A Freguesia de Sobreposta e a Festa do Santíssimo Sacramento
Sobreposta
Ficha Técnica
Título: Sobreposta – O Amor à Terra Autoria: Câmara Municipal de Braga Textos de: Vanessa Sotano Edição: Betweien, Lda. Design e Paginação: Rita Amorim Revisão ortográfica: Márcia Ramalho Revisão Científica: Junta de Freguesia de Sobreposta e Associação Social e Cultural de Sobreposta Impressão: Graficamares 1.ª Edição, Braga, novembro de 2021 Depósito Legal: ISBN: 978-989-53184-7-6 Tiragem: 500 exemplares Copyright: Betweien, Lda. Reservas de Direitos de Autoria
Agradecimentos
Este livro é fruto de uma investigação intensa sobre a freguesia de Sobreposta. Esta busca pelos factos, pela história, pelo património, pela tradição foi levada a cabo pelos técnicos da empresa Betweien, Lda., mas não teria sido possível sem a participação inestimável de figuras incontornáveis da freguesia. Para além de livros, recortes de jornais, documentos diversos, anotações, foram ouvidas pessoas que nos contaram, não apenas a história de Sobreposta, mas as suas estórias e as estórias dos seus conterrâneos vizinhos, amigos, familiares, colegas… Por isso, o nosso mais profundo agradecimento a estas pessoas, nomeadamente: ao senhor Domingos Ribeiro da Silva e à sua filha Maria do Carmo, aos senhores Alberto Gomes da Silva, Fernando Marques Mendes, José Fernandes da Silva e Francisco Silva. Sem a participação ativa destas pessoas, das suas memórias e dos seus arquivos e da forma incansável como acolheram os nossos pedidos, este livro não teria sido possível ou, pelo menos, não gozaria de metade da sua riqueza. Uma palavra de agradecimento também à senhora presidente da Junta de Freguesia de Sobreposta, Elizabete Silva, e ao professor António Coelho, atual presidente da Associação Social e Cultural de Sobreposta, pela forma como acolheram e apoiaram este projeto desde o primeiro momento. Por fim, o nosso agradecimento à Câmara Municipal de Braga, em particular ao senhor Vereador Eng. Altino Bessa, por ter acreditado na mais-valia deste projeto.
Bem ha jam!
NOTA DE ABERTURA
Altino Bessa Vereador da Câmara Municipal de Braga
É com sentimento de regozijo que vejo nascer o projeto “A Freguesia de Sobreposta e a Festa do Santíssimo Sacramento”. Trata-se de uma obra agregadora de histórias que acompanham gerações. Braga é um concelho que reúne o melhor de uma cidade: metrópole e “mundo rural”. Sobreposta faz parte deste “mundo rural” que integra e enriquece o município, figurando já como um escape natural e rústico para visitantes. Estamos perante uma freguesia que convida à vivência da natureza no seu esplendor. É este o mote para uma visita à Sobreposta das tradições culturais e religiosas. Convido todos a descobrir Sobreposta numa viagem pela identidade, pela história, pelas tradições e pelo vastíssimo património natural e cultural. Guardiã de um legado material e imaterial de valor incalculável, a freguesia de Sobreposta é um refúgio repleto de encantos naturais e vivências singulares. Nesta obra inédita podemos encontrar factos relevantes e peculiares de uma freguesia que, povoada desde o período neolítico, transporta um passado histórico muito presente (ainda nos dias de hoje) na sua população e nos seus costumes. Sobreposta e os seus habitantes têm o “dom” ou a capacidade de nos envolver numa experiência identitária que conquista ao primeiro passo por um dos tantos percursos dos seus caminhos e/ou trilhos. Território embalado na fé e crença, verte na sua identidade as tradições religiosas de um povo que preserva e respeita a memória. A festa em honra do Santíssimo Sacramento é um dos momentos mais altos do quotidiano dos sobrepostenses. Este ato de fé e religiosidade reflete-se, particularmente, no momento do levantamento do arco. Uma tradição que tem resistido à modernização dos tempos e que tanto “envaidece” e honra Braga e os bracarenses. É na identidade de um povo e no seu esforço para a preservar e cuidar que se espelha a génese da nossa história. Não hesito em afirmar que esta obra incita a uma espécie de pequena “jornada” pela identidade e património do nosso território por via da exploração do quotidiano tradicional, cultural e religioso desta terra. Penso esta obra como um dos pontos de partida para a revelação e descoberta de Sobreposta a partir da antiguidade ainda tão vincada no seu povo e território. Aos sobrepostenses agradeço e louvo a lealdade para com as vertentes identitária e histórica que tanto nos orgulha.
Indíce I. A Freguesia
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1. Fundação e Resenha Histórica
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2. Heráldica
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3. Breve Caracterização
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4. Infraestruturas e Equipamentos
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5. Composição da Junta de Freguesia
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6. Principais personalidades
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II. Festa do Santíssimo Sacramento
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1. Contextualização
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2. Arco da Festa
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3. Comissões Organizadoras
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4. Principais Personalidades
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5. Estórias
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III. Património
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1. Material
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2. Imaterial
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IV. Tradições
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1. Contexto de trabalho
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2. Ritos e Rituais Religiosos
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3. Curiosidades e Brincadeiras
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Bibliografia
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Indíce de ilustrações Figura 1 - Brasão de Sobreposta Figura 2 - Requerimento entregue no IMAVE em outubro de 1975 Figura 3 - Ata da reunião de 3 de junho de 1976 no IMAVE Figura 4 - Carta à Junta Autónoma das Estradas de 3 de março de 1997 Figura 5 - Estatutos da Confraria de Subsino de 1764 Figura 6 - Memórias de um Herói da Grande Guerra, de José Antunes de Sousa e Sá Figura 7 - Estatutos da Confraria do Augustíssimo e Santíssimo Sacramento de 1778 Figura 8 - Planta topográfica do moinho e alojamento de animais de Maria Gracinda de Oliveira Figura 9 - Planta topográfica dos moinhos de Domingos Oliveira da Silva e Joaquim Vieira de Macedo Figura 10 - Carta aos sobrepostenses residentes na grande Lisboa, da autoria de Alberto Gomes da Silva, 1978 Figura 11 - Documento “A Associação Que Queremos Criar”, de 28 de maio de 1978 Figura 12 - Cartas enviadas ao Presidente da Junta e ao Pároco de Sobreposta, 1978 Figura 13 - Estatutos da Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, 1689
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Fundação e Resenha Histórica
A freguesia de Sobreposta é dona de um passado histórico longo e relevante que transparece, ainda hoje, nas suas gentes e costumes. Dizem que o seu nome se deve a um conjunto de dez pedras, que se encontravam sobrepostas no alto do monte da Pena. “SOBREPOSTA era vista, desde a origem, como “Pedra sobreposta”, conforme comprovam diversos documentos medievais.” (Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta - Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural.) É dona de particularidades até mesmo na sua fundação. Ora veja-se: pertencia ao pequeno concelho de Pedralva (atualmente uma freguesia vizinha), que se figurou como tal ao longo de seis séculos, mais precisamente entre 1236 e 1836. Aquando a extinção da municipalidade de Pedralva, Sobreposta foi integrada no Município de Braga. No entanto, em 31 de dezembro de 1853 foi anexada ao concelho de Póvoa de Lanhoso, tendo regressado à administração bracarense no ano de 1855. Em 1749, Sobreposta viu a sua jurisdição crescer com a anexação de S. Tomé de Lageosa. O lugar de Lageosa gozara de “couto e julgado com justiças próprias no crime e no cível” até ao ano de 1430, conforme nos conta o Cónego Arlindo Ribeiro da Cunha. Isto significa que o povo elegia o seu próprio juiz e organizava de forma particular e democrática a sua justiça. Foi nessa altura anexada a Tenões por um período de 80 anos, ficando, entretanto, integrada no couto de Pedralva para, em 1749, unir-se definitivamente a Santa Maria da Sobreposta, ficando, até aos dias de hoje, como um lugar dessa freguesia. O documento mais antigo que comprova a existência deste carismático lugar – Lageosa ou Lagenosa - remonta ao ano de 1134. 12
De acordo com as Memórias Paroquiais de 1758, o Padre Francisco Xavier Pinto assinalava dois lugares principais na sua paróquia: Sobreposta e Lageosa. Estes, por sua vez, integravam outros pequenos lugares: Oleiro, Requeixo, Pedrogos, Fonte, Lage, Vitoreira, Cachada, Outeiro e Igreja no caso de Sobreposta; e Portuguediz, Regueiro, Bacelares, Loureiro, Figueira, Monte e Paço, no caso de Lageosa. Referenciava o senhor padre no dito documento: “Tem esta freguesia noventa e hum fogos. Moradores, contando os absentes e menores, trezentos e vinte. Está esta freguesia situada em hum alto entre montes. O lugar porém de Sobreposta, está em a raiz de huns montes que o cercam por parte do Norte, por parte do Poente com huma campina que fenece em huns montes que ficam por parte do mesmo Poente. Por parte do Sul com outros montes e por parte do Nascente, com huma beiga que se extende pouco mais ou menos, quarta parte de hum quarto de legoa, athé à outra freguesia próxima, chamada Pedralva. O lugar de Lagioza, está distante de Sobreposta quazi três mil passos pouco mais ou menos. (…) por parte do Nascente e Poente e Sul hé cercada de montes; e por parte do Norte com huma beiga que se cultiva, que se extende athé a outro lugar de Sobreposta e a outra freguesia próxima, chamada Pedralva.” Os vestígios encontrados na freguesia indiciam que o seu povoamento remonta ao período neolítico (cerca de 10 mil anos A.C.). De facto, a Mamoa de Sandim que, entretanto, foi destruída, era uma construção milenar típica dos povos da pré-história, que consistia em criar uma espécie de couraça em pedra para tapar as sepulturas, criando um formato côncavo ou circular em alto-relevo. Sobreposta foi palco de passagem de Romanos, Suevos e Visigodos. Agarrou-se às tradições cristãs desde muito cedo, sendo já fiel a esta religião aquando os inícios do século VIII. A sua localização geográfica situa-se “no charmoso Baixo Minho, a cerca de uma dezena de quilómetros da moderna e acolhedora cidade de Braga, num bonito planalto, entre os rios Este e Febras, no 13
triângulo turístico da Citânia de Briteiros e dos montes do Sameiro e do Bom Jesus.” (Silva, J. F. (2019), Sobreposta Mater. Braga: Associação Social e Cultural). A freguesia encontra-se assim no extremo oriental do concelho, fazendo fronteira com as freguesias de Pedralva e Espinho e distando cerca de dez quilómetros da cidade de Braga. É descrita muitas vezes como “uma freguesia desconhecida por muitos porque está escondida atrás do Sameiro”.
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Heráldica
O Brasão da freguesia de Sobreposta, da autoria de José Bénard Guedes, caracteriza-se por 6 elementos. O elemento que serve como base principal é um escudo verde. O escudo é onde assenta o monte dourado movente da ponte. Este monte representa a localização geográfica da freguesia, mais precisamente, o Monte da Pena, um local de interesse turístico, onde se localizava o dito conjunto de pedras que terá dado origem ao nome da freguesia. Os três bastões de negro, postos em faixa e alinhados em pala, simbolizam os vestígios das três ordens de muralhas existentes no Monte da Pena que, no passado, defendiam a povoação, comprovando, assim, o remoto povoamento desta zona. Em cima do escudo verde, por cima dos três bastões, apresenta-se uma flor de lis prateada, que representa Santa Maria, a padroeira da freguesia. No topo, consta uma coroa mural prateada, com a representação de três torres, que retratam os vestígios das três ordens de muralhas encontradas no monte da Pena. Em baixo, está uma faixa branca, com uma legenda a negro, onde se lê “SOBREPOSTA – BRAGA”. A bandeira de Sobreposta é branca, com cordão e bordas prateadas e verdes. A haste e a lança são douradas.
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Figura 1 - Brasão de Sobreposta
Breve Caracterização
Sobreposta apresenta uma área de cerca de 6 quilómetros quadrados (5,98km2) e a sua densidade populacional, aquando dos últimos Censos (2011), era de 217.5, com 1301 habitantes. Segundo estes dados oficiais, é a terceira freguesia de Braga com menor densidade populacional, muito provavelmente, devido ao forte êxodo migratório de população ativa. De facto, nas décadas de 60 e 70, assistiu-se a um movimento significativo de pessoas que procuraram melhores condições de vida na emigração a salto para outros países, fazendo-o especialmente para França. Houve também migrações para outras zonas do país, nomeadamente para a área metropolitana de Lisboa. Parte desta população regressou à terra já na reforma, evidenciando o facto de Sobreposta ter uma população envelhecida. Em jeito de curiosidade, segundo as Memórias Paroquiais, em 1758, a freguesia albergava um total de 320 habitantes, que se dividiam em 91 agregados familiares. E em 1801, acolhia 283 moradores. Sobreposta é terra de gentes trabalhadoras, que lutaram ao longo dos anos pela subsistência das suas famílias e das suas terras. Os relatos dos mais antigos contam tempos difíceis, trabalho árduo, caminhos longos e tortuosos, que dependiam muito da persistência, coragem, espírito de colaboração e entrea juda da comunidade. A freguesia está fortemente ligada à economia de subsistência, desde os seus primórdios, fundamentalmente marcada pelas atividades de agricultura e pecuária, moagem, tecelagem e serragem. Apesar de hoje abarcar indústria, a herança do setor primário é ainda bem visível e continua bem presente nos recantos 18
dos lugares e das memórias de quem os habita. Efetivamente, a agricultura constitui, dentre as mencionadas, a atividade principal dos sobrepostenses. Os homens encarregavamse das tarefas mais árduas, no campo, enquanto as mulheres tratavam das lides domésticas, dos filhos, participando ativamente nos campos, nas épocas de maior trabalho. A agricultura era mais do que uma forma de trabalho ou de meio de subsistência, era também uma forma de convívio, de confraternização, de partilha e de desfrute. Era o ponto de encontro entre os vizinhos, que cantavam, dançavam e celebravam com um bom vinho verde e um bom pão de milho ou centeio. A tecelagem era uma das atividades mais típicas das mulheres, que teciam o algodão em casa e depois o carregavam à cabeça, por longos quilómetros, a pé, até às fábricas de Pevidém, em Guimarães. Saíam de casa, por volta das 3 da manhã, para serem as primeiras a apanhar uma teia. Além disso, ainda participavam nos trabalhos do campo, como referido anteriormente. A moagem era o meio de subsistência de cerca de 5 ou 6 núcleos familiares, contam os mais velhos. Era uma fonte de poucos rendimentos, já que, nos tempos idos, pouco ou nenhum dinheiro era pago em troca da farinha. Os pagamentos eram essencialmente feitos em géneros, nomeadamente em pão, vinho ou outros alimentos, para além da “maquia”, que era, nada mais, nada menos, que uma pequena porção da farinha que o moleiro tinha direito a arrecadar para si. Os moleiros trocavam a sua farinha nas tabernas que iam encontrando nos seus caminhos, onde petiscavam o pão e o vinho e enterneciam os transeuntes com as notícias de outros lugares. Eram uma espécie de “noticiários ambulantes”. A serragem era trabalho de homem, pois tratava-se de uma profissão de alto risco, já que os trabalhadores incorriam em muitos acidentes e passavam muito tempo fora de casa. Na maioria das vezes, estes saiam de casa no início da semana, apenas com uma 19
broa de milho e regressavam no final de uma ou mesmo de várias semanas. Viam-se obrigados a procurar a madeira para serrar por entre os vales limítrofes, nomeadamente em Guimarães ou mais longe, como em Montalegre, o que os impedia de regressar a casa diariamente, devido à dificuldade dos caminhos e dos transportes, na época. Para dormir, procuravam um lavrador na zona que lhes desse guarida e a sopa da noite. Sobreposta é ainda berço de outros profissionais mais especializados, ainda que com muito menor expressão, como o caso dos cesteiros, dos carpinteiros, dos pedreiros, dos sapateiros, dos tamanqueiros, dos alfaiates e das costureiras.
