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A RELAÇÃO PARADOXAL ENTRE PARRESÍA E DEMOCRACIA NAS PRELEÇÕES DO ÚLTIMO FOUCAULT
Cícera Ferreira de Sousa Filosofia /UFCA ciceraferreiradesousa@hotm ail.com Geislane Lopes Rodrigues Filosofia /UFCA geislanelopes@outlook.com Jonathan Sales da Silva Filosofia /UFCA jonascoroinha@hotmail.com Lílian Barbosa Xavier Filosofia /UFCA lilianbx@hotmail.com
Eliúde Ferreira Lima Filosofia /UFCA eliudelima@hotmail.com Regiane Lorenzetti Collares Professor /UFCA regianecollares@hotmail.com
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1 Introdução
Esta investigação desenvolve-se no contexto do projeto Produção de verdade e práticas de si: a interface entre ética e política em Michel Foucault vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC 2014/UFCA), no qual o trabalho de pesquisa aqui apresentado refere-se primeiro em detalhar a relação genética entre democracia e parresía (fala verdadeira e franca fundamental nos processos decisórios da esfera política) a partir da preleção de Foucault no Collège de France, em 08 de fevereiro de 1984, e, em segundo aspecto, apontar um entroncamento ético das considerações foucaultianas nesta mesma aula no que diz respeito a identificar no âmbito do pensamento grego antigo as condições de incompatibilidade entre as práticas democráticas e a veridicção parresiástica.
2 Fundamentação teórica
Na aula de 8 de fevereiro de 1984, contida na coletânea de preleções A Coragem da Verdade (2011), Michel Foucault retoma o problema da parresía no período grego do século V, esquematizando as transformações que ocorreram da passagem de uma prática de falar a verdade vinculada à política da cidade, em seu aspecto democrático, para um outro tipo de relação paradoxal e incompatível entre a parresía e a cidade democrática. Se os gregos antigos puderam problematizar efetivamente sua liberdade e a liberdade do indivíduo como um problema ético, Foucault identifica aí a possibilidade cultural para um falar franco e o desvio de sua implicação política. Assim, o cidadão que possuía um belo ethos seria visto como alguém que praticaria a liberdade em decorrência de todo um trabalho de si sobre si mesmo. A prática do cuidado de si, então fundamental no conhecer a si mesmo, foi em certo sentido decorrente da integração da parresía aos modos de vida e a exclusão dela nas decisões da cidade democrática. Portanto, no contexto da prática da parresía no âmbito ético, o ser livre realiza ações significando um modo de vida que o condiciona sobremaneira a não ser escravo de si mesmo. Para a constituição do cidadão livre se fazia fundamental o estabelecimento de certa relação de domínio e controle consigo mesmo, segundo Foucault, para não ser escravo dos apetites. Esse cuidado de si, no entanto, não se formaria como um exercício da razão a ser realizado em determinado episódio, mas se desenvolveria como uma tarefa ou dever oriundo de uma forma de veridicção encontrada em um cuidado da alma. Foucault, ao analisar alguns textos do grego antigo, destaca que o termo “parresía” é atestado pela primeira vez nos escritos de Eurípedes (FOUCAULT, 2011, p.31), na problematização da democracia como o direito de falar publicamente, em que cada um se relacionaria ao outro diante desta prática de veridicção, sendo que as opiniões seriam expressas em uma ordem de coisas que interessariam tanto a si mesmo como a todos aqueles que comporiam a cidade. Doravante, o direito de dizer a palavra verdadeira na democracia grega, de certo modo, não era dado genericamente pela condição de cidadão. Mesmo que a lei proporcionasse ser um cidadão, isto simplesmente não era o suficiente para habilitar alguém a ter a liberdade do discurso político, dado que o dizer verdadeiro só era permitido àquele que era cidadão por nascimento. Outro impedimento, identificado por Foucault, encontrado na democracia da Grécia antiga para o dizer verdadeiro, referia-se ao exílio de um cidadão em uma cidade estrangeira, pois, seja qual fosse a causa que tivesse levado alguém a tal circunstância, este também não possuiria o direito à parresía. A parresía, todavia, era um direito a se exercer somente por um cidadão livre no seu sentido pleno, ou seja, um cidadão de ascendência dotado de liberdade com o direito de exercer seus privilégios em relação aos outros ou sobre os outros. Dessa forma, a parresía se consolida na Grécia antiga do século V como um direito e um dos privilégios que fazem parte da existência de um cidadão bemnascido, honrado, e que lhe daria acesso à vida
Caderno de Experiências política entendida como possibilidade de opinar, contribuindo para as decisões coletivas. Michael Peters, ao investigar a parresía, destacaria a existência de três variações desta veridicção no contexto da Grécia Antiga, a partir da relação entre logos e verdade. São as seguintes:
