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PRAZER, INTELECTO E VIDA FELIZ NO FILEBO DE PLATÃO
Francisco Rihelder Batista Bezerra Filosofia /UFCA rielder_18_@hotmail.com
Camila Prado do Espírito Santo Professor /UFCA camiladoespirtosanto@yahoo .com.br
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1 Introdução
Esta pesquisa se coloca como uma reflexão e estudo crítico sobre o prazer, o intelecto e a felicidade no pensamento de Platão, mais particularmente, no diálogo Filebo, considerado por muitos, um de seus últimos diálogos. Tal diálogo busca saber, mediante o fio dialético, qual seriam os ingredientes para uma vida boa ou feliz. A discussão se dá a partir de duas teses, a saber, a tese de Filebo que afirma que o bom para os seres vivos é o prazer, o deleite e tudo quanto tem aproximação com esse gênero de coisa e a tese de Sócrates que defende o pensamento, a inteligência, a memória, a opinião correta e tudo aquilo quanto tem aproximação com esse gênero de coisa, como sendo o que realmente é bom para os seres vivos. A primeira tese, a tese de Filebo, será defendida por Protarco visto que o personagem Filebo está cansado e não pode continuar a discussão. A nossa investigação se concentra principalmente em determinar o lugar e significação do prazer e do intelecto na constituição da vida feliz, já que os interlocutores do referido diálogo estabelecem o acordo de buscarem discursivamente a disposição ou estado da alma capaz de proporcionar aos homens uma vida boa.
2 Fundamentação teórica
O Filebo é um diálogo que se situa no terceiro período do pensamento platônico, é considerado, portanto, uma das últimas obras de Platão ao lado de diálogos como o Timeu e Leis. Associado à metáfora de uma selva impenetrável, por muito tempo (e ainda hoje para alguns), foi considerado um escrito intrincado, de difícil compreensão. Uma das primeiras dificuldades a uma adequada interpretação do Filebo seria o subtítulo “Do prazer” que a tradição adotou para melhor designar o conteúdo do diálogo em seu todo. Assim, muito se tem discutido a respeito de qual seria a temática central do Filebo; seu tema principal seria o bem humano? Seria o problema ontológico do uno e do múltiplo? Ou seria o tema do prazer e sua tipologia? A nossa posição é a de que o prazer não é o tema central do Filebo, mas é, sem dúvida, um dos seus temas primordiais, pois na maior parte da obra os interlocutores analisam as diversas formas de prazer. Entretanto, como bem observou Muniz (2012), o aspecto quantitativo não deve ser considerado o fator preponderante na determinação do tema principal deste diálogo. Nossa posição teórica é também endossada por Bravo (2009, p. 411):
o tema fundamental do Filebo não é o prazer, como dá a entender o subtítulo tradicional, mas a vida boa ou, mais precisamente, o bem supremo do homem. Protarco lembra a Sócrates que o objetivo dessa reunião é definir o mais precioso dos bens humanos. E, no final do diálogo, estão lançadas as bases para que qualquer pessoa tenha condições de decidir entre o prazer e a sabedoria, e assim afirmar qual dos dois tem mais parentesco com o bem supremo e com o maior valor, segundo o juízo dos deuses. A essa pergunta subordinam-se todas as outras, tantas as relativas ao prazer e a sabedoria e a outros temas, e uma atitude constante dos interlocutores é assegurar-se de que aquilo que estão analisando tenha relação com sua resposta. Desta forma, a extensiva análise do prazer no Filebo visa algo mais determinante no contexto dialético desta obra. Prazer e intelecto são discutidos não apenas por que são aspectos importantes da existência humana, mas porque apontam para algo maior e duradouro, ou seja, aquilo que os gregos chamavam de eudaimonia e que aproximativamente traduzimos por felicidade. As duas formas de vida representadas por prazer e intelecto competem para a vida boa; tendo em vista a busca por saber o papel destes dois modos de vida na composição de uma vida feliz, faz-se necessário um exame valorativo tanto do prazer como do intelecto. Sócrates admite que a questão do prazer não é simples. Portanto, se faz indispensável uma reflexão sobre sua natureza. A primeira questão levantada quanto a sua natureza é a de saber se eles são diferenciados ou não. Os prazeres são dessemelhantes, ou seja, existem diferenças entre prazeres, por isso, os juízos de valor em relação aos prazeres serão diferentes. Por exemplo, o prazer de um homem intemperante difere do prazer de um homem moderado. Protarco defende a princípio que o prazer é somente unívoco, mas depois da