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Infraestruturas e Equipamentos
Acompanhando a evolução normal das terras, nomeadamente do concelho de Braga, a freguesia de Sobreposta procurou desenvolver infraestruturas e equipamentos que trouxessem melhor qualidade de vida aos seus habitantes e condições mais atrativas aos seus visitantes. Assim, para além do património cultural imóvel, que será descrito mais adiante, a freguesia conta com diversos equipamentos, alguns dos quais foram sendo objeto de reestruturação ao longo do tempo. A sede da Junta de Freguesia, na Avenida da Igreja, sofreu recentemente uma renovação, tornando as suas instalações mais confortáveis para receber os sobrepostenses na diversidade de serviços que oferece. Para os mais novos, existe um jardim de infância e uma escola básica de primeiro ciclo. Esta escola também foi alvo de remodelações e ampliação, no ano de 2006. Tem instalações de cantina, salas de informática e polivalente. Em outubro de 1975, foi criado um Posto de Telescola, em instalações provisórias. Frequentaram esta escola 46 alunos que, no ano seguinte, viram a continuidade dos seus estudos em risco. Dada a gravidade da situação, um grupo de cidadãos, preocupados com a educação dos jovens da terra, rumaram a Lisboa, mais precisamente ao Instituto de Meios Audiovisuais da Educação (IMAVE).
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Figura 2 - Requerimento entregue no IMAVE em outubro de 1975
De modo a garantir a continuidade da Telescola na freguesia, os sobrepostenses providenciaram as condições físicas necessárias, nomeadamente o terreno, água e luz. Desta ação resultou uma Ata que a seguir se apresenta, datada de 3 de junho de 1976, assinada pelos seus promotores: Alexandre Joaquim Alves de Araújo, Armando Lopes, Joaquim Viera de Macedo, José Joaquim da Siva Rodrigues, Domingos Ribeiro da Silva, Fernando Marques Mendes, Victor Manuel da Silva e Alberto Gomes da Silva.
Figura 3 Ata da reunião de 3 de junho de 1976 no IMAVE
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Este grupo de cidadãos conseguiu, assim, garantir a oportunidade de prossecução dos estudos, por parte das crianças de Sobreposta, Pedralva e Espinho. Na sua época de juventude, esta oportunidade não era concedida às crianças, que apenas tinham possibilidade de concluir os estudos primários, visto que não existia oferta de escola preparatória (2ºciclo) em Sobreposta ou nas freguesias limítrofes. Naquela altura, não havia autocarros escolares à disposição da população, nem possibilidades financeiras para sustentar as crianças a viver na cidade. Portanto, aqueles que conseguiram estudar além do ensino primário foram os rapazes que enveredarem pelo Seminário, que lhes proporcionava estudos, dormida e alimentação. Alguns entusiasmaram-se com essa possibilidade e prosseguiram com a vida religiosa, o que também era um motivo de orgulho para as suas famílias, mas outros, mais tarde, vieram a perceber que os caminhos da Igreja não preenchiam a sua vocação. Além disso, as crianças começavam cedo a a judar os pais nas lides do campo. Todos os dias, a alvorada era por volta do nascer do sol. Os rapazes, antes de irem para a escola, à luz das candeias, a judavam nas tarefas agrícolas, nomeadamente a encher os carros de bois com estrume, para levar para adubar os campos, e só depois seguiam para a escola. Hoje, as crianças de Sobreposta, Espinho e Pedralva desfrutam do transporte escolar, que lhes permite prosseguir os seus estudos nas escolas da cidade, no caso, na Escola Básica 2, 3 de Gualtar. Com o convite para integrar o Conselho Escolar do Agrupamento de Escolas de Gualtar, a direção da Associação Social e Cultural fez um acordo com a Companhia de Música da Fundação Bomfim e com a Escola Básica 2/3 de Gualtar, de modo a criar uma turma do ensino articulado da música com os alunos de Sobreposta, Pedralva e Espinho que, no ano letivo 2009-2010, ingressaram no 5º ano de escolaridade. No que se refere a equipamentos sociais, a freguesia dispõe do Centro Social e Paroquial de Sobreposta, cujo edifício sede foi 23
inaugurado em 2002, alargando as suas valências a Lar de Idosos (com alargamento em 2011), Centro de Dia e Centro de Atividades de Tempos Livres, sendo que o Serviço de Apoio Domiciliário já funcionava desde 1992. Em 2014, nasceu a Creche, funcionando na freguesia vizinha de Espinho. (Este Centro dispõe ainda de um salão paroquial. O Centro de Saúde de Pedralva, freguesia contígua, quinzenalmente, oferece Serviço de Enfermagem.) No que respeita a equipamentos recreativos, a Piscina Municipal, aberta ao público desde junho de 2012, faz as delícias de muitos fregueses, bem como dos munícipes de freguesias vizinhas ou do centro de Braga, ou até mesmo de concelhos limítrofes. Prima pela organização e limpeza, recebendo, em média, duzentas pessoas por dia, nos meses de verão. Aos domingos, oferece aulas de hidroginástica, atividade muito aclamada pelos conterrâneos. O Parque Desportivo foi inaugurado em agosto de 2013, oferecendo um novo Campo de Futebol aos fregueses e ao clube da terra – Futebol Clube de Sobreposta - e um Pavilhão Gimnodesportivo para a prática de várias modalidades desportivas de interior. Serve ainda de palco para diversas festividades da freguesia, nomeadamente o almoço de Natal. Em setembro de 2017, inaugurou-se o mais recente equipamento da freguesia – o Parque de Lazer de Sobreposta, obra muito desejada. O parque dispõe de 38 mesas, um edifício de apoio e vários equipamentos para a realização de churrasco. Está preparado para receber cerca de 300 pessoas, valorizando o contexto ambiental da freguesia. Sobreposta dispõe ainda de um Parque Industrial, que muito tem servido para dinamizar o mercado de trabalho da freguesia, dando oportunidades fora do setor primário, aquele que ao longo dos tempos tem sido o mais vincado na zona. A recente ligação a partir da variante do Alto da Vela veio melhorar de forma considerável os acessos a este parque, trazendo maior dinamização à freguesia.
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Conta também com uma oferta de serviços, ao nível da restauração, pequeno comércio, clínica dentária, posto de abastecimento de combustível e, recentemente, em janeiro deste ano (2020), foi instalada uma Caixa Multibanco junto às instalações da junta de freguesia. É ainda de referir o importante investimento em estradas e transportes públicos, facto de grande relevo para uma maior abertura da freguesia ao exterior, impulsionando o seu desenvolvimento. A falta de estradas asfaltadas e de transportes vedava muito o acesso a determinados serviços que iam chegando tardiamente à freguesia e também ao conhecimento e convívio com outras realidades diferentes. Os mais antigos recordam que, quando necessário, as viagens à cidade eram, na sua maioria, feitas a pé, com as socas nos pés e as botas boas penduradas às costas, para não se estragarem por entre os cerca de dez quilómetros deste percurso. Quando surgiu a primeira carreira para a cidade, que saía pela manhã e regressava ao final do dia, o seu preço era proibitivo para a maioria. Este foi um dos motivos que manteve Sobreposta tão “escondida” e isolada ao longo dos séculos. Pelo exposto, a luta pelo melhoramento das vias foi algo levado muito a sério pelos sobrepostenses, chegando a criar disputas com os vizinhos de Pedralva. Uma dessas lutas, conta Alberto Gomes da Silva, foi ganha pelo simples pedido de uma cozinheira ao seu patrão - o senhor Guimarães da Casa da Igreja de Briteiros - que, na época, era Ministro dos Transportes e, portanto, pessoa de poder que anuiu ao sentimento da sua colaboradora e fez com que a estrada para Briteiros passasse por Sobreposta (Lageosa), em vez de Pedralva. Em 1997, Sobreposta e Espinho juntaram-se para reivindicar à Junta Autónoma das Estradas a requalificação da estrada nacional 309, que liga as freguesias à cidade. Este documento, datado de 3 de março de 1997, foi assinado pelas Assembleias e Juntas das duas freguesias aliadas.
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Figura 4 - Carta à Junta Autónoma das Estradas de 3 de março de 1997
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Composição da Junta de Freguesia
Em 1832, os liberais criaram as Juntas de Paróquia, nome que se alterou, em 1916, para Juntas de Freguesia, designação que se manteve até aos dias de hoje. Anteriormente a estas datas, existiam as Confrarias do Subsino.
Figura 5 Estatutos da Confraria de Subsino de 1764
Os estatutos da Confraria de Subsino, sita na Igreja Paroquial de Santa Maria de Sobreposta, couto de Pedralva, foram criados em 1764 e assinados pelo Arcebispo D. Gaspar de Bragança e são dignos de serem lidos.
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No 1º capítulo destes estatutos, podemos ler: “No dia da primeira outava do Natal em cada hum anno se fará a ellejção do Juiz e mordomos que hão-de servir a Confraria de Subsino (…).” E os deveres do pároco? “Ordenamos que o Reverendo Parocho, que for desta freguesia terá obrigação de fazer todos os clamores, e romarias: a vinte de Janeiro, procissão a São Sebastião do Carvalho; na primeira sexta feira da Coresma, procissão a Nossa Senhora da Misericordia; e na segunda sexta feira á Senhora do Pillar, e no mesmo dia outra em São Sebastiao do Carvalho; e na terceira sexta feira duas, a primeira na igreja do Salvador de Pedralva, e no Espirito Santo da mesma freguesia de Pedralva; e na quarta sexta feira a Santo Antonio de Espinho, e no mesmo dia na Senhora da Luz; e na quinta sexta feira á Senhora do Rosário em Santa Leocadia, e no mesmo dia procissão em São Tome (…).” A Junta de Freguesia, instituição que agora tão bem conhecemos, tem desempenhado um papel fulcral no desenvolvimento de Sobreposta. No período anterior à Revolução dos Cravos, aquando das eleições de 18 de outubro de 1967, a junta tinha como efetivos José Maria Lopes, Augusto Mendes e Joaquim Vieira de Macedo e como suplentes: José da Silva Gil, Domingos José Antunes e José Alves de Araújo. Alguns destes elementos fizeram parte da composição seguinte, conforme se pode ler abaixo. Foi o caso de Augusto Mendes e Joaquim Vieira de Macedo. Em abril de 1974, presidia Alexandre Joaquim de Araújo, com apoio de Augusto Mendes, como Secretário, e Joaquim Vieira de Macedo, como Tesoureiro. Desde o aclamado 25 de abril de 1974, a Junta foi presidida por seis homens e uma mulher (presidente atual). Assinalam-se, assim, as seguintes composições:
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De 1976 a 1979, a direção contou com José Joaquim da Silva Rodrigues, como Presidente, Manuel Antunes Ribeiro, como Secretário, António Joaquim Ferreira Rodrigues, como Tesoureiro e José Carvalho da Silva, como Presidente da Assembleia. De 1979 a 1981, Joaquim Vieira de Macedo, antigo Tesoureiro, passou a Presidente, Maria Alice da Silva Lopes esteve como Secretária, Domingos Ribeiro da Silva como Tesoureiro e José da Costa Simões presidiu à Assembleia. De 1982 a 1984, o anterior presidente da Assembleia passou a Presidente da Junta (José da Costa Simões), a Secretária permaneceu (Maria Alice da Silva Lopes), David Gonçalves Gomes foi Tesoureiro e António Vaz Antunes presidiu à Assembleia. De 1985 a 1989, o Presidente foi Manuel Joaquim Antunes, José Carlos da Silva o Secretário, Domingos Ribeiro da Silva repetiu mandato como Tesoureiro e Domingos Antunes Mendes presidiu à Assembleia. De 1990 a 1993, José Carvalho da Silva foi o Presidente eleito, o anterior presidente passou a secretário (Manuel Joaquim Antunes), o Tesoureiro e o Presidente da Assembleia permaneceram (Domingos Ribeiro da Silva e Domingos Antunes Mendes, respetivamente). De 1994 a 1997, a composição da direção da Junta de Freguesia foi exatamente a mesma que no mandato anterior. De 1998 a 2001, o Presidente manteve-se no cargo, pelo 3º mandato consecutivo (José Carvalho da Silva), o Secretário foi José Rodrigues Lima, o Tesoureiro permaneceu, pelo 4º mandato, sendo o 3º consecutivo (Domingos Ribeiro da Silva) e António da Silva Gomes foi o Presidente da Assembleia. De 2002 a 2005, a única alteração sofrida na composição da Junta foi a do Presidente da Assembleia, que passou a ser António da Silva Teixeira.
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De 2006 a 2009, o Presidente de Junta foi Alexandre José de Sá Vieira, o Secretário Manuel Marques da Costa, o Tesoureiro António Rodrigues Lima e o Presidente de Assembleia Abílio Ângelo Domingues e Joaquim Macedo Ribeiro. De 2009 a 2013, apenas se alterou o Presidente da Assembleia, passando a ser José Rodrigues Lima, antigo Secretário (entre 1998 e 2005). De 2013 a 2017, a composição da Junta não sofreu quaisquer alterações, mantendo-se na íntegra a equipa do mandato anterior. De 2017 a 2021, surge a primeira mulher presidente de junta em Sobreposta – Maria Elizabete Marques Silva. O Secretário e o Tesoureiro seguem no 4º mandato consecutivo – Manuel Marques Costa e José Rodrigues Lima, respetivamente. A Assembleia é presidida pelo anterior presidente de Junta - Alexandre José de Sá Vieira. Nota: estas informações foram retiradas do livro Freguesia de Sobreposta – Um Pouco da Sua História, da autoria de Fernando Melo Mendes, editado em Braga, pela Associação Social e Cultural de Sobreposta, em agosto de 2015.
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Principais personalidades
O desenvolvimento de Sobreposta não se fez apenas impulsionado pelos órgãos de soberania, mas muito pela via informal, pela vontade das suas gentes. Neste sentido, existem figuras carismáticas que merecem destaque pelo importante desempenho que tiveram, ao longo dos tempos, junto da comunidade e que continua visível nos dias de hoje, quer de forma material, quer imaterial. Destacar-se-ão, então, algumas das personalidades mais marcantes de Sobreposta, ainda que o tema em si merecesse o seu próprio livro, tal é o rol de sobrepostenses carismáticos. Comecemos por José Antunes de Sousa e Sá, mais conhecido por Zé do Oleiro. Convém explicar que, em Sobreposta, as referências às pessoas faziam-se pelo nome próprio, seguido do nome da casa à qual pertenciam, no lugar do apelido. Neste exemplo, podemos ver que, em vez de José Sá, esta personalidade era conhecida por José (ou Zé, usando o diminutivo) do Oleiro (Oleiro era a referência à casa onde nascera – Casa do Oleiro). Este senhor, nascido a 4 de fevereiro de 1892, deixou uma forte marca no coração de Sobreposta. Contou o próprio aos seus conterrâneos que foi alvo de um milagre que lhe salvou a vida, no campo de batalha. Aconteceu em plena Primeira Grande Guerra, quando o Zé do Oleiro foi destacado para combater na Flandres, em França, contra os alemães. “Foi na memorável e cruel batalha de 9 de abril de 1918, em França.