(1) Logos, verdade e genos (nascimento), isto é, o discurso verdadeiro só pode ser enunciado por aqueles que têm direito, no caso dado pelo nascimento. Foucault explica este uso da parresía através da análise da peçaii Íon, de
Eurípides. (2) Logos, verdade e nomos (lei), presente no campo da política. (3) Logos, verdade e bios (vida), parresía ligada ao campo da vida prática, no campo moral. Estas três formas estão ligadas às três funções que a parresía pode ter: (a) uma função epistêmica, isto é, o parresiasta pode dizer certas verdades sobre o mundo; (b) uma função política, na medida em que o parresiasta critica as leis e as instituições; (c) uma função terapêutica ou espiritual, pois o parresiasta tem o papel de clarificar a relação entre a verdade e o estilo de vida de alguém. (PETERS apud
BELO, s.d)
(2) Foucault, ao identificar estas variáveis da parresía, dedica-se em suas primeiras preleções de 1984, contidas em A coragem da Verdade (2011), à análise da crise parresiástica diante da democracia. Tal análise se debruça sobre a literatura filosófica e política da Grécia antiga a partir do pensamento filosófico de Platão, em que surge com mais contundência o desvio da parresía do contexto político para uma possibilidade exclusivamente ética do dizer-a-verdade. Ora, aos poucos, segundo a leitura foucaultiana, o lugar para o discurso verdadeiro nas instituições democráticas gregas foi se estreitando, algo gerou uma espécie de bloqueio no funcionamento da democracia impedindo a prática da parresía. Mas o que então estava se imiscuindo na esfera eminentemente política do discurso parresiatíco das instituições democráticas da Grécia antiga? “e esse alguma coisa, vou procurar mostrar que é o que se poderia chamar de diferenciação ética” (FOUCAULT, 2011, p. 33). Diante da intromissão de uma demanda ética na esfera política, a parresía presente na democracia, em que primeiramente todo cidadão livre teria o direito de tomar a palavra, começa a se destituir e ter um sentido negativo. Segundo Foucault, em uma interpretação platônica, quando a democracia abriu espaço para que todos pudessem participar das decisões políticas referentes à pólis, também se cedeu lugar para os sofistas, que possuindo a liberdade de expressão, apenas procuravam satisfazer as suas próprias vontades, colocando em prática um discurso dissimulado. Desse modo, os elementos retóricos que comporiam a arte persuasiva sofística, tão comum na democracia grega, não firmariam compromisso com a verdade e deveriam ser rechaçados. Outro aspecto que diz respeito ao deslocamento da parresía do campo político para o ético refere-se ao fato de que a verdadeira parresía vai se tornar cada vez mais impossível ou perigosa para a cidade democrática. Assim, todo aquele que possui a atitude corajosa de exercê-la, corre o risco de exclusão ou de morte. A noção de parresía se dissocia assim da democracia; de um lado, ela aparece como a latitude perigosa para a cidade, em que todos possuem o direito de expressar qualquer opinião que parece ser conveniente, ou seja, opiniões desqualificadas. E, depois, a boa parresía, a parresía corajosa, é perigosa para quem dela faz uso. Foucault fundamenta esta leitura a partir da crítica de Platão à democracia e concebe a metáfora do barco no livro VI da República, na briga pelo leme, como um exemplo par excellence das implicações negativas da democracia, em que os oradores desqualificados se enfrentam para seduzir o povo e os que realmente tentam alertar expondo o que é verdadeiro não são ouvidos. (FOUCAULT, 2011, p.34) Desse modo, o parresiasta na democracia não é reconhecido como aquele ocupado com o governo dos outros e de si, pois, talvez os cidadãos não estivessem em condição e à altura de ouvi-lo, justamente pelo fato de na democracia prevalecer a fala retórica, a lisonja, como modo de se obter ganhos políticos. Vale salientar que Foucault referese a um texto no qual se pode encontrar críticas primárias à democracia, em um ambíguo panfleto atribuído a Xenofonte, intitulado Constituição dos atenienses (FOUCAULT, 2011, p.38). Neste panfleto é formulado que não pode haver distinção entre discurso verdadeiro e o discurso falso na democracia. Mas, segundo Foucault, as palavras que o autor usa para formular o elogio em homenagem à democracia ateniense são distorcidas, sendo que o elogio empreendido é reconhecido como uma crítica das instituições atenienses, ressaltando-se que nas cidades democráticas as leis boas só podem ser formuladas por aqueles que são considerados mais hábeis e bons em consequência do afastamento dos maus e inábeis homens, pois,
não têm seu lugar na Assembleia, não têm o direito de falar, a fortiori não têm o direito de dar seu parecer nos conselhos. E, diz o autor do texto, nessas cidades, e com todo esse conjunto de precauções, o que reina é, diz ele, a eunomía (a boa constituição, o bom regime). (FOUCAULT, 2011, p.38).