Caderno de Experiências argumentação socrática de que existem prazeres contrários entre si e de que só poucos deles são prazeres bons, ele acaba por ceder e passa a admitir que o prazer seja tão variado quanto a própria ciência. Partindo da proposição de que os prazeres e os conhecimentos são unos, mas ao mesmo tempo múltiplos e dessemelhantes entre si, é que se examinará o bem humano. Para a razão, o prazer é uma unidade que contém múltiplas espécies. Para determinar as variadas manifestações do prazer exige-se uma rota segura. Tal exame exige o método dialético, mais particularmente o método das divisões (diáiresis). Esse caminho para a classificação dos diferentes prazeres e conhecimentos se compara ao fogo etéreo que Prometeu roubou dos deuses para dar aos seres humanos; sem este método jamais se poderá chegar a conhecer a melhor disposição para a felicidade humana (eudaimonia). Os personagens do diálogo Filebo, Sócrates e Protarco, são levados a superar a dicotomia entre prazer e intelecto. Sócrates fala de discursos que ouviu em que se dizia que nem o prazer nem o intelecto são o Bem, mas sim um terceiro elemento diferente e superior a eles. Se estes discursos são verdadeiros, então nem o prazer nem o intelecto podem sair com a vitória, pois nem um nem outro seriam idênticos ao bem. Ora, o bem é perfeito e auto-suficiente, e por isso, todo ser vivo o busca continuamente. Chega-se, por fim, ao seguinte questionamento aos dois candidatos ao bem supremo: uma vida só de prazer destituída de inteligência e uma vida só de inteligência destituída de prazer seriam auto-suficientes? Uma vida só de intelecto e uma vida só de prazer seriam insuficientes para uma vida realmente boa. De fato, sem o intelecto não poderíamos jamais saber se temos prazer ou não, ignoraríamos nosso próprio prazer. Estando desprovido da faculdade da memória, não poderíamos jamais nos lembrar se em algum momento da nossa vida tivemos a afecção de prazer; e o prazer presente nunca poderia ser recuperado por uma lembrança nossa. A privação do intelecto não nos possibilitaria também ter uma opinião acertada acerca do prazer que experimentamos, de tal modo que acreditaríamos não termos prazer no instante em que realmente temos prazer. Igualmente, sem intelecto fica impossibilitada toda previsão de um prazer futuro, o que tornaria impossível os prazeres que podemos antecipar. Toda essa argumentação de Sócrates em 21c nos leva a avaliar que uma vida tão-somente de prazer é uma vida não “digna de escolha”. A conclusão irônica a que Sócrates chega é a de que uma vida sem pensamento é uma vida não humana: “Não viverias, no entanto, uma vida humana, mas a vida de um molusco ou de uma dessas criaturas marinhas que vivem em corpos de ostras” (21c). Da mesma forma, uma vida somente de inteligência, conhecimento e memória seria inaceitável, ou seja, uma vida sem prazer e sem dor também não é digna do ponto de vista humano. Protarco e Sócrates chegam ao acordo de que ninguém também escolheria uma vida só provida de intelecto sem dor nem prazer. Estas duas modalidades de vida, isoladas uma da outra, não podem constituir uma vida que permita a felicidade e por isso elas não são elegíveis; nenhumas das duas constituem o supremo bem, perfeito e autosuficiente, almejado pelos seres humanos. Se nenhuma dessas duas vidas – a de prazer e a de inteligência – são possuidoras do bem, então uma vida que combinasse ambas as disposições, isto é, a de prazer e a de inteligência seria melhor e superior que uma vida que comportasse unilateralmente uma só dessas disposições. A partir desta dupla limitação, uma por parte do prazer e a outra por parte do intelecto, Sócrates irá concluir que a vida boa, que possibilita a felicidade humana, é a vida mesclada, a vida que comporta ao mesmo tempo prazer e intelecto. O relutante Protarco irá admitir com Sócrates que nenhuma criatura, humana ou animal, pode ser realmente feliz dispensando estas duas disposições. Depois da confirmação da vida mista como sendo a melhor, como constituindo o primeiro prêmio na ordem dos bens, a discussão transita em torno do segundo prêmio, que será concedido ao responsável pela mistura entre prazer e intelecto que compõe a vida feliz. O segundo prêmio será concedido à causa que estabelece a vida mista. O que causa a vida mista? Sócrates irá colocar a tese de que a inteligência é mais aparentada que o prazer em relação à vida mista. Se isso for verdadeiro, o prazer não pode ter o direito ao segundo prêmio na disputa pela melhor forma de vida. Toda a ontologia do Filebo, isto é, a divisão de tudo que existe no universo em quatro gêneros (ilimitado, limite, a mistura entre limite e ilimitado, a causa da mistura) consistirá em mostrar que o segundo prêmio em relação ao bem humano cabe a inteligência.
