um deus ou divindade. Já na parresía haveria uma fundamental distinção com as demais formas de veridicção, pois nela se fala corajosamente a verdade que precisa ser dita, sem medo da morte, da ameaça ou da hostilidade, se fala a verdade por si mesmo e não em nome de outros.

O dizer-a-verdade do parresiasta assume os riscos da hostilidade, da guerra, do ódio e da morte. E se é verdade que a verdade do parresiasta – [quando] é recebida, [quando] o outro, diante dele, aceita o pacto e joga o jogo da parresía –[...] a possibilidade do ódio e da dilaceração. (FOUCAULT, 2011, p. 24) Daí entendemos, nas linhas gerais desta pesquisa, que o parresiasta é um tipo diferente daquele que diz a verdade, sem medo ou contradições, ele é franco e não faz recurso de uma linguagem rebuscada ou enigmática. Neste sentido, a veridicção parresiástica não é apenas mera conexão de ideias de realidade e de vocações históricas; a verdade em destaque é construtora de realidades, sua conexão com o indivíduo está presente na vida. Vale salientar que não é qualquer forma de dizer a verdade que se relaciona com a parresía, porque “o objetivo do dizer a verdade é, portanto, menos salvação da cidade do que o éthos do indivíduo” (FOUCAULT, 2011, p. 58). Faz-se elucidativo salientar que Foucault identifica na atitude de Sócrates, na sua missão de interpelar a cada um a respeito do “conhece-te a ti mesmo”, um dizer que aglutinaria significativamente todas as formas de veridicção presentes na cultura da Grécia antiga. Sendo assim, Sócrates, diante do oráculo de Delfos, quando tomou ciência de sua missão, tornou-se par excellence o profeta da

parresía, o porta-voz da verdade. Ao mesmo tempo ele foi reconhecido como o sábio do seu tempo e como aquele dotado do talento da mestria na condução dos jovens atenienses. A verdade então dita por Sócrates não apenas simboliza a atitude do educador, do sábio, ou mesmo do profeta, mas revela que “a interrogação é uma maneira de, podemos dizer, compor com o dever de parresía” (FOUCAULT, 2011, p. 26). No entanto, Sócrates significa para Foucault, sobretudo, um parresiasta, em decorrência de assumir em vida a coragem de viver a sua verdade. Foucault compreende o caráter corajoso da veridicção socrática no fato de que ainda na eminência de sua condenação à morte, em que “Críton propõe a Sócrates organizar uma fuga. Todo um complô de amigos foi urdido, e bastaria Sócrates aceitar o princípio da fuga para a coisa ser feita.” (FOUCAULT, 2011, p. 90), mesmo assim, Sócrates não declina da sua verdade e se entrega às autoridades. A coragem se estabelece então como o aspecto primordial do parresiasta, pois, “a parresía supõe coragem, porque se trata quase sempre de uma verdade que pode ferir o outro e que assume o risco de uma reação negativa da parte dele” (GROS, 2004, p. 157). Desta forma, a parresía provém de um ato, ela não apenas simboliza o dizer-verdadeiro, a veridicção não é apenas o dizer, mas presume um agir. Ou seja, quando Sócrates defende a justiça ele age segundo a justiça, e o seu agir e a verdade se implicam mutuamente. Por conseguinte, a ação é o que torna a parresía possível, pois a verdade necessita ser defendida, é o agir do parresiasta que dá à verdade seu real valor, em que se “possui certo número de conhecimentos, que põe em ação de maneira imediata.” (ADORNO, 2004, p. 41). Em suma, a própria vida de Sócrates significa no pensamento foucaultiano um dito de verdadeira coragem, porque o exame da verdade não se apresenta apenas no seu simples dizer, mas também na sua demonstração ética no decorrer da vida, pois como considera Candiotto, “somente o cuidado permanente da verdade, da justiça consigo, confere dignidade ao viver, no decorrer da existência.” (CANDIOTTO, 2010, p. 168).