Em suma, aqueles que são vistos como um problema para o governo democrático, não possuiriam o direito à palavra, seriam impedidos de participarem das deliberações das instâncias decisórias da cidade por serem contrários ao governo e se recusarem a seguir as restrições postuladas. A argumentação do texto Constituição dos atenienses possui, segundo Foucault, um caráter sofistico na medida em que o enunciado é performativo, pois os que são determinados para governar não são qualitativamente capazes de exercer a arte do governo.
Ora, o que é bom, o que é útil para a cidade, é ao mesmo tempo, por definição, o que é bom, útil e vantajoso para os melhores da cidade. De sorte que, incitando a cidade a tomar decisões que sejam úteis para ela, não fazem mais que servir a seu próprio interesse, ao interesse egoísta deles, que são os melhores (FOUCAULT, 2011, p. 39). Dessa forma, o princípio de crítica da democracia como lugar da parresía pode ser resumido da seguinte maneira: em uma cidade democrática a distinção passa a ser quantitativa, em que prevalece a decisão daqueles que se distinguem por serem mais numerosos em detrimento de outros menos numerosos. A divisão, que tem como princípio a oposição quantitativa, dá origem à diferenciação ética ou distinção política entre os bons e os maus. Para Foucault, “poderíamos chamar, se vocês quiserem, de princípio do isomorfismo éticoquantitativo” ou “princípio de escansão da unidade da cidade” (FOUCAULT, 2011, p.40). Destarte, o parresiasta se colocaria entre os menos numerosos, de acordo com o postulado do isomorfismo ético-quantitativo, de modo que se esses menos numerosos não possuem o poder de domínio, ao contrário, o grupo mais numeroso se destacará em decorrência de possuírem o poder que comanda e controla toda a cidade, sendo a maior quantidade o inverso ao poder particular da verdade do parresiasta.
É por isso que o dizer-a-verdade não pode ter seu lugar no jogo democrático, na medida em que a democracia não pode reconhecer e não pode abrir espaço para a divisão ética a partir da qual o dizer-a-verdade é possível (FOUCAULT, 2011, p.41). Foucault analisa então esse aspecto da primazia ética na parresía como uma reversão platônica, de modo que a atuação do parresiasta na democracia é marcado como uma espécie de impossibilidade, dado que a divisão ética entre bons e maus só pode ter sua forma na eliminação da democracia. A estrutura democrática não legitima assim a verdade que é direcionada a si, sendo que “a reversão platônica mostra portanto que, para que um governo seja bom, para que uma politeia seja boa, eles têm de se basear num discurso verdadeiro, que banirá democratas e demagogos” (FOUCAULT, 2011, p. 42). Em síntese, “o bom regime político supõe a excelência ética dos governantes e sua capacidade de discernir o verdadeiro” (GROS, 2004, p.160). A parresía vista no contexto da democracia, após a reversão platônica, passa a tomar direção ética. A verdade do ser ultrapassa o campo político e é esse saber que condiciona o modo de vida na pólis. Essa distinção ética, no qual o falante faz uso da sua liberdade, forma o sujeito moral e é específico para corrigir os problemas da cidade, inferindo-se daí que essa atitude ética singular de dizer a verdade faz surgir problemas na política. Já no governo em que o poder se exerce efetivamente em uma tirania, aumentaria muitos desafios ou perigos no uso da parresía, na medida em que na tirania não existe a relação com a verdade. Nesse governo está presente uma espécie de mitigação ética; o poder tirânico estabelece um estado de dominação através do abuso de poder que interfere na liberdade dos cidadãos. O tirano se constitui na cidade como autoridade livre voltada para a conquista alucinada do poder. Os cidadãos que temem o tirano recorrem à lisonja ou tomam precauções para que a verdade que pensam e que exprimem não chegue ao conhecimento daquele que poderá puni-los. Pelo contrário, o cidadão que está cansado de se submeter ao poder do tirano, se opõe radicalmente à vontade maior, questiona as regras estabelecidas e impulsionado pela coragem da verdade faz uso do argumento verdadeiro com o objetivo de desvendar o oculto e estabelecer a justiça, tendo em vista o bem comum. Aquele que ousa exercer a fala franca corre então um risco indeterminado, sendo visto pelo poder tirânico como uma ameaça ou problema para a cidade. De acordo com o que foi sumariamente