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Figura 6 Memórias de um Herói da Grande Guerra, de José Antunes de Sousa e Sá
Combatia heroicamente desde as 3 horas da madrugada até às 6 horas da tarde entre fogo e assaltos ferozes do inimigo, no meio de uma pavorosa chuva de balas e granadas, canhões e aeroplanos, metralhadoras e gases asfixiantes! Por último, veio uma bala de metralhadora bater-me em pleno peito, do lado do coração, furandome o fato e a camisa, parando em presença deste pequeno crucifixo, cuja haste superior cortou e da medalha da Imaculada Conceição. Esta bala seria para mim fatal se não fosse a intervenção de Deus, pois aquele projétil, parece que de propósito, chegou a queimar-me a pele naquele lugar, para ficar bem assinalado o fervor de Jesus e da Virgem Mãe Imaculada.” (José António de Sousa e Sá, Memórias de Um Herói da Grande Guerra, Sobreposta, Braga). Este excerto foi escrito pelo próprio José do Oleiro que, mais tarde, escreveu a sua história à mão, num pequeno caderno, intitulado de “Memórias de Um Herói da Grande Guerra” e que, já 32
na década de 60, foi passado à máquina de escrever por dois jovens estudantes - Fernando Marques Mendes e José Fernandes da Silva. O sobrepostense, no momento em que se apercebeu que a sua sobrevivência se devia a este crucifixo, fez uma promessa: quando regressasse à terra, iria encomendar um crucifixo de Jesus para oferecer à Igreja Paroquial de Sobreposta. Assim aconteceu: na década de 50, aquando das obras de remodelação, instalou-se na Igreja Paroquial de Sobreposta um grande crucifixo de Jesus, esculpido em madeira. No seguimento desta história, destaca-se outra personalidade que acabou por ter nela uma participação crucial – o Padre José Joaquim Esteves. Este pároco, fiel a Deus e fervoroso da terra, assim que tomou conhecimento do alegado milagre do Zé do Oleiro, batizou o crucifixo e imortalizou a ideia do Bom Jesus dos Milagres. Contribuiu para o enraizamento da fé no Senhor, fomentando a visita de muitos sobrepostenses emigrados, mas também de forasteiros, nomeadamente combatentes da guerra, que procuravam a Igreja de Sobreposta para depositar a sua fé e as suas promessas no Bom Jesus dos Milagres, na esperança de um milagre que lhes salvasse a vida. Foi uma figura muito querida da freguesia, que soube cativar e estimular a fé, levando Sobreposta às bocas de muitos pelas melhores razões. Outra das personalidades que merece grande destaque é Augusto Mendes – o dono da Mercearia e Vinhos de Augusto Mendes. Considerado por muitos como um grande benfeitor, era uma pessoa de servir e de a judar o próximo. Era respeitado na freguesia e arredores, de tal forma que à sua venda vinham muitos de fora e não havia fornecedor que lhe recusasse encomenda. Dada a sua bondade e respeito pelo próximo e pelas dificuldades alheias, servia todas as pessoas que requisitassem os produtos e serviços da Mercearia, tivessem ou não forma de os pagar. Diz-se que acumulava pilhas de livros de registos dos “fiados”. Ali anotava 33
as saídas e as dívidas que cada um ia abatendo com o tempo, conforme podia, quer em dinheiro quer em géneros. A época era difícil e o dinheiro escasso, o que tornava as trocas de géneros muito habituais e o Sr. Augusto Mendes era sensível a isso. Mas, a sua Venda não era apenas local de troca de produtos alimentícios, para a casa ou para as lides do campo ou de outras áreas de profissão. A Venda era também um posto de correios informal. Era lá que entravam e saíam as cartas para os entes queridos emigrados ou destacados na guerra. Detinha o único telefone público da freguesia. Sempre que algum ente querido ligava, era preciso chamar o respetivo destinatário do telefonema; se fosse preciso chamar a juda ou ligar para algum serviço longínquo, lá estava o telefone do Sr. Augusto disponível. Esta personalidade tinha ainda outra paixão: os bombos e as caixas. Paixão antiga que herdara do seu pai, Augusto Mendes adquiria as peles de cabra, entregava-as ao seu irmão para que as curtisse com estrume do gado, debaixo da terra, e depois ele mesmo aplicava-as nas caixas. Tinha, na sua Venda, caixas para alugar ou mesmo para emprestar a quem precisasse. Era, portanto, um homem respeitado e acarinhado por todos. E foi esta reputação que conquistou o seu sogro, pai da sua querida Dilinha (Maria Adília de Melo), de quem teve dez filhos. Conta-se que, quando Augusto Mendes se apaixonou por aquela que viria a ser a sua esposa, o Senhor Melo, pai da rapariga, não ficou nada contente. De modo a verificar de quem se tratava, decidiu conhecer o pretendente da sua filha, de forma discreta, sem que este o pudesse identificar. Colocou-se então a caminho, saindo da sua terra - Póvoa de Lanhoso - até à Venda de Lageosa. E, após verificar o respeito e cuidado com que o senhor Augusto tratava os seus fregueses, o senhor Melo deixou-se conquistar, dando a sua bênção ao namoro. Quem pelos vistos não ficou muito entusiasmada foi a sua Adilinha que, de início, não se apaixonara por Augusto, um homem de estatura pequena, mas cujo coração grande a conquistou, acabando por viver um casamento muito feliz.
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Outro senhor que merece destaque é José da Silva Gil, mais conhecido por Gil do Paço (casa onde nasceu). O senhor Gil era um agricultor brioso e de coração generoso. Cuidava das suas culturas e dos seus campos com afinco e era generoso para quem precisava de campo de cultivo e não possuía, facilitando-lhes os seus terrenos. Era também o enfermeiro de serviço da freguesia. Tinha sempre, na sua casa, conhecida por Sala da Eira, uma caixa de primeiros socorros apetrechada, para quando alguém precisasse de um curativo, limpar uma escoriação ou levar uma injeção. Caso fosse necessário ir ao Hospital de S. Marcos, era ele quem tratava e cobria os gastos daqueles que não tinham como pagar. Na Sala da Eira, o senhor Gil do Paço oferecia ainda alguns serviços de notariado, como a judante do Registo Civil, onde os sobrepostenses podiam registar casamentos, nascimentos e falecimentos. Segundo contam os seus conterrâneos, acompanhou muitas pessoas a Lisboa, que necessitavam de embarcar na Gare Marítima de Alcântara, para emigrar. Este bondoso homem desempenhava ainda funções na paróquia, como assistente e conselheiro do Padre. Todos estes ofícios foram desempenhados por amor ao próximo, não recebendo o Sr. Gil qualquer contribuição pelos serviços prestados. Da geração que se seguiu, importa referenciar outras personalidades bem conhecidas dos sobrepostenses. Começamos por José da Silva Fernandes. Natural de Lageosa, este senhor sempre demonstrou um forte apelo pela sua terra natal, apesar de, desde muito cedo, se ter visto obrigado a estudar fora, devido a um acidente que o cegou, quando ainda era criança. Formou-se nas artes da música, obtendo o grau de bacharel em Composição, pela Escola de Música Calouste Gulbenkian, e licenciouse em Orientação Educativa, na Universidade Católica Portuguesa. Trabalhou como professor de Educação Musical e foi o grande impulsionador do ensino da música na freguesia de Sobreposta.
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É o autor do Hino de Sobreposta, publicado no livro intitulado Preito a Sobreposta – Canções e Instrumentais, editado em Braga, pela Associação Social e Cultural de Sobreposta, no ano de 2019. É ainda autor dos livros Ares de Sobreposta e Sobreposta Mater, também editados em Braga, pela Associação Social e Cultural de Sobreposta, em junho de 2015 e março de 2019, respetivamente. É, ainda, autor de uma vasta bibliografia de composições musicais para uso nas celebrações litúrgicas e outras obras em prosa e poesia. O Padre Manuel José Gonçalves é uma figura incontornável de Sobreposta. Foi, inclusive, edificado um busto em sua homenagem, que se encontra localizado no largo do Centro Social e Paroquial de Sobreposta. Este Pároco serviu a freguesia durante dezoito anos, sempre procurando melhorar a vida dos seus conterrâneos. “Ele foi o grande impulsionador do Centro Social e Paroquial de Sobreposta, destinado aos mais idosos, e da ATL para os mais novos. (Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta - Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural). O senhor Domingos Ribeiro da Silva, mais conhecido por Dominguinhos do Monte, recentemente falecido (30-10-2020), foi o encarregado dos trabalhos necessários ao restauro da Capela de S. Tomé da Lageosa, a pedido do pároco de então – o Padre José Esteves (anteriormente mencionado). Foi Domingos da Silva que plantou todo o arvoredo existente à volta da Capela e se encarregou de coordenar todos os trabalhos necessários, tais como chamar as pessoas para trabalhar, fazer os pagamentos, enfim, todas as tarefas que garantissem o bom andamento da obra. Foi um dos grandes impulsionadores da criação de uma associação social e cultural na terra, por considerar que as memórias, estórias, vivências e história da freguesia devem manter-se vivas. Foi, também, uma fonte de conhecimento usada na escrita das diversas edições que se têm feito nos últimos anos acerca de Sobreposta, dada a sua extensa e apurada memória, que lhe permite recordar a sua longa vivência, bem como as estórias antigas 36
contadas pela sua avó. Era um dos últimos grandes tocadores de caixa da Sobreposta. Irmão de Domingos do Monte, Alberto Gomes da Silva, ou Bertinho do Monte, tem sido também um dos grandes estimuladores à preservação do património de Sobreposta. Este senhor foi um dos fundadores da Associação Social e Cultural. Mesmo vivendo distanciado da sua terra natal, não quis deixar que as suas memórias e costumes esmorecessem. Partiu de si a organização do primeiro encontro de sobrepostenses, que viria a dar origem às primeiras ideias da criação de uma associação. Enquanto residente em Lisboa, o que aconteceu por umas dezenas de anos, foi incansável na receção de conterrâneos em sua casa, aos quais oferecia guarida e refeição. Acompanhava-os ainda onde fosse necessário, quer se tratasse de uma iniciativa de emigração, de cumprimento do serviço militar ou mesmo de uma ida a um ministério ou outro serviço geral estatal. As gentes de Sobreposta sempre contaram, nas suas deslocações a Lisboa, com alguém que os acolhesse e os orientasse na grande cidade. Primeiro foi o senhor Francisco Silva, conhecido como o Chico do Avelino. Depois, foi o senhor Alberto a abrir a sua casa a toda a gente da terra ou das terras vizinhas. Uma menção também ao Padre José Ribeiro Mendes, mais conhecido por Padre Zé do Muro. Este sacerdote celebrou, em dezembro de 2019, cinquenta anos de Ordenação Sacerdotal, pelo que foi celebrada uma Missa em sua honra, na Igreja de Sobreposta. Natural de Lageosa, estudou em Viana do Castelo, onde fez a sua Profissão de Votos Perpétuos. Apesar de ter feito a sua vida de adulto e de ligação à Igreja fora de Sobreposta, este senhor manteve uma forte ligação à terra e às suas necessidades, tendo sido um dos fundadores da criação de uma Associação Social e Cultural. O Padre Zé do Muro foi o autor da letra e música do Hino ao Bom Jesus dos Milagres. 37
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Contextualização
A festa do Santíssimo Sacramento ou festa do Senhor, como é também conhecida, é uma das grandes tradições desta freguesia. Esta festa ocorre em honra do Santíssimo Sacramento, todos os anos, no último domingo do mês de julho. Segundo consta, esta festa realiza-se há mais de 235 anos. A responsabilidade da sua organização cabe à Confraria do Augustíssimo e Santíssimo Sacramento, que nasce da extrema devoção dos Sobrepostenses, no ano de 1778.
Figura 7 Estatutos da Confraria do Augustíssimo e Santíssimo Sacramento de 1778
Os seus estatutos detêm duas assinaturas muito importantes: a do Arcebispo D. Gaspar de Bragança e a do Desembargador Inácio José Peixoto. De acordo com os seus Estatutos, reformados em 1917, a Confraria tem a obrigação, entre outras coisas, de “promover, na 40
forma devida e costumada, o culto do Santíssimo Sacramento”. Tem também vários deveres aquando do falecimento dos seus confrades, apesar de alguns terem vindo a modificar-se, com o passar do tempo. Alguns desses deveres contemplam a recolha do corpo do confrade em sua casa, acompanhado pelos mordomos de Lageosa ou de Sobreposta, (consoante a residência do confrade), até à Igreja e depois da igreja ao cemitério; colocar quatro velas a arder de noite e de dia, desde o falecimento até ao funeral; providenciar o funeral e encomendar treze missas. Antigamente, o corpo era benzido por uma cruz de prata, da propriedade da Confraria. A festa do Santíssimo Sacramento tem um forte cariz religioso pelo modo como enfatiza a adoração ao Senhor e acaba também por ser uma força de união entre os habitantes da freguesia, que muito se esforçam por manter viva a tradição. Além das quotas pagas pelos confrades, a Comissão da Festa faz um peditório em toda a freguesia para angariar os fundos necessários para as despesas da própria Festa e dos encargos específicos da Confraria. O peditório começa geralmente antes da Páscoa e acontece, novamente, antes do início das celebrações. Antigamente, quando os donativos eram mais feitos em géneros que em dinheiro, o peditório era feito no tempo das colheitas, ou seja, setembro/outubro. Como é compreensível, apesar de ser uma tradição secular, com o passar do tempo, esta festa tem vindo a tomar novas formas. Hoje, não consiste apenas em atos de veneração religiosa, existe também um cariz profano, de puro desfrute. Esta vertente foi sendo introduzida como uma forma de cativar mais pessoas, nomeadamente as camadas mais jovens da população, que não se ligam tão facilmente às tradições da terra, como os mais velhos, que as vivenciaram em tempos diferentes, com circunstâncias bem distintas. Atualmente, o programa da festa compreende todo o fim de semana e inclui grupos de animação musical e fogo preso. O primeiro mote da festa é dado no sábado de manhã, pelo grupo de 41
Zés Pereiras, que percorre todos os pontos da freguesia. Da parte da tarde, ocorre o levantamento e colocação do arco da festa, que é acompanhado pelo rufar dos tambores, ao longo de todo o percurso. Ao final do dia, há missa e à noite música e animação, que termina com uma sessão de fogo de artifício. No domingo de manhã, ocorre a Missa Solene e o Sermão ao Sagrado Coração de Jesus. Nesta altura, crianças e jovens celebram a Primeira Comunhão e a Profissão de Fé. Da parte da tarde, os atos religiosos continuam com a Adoração do Santíssimo Sacramento, Sermão e, por fim, a Procissão Eucarística. Esta Procissão é muito respeitada por todos e, por isso, as pessoas caminham em silêncio. À passagem da Custódia com o Santíssimo Sacramento, os participantes a joelham-se, tocando com o joelho direito no chão. A festa prolonga-se para a noite, com animação musical, e encerra com nova sessão de fogo de artifício.
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Arco da Festa
O Arco da festa é o elemento mais carismático, não apenas pela forma como é feito, mas pela tradição na maneira como é carregado, içado e colocado. Desde 1895, data desde a qual se encontram evidências da sua realização, não há memória da sua ausência, o que perfaz 125 anos de tradição. Por mais difícil que às vezes possa parecer a manutenção desta tradição, todos os anos, ao longo de distintas gerações, o Arco em honra do Santíssimo Sacramento é erguido e fixado no adro da Igreja Paroquial de Sobreposta. O primeiro passo para a construção do Arco é a preparação da madeira. Assim, cerca de um mês antes da festa, procuram-se dois eucaliptos, de acordo com dois critérios: os que forem mais altos e estiverem mais direitos. Esta madeira é oferta do proprietário dos eucaliptos escolhidos. Depois de abatidos e transportados, cortamse e deixam-se a secar, de modo a que a madeira se torne mais leve. É importante referir que este Arco pode chegar a pesar cerca de 3 toneladas! Depois da preparação da madeira, faz-se o desenho do Arco, ou seja, uma planta que sirva de base à construção. Os Arcos medem, em altura, entre 25 e 30 metros, pelo que é necessário que ha ja uma orientação clara à sua construção. Importa referir que o desenho do Arco nunca se repetiu, portanto, todos os anos é renovado. Cerca de quinze dias antes, passa-se à construção e retira-se o Arco do ano anterior do local de fixação (largo da Igreja de Sobreposta).