3 Procedimentos metodológicos
Nosso estudo adota como caminho investigativo principalmente a leitura e análise conceitual do diálogo Filebo. Usamos duas traduções disponíveis no português, uma mais antiga de Carlos Alberto Nunes e outra mais recente de Fernando Muniz. Recorremos também ao texto grego originário, pois pensamos ser indispensável uma consulta de termos da língua grega que são importantes no contexto do pensamento platônico. Dispomos também de outros diálogos como o Protágoras, o Górgias e a República, em que o filósofo discorre
sobre o prazer e a vida feliz, tema que aqui pesquisamos. Como bibliografia secundária, de grande relevância para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos obras de intérpretes do pensamento platônico que se ocuparam com o tema da nossa investigação. Assim, valemo-nos dos trabalhos de Fernando Muniz, Francisco Bravo, Victor Goldschmidt, Gabriela Roxana Carone, Sônia Maria Maciel, entre outros.
4 Resultados e discussão
Felicidade, intelecto e prazer são assuntos bastante recorrentes na cultura e filosofia grega. Assim, antes mesmo do nascimento da filosofia já encontramos um posicionamento avaliativo diante destas questões. A poesia homérica, lírica e dos poetas trágicos fazem constantemente menção a esta temática. Com o declínio da tragédia e o surgimento da filosofia, o prazer deixa de ser apenas um tema para se tornar um problema digno de reflexão e crítica. Para a filosofia o prazer não é somente uma paixão (páthos), mas algo que deve passar pela experiência do pensamento questionador. A filosofia pré-socrática, principalmente nas figuras de pensadores como Pitágoras, Heráclito e Demócrito irá tecer considerações avaliativas do papel desta afecção na vida dos seres humanos. Já em diálogos do seu primeiro período, como oiii Protágoras e o Górgias, Platão irá tratar, de alguma forma, do prazer, seja de sua natureza, seja de seu valor. No primeiro Sócrates chega ao ponto de defender o prazer como sendo o bem. Alguns comentadores encararam a posição de Sócrates como irônica e não séria e defendem uma posição não hedonista de Platão nesta obra; outros por outro lado, incluindo Bravo, alegam que Sócrates e Platão defendem um hedonismo forte neste diálogo, no segundo, em 501e-502a Sócrates afirma que certas atividades como a do flautista e do tocador de cítara visam somente o nosso prazer. No segundo período do seu pensamento, em República 505b, Platão antecipa o início da discussão no Filebo: “Eis algo que sabes... Para a maioria das pessoas, o bem é o prazer, mas para os mais requintados é a inteligência.” Ainda em República, no livro IX, na avaliação do prazer em um contexto ético-político, o filósofo associa a fruição desmedida dos prazeres ao pior dos regimes políticos, isto é, a tirania. O tirano e a cidade que estar sobre seu controle se encontram em estado de decadência e jamais podem alcançar o bem e a felicidade. No Filebo, o prazer é defendido por Protarco e seu amigo Filebo como sendo o bem supremo humano. Antes de adormecer, o jovem Filebo afirma dogmaticamente que na eleição para o bem, o prazer vence de qualquer maneira. Ele assume aqui uma posição fortemente hedonista, pois identifica por completo prazer e bem humano. Ora, adotar tal posição inclui afirmar que o prazer deve ser buscado sempre, pois constitui a finalidade última a qual todos os seres perseguem. Diante da defesa vigorosa do prazer que é concebido como o bem supremo por personagens como Protarco e Filebo, convém nos perguntar qual apreciação Platão tem em relação ao prazer. A não aceitação por parte de Sócrates de que todos os prazeres são bons parece nos ser o indicativo da posição de Platão sobre o prazer; esta passagem atesta bem isso:
S: Sustentamos sim, que, embora a maioria das coisas prazerosas seja má, há coisas prazerosas boas; e, no entanto, tu chamas a todas elas de boas, mas se alguém te pressionar com argumentos acabarás concordando que são dessemelhantes. O que há, exatamente, de mesmo nos maus, assim como nos bons prazeres, para que seja possível chamares todos os prazeres de bons? P: O que dizes, Sócrates? Supões que alguém, depois de manter que o prazer é o bem, aceitará pacientemente essa tua afirmação de que dentre os prazeres alguns são bons, e outros são maus? (13b-c). Para um hedonista convicto, que parte do pressuposto do prazer como sendo idêntico ao bem, soa estranho a separação de prazeres em bons e maus. Parece-nos que para determinarmos o posicionamento de Platão no que concerne ao valor do prazer, faz-se preciso, no que toca a tal afecção, saber se seu gênero é bem-vindo ou não como um todo na constituição de uma vida mista feliz. É verdade que Platão, no Filebo, coloca o intelecto à frente do prazer e faz distinções valorativas das várias espécies de prazer com o intuito de estabelecer uma hierarquia entre eles. Há, sem dúvida, uma primazia do intelecto sobre os prazeres. Em posição superior ficará os prazeres puros e verdadeiros, que por não estarem em relação com a dor e a carência, são mais elevados. Estes se relacionam com a medida, característica da beleza, uma das ideias constitutiva do bem. Apesar da primazia do intelecto na composição da vida mista a que podemos designar de um intelectualismo ético moderado, parece-nos que no Filebo Platão tenta uma aproximação positiva frente ao prazer. Ora, a hermenêutica usual em torno de Platão, isto é, aquilo que se convencionou chamar de Platonismo, afirma comumente que tal filosofia sempre vê com desconfiança e desprezo o âmbito do sensível, e, por conseguinte, as coisas relativas ao corpo. Tal concepção foi alicerçada muito fortemente no diálogo Fédon em que o
Caderno de Experiências dualismo corpo-alma de origem órfico-pitigórica é fundamental na posição desfavorável de Platão em relação aos prazeres. Pretendemos mostrar que Platão, no Filebo, não segue nem uma perspectiva hedonista e nem antihedonista, mas defende um hedonismo moderado capaz de proporcionar uma vida boa e feliz.
5 Considerações finais
A relevância do Filebo, no contexto da discussão sobre o bem e o prazer, é muito significativa. Assim, Fernando Muniz (2011) afirma: “Como se sabe, presume-se, justificadamente, que seja no Filebo –uns dos últimos diálogos de Platão – que se deva encontrar a palavra final de Platão sobre os prazeres.” Com efeito, é só mesmo no Filebo que teremos um estudo ou investigação mais sistemática e aprofundada da natureza do prazer bem como de seu valor ético. Determinar a natureza do prazer consiste precisamente em tentar responder a pergunta: o que é o prazer? Como se vê, a pergunta de cunho ontológico “o que é?”, freqüente nos diálogos platônicos, se repete aqui no diálogo que nos propusemos investigar. Responder satisfatoriamente a tal pergunta se torna fundamental para o desenvolvimento da nossa pesquisa, pois a partir dela é que poderemos realizar uma melhor apreciação do lugar do prazer no contexto dramático do supracitado diálogo.
Referências
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Loyola, 2012. _______. Filebo. Tradução de Carlos Alberto
Nunes. Belém: UFP, 1974. _______. Górgias. Tradução do grego, introdução e notas de Manuel de Oliveira
Pulquério. Lisboa: Edições 70, 2006. _______. Protágoras. Tradução, Introdução e
Notas de Ana da Piedade Elias Pinheiro. Lisboa:
Relógio D’ Água Editores, 1999. _______. República. Tradução Anna Lia Amaral de Almeida Prado; revisão técnica e introdução de Roberto Bolzani Filho. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. BRAVO, Francisco. As ambigüidades do prazer: ensaio sobre o prazer na filosofia de
Platão. Tradução Euclides Luiz Calloni. São
Paulo: Paulus, 2009. CARONE, Gabriela Roxana. A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas. Tradução
Edson Bini. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
Coleção Estudos Platônicos. GOLDSCHMIDT, Victor. Os diálogos de Platão.
Estrutura e método dialético. Tradução Dion
Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2002. MACIEL, Sonia Maria. Mútuas implicações: prazer e intelecto no Filebo. Boletim do CPA,
Campinas, nº 15, jan./jun. 2003. MUNIZ, Fernando. A potência da aparência:
um estudo sobre o prazer e a sensação
nos Diálogos de Platão. São Paulo:
Annablume, 2011. Coleção Archai .