3 Considerações finais

No que consiste à sua tarefa genealógica, Foucault quando aborda a questão da parresía, de sua recuperação histórica, parece suscitar a partir desta forma de veridicção um momento decisivo no qual se esboçava um contexto que ligava as verdades ditas pelos sujeitos às ações. O último curso que Foucault ministrou no Collège de France, meses antes de sua morte, fundamentalmente traz à tona outro modo de se pensar a verdade como uma das “matrizes históricas da experiência.” O discurso do parresiasta diz a verdade em qualquer circunstância provocando efeitos de transformação naquele a quem se endereça. Diferente da veridicção do profeta, do sábio e de mestre, a verdade da parresía sempre implica coragem. Não parece ser à toa que Foucault reconheça em Sócrates, como endossa o seu interlocutor F. Gros, “um exemplo de coragem da verdade. Figura maior, inclusive até a morte” (GROS, 2004, p.160). No artigo de Francesco Paolo Adorno, A tarefa do intelectual, o modelo socrático, há a consideração de que a presença de Sócrates nos textos de Foucault representaria o filósofo do “ponto de vista tanto ético quanto político” (GROS, 2004, p.57) No sentido da continuação desta pesquisa, cabe-nos então a indagação: de que forma a figura parresiática de Sócrates nos serve para pensar a interface entre ética e política na atualidade? De que forma é ainda hoje possível pensar uma política comprometida com a verdade? Consideramos que algumas pistas já possam ser extraídas dos passos iniciais desta investigação. Ora, na ontologia do presente traçada por Foucault, na sua tarefa de diagnosticar o presente de uma cultura, contatamos uma pesquisa em que o lugar da filosofia está acoplado às práticas de vida, tirando-nos da zona de conforto das nossas evidências. A parresía, forma de veridicção prioritariamente aqui examinada, nos conduz a conceber como em um dado momento histórico o conhecimento de si e o cuidado de si passaram a se entrelaçar, em que a filosofia voltada para o “cuidado de si é conhecimento e, mais que conhecimento, é modo de existência, estilo de vida. É esta modalidade esquecida da filosofia que Foucault quer conduzir às possibilidades de nosso presente. Ela traz implicações diversas, em particular as de natureza ética.” (MUCHAIL, 2011, p. 127) No entanto, há a constatação de que o conhecimento de si (gnôthi seautón) foi o que prevaleceu na tradição filosófica, desaparecendo a dimensão do cuidado de si (epiméleia heautoû). Então, Foucault mostra que a coragem de Sócrates em falar a verdade, mesmo sob o alto preço de pagar com a própria vida esta atitude, nos deixa certamente um efeito, a saber, a coragem “de fazer aflorar por sua ação verdades que todo mundo conhece, mas que ninguém diz, ou que todo mundo repete, mas que ninguém se dá o trabalho de fazer viver, a coragem da ruptura, da recusa, da denúncia”. (GROS, 2004, p.166) O prosseguimento desta investigação segue então no rastro de como a verdade reencontra seu lugar ético nas formulações foucaultianas, trabalho que certamente se desdobrará na contracorrente dos jogos de verdade de dominação, de opressão e de exclusão que justificam ser a fala franca e engajada

Caderno de Experiências algo incompatível com a esfera ético-política do mundo contemporâneo.

Referências

ADORNO, Francesco Paolo. A tarefa do intelectual: o modelo socrático. In: GROS, Frédéric (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. CANDIOTTO, Cesar. Ética e política em Michel Foucault. Trans/Form/Ação, Marília, v.33, n.2, p.157-176, 2010 FERREIRA, Eric Duarte; CAMBRUSSI, Morgana Fabiola. A parrhesia como prática e o estatuto do outro. Universidade Federal de Santa Catarina, 2006. Disponível em:<http://www.celsul.org.br/Encontros/07/dir/a rq12.pdf>. Acesso em: 7 de novembro de 2014. FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. GROS, Frédéric. Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault, o mestre do cuidado: Textos sobre A hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Edições Loyola, 2011. VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Trad.: Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. YOUNG, Julian. Michel Foucault: Esta obra foi dirigida por Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros e Judith Revel. 1 Ed. – Rio Janeiro: Forense, 2014.

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