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Uma semana antes, dá-se início à fase de asseio, cuja responsabilidade é das mordomas da festa, desde a escolha e compra dos materiais até à sua colocação. Antigamente, o asseio fazia-se com recurso a tintas para as pinturas e a folhas de papel colorido para a criação de motivos, mas, hoje em dia, utiliza-se o plástico, em substituição do papel, uma vez que é mais resistente às intempéries e o objetivo é que o arco se mantenha o mais intacto possível, durante o ano todo. Antigamente, nesta fase, ou seja, uma semana antes, era também necessário “abrir caminho”. Quer isto dizer que era necessário preparar a estrada que serve de percurso, desde o local de construção até ao largo da Igreja, um percurso de cerca de dois quilómetros (dependendo do ano e do lugar de onde sai, varia entre cerca de 1,5km e 2,5km). De facto, a freguesia tem sofrido uma grande evolução, ao nível das infraestruturas, nomeadamente no que respeita ao arruamento, como já foi referido, mas, antigamente, grande parte dos caminhos era em terra batida. Lageosa, por exemplo, só tem estrada desde 1934. Dado que o Arco pode chegar a ter 30 metros e 3 toneladas, são necessárias muitas pessoas para o carregar em braços, pelo que os caminhos devem ser largos e o mais planos possível, para minimizar o esforço que abarca a tarefa. Isto implicava, então, a limpeza dos caminhos e o corte de árvores. Existe até uma expressão popular entre os sobrepostenses que diz: “O Arco não vai pelos caminhos da Missa”, indicando que existem momentos em que não se pode “atalhar” e tomar as vias mais curtas, como era comum fazer-se quando se ia para a missa. Chegado o dia da festa, vem a fase mais sensível do processo: carregar, levantar e fixar. “Fazer o Arco não custa, o que custa é levá-lo”, diz-se em Sobreposta. Mas é também este o momento que mais enche de vaidade os sobrepostenses, pois podem admirar e ver admirado o fruto do seu trabalho comunitário. Antigamente, antes de levantar-se o Arco, fazia-se um beberete em casa das mordomas da festa. Entretanto, com o passar do tempo, esta tradição foi-se alterando e, hoje, é dado um lanche, no 44
final da colocação do Arco, no Salão Paroquial, a cargo dos pais das mordomas. À hora marcada, a população reúne-se para carregar o Arco e percorrer todo o caminho até ao adro da Igreja de Sobreposta. Dependendo do tamanho do Arco, são precisas, aproximadamente, cem pessoas para fazer este percurso. Fazem-se pequenas paragens pelo meio, de modo a aliviar os ombros, dado que o trabalho físico é árduo. A acompanhar, ouve-se o bater dos tambores, foguetes e, como não poderia deixar de ser, as “peguilhices do povo”: “Eh pá! Este ano estás com menos força”, ou: “Vais dependurado, em vez de carregares”, e a resposta, vem de seguida: “Tenho culpa de ser pequeno” (Silva, F. V. (20 de julho de 2016), Tradição Hercúlea, Diário do Minho). Chegados ao adro da Igreja, aproxima-se o momento alto: o levantamento do arco. Este momento exige, acima de tudo, um grande trabalho de equipa, coordenação e entrea juda. Os recursos utilizados são apenas cordas, escadas de madeira (utilizadas nas vindimas e noutros trabalhos agrícolas) e força física. A pessoa que lidera os trabalhos coloca-se na torre da Igreja para poder ter uma visão completa do cenário. A partir daqui, seguem-se as instruções ao som de um altifalante, de modo a dirigir de que lado se vai puxando a corda, onde é precisa mais uma escada, em que pontos é precisa mais força. Tudo isto é acompanhado da motivação de vários “oupa”, “upa”, “ouououpa”, “é agora”. A parte mais delicada acontece até ao momento de ultrapassar a altura da imagem da Padroeira, colocada no centro do largo da Igreja; por isso, primeiro inclina-se o Arco para o lado esquerdo e só depois deste momento se endireita. Depois de erguido, passa-se ao enchimento das bases, que têm cerca de dois metros de profundidade. O enchimento faz-se com recurso a pedras, terra e água. As mordomas estão encarregues de encher os baldes e os cântaros de água. Esta tarefa faz-se com apoio de uma cisterna que é colocada num trator, mas, nos tempos antigos, tinham de dirigir-se à bica mais próxima, o que dificultava bem mais a empreitada.
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Este é, de facto, um dos momentos altos e mais característicos desta festa, de tal forma que atrai uma grande participação dos habitantes da freguesia e daqueles que, apesar de estarem longe, regressam para estes momentos, nomeadamente emigrantes. Atrai ainda a visita de forasteiros que, curiosos, vêm assistir ao levantamento de um enorme Arco, apenas com a força de braços.
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Comissões Organizadoras
Anualmente, a Confraria do Augustíssimo Santíssimo Sacramento nomeia a Comissão de Festas. Esta Comissão é composta por quatro elementos: Tesoureiro, Procurador, Secretário e Juiz. Estes elementos revezam-se nos diferentes cargos, de modo a manterem viva a tradição religiosa, envolvendo o mais possível a população, desde os mais novos aos mais velhos. A Comissão de Festas conta com a preciosa a juda dos mordomos e mordomas da festa. Os mordomos e mordomas são jovens da freguesia, geralmente com idades compreendidas entre os 15 e os 25 anos, aos quais cabem tarefas bem definidas. No entanto, por força da cada vez maior falta de jovens na freguesia, as mordomas e mordomos eleitos podem ser mais novos ou mesmo mais velhos do que o referido. São nomeados no dia seguinte ao levantamento do Arco, o que significa que são eleitos exatamente um ano antes do dia D – o dia do levantamento do Arco! Há uma regra importante na eleição dos mordomos e mordomas: devem ser oriundos de diferentes zonas da freguesia – ora de Lageosa, ora de Sobreposta. Isto porque, relembrando o que foi explanado no ponto 1 - Fundação e Resenha Histórica, do capítulo I, antigamente Sobreposta e Lageosa gozavam de administrações distintas. E, ainda hoje, é admitido pelas pessoas da terra que sempre existiu uma rivalidade entre as pessoas dos diferentes lugares. Lageosa albergava algumas quintas e casas de senhores importantes e de poder económico, que queriam que o nome da sua terra se mantivesse demarcado e o consideravam digno de autonomia. Esta rivalidade é vista como fruto de uma disputa 47
saudável entre vizinhos, mas outrora era mais audaz, chegando ao ponto de a Professora Primária ter de dispensar os alunos da escola em dois grupos, consoante a sua residência, com intervalos de tempo para que não se pegassem à saída. De forma a manter esta relação amigável, a responsabilidade da construção e asseio do Arco alterna todos os anos entre a “gente de cima” (lugar de Sobreposta) e a “gente de baixo” (lugar de Lageosa). Isto significa que o Arco sai de locais diferentes, intervaladamente; mais concretamente, no lugar de Sambade ou no largo da Igreja, no caso de Sobreposta, e no Largo do Monte (no logradouro da antiga mercearia de Augusto Mendes), no caso de Lageosa. No entanto, é sempre fixado no adro da Igreja de Sobreposta, o local central da freguesia. Os mordomos do Arco são 6, sendo que normalmente são 2 rapazes que tratam da construção do Arco e 4 raparigas que tratam dos enfeites do Arco, do altar e de toda a arruada da festa. No primeiro ano de realização do Arco, os mordomos e mordomas foram: “Francisco, filho de António Joaquim Mendes e António, filho de Manoel Costodio Antunes e Dolovina, filha de João António Monteiro e Maria, creada de Domingos Joze Alves de Araujo e Maria, filha de Manoel Marques e Maria, filha de Joze Luis da Silva, todos do Lugar de Lagioza” (Silva, F. V. (20 de julho de 2016), Tradição Hercúlea, Diário do Minho). É aquando da Adoração do Santíssimo Sacramento, no domingo, que são anunciados os mordomos que têm a responsabilidade de promover a festa do ano vindouro. Os mordomos, ao contrário da Comissão de Festas, mudam todos os anos, de modo a dar oportunidade aos jovens de participarem ativamente. Durante a festa, há um bar de apoio, que fica a cargo do Grupo de Jovens de Sobreposta. A receita angariada através do bar, durante a festa, é utilizada na dinamização das atividades que o Grupo de Jovens desenvolve ao longo do ano, como é o caso do jantar de Natal, da festa do Dia da Mãe e da festa do Dia do Pai, para enunciar alguns exemplos. 48
Principais Personalidades
Uma festa secular, como é o caso desta, mantém-se com o sabor de conhecimento também ele secular, com vontades antigas e gosto pela cultura e tradição. Existem pessoas que marcaram vincadamente esta tradição. A primeira pessoa é o senhor Manuel do Pedregal (sendo que Pedregal não é o seu verdadeiro nome, mas o lugar/ casa de onde vem, tal como é habitual referenciarem-se as pessoas em Sobreposta). O senhor Manuel, carpinteiro de profissão, foi o grande impulsionador e autor dos primeiros desenhos do Arco, tendo-se mantido nesta função por largos e longos anos, até ao seu falecimento. A segunda personalidade, substituta do senhor Manuel, foi Joaquim José Teixeira, mais conhecido por Joaquim Marta, outro carpinteiro exímio da freguesia. O senhor Joaquim foi o autor da planta e coordenador dos trabalhos, até a idade lho permitir, tendo depois passado o testemunho aos seus dois filhos – António e José. Após os “Marta”, veio Ricardo “Lage”. Este é o atual autor dos desenhos do Arco. Todos estes homens enchem de orgulho a freguesia que os viu nascer, pelo brio com que sempre desempenharam o seu trabalho de carpintaria, nomeadamente em tudo aquilo que implicava o Rei da Festa do Senhor. São exemplos das artes de carpintaria, que sempre se encontraram entre os sobrepostenses.
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Estórias
Toda esta azáfama, ao longo de 125 anos, acarreta uma bagagem de estórias que vão passando de boca em boca. A mais marcante de todas talvez seja aquela que conta como se partiu a imagem da Nossa Senhora das Candeias. Não se sabe há quantos anos exatamente aconteceu, mas, certa vez, durante o levantamento do Arco, sucedeu que este embateu na escultura e a mão esquerda do menino que a Santa tem ao colo não resistiu, ficando a imagem para sempre marcada por esta quebra. Esta história é constantemente relembrada, não apenas para explicar o facto de a imagem estar partida, mas para chamar à atenção, no momento do levantamento do Arco, do quanto é importante ter cuidado a içar para que não volte a acontecer algo semelhante. Outras estórias existem, mais risonhas do que esta, como é o caso da história de amor entre Manuela Rodrigues e Miguel Silva, que começaram a namorar após Manuela e a irmã de Miguel terem sido mordomas no mesmo ano, facto que fomentou bastantes encontros entre os dois, pois é habitual as famílias das mordomas apoiarem as raparigas nas suas tarefas. O bazar que antigamente se fazia, no final de Procissão, também dava azo a alguns encontros, facto que desagradava aos padres e, por isso, acabou mesmo por ser extinto. O bazar consistia numa espécie de leilão das cestas das mordomas, às quais se chamavam segredos. A tradição mandava que se fizessem ofertas em troca dos segredos. O segredo consistia 50
em descobrir o que a mordoma carregava na sua cesta, cujo conteúdo estava tapado com um pano. A mordoma poderia aceitar e desvendar o segredo ou não, dependendo do montante oferecido, que muitas vezes era reivindicado pelos pais, quando consideravam que o segredo era mais valioso do que a oferenda, de modo a impedir um prejuízo. Caso a mordoma aceitasse, teria de combinar um encontro com o rapaz, de modo a desvendar-lhe o segredo. O segredo era constituído, normalmente, por bens da terra: carne, frutas, legumes, carnes salgadas, panos ou peças costuradas, enfim, aquilo que fosse da sua vontade e da vontade dos seus pais.
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Material
A freguesia de Sobreposta apresenta um vasto espólio patrimonial, de carácter religioso, histórico e rural, que merece ser referenciado. No que concerne ao património religioso, destaca-se a Capela de S. Tomé de Lageosa, que era o local de culto religioso dos lageonenses, antes de Lageosa ser anexada à freguesia de Santa Maria de Sobreposta. Esta Capela, situada no lugar do Regueiro, é o monumento mais antigo da freguesia, pois nasceu no século IX. Sofreu, no entanto, vários restauros, até aos dias de hoje, nomeadamente nos séculos XVII, XVIII e XX. Mais precisamente, foi “reedificada em 1737, tendo substituído uma capela pré-existente. No século XVIII foi alterada a frontaria e construída a sacristia, que conserva ainda um lavabo de pedra com espaldar decorado com uma cruz. De arquitetura vernácula, a fachada, precedida por um alpendre, termina em empena de friso e cornija truncada por uma sineira. Um óculo encontra-se acima do portal de verga reta.” (Fernandes, S. e Campos A. (2012), Cancioneiro de Sobreposta, Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta). Esta capela guarda duas curiosidades: a primeira é que o altar desta ermida esteve guardado no varandão da Casa do Monte, durante muitos anos. De facto, o senhor João da Silva, pai dos senhores Domingos e Alberto do Monte, levou o altar para sua casa, de modo a protegê-lo, enquanto a capela se encontrava em ruínas. Aí permaneceu, até às obras de restauro, na década de 50/60. A mesma sorte não tiveram as cruzes que aí havia, que foram sendo pilhadas durante a época de abandono, inclusive uma cruz de pedra que existia do lado esquerdo da capela. O padre José Joaquim Esteves chegou mesmo a pedir às pessoas, durante a missa, que devolvessem as cruzes, mas tal não aconteceu, pois muitas tinham 54
sido aproveitadas para a construção de muros e casas de habitação. A segunda curiosidade conta uma história característica da freguesia, com duas personalidades já referenciadas: o Padre José Joaquim Esteves e o senhor Domingos Ribeiro da Silva. Tal como foi referido, o senhor Domingos Ribeiro da Silva foi o coordenador dos restauros desta Capela, no século XX, a pedido do senhor Padre José Joaquim Esteves. O curioso foi o motivo deste restauro: contase que aquando de uma visita do Presidente da Câmara de Braga da época – António Maria Santos da Cunha - este vislumbrou o Arco da Capela que se encontrava pousado no meio das ruínas. Esta relíquia arquitetónica, de origem oriental, que confirma as origens pré-islâmicas do Cristianismo na freguesia, era ainda da Igreja primitiva de S. Tomé (anterior à Capela) e a única peça que restou dessa época anterior à Reconquista. Ora, perante esta descoberta, o Presidente deu a conhecer a sua ideia de levar o dito Arco para ser exposto numa praça do centro de Braga, dado que a Capela se encontrava em ruínas. O senhor Padre José Esteves, perante tal ideia, apressou-se a mandar restaurar a Capela, de modo a que o Arco dela não saísse. E assim conseguiu que esta peça de arte moçárabe permanecesse em Sobreposta. No exterior da Capela, pode vislumbrar-se um Sarcófago muito antigo, de construção granítica. Consta que existem outros exemplares enterrados, nomeadamente sob o alpendre da Capela. Aquando da última remodelação, o senhor Padre chegou a enviar ossadas para o Instituto de Medicina Legal, no Porto, no entanto, nunca obteve resposta sobre uma possível identificação das mesmas. Conta-se ainda que, há cerca de duzentos anos, realizava-se a Via Sacra nas imediações desta capela. Ainda estão à vista diversas bases de cruz, bem como o tanque e a terra das cruzes, que supostamente seria o calvário. A Igreja Paroquial de Sobreposta é o local de culto privilegiado dos sobrepostenses. Nela se realizam os principais cultos religiosos e festas da freguesia. É dona de um altar-mor “talhado com ornatos barrocos e rococó, possuindo um baldaquino todo em talha dourada, 55
mostra, de um lado, duas colunas toscas ricamente decoradas e, do outro, no frontão do baldaquino, três anjinhos de cada lado, que seguram o coração imaculado. Sobre este, a encimar toda a peça, está um crucifixo que tem na base duas pombas brancas (símbolo da pureza) que a partir de uma taça, bebem o sangue do redentor.” (Melo Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta - Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural.) Em 27 de janeiro de 1966, no decorrer de obras de restauro e ampliação, foi encontrada uma Gelosia em granito, do período pré-românico. Dado o seu valor histórico e arquitetónico, esta peça foi doada pelo Padre José Joaquim Esteves, a pedido do seu paroquiano Fernando Marques Mendes, na época aluno finalista do Seminário de Filosofia, ao Museu Pio XII, em Braga, onde se encontra em exposição. É nesta Igreja que se encontra o Crucifixo oferecido por José Antunes Sousa e Sá (Zé do Oleiro), para cumprir a sua promessa, após o alegado milagre que lhe salvou a vida, na primeira grande guerra. No largo da Igreja, encontra-se a imagem de Nossa Senhora das Candeias, a padroeira da freguesia, datada de 1954. É neste local que é fixado o Arco da festa, em honra do Santíssimo Sacramento. É, portanto, esta a imagem que, há uns anos, sofreu o acidente aquando do levantamento do Arco. Neste local, pode também ser avistado um Relógio de Sol em pedra. Os relógios de sol foram a primeira forma de marcar o passar das horas ao longo do dia, estimadas de acordo com a sombra (de manhã, a sombra é longa, ao meio-dia, é mínima e, ao final da tarde, longa novamente). Pode ainda encontrar-se um nicho evocativo das aparições de Lourdes, datadas de 1858, na dita cidade do sul de França, encimado com a frase: Eu sou a Imaculada Conceição. Ao lado está uma Fonte de Cantaria, com as datas 1854-1954, tal como o Relógio de Sol. Junto à igreja paroquial, encontra-se o Salão Paroquial, 56