elencado sobre a atitude parresiástica, o cidadão que a praticasse romperia com os esquemas de poder encontrados na cultura. Foucault ressalta ainda que a partir da ótica platônica começa a se dar a valorização do poder soberano ou poder do rei-filósofo, que trata da relação que governante tem com a verdade. O filósofo, por possuir a virtude, dever e técnica que se mostra em uma liberdade corajosa, se faz um diretor de consciência, mas não em função de uma pedagogia, mas por seu comprometimento com a verdade. Na aula de 08 de fevereiro, Segunda Hora, Foucault (2011, pp.51-61) discorre que os conselheiros que, por meio de uma formação de caráter filosófico, estariam aptos a fornecer orientação moral para o governante, sendo necessários para que o príncipe pudesse sair da
Caderno de Experiências zona de alienação, direcionando-o a se conduzir ou a tomar as decisões cabíveis para cada situação, limitando o seu poder. Essa relação com a verdade apresenta uma forma de orientar o príncipe de maneira que ele possa governar a si mesmo e aos outros. O que torna necessário, portanto, o dizer-averdade ao governante é o fato de que a maneira como ele governará a cidade depende do seu iiethos que se forma e se determina pelo efeito do discurso verdadeiro que lhe é endereçado. Na medida em que a verdade é exposta como uma opinião individual, o governante poderá ainda aceitá-la ou optar por não acatá-la. A partir deste ponto, Foucault passa a discorrer sobre o objetivo maior da filosofia de Platão que consiste em tornar possível o dizer verdadeiro. Dependendo da disposição da alma, pode ser possível a cada um o acolhimento da verdade e a auto condução em conformidade com o dizer verdadeiro. A parresía em Platão se mostra como essencial à psykhé (a alma) na medida em que
O objetivo desse dizer-a-verdade, o objetivo da prática parresiástica, agora orientado para a psykhé, não é mais tanto o conselho útil nesta ou naquela circunstância particular, quando os cidadãos estão embaraçados e procuram um guia que possa lhes permitir escapar aos perigos e se salvar, mas a formação de uma certa maneira de ser, de uma certa maneira de fazer, de certa maneira de se comportar nos indivíduos ou num indivíduo. O objetivo do dizer-a-verdade é portanto menos a salvação da cidade do que o ethos do indivíduo (FOUCAULT, 2011, p.58). Com esta pesquisa, concentrada na preleção de 08 de fevereiro, Foucault nos fornece uma genealogia da imbricação e da incompatibilidade entre democracia e parresía, ressaltando um aspecto importante no que consiste a pensar a verdade, não apenas vinculada ao conhecimento, mas como uma prática de si com implicações políticas e éticas.
3 Considerações finais
Em consonância com a pesquisa Produção de verdade e práticas de si: a interface entre ética e política em Michel Foucault, pretendeu-se ressaltar a partir da preleção de 08 de fevereiro de 1984, duas variações da parresía da Grécia antiga, a saber, uma incidência estritamente política e outra moral. O caráter político da parresía proporcionaria a verdade democrática, em que os cidadãos ao falarem a verdade estariam comprometidos com o destino da cidade. Foucault nos mostra como a parresía surge como um direito político do cidadão, dada sua condição de liberdade, de não se submeter ao domínio de outro. Cabe-nos considerar que quanto mais parresía e democracia se tornavam incompatíveis na organização política da Grécia antiga, mais o dizer verdadeiro deixava de ter significado político e passava a se entrelaçar a um campo ético. O sentido ético desenvolvido às sombras da parresía política ganha fundamento na filosofia socrático-platônica, em que o parresiasta admite a verdade como ligada à condução da alma, ao governo de si e dos outros. Neste contexto, na parte inicial da pesquisa, cumpriu-nos apresentar em acordo com as considerações foucaultianas como a verdade de capacidade crítica e de intervenção política foi possível na Grécia antiga.
Referências
BELO, F; ANDRADE, P.G.G. Foucault, Direito e Parresía: um projeto de pesquisa. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/man aus/arquivos/anais/bh/fabio_roberto_rodrigue s_belo.pdf. Acesso em 5/11/14. FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011. FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010. GROS, Fréderéric. A parrhesia em Foucault. In:
GROS, F. Foucault: a Coragem da Verdade. São
Paulo: Parábola Editorial, 2004.