construído nos anos 60 do século XX, com contribuições de todos os paroquianos e cujo valor foi fixado pelo pároco – Padre José Joaquim Esteves – conforme os rendimentos ou haveres de cada família. Foi, mais tarde, ampliado e serve para as atividades catequéticas da paróquia e outras atividades dos grupos paroquiais. Em Lageosa, existe também o Nicho das Almas do Purgatório, datado de 1965 e situado em local próximo do Lugar do Monte. Por sua vez, em Sobreposta, no lugar da Portela, ergue-se o Cruzeiro Paroquial, acompanhado de dois nichos, popularmente designados por Alminhas. A evidenciar o povoamento antigo da freguesia, assinala-se o Castelo Roqueiro, amplamente destruído, ainda assim, a relembrar as primeiras estruturas amuralhadas dos séculos IX e X; e, com muito maior antiguidade, a Necrópole de Alagoa, um elemento da época megalítica, lembrando o culto aos mortos dos mais antigos. O Monte da Pena é um local de interesse turístico, para apreciadores da natureza. É um local verde e de grande sossego. Aqui se avista o conjunto de dez pedras sobrepostas que deu o nome à freguesia, conforme mencionado anteriormente. Como elementos característicos de Sobreposta, existem várias casas, de tipo casas senhoriais, dignas de visita. A Casa do Loureiro e a Casa de Bacelar são os exemplos que merecem maior destaque. Pela ligação à terra e a algumas personalidades marcantes da freguesia, mencionam-se também as casas: Casa das Eiras; Casa da Figueira; Casa do Monte; Casa do Paço; Casa do Muro e Casa do Regueiro, na parte de Lageosa. E, na parte de Sobreposta, lembramos, entre outras, a Casa do Ricarda, a Casa da Igreja de Cima, a Casa da Igreja de Baixo, a Casa do Oleiro, a Casa do Lopes e a Casa do Senegade. Estas casas são “as autoras” das alcunhas pelas quais vários sobrepostenses são conhecidos. Os núcleos molinológicos marcam o espólio patrimonial de Sobreposta. Local que não dispensa visita é o Núcleo da Tojeira. Este empreendimento conta com dois moinhos de cereais e um Lagar de 57
Azeite e Engenho de Serração. Este equipamento encontra- se junto ao Rio Febras, já que o seu funcionamento se dava devido à força da água do rio. A população de Sobreposta, bem como de freguesias vizinhas, aqui acudiam para fazer o azeite e para serrar a madeira. É bom relembrar que Sobreposta era terra de bons carpinteiros, alguns aqui já mencionados, nomeadamente pela sua ligação à construção do Arco da Festa, em honra do Santíssimo Sacramento. É uma forma de conhecer-se um pouco mais sobre as formas mais artesanais de produção que se usavam antigamente e de preservação dos costumes. Este Núcleo foi recuperado pelo seu atual proprietário (o senhor Fernando Marques Mendes, anteriormente mencionado) e, hoje, está preparado para receber visitas, incluindo grandes grupos, demonstrando, através do seu pequeno Museu, as artes e ofícios de Sobreposta. Depois, existe o Núcleo de Portuguediz, que é maior, onde se pode apreciar uma casa rural, 3 habitações com mós, 3 alojamentos para animais, 24 moinhos e uma grande Eira Granítica, dividida em parcelas para uso de diferentes agricultores. A eira, propriamente dita, é um espaço térreo, amplo e aberto, com o chão duro, feito em terra batida ou pavimentado. Estes espaços eram utilizados para secar, malhar e limpar os cereais. Após as colheitas, os cereais eram estendidos nas eiras, para secarem ao sol. Após a secagem, eram feitas as malhadas, que consistiam em bater os cereais com um utensílio próprio – o malho- que era feito de dois paus de madeira ligados por uma corrente. Por fim, erguiase ao vento, para a judar a limpar, ou seja, a separar os cereais das palhas. Os cereais eram depois devidamente armazenados e a palha servia de ração para os animais. A Eira de Portuguediz, acima referida, é pertença de distintos proprietários, mas, hoje em dia, tem pouca utilização. Utiliza-se mais no verão para a seca dos cereais e, no Dia Nacional dos Moinhos, a 58
7 de abril, cuja celebração aí termina, com uma malhada de milho e de centeio e um convívio com pão e vinho. Os moinhos encontram-se espalhados ao longo dos rios Febras e Torto, afluentes do rio Ave. Ainda com merecido destaque, pela sua beleza natural, pode apreciar-se a força e a beleza da natureza na Cascata de Portuguediz – uma queda de água do rio Febras que dava força aos Moinhos de Portuguediz. Os moinhos são motivo de orgulho dos sobrepostenses, de tal forma que há muito está reivindicado um projeto de recuperação para este local. Existem outros núcleos molinológicos espalhados pelas freguesias vizinhas, nomeadamente Pedralva, de que são exemplos os Moinhos do Outeiral e respetiva casa, a casa do moleiro. Outros encontram-se na zona de Briteiros, pertencendo já ao concelho limítrofe de Guimarães. Foi, inclusivamente, criada uma Associação para a defesa e preservação destes núcleos molinológicos, com sede em Briteiros, liderada pelo Engenheiro Inácio Vasconcelos, natural de Guimarães. Este senhor conseguiu um levantamento topográfico de todo o espólio concentrado ao longo dos rios Febras e Torto, que começam no lugar de Portuguediz e seguem até Briteiros. Neste levantamento, foram identificados os moinhos; os seus proprietários; as plantas de todo o edificado, que muitas vezes incluía habitação do moleiro e sua família, lugar de alojamento de animais e moinho; o seu estado de conservação e necessidades de restauro. Seguem-se exemplos de plantas de moinhos, no caso pertencentes à Dona Gracinda Moleira, ao Senhor Domingos do Monte e ao Senhor Joaquim Vieira de Macedo, que viria a doar o seu moinho à Associação Cultural e Social de Sobreposta, permitindo assim a sua recuperação.
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Figura 8 - Planta topográfica do moinho e alojamento de animais de Maria Gracinda de Oliveira
Figura 9 - Planta topográfica dos moinhos de Domingos Oliveira da Silva e Joaquim Vieira de Macedo
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Após o falecimento do engenheiro Vasconcelos, a liderança desta Associação seguiu com outras pessoas, no entanto, atualmente, não tem tido acompanhamento. Assim sendo, os esforços para a preservação dos moinhos têm sido levados a cabo pela Junta de Freguesia e pela Associação Social e Cultural de Sobreposta. O grande objetivo tem sido o de recuperar e preservar este património, para dar a conhecer às gerações mais jovens o património imaterial que daí advém, pois são equipamentos demonstrativos das atividades ligadas à terra e aos costumes que marcaram toda uma época e uma região. O Moinho da Figueira já foi intervencionado, após Joaquim Vieira de Macedo o ter doado à comunidade, em nome da Associação Social e Cultural, para que pudesse ser recuperado e mostrado, tal como merece. A Câmara Municipal de Braga e a Associação de Desenvolvimento das Terras Altas do Homem, Cávado e Ave (ATAHCA) prometeram aliar-se à Junta de Freguesia e à Associação Social e Cultural de Sobreposta, com o objetivo de implementar um Plano de Intervenção alargado. Este Plano, que aguarda uma candidatura a financiamentos externos, seria assim uma forma de recuperação do património etnológico e uma maneira de criar um foco de atração turística para a freguesia de Sobreposta. Contempla a identificação dos moinhos e a recuperação das suas fachadas; a intervenção junto das margens do rio e das represas; a recuperação da Eira; a definição de trilhos pedestres; a recuperação das casas que compõem a Rota, de modo a criar-se Alojamento Turístico; a criação de uma área de lazer e de comercialização de artesanato, dando assim mais fontes de rendimento aos artesãos de Sobreposta. Este era o local de trabalho dos famosos moleiros de Sobreposta. Estes moinhos foram usados, diariamente, até à década de 60. Pertenciam às casas particulares e alguns deles eram partilhados entre diferentes proprietários. Por exemplo, a Casa do Monte tinha 61
um moinho inteiramente seu e outro para uso quinzenal. Esta partilha era muito usual, sendo que ainda hoje existem vários exemplares que gozam de dois ou mesmo três proprietários diferentes. Este facto torna também a própria recuperação dos moinhos mais complexa, já que tem de contar com a identificação e aval de todos os proprietários, sendo que alguns vão falecendo, sem deixar registo destas propriedades. O trabalho de moagem era maioritariamente de homens, tendo sido, conforme anteriormente referido, uma das principais atividades profissionais da freguesia. Mas Maria Gracinda de Oliveira fugiu a essa regra. Vivia com os seus pais e mais 9 irmãos, no lugar de Portuguediz, com um moinho de água dentro de casa e, por isso, aprendeu, desde muito cedo, a moer o milho e o centeio, de noite e de dia, e a calcorrear os caminhos das redondezas com o apoio dos burros para carrejar (transportar) os cereais e a farinha, até às tabernas e vendas, onde se fazia a troca. Os moleiros de Sobreposta percorriam os caminhos da freguesia e das freguesias limítrofes, como é o caso de Pedralva, Louredo e Espinho. Era habitual vê-los à porta da Venda do Senhor Augusto Mendes (já aqui referenciado), em Lageosa; da Venda da Aurorinha, em Sobreposta; ou da venda do Zé Bento, em Pedralva. A cada paragem, traziam as notícias da zona, pois acabavam por percorrer vários quilómetros e ter contacto com diversas pessoas, enquanto faziam as trocas e merendavam algum petisco. Naquela altura, os meios de comunicação eram parcos, pelo que os moleiros estavam sempre bem informados! Nas paredes destas vendas, ainda se pode, hoje, verificar, cravadas as argolas em ferro para prender os burros que carregavam o grão ou a farinha.
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A D. Gracinda, ou Gracinda Moleira, tal como é conhecida entre os conterrâneos, relembra as cantorias típicas:
“Moleira anda p’ro Céu. Senhor não tenho vagar Tenho fole no moinho Ainda está por maquiar. Ó moleira, ó moleira, Ó moleira, ó ladrão, Tu hás de ir para o Céu Com o maquieiro na mão! Ó moleira, ó moleira Ó moleira, ó ladrão Tu hás de ir para o Inferno Com o maquieiro na mão” Em Portuguediz, viviam cerca de cinco ou seis famílias inteiramente ligadas à moagem dos cereais. Daí outra das quadras que cantavam ser:
“Quem quiser saber donde sou Escreve-se com o nariz Freguesia de Sobreposta Lugar de Portuguediz.”
Esta profissão tinha tal importância na freguesia que, na altura da Quaresma, o Pároco tinha de fazer dois sermões, sendo que um era dedicado aos moleiros e realizado na Capela de S. Tomé de Lageosa.
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Imaterial
Sobreposta tem, como já deve ter sido possível perceber, um vasto património imaterial. A primeira referência que importa fazer nesta vertente é o papel da Associação Social e Cultural de Sobreposta, já aqui mencionada por diversas vezes. Esta Associação nasce da vontade de um grupo de pessoas que há muito desejavam que a sua comunidade tivesse uma melhoria e uma abertura naquilo que eram as suas atividades sociais, culturais e desportivas; apoio social, nomeadamente para as camadas mais suscetíveis, como é o caso dos idosos e dos mais pequenos; e, ainda, um veículo de preservação da história, da cultura, da tradição e do carisma desta freguesia. Foi oficializada no dia 27 de dezembro de 2004, numa reunião participada por 24 pessoas, na qual se aprovaram os estatutos, se definiu a direção e se fez a escritura notarial. Teve, como fundadores, várias personalidades, tais como Alberto Gomes da Silva, Fernando Marques Mendes e o Padre José Ribeiro Mendes. O primeiro tinha as ideias, o segundo redigia-as e o terceiro abençoava-as! E assim se materializou um sonho muito antigo. Tudo começou com a ideia de Alberto Gomes da Silva, mais conhecido por Bertinho do Monte, de organizar um encontro de sobrepostenses residentes, na área da Grande Lisboa. No dia 14 de maio, redigiu uma carta circular a convocar os seus conterrâneos para um encontro programado para o dia 28 de maio de 1978, no Seminário da Torre d’Aguilha, em S. Domingos de Rana:
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“Caro Conterrâneo, Conduzidos pelas circunstâncias do nosso viver, deixamos, há muito ou pouco tempo, a aldeia onde nascemos e viemos a fixar a nossa residência nesta grande cidade de Lisboa. Porque a cidade é enorme e porque as preocupações de cada um são imensas, o reencontro é um mero acaso. A maior parte jamais se reencontrou. Dado que temos alguma coisa que nos liga uns aos outros, como seja, a terra de onde procedemos – Sobreposta – pensei que seria bem acolhida a ideia de proporcionar uma ocasião de encontro de todos os naturais de sobreposta e que, neste momento, se encontram radicados na capital. Expus esta ideia a alguns conterrâneos que tenho encontrado e daí resultou o convite que agora dirijo a todos. Espero que esta ideia vá também ser bem acolhida por ti e pela tua família. Contamos, pois, com a tua participação num grande encontro das pessoas de Sobreposta que vivem em Lisboa. (…)” Da comissão fazem parte pessoas residentes em Sobreposta e pessoas emigrantes.
Figura 10 Carta aos sobrepostenses residentes na grande Lisboa, da autoria de Alberto Gomes da Silva, 1978
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Nesse dia, após a celebração religiosa presidida pelo Padre Zé do Muro e de um almoço/convívio, seguiu-se uma animada conversa, que deu origem a uma saudação de solidariedade, de fraternidade e de empenhamento com a gente da terra de Sobreposta. Dentre eles, contam-se Alberto Gomes da Silva, Fernando Marques Mendes, José Ribeiro Mendes, Joaquim Vieira de Macedo, Domingos Ribeiro da Silva, Armando Lopes, Joaquim Boavida, entre outros. Esta reunião deu origem à primeira proposta para a criação de uma Associação da terra, redigida num documento intitulado “A Associação que Queremos Criar”, onde se estabeleceram cinco pontos essenciais: “1. A ideia nasceu de algumas pessoas que residem fora da terra, mas que amam a terra onde nasceram e querem contribuir para o seu desenvolvimento. 2. Está já formada uma Comissão de Apoio, constituída por pessoas que estão empenhadas em lançar os alicerces da Associação. Desta comissão fazem parte pessoas residentes em Sobreposta e pessoas emigrantes. 3. A comissão de Apoio tem o dever de orientar a fundação da Associação e espalhar entre todos esta ideia e ir fazendo o ficheiro de todas as pessoas que se comprometem a apoiar esta iniciativa. 4. É também intenção da Comissão de Apoio realizar no próximo Verão um encontro de emigrantes. Espera-se que a partir deste encontro a Associação possa arrancar em toda a sua força. 5. Os objetivos da Associação: a) Desenvolvimento Cultural e Recreativo; b) Desenvolvimento Social e Económico; c) Assistência Social e Ambiente Fraterno. (…)
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Figura 11 - Documento “A Associação Que Queremos Criar”, de 28 de maio de 1978
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Figura 12 - Cartas enviadas ao Presidente da Junta e ao Pároco de Sobreposta, 1978
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Este documento foi anexado às cartas enviadas ao Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Sobreposta, na altura, José Joaquim da Silva Rodrigues e ao Senhor Pároco da freguesia, o Padre José Joaquim Esteves, pedindo aos mesmos que dessem a conhecer à população as suas intenções de fazer nascer uma associação social e cultural na freguesia. Este documento continha propostas que, quase vinte e cinco anos depois, haveriam de ser validadas nos estatutos da Associação que hoje existe. A ASC de Sobreposta desempenha um papel fundamental no seio da comunidade, tendo dado um forte impulso ao desenvolvimento e dinamização da freguesia, nomeadamente no que respeita ao preenchimento de lacunas culturais, ao apoio social oferecido às pessoas, aos serviços sociais e ao trabalho comunitário de pesquisa, compilação, retenção e publicação do conhecimento da terra. Os seus fundadores quiseram alargar o seu âmbito às freguesias vizinhas de Pedralva e Espinho, algo já previsto nos estatutos, embora só formalizado cerca de dois anos depois da sua fundação, quando as três freguesias se reuniram em torno da proposta de criação de uma creche, em Espinho, que a todas viria a servir. Como atividades regulares, a ASC abarca aulas de ginástica feminina, aulas de acompanhamento escolar, um Grupo de Teatro Juvenil e um Grupo Coral. Trimestralmente, é publicado um Boletim Informativo com as notícias das freguesias de Espinho, Pedralva e Sobreposta, uma vez que a instituição presta serviço às três comunidades vizinhas. Anualmente, é organizado um convívio para os seus sócios, que rondam os 350. Está ainda a ser preparada uma Biblioteca, nas instalações da Junta de Freguesia em parceria com a Associação Social e Cultural de Sobreposta.
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A Associação tem apoiado, de forma patente, a investigação e a recolha de informação histórica, cultural e tradicional de Sobreposta, como já aqui foi dito. Exemplo disso é o Cancioneiro de Sobreposta. O Cancioneiro resultou de uma parceria estabelecida com a Professora Elisa Lessa, docente da Universidade do Minho, e consiste num repositório do património oral da freguesia, concretamente letras e músicas, tradições, lendas e rezas, realizado pelas suas alunas, Ana Rita Campos e Sónia Fernandes que, entre maio e junho de 2009, no âmbito da unidade curricular de Etnomusicologia da área vocacional de Ciências Musicais da Licenciatura de Música, da Universidade de Minho, recolheram a informação junto dos mais idosos da freguesia e, neste trabalho, incluíram a análise das próprias músicas, a identificação das suas características, bem como o contexto em que nasceram e as circunstâncias em que eram cantadas. Muitas destas melodias saíam da boca das tecedeiras, dos agricultores, dos moleiros e dos jornaleiros, enquanto lavravam os campos, faziam as colheitas, as desfolhadas ou as vindimas. Mas o canto fazia também parte das romarias e procissões, nomeadamente ao São Bentinho da Porta Aberta, São Bentinho do Hospital, Santa Marta das Cortiças e Nossa Senhora do Sameiro. Acompanhava ainda outras festividades e tradições da aldeia: festa em honra do Santíssimo Sacramento, festa em honra da Nossa Senhora de Guadalupe e do Bom Jesus dos Milagres, festas em honra de S. João, Carreadas, Novenas, Janeiras, para referir as mais marcantes. E foi assim que, em 2012, de modo a difundir este património, a Associação Social e Cultural editou em livro o Cancioneiro de Sobreposta. O livro reúne “dos cantares devotos e religiosos aos cantares de trabalho, dos cantares do quotidiano às canções de embalar, melodias entoadas nesta aldeia”, que testemunham uma importante fatia do legado tradicional e cultural de Sobreposta. (Fernandes, S. e Campos A. (2012), Cancioneiro de Sobreposta, Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta).
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Em 2011, criou também um Grupo Coral, dirigido pelo maestro Tiago Pereira, essencialmente, com o objetivo de dar a conhecer o Cancioneiro de Sobreposta, para além das fronteiras da freguesia. Ainda no que respeita ao espólio musical, segue-se o Hino de Sobreposta: Refrão: Asseada, habitantes singelos, entre a Pena, a Citânia e Campelos, Sobreposta é uma erra minhota, o concelho de Braga a integrar, Num planalto de gente devota, tudo o que é tradição a honrar! 1. Quem subir o vale d’Este, Sobreposta vai pisar, Com alguém que muito investe, O Futuro a desbravar. 2. Sobreposta é um tesouro Que dá gosto contemplar, De soberbo miradouro, Que na Pena tem lugar. 3. Sobreposta é uma herdeira De convívio fraternal, Desde a Ponte e Vitoreira, Do Cruzeiro ao Pedregal. 4. Chegam muitos forasteiros, P’rós moinhos visitar: Sobretudo, nos Moleiros, Várias mós há p’ra girar.
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5. Sobreposta já foi terra De afamados artesãos, Que venceram feroz guerra Com suadas hábeis mãos. 6. Desde os anos sessenta, Da centúria que findou, Sobreposta, triste, enfrenta, Copiosa emigração.
Este Hino foi retirado do livro Preito a Sobreposta – Canções e Instrumentais, da autoria de José Fernandes da Silva (previamente referido), editado em Braga, em dezembro de 2019, pela Associação Social e Cultural de Sobreposta. O Hino de Sobreposta, com letra e música inteiramente da autoria de José Fernandes da Silva, foi aprovado, por unanimidade, em Assembleia Extraordinária de Freguesia, a 13 de dezembro de 2019, ficando desta forma oficializado. Este lageosense teve também um papel importante no Grupo Coral Litúrgico de Sobreposta, coletividade que conta já com mais de 50 anos de existência. José Fernandes da Silva liderou o Grupo, ensaiou e acompanhou ao órgão. Foi testemunha da passagem da participação de mais de 50 elementos, sendo que, atualmente, conta com cerca de 35 componentes. “Em 1969, no mês de dezembro, quando o Zé do Muro se ordenou padre, o Grupo foi convidado para solenizar a primeira missa sacerdotal, que decorreu em Viana do Castelo com enorme dignidade e alegria.” (Silva, J. F. (2015), Ares da Sobreposta. Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta).
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Ainda no campo da música, uma breve referência ao grupo de música popular “Os Amigos da Sobreposta”. Composto por 9 elementos, entre familiares e amigos, conta já com mais de 30 anos de existência e alguns trabalhos discográficos, como é o caso de “Macaco Velho”. Mas, de Sobreposta saíram não apenas excelentes vozes para o canto, mas também tocadores de cavaquinho, viola braguesa, harmónicas, concertinas e, claro, as caixas e bombos. Não está determinada a época em que este interesse teve início nos meandros de Sobreposta, mas é um facto que é uma tradição antiga que tem vindo a esmorecer com o passar do tempo. De acordo com os mais velhos, havia uma série de Tocadores de Caixas e Bombos que deu início a esta tradição, no início do século XX. “O senhor José Joaquim Marques – mais conhecido por o senhor José Sabiel e exímio tocador de caixas – dizia-me há dias que o seu avô António José Mendes (da Casa do Muro) e o seu irmão Francisco José Mendes (da Casa das Eiras) formavam um dueto que era um regalo ouvi-los tocar.” (Silva, A. G. (dezembro de 2011), Caixas e Bombos da Nossa Terra, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº28). O toque das caixas era um ritual importante para anunciar e acompanhar as celebrações religiosas da freguesia. Funcionava como um relógio de cuco, nalgumas zonas mais recônditas, onde os sinos da igreja não se conseguiam fazer ouvir. Exemplo disso eram as Novenas do Menino, que se iniciavam nove dias antes do Natal e terminavam no dia 24 de dezembro. Uma hora antes do início da missa, os senhores das caixas saíam pela freguesia e as pessoas, quando ouviam o toque, saiam de casa e juntavam-se ao cortejo, que seguia em romaria até à Igreja. No final da missa, cantava-se uma ladainha e invocavam-se os santos. Este ritual acontecia logo pela manhã, por volta das seis horas e depois, novamente, à noite. Referem-se alguns dos grandes tocadores de Sobreposta: Augusto Mendes (que também as fazia, como já referido), José Joaquim
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Marques, Domingos Ribeiro da Silva, Joaquim Vieira de Macedo, Raul de Jesus Marques, Adelino Marques e Joaquim Antunes Macedo. Não chegou, todavia, a criar-se um grupo formal de Tocadores de Caixas e Bombos, ainda que tivesse sido algo pensado pela geração que cresceu a ouvir estes ilustres tocadores e com eles foi aprendendo. Alguns interessados chegaram a dar passos nesse sentido, nomeadamente, o senhor Alberto Gomes da Silva, que pediu orçamentos para a compra das caixas e dos bombos, facto que agravou a dificuldade em reunir quórum suficiente, uma vez que se revelaram dispendiosos. Ainda assim, esta tradição continua bem presente na memória dos sobrepostenses e, quem sabe, se um dia não se conseguirá criar o dito grupo e tirar a poeira aos dois bombos oferecidos pelo senhor Augusto Mendes à Confraria do Santíssimo Sacramento. Como se pode perceber, Sobreposta é aguerrida e tem encontrado no associativismo uma forma de manter as suas vivências atuais, bem como o sentido de união e comunidade. Existem várias outras coletividades formalizadas, para além das já assinaladas: Clube de Caça e Pesca do Rio Torto e Rio Febras; Clube de Caçadores de Sobreposta; Corpo Nacional de Escutas – Agrupamento 1017 –, e Futebol Clube de Sobreposta. Relativamente às suas festas, merecem destaque, para além da Festa do Santíssimo Sacramento, já anteriormente descrita, a Festa em honra de Nossa Senhora de Guadalupe e do Bom Jesus dos Milagres; a Festa de S. Tomé e as Arruadas, associadas aos festejos de S. João. A maior festa de Sobreposta, aquela que é mais venerada e mais participada por todos, é a Festa da Nossa Senhora de Guadalupe e do Bom Jesus dos Milagres. Realiza-se em agosto, no domingo a seguir ao dia 15, permitindo assim a participação dos emigrantes da casa. Esta festa tem uma dupla vertente: a veneração a Nossa Senhora de Guadalupe e a adoração ao Bom Jesus dos Milagres. Por este 74
motivo, a sua organização está a cargo de duas comissões distintas. A Festa da Nossa Senhora de Guadalupe é da responsabilidade da Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe. A devoção à Senhora de Guadalupe começou cedo, em Sobreposta. Em 1600, foi edificada, na freguesia, uma capelinha dedicada a Nossa Senhora de Guadelupe. O culto muito intenso que lhe era devotado originou a fundação da Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, em 1689, que foi confirmada pelo Breve (escrito pontifício) do Papa Pio VI. Na altura da comemoração do primeiro centenário da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe, no México, o Papa Urbano VIII concedeu uma Bula de Indulgência. Este documento data de 1631 e é o mais antigo da freguesia. Apesar disso, encontra-se bem preservado e ainda conserva o selo original. A Confraria ou Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe conta já com mais de 330 anos de existência! O documento original dos seus primeiros estatutos ainda pode ser consultado. Os Estatutos foram atualizados em 1991 e contam, no nº2 do artigo 4, que compete à confraria “promover, na forma devida e costumada, o culto de Nossa Senhora de Guadalupe”.
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Figura 13 Estatutos da Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, 1689
Todos os anos, a Confraria nomeia a Comissão de Festas, composta por quatro elementos: Juiz, Secretário, Tesoureiro e Procurador. O trabalho da Comissão de Festas começa logo no início do ano e passa por diversas tarefas, entre elas a cobrança das quotas aos confrades e a organização de peditórios para angariação de verba para a realização da festa. Ainda assim, há sempre uma grande mobilização da freguesia em torno desta celebração, o que facilita o trabalho da Comissão. A Comissão Fabriqueira tem a responsabilidade de organização da Festa do Bom Jesus dos Milagres. Inicialmente, esta festa realizava-se em abril, no entanto, devido à devoção crescente entre os fiéis e à cada vez maior dificuldade de angariação de fundos para a organização da festa da Nossa Senhora de Guadalupe por parte da Confraria, a festa do Bom Jesus transitou para agosto, juntandose à primeira e gozando de melhores condições meteorológicas, bem como de época mais propícia à participação dos devotos emigrantes.
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A adoração ao Bom Jesus dos Milagres foi impulsionada pelo Padre José Joaquim Esteves, tal como já foi explicado previamente. Após o regresso do Zé do Oleiro da grande guerra, da qual, alegadamente, se salvou devido a um milagre, o Padre Esteves batizou a imagem do Cristo Crucificado que José Sá ofereceu à Igreja, fazendo cumprir a sua promessa de Bom Jesus dos Milagres. Mais tarde, o Padre José Mendes (Zé do Muro) escreveu o Hino ao Bom Jesus dos Milagres: “Bom Jesus crucificado P’ra me salvar do pecado Não temeste pôr assim Todo o teu corpo chagado. Grande amor extremoso Tiveste por mim Senhor Torna-me belo e formoso Enchendo-me do Seu amor. O teu coração de pai Pensa em mim em cada instante E não mais me esquecerá Mesmo na terra distante. Naquela guerra feroz Dos milagres Bom Jesus Te apiedaste de nós Por meio da tua cruz. Foi logo pela manhã Que tua imagem no peito Da morte certa livrou O nosso irmão teu eleito.
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Hoje em renovado amor Te pedimos Bom Jesus Ampara os nossos soldados E a todos ao lar conduz. Vós todos oh emigrantes Confiantes em Cristo olhai Reconhecidos dizei Sempre Senhor nos guiai. Mas agora oh Sobreposta Deveras reconhecida De joelhos a rezar Dá graças ao Deus da vida. Oh Bom Jesus dos Milagres Sois todo amor e doçura E pregado nessa cruz Sois esperança segura.”
O ponto alto desta festa é a Procissão, quer pelas suas dezenas de representações da Bíblia, que chegam a reunir à volta de duzentos figurantes, quer pela multidão que a ela se junta. Estas festas compreendem, assim, para além da Procissão, onde se incluem diversos andores, entre os quais o de Nossa Senhora de Guadalupe e do Bom Jesus dos Milagres, as missas solenes e os sermões alusivos às intenções religiosas dos festejos. Findos os atos religiosos, continua a festa popular, animada por bandas musicais e petiscos. A crença e devoção ao Bom Jesus dos Milagres era tal que era usual ver-se o seu andor carregado de notas, perfazendo quantias avultadas. Quem assistia à festa e dava uma contribuição trazia uma estampa em troca, que vaidosamente exibia no chapéu, como 78
evidência de que tinha ido à festa e, acima de tudo, contribuído. Outra festa da responsabilidade da Comissão Fabriqueira é a Festa de S. Tomé que, ainda que de menor dimensão, não deixa de ser entusiasmada. Celebra-se no dia do Santo – 3 de julho - ou no domingo seguinte (caso o dia 3 não seja domingo). O palco desta festa é a Capela de S. Tomé. Este dia comemora aquele que é considerado o Santo Padroeiro de Lageosa, desde o século XIV, uma vez que, anteriormente, a Padroeira era Santa Cristina. A celebração faz-se com cerimónias religiosas e festa animada, acompanhada de comes e bebes, nomeadamente, o vinho verde da região, que faz as delícias do povo da terra. De referir ainda que, antigamente, este dia tinha ainda maior importância, já que era durante este culto que se elegiam o Juiz, o Procurador e o Meirinho, que desempenhariam a responsabilidade de julgar os delitos cíveis, uma vez que, tal como foi explanado inicialmente, S. Tomé de Lageosa foi um couto livre até 1836. Dado que, na altura, Lageosa pertencia ao então concelho de Pedralva, tal como Sobreposta, ainda é normal que muitas pessoas da freguesia vizinha se juntem à festa. Outro costume que se integra no património imaterial de Sobreposta é as Atrancadas. As atrancadas são típicas das festas de S. João, uma das maiores e mais participadas festas de Braga. Estima-se que, em 2019, tenham atraído um milhão e setecentas mil pessoas! As atrancadas acontecem, portanto, na noite de 23 de junho e trata-se de “roubos momentâneos”. A juventude entra pelos quintais, terraços e casas das pessoas e “rouba” tudo aquilo que apanhar, incluindo carros de bois, grades, alfaias agrícolas, vasos, roupas, escadas, cancelas, enfim, tudo aquilo que estiver mais à mão. Até mesmo animais! Na manhã seguinte, os lesados já sabem que devem dirigir-se ao Largo do Monte para recuperar os seus pertences. Antigamente, esta tradição tinha maior participação devido a vários fatores. Em primeiro lugar, havia mais jovens na freguesia, 79
que hoje se encontra bastante envelhecida; ao que acresce que havia mais o que roubar: mais utensílios agrícolas, mais gado, mais utensílios deixados à porta e nos alpendres; e, por fim, mas não menos importante, anteriormente havia também mais portas abertas. No tempo mais antigo, era normal, na freguesia, não se colocar trancas nas portas, tal era o grau de confiança existente na comunidade. Esta tradição era também uma forma de os rapazes verem as raparigas da terra ou de entabularem conversa, pelo que, muitas vezes, escolhiam as casas onde vivessem raparigas novas para “roubar”. Por fim, destacam-se as Carreadas para o Hospital de S. Marcos. As Carreadas eram conjuntos de carros de bois que se organizavam para fazer transporte de mato ou de outro material que fosse necessário transportar. Faziam-se para facilitar o transporte, fomentando a entrea juda entre os vizinhos. Neste caso concreto, transportavam oferendas para o Hospital de S. Marcos, num esforço solidário entre a comunidade sobrepostense, que merecia lugar de destaque, como dá conta um recorte de uma notícia antiga de um jornal local: “Sobreposta, outra freguesia que marca lugar de destaque em todos os cortejos a favor do Hospital, apresentouse com 70 raparigas, ricamente vestidas e ouradas, conduzindo pesados cestos com todos os mimos da terra, 4 grandes caminhetas carregadas de esplêndida madeira e 2.863$90 em dinheiro.” Estas carreadas organizavam-se a cada dois anos, geralmente em setembro, e cada freguesia oferecia aquilo que podia ao Hospital, dado que este, pertencendo à Irmandade da Misericórdia, não tinha grandes meios de subsistência. As oferendas incluíam, conforme refere a notícia, bens alimentares, nomeadamente coelhos, galinhas, ovos, legumes, frutas, lenha para os fogareiros, palha de centeio para os colchões e numerário. As notas eram colocadas num carrinho, que seguia à frente do cortejo, com um eucalipto, puxado apenas por uma vaca.
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As carreadas eram feitas em modo de celebração, num cortejo que desfilava com orgulho pela cidade, onde cada freguesia competia para ostentar a beleza e a ornamentação dos tra jes das pessoas, que se vestiam a rigor, como se de uma festa se tratasse, e dos animais, cujos chifres lavavam e davam brilho com azeite. Percorriam-se vários quilómetros, numa cerimónia que durava o dia todo e, no regresso à freguesia, havia um lanche.
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Contexto de trabalho
Nesta freguesia de bons costumes, havia aspetos característicos da vivência do dia a dia. “Na década de sessenta, a “minha” aldeia era uma freguesia sediada no meio rural, tinha casas muito simples e construídas em pedra, com dois pisos. Nas casas abastadas, os pisos inferiores eram destinados à recolha dos animais. Não havia luz elétrica, água canalizada ou esgotos. A luz era-nos dada por candeeiros de petróleo ou velas. A água vinha, em cântaros de folha ou barro, da fonte para casa. A retrete ficava num recanto da habitação, ou fora.” (Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural.) Sobreposta era lugar de tradições agrícolas: as malhadas (bater com um malho para retirar os grãos, por exemplo, do milho, do centeio, do feijão); as varejadas (bater nas oliveiras com uma vara para fazer saltar as azeitonas); as vindimas (apanha da uva); as pisadas (pisar a uva com os pés); as desfolhadas (retirar as espigas do milho e prepará-lo); as arrancadas (arrancar a planta do linho); as espadeladas (bater o linho com a espadela - utensílio próprio de madeira para limpar o linho); as carreadas (ritual de entrea juda de juntar vários carros de bois para fazer um serviço de transporte); a matança dos porcos (matar os porcos, fazer o fumeiro e preparar a carne); as serviçadas (grandes trabalhos agrícolas que reuniam muitas pessoas e em que, geralmente, o almoço era levado para o campo, à cabeça, pela patroa da casa, num açafate coberto com uma toalha de linho). Todas estas tradições eram acompanhadas de cantoria. “No quotidiano da população de Sobreposta, cantar era obrigatório, numa tentativa de esquecimento dos dissabores de uma vida de trabalho: 84
era nos trabalhos do linho, era a sachar o milho no campo, era a mondar, era a apanhar feijão, era… em todos os trabalhos se cantava. (…) às vezes andavam duas, três, quatro, meia dúzia de pessoas, uma cantava uma coisa, outra cantava outra.” [Florinda Costa]. Se a música acompanhava os labores agrícolas diários, era nas vindimas, sachas do milho e nas desfolhadas que se manifestavam mais acentuadamente, constituindo-se como pretexto de festa e diversão: “na esfolhada, estava a esfolhar e esfolhava e cantava. Era quase uma festa”. [Florinda Costa].” (Fernandes S. e Campos A. (2012) Cancioneiro de Sobreposta, Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta). Apesar de Sobreposta poder orgulhar-se, desde sempre, da união das suas gentes, que muito caracterizava o dia a dia de trabalho, também por lá existiam desavenças e rivalidades. Uma rivalidade ainda presente na memória dos anciãos é aquela que contrapunha as Casas das Eiras e do Loureiro. Havia ideais políticos distintos, os das Eiras defendiam a República e os do Loureiro a Monarquia, entre outras coisas. Ambas as casas viviam desafogadamente, sendo das mais representativas da aldeia, no que tocava a poder económico, o que lhes permitia engendrar formas criativas de emanar o seu potencial, junto da comunidade. Uma das formas que mais utilizavam, e que ainda hoje se utiliza como forma de celebração, era mandar foguetes. “Ora, quer a casa das Eiras, quer a casa do Loureiro dispunham de todos os ingredientes para promover tão espalhafatosos eventos, e do que se haviam de lembrar e levar à prática tanto o cirurgião das Eiras, como o clérigo do Loureiro?!: nem mais, nem menos do que dar instruções aos homens que queimavam os foguetes e os faziam ascender às alturas, para que inclinassem as canas na direção dos haveres do inimigo, no intuito perverso de provocar o máximo de estragos! (…) e, malgrado a morte dos principais contendores, ainda sobreviveu algo para os familiares que por cá ficaram…” (Silva, J. F. (2019), Sobreposta Mater. Braga: Associação Social e Cultural).
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O Dia da Regueira da Poça do Paço era também motivo de grandes tensões entre os vizinhos. Anualmente, no dia 28 de junho, era dia de fazer a limpeza às regueiras, às tapadouras, ao espaço de armazenamento da água, aos caminhos e verificar todo o sistema de águas da Poça do Paço. Tudo isto era feito à mão, o que chegava a juntar cerca de cinquenta pessoas, que tinham que se entender para realizar estas tarefas. Hoje, é tudo feito com a a juda de máquinas e tratores, que muito facilitam a obra e reduzem o grupo a meia dúzia de pessoas. A poça do Paço, apesar de ser apelidada de poça, consegue armazenar uma quantidade bastante razoável de água, suficiente para regar vários hectares de cultivos de vários lavradores de Sobreposta. Ora, a controvérsia reside em vários fatores: “No rego do Fial existe a “tapadoura de trás do moinho” onde é preciso ir buscar a água, ou desviá-la para o rio Febras em época de abundância. Neste local são descritas as maiores desavenças entre os consortes da poça e os vizinhos de Pedralva. Não é raro que os herdeiros depois de desviarem a água na tapadoura de trás do moinho sejam surpreendidos por outros regantes a fazerem precisamente o contrário.” (Contribuições de Domingos do Monte, Adelino do Monte e José Sabiel, (junho de 2012), O Dia da Regueira da Poça do Paço, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº30). Acresce o facto de a poça do Paço funcionar por rodadas. “(…) Durante a época de verão, considerada aqui desde o São Pedro (29 de junho) até à Senhora de Porto d’Ave (1º domingo de setembro). Durante o Inverno desde a tapadoura de trás do moinho até à poça, funciona o sistema de torna-torna, da poça até ao Campo Novo são rodadas de Inverno, do Campo Novo até Guizande, os herdeiros não possuem direito à água. (…) A apresentação de variáveis continua, já que com os anos ímpares a rega começa da poça para baixo (sentido de Guizande), com os anos pares a rega começa de baixo para cima. Há campos que apenas podem regar uma vez no ano, dia de São Pedro, passando esse dia deixam de ter direito de rega. 86
Há a água dos 25 que roda aos domingos, do pôr do sol de sábado ao meio-dia de domingo e alterna com a metade do dia seguinte. Esta água é chamada dos vinte e cinco sem ninguém saber ao certo porquê, no entanto, o mais plausível é que serviria 25 consortes ou regaria 25 campos. (…) Outra característica reside no facto dos regantes apesar de serem herdeiros num determinado dia poderem não regar, se a água não chegar ao seu campo, não rega, apenas na semana seguinte o poderá fazer, se mesmo assim tiver sorte. (…) Antigamente, existiam ainda as rodadas de noite, que agora caíram em desuso e já ninguém lhes liga. Essas rodadas eram usadas muitas vezes por pessoas mais marotas que pela calada da noite deixavam a “água a correr de lima” nos seus campos não cumprindo o estipulado pelo rol. “(Contribuições de Domingos do Monte, Adelino do Monte e José Sabiel, (junho de 2012), O Dia da Regueira da Poça do Paço, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº30). Estas quezílias requeriam, tanto antes como agora, grandes negociações, colaboração e entrea juda entre os vizinhos. Por vezes, levantavam-se desavenças bastante sérias que permaneciam no seio da comunidade, atravessando várias gerações. Ainda assim, na maioria dos casos, as pessoas conseguiam, com assertividade e humanidade, colmatar os desentendimentos. Outro aspeto característico era a relação entre amos e criados. As pessoas que trabalhavam nas lides do campo para outras pessoas eram chamadas de “criadas ou criados” e os lavradores para quem trabalhavam os seus “amos”. Os lavradores tinham que providenciar aos seus criados o seguinte: dormida em suas casas; refeições, geralmente, feitas à base de caldo de feijão, acompanhado de pão de milho pela manhã, batatas cozidas com couves, ao almoço, e novamente caldo, à noite; e as suas vestes. As vestes eram constituídas por uma saia, uns socos novos, uns socos “tachados” (usados e concertados), um colete, duas camisas de estopa, um lenço de cabeça e um lenço de pescoço, no caso das mulheres, e, no caso dos homens, duas camisas, um boné, um colete, um casaco, uns socos novos e uns socos tachados. 87
Para além disto, pagavam um salário, ao final do ano. Se o empregado quisesse deixar o amo antes de perfazer um ano de trabalho, teria de dar oito dias grátis ao patrão. Por este motivo, havia o seguinte provérbio:
“O ruim criado e o bom amo, oito dias ao fim do ano” ou
“O ruim amo e o bom criado, oito dias ao fim do ano”.
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Ritos e Rituais Religiosos
Como mencionado anteriormente, Sobreposta tinha uma relação muito estreita com a religião. A Igreja sempre teve um papel importante na fé e na crença destas pessoas e, por isso, acompanhava-as nos mais pequenos detalhes do dia a dia. No final de jantar, o chefe de família dava as graças a Deus por cada dia e pela comida que se tinha tido na mesa, sendo acompanhado por todos os presentes. A noite terminava sempre com as orações, recordando os parentes desaparecidos na morte ou na ausência, e com o terço, antes de todos recolherem para dormir, em camas de ferro e colchões de folhelho ou palha de centeio. (Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta - Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural.) Havia diversas orações típicas de deitar, das quais se segue um exemplo:
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“Nesta cama me vou deitar Para dormir e descansar Se a morte me vier buscar Encosto-me aos cravos Amarro-me à cruz Entrego a minha alminha ao menino Jesus”. Ao levantar, pela manhã, também se rezava. Segue um exemplo:
“Ofereço ao meu Deus Todos os meus pensamentos Palavras, obras, sofrimentos neste dia Seja honra e glória vossa Salvação da minha alma Guardaste-me do perigo da noite Guardai-me do perigo de dia Andai sempre na minha companhia!” Para cumprimentar ou quando se entrava em casa de alguém, dizia-se:
- “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que se respondia - “Sempre Seja Louvada Nossa Mãe Santíssima. Outra forma mais divertida era dizer em verso:
“Boa tarde, meus senhores, Que as manhãs foram tristes Diz-me como tens passado Aos dias que não me viste”. O pão também tinha o seu ritual. Era todo feito manualmente, de milho ou centeio. Dizem que o sabor do pão de hoje já não é o mesmo, o que talvez se explique pela qualidade da própria farinha, que era moída lentamente nos moinhos de água (um saco de farinha chegava a demorar cerca de três horas a moer), do forno a lenha ou mesmo do processo de fabrico artesanal e da forma específica 90
como a massa era feita. Este processo envolvia crenças importantes: quando se colocava a massa a descansar, deveria fazer-se o sinal da cruz, enquanto se dizia: “S. Mamede te levede, S. Vicente te acrescente”; quando se deitava o sal, dizia-se: “S. Salvador lhe ponha gosto e sabor, S. Gonçalo que não saia doce nem salgado”; quando se levava a cozer, dizia-se: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ámen. O Senhor abençoe tudo o que lá dentro tem!” ou “Deus te abençoe e te faça crescente para o comer a gente” ou ainda “Deus te abençoe dentro do forno, fora do forno, te acrescente, nós a comer, nunca chegamos a vencer”. As peregrinações aos Santuários faziam parte do culto de Sobreposta. Estas romarias tinham, muitas vezes, o intuito de pagar promessas, nomeadamente à Nossa Senhora do Sameiro, pelo que se organizavam os Romeirinhos, aos domingos, bem cedo. Os Romeirinhos eram pequenos grupos organizados pelas pessoas que tinham promessas a cumprir, que convidavam jovens raparigas para os acompanharem e rezarem conjuntamente. O tra jeto até ao Santuário do Sameiro demorava cerca de uma hora, durante o qual todos cantavam e rezavam. Um dos cânticos comuns neste percurso era:
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“Nossa Senhora do Sameiro Aqui vos trazemos Estes romeirinhos Que vos prometemos. Que vos prometemos E vós aceitais Senhora do Sameiro Bendita sejais. Bendita sejais Senhora das Dores Ouvi nossos rogos Mãe dos pecadores. Senhora do Sameiro Estrelinha do Norte Vós destes saúde a Quem estava à morte.” Os grupos eram compostos, normalmente, pelo “prometedor”, que enfarpelava vestes brancas, e por sete ou nove raparigas, visto que tinham de estar sempre em número ímpar. Quando chegavam ao Sameiro, faziam as rezas e tinham de dar três voltas à igreja. Quando voltavam desta peregrinação, as raparigas eram convidadas a entrar na casa de quem tinha feito a promessa, para aí serem presenteadas com uma pequena refeição. Grande parte das participantes “ia por uma malguinha de sopa e uma fatia de pão! E todas contentes!” [Adosinda Vieira] (Fernandes S. e Campos A. (2012) Cancioneiro de Sobreposta, Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta). Outra curiosidade, também muito ligada à religião, era o rito, antigamente muito vulgar nas zonas do interior, de “encomendar as almas”. No mês de novembro, todas as noites, por volta das 22h30, as pessoas deslocavam-se para um local alto na freguesia 92
para encomendar as almas. Tratava-se de fazer orações e entoar cânticos para pedir proteção para os seus defuntos. Era uma espécie de carta de recomendação a Deus para que as almas fossem bem cuidadas. O objetivo recaía, sobretudo, sobre as almas daqueles que já tinham partido, nomeadamente aqueles que não tinham tido oportunidade de se preparar para o momento, porque tinham falecido de acidente ou de assassinato, por exemplo. No entanto, poderia servir também como um momento de reflexão para os vivos, como forma de prevenção. Havia muita preocupação com os atos de fé, nomeadamente com a confissão, de tal forma que as pessoas estavam atentas a quem ia à missa ou se confessava, principalmente na época da Quaresma. Para persuadir aqueles que não expiavam os seus pecados, iam a casa das pessoas com um caneleiro (peça onde se enrolava o fio de tecelagem) e, enquanto batiam com ele, para que se ouvisse ruído, gritavam: “Ó fulano, vai-te desobrigar que a Santa Igreja está a chamar!”. Os homens que casavam na Igreja de Sobreposta, entravam numa lista para que, quando chegasse a sua vez, fossem nomeados para Mordomos da Cruz. Escolhia-se um homem oriundo de Sobreposta e outro de Lageosa que, na segunda-feira a seguir à Páscoa, passavam o testemunho a dois novos mordomos. Como obrigações, para além de acompanhar a cruz no dia de Páscoa, tinham de ir, todos os domingos, acompanhar o padre ao cemitério. No entanto, aqueles que tivessem posses, e não o quisessem fazer, pagavam a alguém que os substituísse. Quando alguém sofria de alguma maleita, fazia-se uma benzedura própria, com rituais e orações adequadas. Uma mesinha comum era a que se realizava para curar a doença de erisipela, uma doença de pele causada por uma bactéria, que deixava a pele com grandes manchas vermelhas, visto atingir os 93
vasos linfáticos. Para tratar esta doença, benzia-se o local com um raminho de oliveira e azeite da terra, à medida que, em jejum, se dizia a seguinte oração:
“Pedro e Paulo foi a Roma Pedro e Paulo veio de lá Senhora muita gente morta A erisipela é coisa má Talha-a com folhas de esparte E óleos de oliveira Com o cordão da Virgem Maria Toda a gente sararia” Pai Nosso e Avé-Maria. Se o problema fosse um inchaço, deveria fazer-se o seguinte: fervia-se água num púcaro de barro e colocava-se em cima uma raiz de giesta, um novelo de linhas, uma agulha, um pente e umas tesouras. Depois desta preparação terminada, pegava-se na linha e na agulha e simulava-se coser o inchaço. Durante este processo, tanto aquele que benzia, como aquele que tinha o inchaço, teria de dizer a seguinte reza, três ou cinco vezes (sempre em número ímpar):
“Eu te coso, pé aberto, fio torto Com o poder de Deus e da Virgem Maria Que ela me ensinou Que eu nada sabia” Pai Nosso e Avé-Maria.
Quando se perdia alguma coisa ou algum animal se tinha escapado, dever-se-ia rezar o Responso a Santo António:
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“Ó Beato Santo António Quando vós pregar quisestes Abençoe Deus houvestes Em Lisboa fostes nado Em Roma fostes coroado Pelos caminhos que andastes Pelos livros que rezastes Jesus Cristo encontrastes Eu Senhor Contigo vou Tu comigo não virás Eu no céu entrarei Tu na terra ficarás Quantas missinhas houver Quantas tu ouvirás Quantos bichinhos perdidos Quantos tu ampararás” Pai Nosso e Avé-Maria. Esta oração tinha de ser rezada três vezes, sem engano, para que o objeto ou o animal perdido aparecessem. Outro problema comum na época era ter a espinhela caída. Primeiro, tinha de ser confirmado que a pessoa sofria desta maleita, pelo que se pedia ao afetado que se sentasse numa cadeira, juntasse os pés e deixasse cair os braços. Caso um dos braços estivesse mais descaído do que o outro, era sinal que a pessoa tinha de facto a espinhela caída, ou seja, um desvio na coluna. Para talhar este mal, esfregava-se o braço descaído com azeite e colocava-se um penso feito à base de mel e ovo batido ou então com banha de porco e canela. Quando o penso estivesse seco, a pessoa estava curada. Quando nascia uma criança, havia um ritual a levar a cabo. Caso fosse menina, a água do primeiro banho era deitada dentro de casa, para que fosse sempre ligada à família; se fosse menino, a água era deitada fora de portas, para que este fosse aguerrido e lutador. 95
Curiosidades e Brincadeiras
Naquela época, os passatempos eram, essencialmente, feitos na rua, ao contrário da atualidade. A juventude entretinha-se com as partidas de futebol, com bolas feitas de meias em desuso, cosidas com papel batido dentro. “Tínhamos as caricas, as andas, as corridas de sacos, o salto, o peão, o espeto, a farinha, a quebra do cântaro, a sardinha, a macaca e a telepatia, entre muitos outros jogos tradicionais e inventados por nós.” (Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta - Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural.) O jogo da Malha, hoje ainda muito usual, era divertimento dos adultos, nos locais mais centrais, nomeadamente, ao final do dia, à porta da Mercearia do Senhor Augusto Mendes. As mulheres juntavam-se na soleira das portas, a tricotar. As lides de trabalho eram maioritariamente feitas em grupo, como já foi referido, fomentando o espírito de entrea juda entre a comunidade. Daqui surgiam muitas vezes outras tradições, mais viradas para a brincadeira e para o entretenimento, que serviam para aliviar a carga de quem trabalhava no campo com afinco e também para aproximar os rapazes e as raparigas. Um desses exemplos é a brincadeira que os rapazes faziam durante as “espadeladas”. Enquanto as raparigas limpavam o linho e fiavam, os rapazes apareciam e escondiam as espadelas das raparigas com quem queriam conversa, fazendo com que elas tivessem de as procurar, atrasando o seu trabalho. Outro exemplo é a brincadeira dos “embuçados”, que 96
ocorria durante as desfolhadas. Era comum as pessoas juntarem-se, à noite, para desfolhar e havia rapazes que se cobriam com lençóis ou capas para poderem aproximar-se das raparigas de quem gostavam. As mais cora josas aventuravamse a descobrir quem eram os escondidos, mas nem sempre acontecia, até porque esta brincadeira não era bem vista por aqueles mais conservadores. Fazia-se ainda o Pregão dos Casamentos para aqueles que namoravam ou tinham pretendentes. À noitinha, os jovens iam para cima do monte e gritavam:
- “Fulano vai casar!” - “Com quem?” – Respondiam em coro os rapazes. - “Com fulana de além!” - “Ai, vai bem, vai bem!” Outro rito que fazia parte da tradição sobrepostense era os casamentos carnavalescos. Levando à letra a expressão “no Carnaval ninguém leva a mal”, a juventude entretinha-se a magicar casamentos entre a população. Na terça-feira de Carnaval, por volta das 21 horas, subiam aos locais mais altos, por exemplo às árvores e, com recurso a funis ou mesmo às suas mãos que enconchavam para se fazerem ouvir melhor, anunciavam casamentos, gritando bem alto os nomes das noivas e noivos que desconheciam totalmente tais façanhas. Casavam solteiras com viúvos, novos com velhas, apenas dependendo da sua imaginação e gozo. Claro que havia aqueles que efetivamente não levavam a mal, outros passavam uns raspanetes aos artistas e outros, principalmente os progenitores das moças e dos moços implicados, ficavam de tal forma ofendidos que obrigavam os autores a umas boas corridas ou a encontrar esconderijos sólidos para escaparem a uma sova ou a bofetões.
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Conta-se também que a festa em honra de Santa Marta e de Santa Maria Madalena da Falperra servia para trocar de namorado ou namorada. Esta festa, não sendo da freguesia, era participada por muitos, por ser um grande marco nas redondezas e atração de centenas de peregrinos. O costume, principalmente das namoradas, era de se fazerem acompanhar por outro na dita festa, como forma de demonstrar ao anterior que já não o queriam. A certa altura, os rapazes já se faziam acompanhar de paus para baterem nos seus rivais. A confusão começou a ser de tal forma usual que a um dado momento, no dia da festa, a polícia era convocada para fiscalizar os participantes à entrada, de modo a confiscarem quaisquer objetos que pudessem ser utilizados em brigas de rivais. Aqueles que queriam impressionar as raparigas levavam o maior ramo que encontrassem de alfádegas (manjericão de folha larga). Uma tradição divertida para uns, mas que também criava atritos a outros, era a que se fazia em novembro, na venda do senhor Augusto Mendes - a Eleição de S. Martinho. Havia uma comitiva composta por juiz, presidente e mordomos da festa, que criava e afixava uma lista com as pessoas que tinham sido avistadas embriagadas, ao longo do ano. Está claro que havia quem se regozijasse do feito e quem não achasse graça, o que levava muitas vezes a mais um copinho de vinho! Em Sobreposta, outra coisa que não poderia faltar era o relato de lendas envolvendo bruxas e demónios. Aqui fica um exemplar - a Lenda do Penedo da Costureira, que batizou o penedo que se encontra na margem esquerda de quem desce pelo estreito caminho que dá acesso ao lugar do Moinho Velho, situado na margem direita do rio Febras. Esta lenda conta a história das aparições de uma linda mulher que tinha por hábito costurar, ininterruptamente, na 98
sua máquina, no topo deste penedo. Vários homens viram esta aparição, sendo que, num belo dia, um jovem caiu de amores por esta mulher e decidiu levá-la para casa, para com ela contrair matrimónio. Entretanto, à noite, descobriu que se tratava de uma figura demoníaca. Ao aperceber-se disso, o jovem desatou a benzer-se, de modo que a bruxa começou a inchar e rebentou, soltando uma estrondosa gargalhada. Desconhece-se o motivo de tais aparições, em todo o caso, já não há testemunhas de que estas permaneçam. Há quem diga que as aparições de bruxas e diachos (demónios) terminaram em 1973, ano em que Sobreposta foi eletrificada. Ora, a verdade é que estas aparições eram testemunhadas, normalmente, à noite, nomeadamente por moleiros, após a saída da tasca do senhor Augusto Mendes. Alguns caíam, tinham até sérios acidentes, quer a pé quer a cavalo, com os sustos que estas bruxas lhes pregavam, nas sombras da estrada. A propósito, um certo dia, um grupo de jovens decidiu pregar uma partida para “caçoar” (gozar) com o senhor Quim Tarrujo, moleiro de profissão. Sabendo que este se encontrava na Venda do senhor Augusto, o grupo colocou-se, estrategicamente, na estrada do lugar da Veiga, na zona dos arbustos, e dividiu-se a meio, colocando-se três de cada lado da estrada. Arregaçaram as calças e colocaram as camisas brancas de linho por fora, de modo a que esvoaçassem. No momento em que o Quim Tarrujo ia a passar, levantaram-se todos ao mesmo tempo, na penumbra da noite, vociferando “ora pro nobis!” Isto significa “ora por nós”, em latim. Estas são as “palavras com que os fiéis católicos pedem a intercessão da Virgem Maria ou dos santos nas suas orações” (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O Quim Tarrujo foi todo o caminho aterrorizado a benzerse e, no dia seguinte, contou na aldeia ter sido vítima de uma aparição de bruxaria… 99
Outra altura, em que era comum aparecerem, era muito cedo, pela manhã, no caminho para a missa ou para os campos, antes do sol nascer. Havia uma rapariga que, depois do susto que apanhou com um homem a querer atar-lhe a perna com uma corda, segundo contou, passou a fazer-se acompanhar de um pau, no percurso até à igreja. Se há coisa comum entre os sobrepostenses é o amor que têm à freguesia. À medida que vamos conhecendo, descobrindo e, principalmente, ouvindo falar sobre Sobreposta, vamo-nos também sentindo atraídos por ela. São raros os olhos que não brilham quando contam estórias. Na realidade, as estórias estão bem cravadas nos olhos de quem as conta e é isso que faz com que esta freguesia seja tão especial.
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Livros • Fernandes, S. e Campos A. (2012), Cancioneiro de Sobreposta, Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta. • Mendes, F. (2015), Freguesia de Sobreposta - Um Pouco da Sua História. Braga: Associação Social e Cultural. • Silva, J. F. (2015), Ares da Sobreposta. Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta. • Silva, J. F. (2019), Preito a Sobreposta – Canções e Instrumentais, Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta. • Silva, J. F. (2019), Sobreposta Mater. Braga: Associação Social e Cultural de Sobreposta.
Publicações • Caldeira, M. (2013), Sobreposta equipada para desporto e lazer, Correio do Minho. • Cerqueira, M. (2015), Moinhos de Portuguediz ganham área de lazer, Correio do Minho. • Contribuições de Domingos do Monte, Adelino do Monte e José Sabiel, (junho de 2012), O Dia da Regueira da Poça do Paço, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº30. • Costa, T. M. (2014), Procissão do Santíssimo Sacramento foi manifestação pública de fé, Correio do Minho. • Costa, T. M. (2015), Força da tradição voltou a erguer o arco da festa, Correio do Minho. • Costa, T. M. (2015), Santíssimo Sacramento trouxe a fé para a rua, Correio do Minho. • Esteves, C. (2015), Parque Industrial de Sobreposta vai ter novos acessos no próximo ano, Diário do Minho. • Fernandes, J. M. (2015), Associação Cultural desafia Câmara de Braga para projeto turístico com património rural, Diário do Minho. • Fernandes, J. M. (2018), Braga vai criar consórcio públicoprivado para gerir património monumental, Diário do Minho. • Lima, J. C. (2015), Arco congrega povo de Sobreposta na festa do Santíssimo Sacramento, Diário do Minho.
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• Maia, P. (2015), Festas do Bom Jesus dos Milagres e da Senhora de Guadalupe, Correio do Minho. • Mendes J. e Silva A., (junho de 2020), As Origens da ASC Sobreposta, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº61/62. • Redação (2014), Dia dos Moinhos celebrado em Sobreposta, Diário do Minho. • Redação (2016), Os Amigos de Sobreposta animam com Macaco Velho, Correio do Minho. • Redação (2019), Padre Zé do Muro: Bodas de Ouro Sacerdotais, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº60. • Silva, A. (2011), Cancioneiro de Sobreposta a juda a preservar o património oral, Diário do Minho. • Silva, A. (2011), Restauro do Moinho da Figueira dá início a sonho de construir parque molinológico, Diário do Minho. • Silva, A. G. (dezembro de 2011), Caixas e Bombos da Nossa Terra, Boletim Informativo da Associação Social e Cultural de Sobreposta, nº28. • Silva, F. V. (20 de julho de 2016), Tradição Hercúlea, Diário do Minho. • Silva, J. P. (2017), Sobreposta com parque de lazer para servir todo o concelho, Correio do Minho. • Viana, M. (2014), Associação Social e Cultural quer criar centro de dia em Sobreposta, Correio do Minho. • Viana, M. (2014), ATAHCA vai investir cerca de 300 mil euros na recuperação de moinhos, Correio do Minho. • Viana, M. (2016), Associação revelou património da freguesia de Sobreposta, Correio do Minho. • Vilhena, I. (2013), A maior festa da freguesia, Correio do Minho • Vilhena, I. (2013), Sobreposta venerou o Santíssimo Sacramento, Correio do Minho. • Vilhena, I. (2017), Santíssimo Sacramento congrega comunidade, Diário do Minho. • Vilhena, I. (2017), Sobreposta unida na tradição do Arco, Diário do Minho.
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Cadernos e Documentos • Arquivos pessoais de Alberto Gomes da Silva. • Arquivos pessoais de Fernando Marques Mendes. • Ata da reunião de 3 de junho de 1976, no IMAVE. • Carta à Junta Autónoma das Estradas, de 3 de março de 1997. • Carta aos sobrepostenses residentes na grande Lisboa, da autoria de Alberto Gomes da Silva, 1978. • Cartas enviadas ao Presidente da Junta e ao Pároco de Sobreposta, 1978. • Cunha, A. R., Documento intitulado S. Tomé da Lageosa. • Documento “A Associação Que Queremos Criar”, de 28 de maio de 1978. • Documento de inventário do Museu Pio XII referente à Gelosia • Estatutos da Confraria de Subsino, de 1764. • Estatutos da Confraria do Augustíssimo e Santíssimo Sacramento, de 1778. • Estatutos da Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, 1689 • Leitão, P. Documento intitulado Pedralva. • Memórias Paroquiais de 1758, o Padre Francisco Xavier Pinto. • Notícia de Jornal referente às Carreadas. • Plantas topográfica dos moinhos. • Recolha do património oral da freguesia – cantigas, benzeduras, orações, estórias – da responsabilidade da ASC, na pessoa da técnica superior em Sociologia Isabel Pires, ao abrigo de um programa de emprego do IEFP. • Requerimento entregue no IMAVE em outubro de 1975. • Sá, J. A., Caderno Memórias dum Herói da Grande Guerra (1914-19178).
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