Um pirata, uma ilha e um destino

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Dedicado a todos os nordestenses: aos que ficam e aos que vĂŁo, desde o sĂŠculo XV

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É que nas veias corre-me basalto negro No coração a ardência das caldeiras O mar imenso me enche a alma E tenho verde, tanto verde a indicar-me a esperança. José Ferreira, Ilhas de Bruma

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Título: Um pirata, uma ilha e um destino Autores/Ilustração/Design Gráfico: Adriana Brandão; Beatriz Oliveira; Cheila Louro; Diogo Mendonça; Érica Lopes; Guilherme Mourão; Inês Silva; Isabel Moniz; Joana Melo; João Miranda; Luís Oliveira; Mariana Soares; Marta Tavares; Marta Sousa; Matilde Medeiros; Nair Medeiros; Nelson Frias; Ricardo Lopes; Sofia Medeiros; Soraia Monte; Tiago Barbosa e Vasco Medeiros Escola Secundária do Nordeste Rua do Rosário s/n 9630-179 – Nordeste São Miguel – Açores http://srec.azores.gov.pt/dre/sd/115122010600/

ebs.nordeste@azores.gov.pt

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Na minha terra, há flores cujo cheiro espalha-se no ar; águas quentes e límpidas que brotam da terra; plantações de chá revigorante; cenários dignos de um paraíso terreno; vacas plácidas e calmas, areia negra, ribeiras de água fresca, caldeiras, lagoas, vulcões, lendas, saudades… Sabes que terra é esta? Não? É a ilha de São Miguel e que, conjuntamente com outras oito ilhas, forma o arquipélago dos Açores, no meio do oceano Atlântico. Foi descoberta na primeira metade do século XV e povoada a mando do Infante D. Henrique. É aqui que a nossa história se vai desenrolar, numa pequena vila situada na ponta nordeste da ilha e que, não por acaso, se chama Vila do Nordeste. Eu sou a Catarina e, numa manhã primaveril de final de março, eu, com os meus melhores amigos, a Lúcia, o António e o José, vivemos o início da nossa aventura. Já agora, somos todos alunos da Escola Básica Integrada e Secundária do Nordeste e frequentamos o 6º ano de escolaridade, na turma D. Para celebrar o início da primavera e o desabrochar das nossas belas azáleas e hortênsias, o nosso grupo de escuteiros decidiu fazer uma caminhada até ao nosso farol, o Farol do Arnel, construído no século

XIX,

que

está

sobranceiro à nossa vila, no sábado antes da Festa da Páscoa. Do seu miradoiro, pudemos observar o Atlântico sem

fim,

reservatório

de

segredos, naufrágios, corais e, quem sabe, de monstros e sereias!? Como estava um dia esplendoroso, decidimos tomar um banho revigorante, após a visita ao interior do farol.

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Nadámos, corremos, adormecemos, trepámos, escorregámos e acabámos, com a maré vazia, enfiados numa gruta à procura de lapas, caranguejos, conchas e de tudo aquilo que o mar nos pudesse ter trazido. Revolvemos pedras, pedrinhas e pedregulhos. Para nosso espanto, encontrámos uma caixa de madeira degradada, puxámola e parámos. Não vos consigo enumerar todos os nossos

sentimentos

sensações.

e

Sentimo-nos

ansiosos, trémulos, curiosos e medrosos. Quando, finalmente, ganháramos coragem para abrir a caixa, a nossa chefe dos escuteiros chamou-nos. Estava na hora de regressar. -

E

agora?

Perguntei. -

E

agora

vamos

embora!

Respondeu

a

Lúcia, trémula. – Estou com muito receio do que possa estar aí dentro. E se for uma maldição? - Disparate! – Interveio o António com o seu espírito implicativo. – Ainda acreditas nestas historietas?

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- Quer acredites ou não, se for uma maldição, não te safas!!! – Resmungou ela novamente.

- Chiu!! Vamos ser práticos! – Exclamou o José. – Vamos voltar a esconder a caixa. Abrimos uma cova profunda, para que o mar não a leve, e amanhã, pela mesma hora, regressaremos só nós os quatro. Combinado? - Sim, boa ideia! – Respondemos em uníssono. Pelas seis da tarde, subimos de regresso à nossa vila. As nossas bocas eram autênticos túmulos, aliás, nem falávamos com receio de dizer o que tínhamos encontrado. Já nas nossas casas, pouco depois de um banho quentinho e de um jantar da mamã, estava na hora de ir dormir.

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Tive uma noite muito agitada, pois dormi pouco, as horas não passavam e era um sobressalto constante. Finalmente amanheceu. Saí de casa cedinho e encontrei-me com os meus amigos em frente do portão da nossa escola. Corria uma brisa fresca que arrastava um cheiro intenso de incenso misturado com cheiro das azáleas. Iniciámos a nossa caminhada em silêncio, como se algo de tenebroso nos esperasse à beira-mar. Pouco depois, a Lúcia, não se contendo, repetiu a mesma lengalenga. - Eu continuo a achar que é uma maldição que está ali guardada e está à espera que alguém inocente, como nós, abra a caixa e ela se solte por aí! – Explicou a Lúcia, com a mesma cisma. - Teimosa! – Replicou o António.- Eu cá acho que é uma mensagem secreta que os marinheiros portugueses sobreviventes do ataque do submarino alemão, em 1918, nos deixaram para conseguirmos compreender melhor a Primeira Guerra Mundial. - Eu preferia que fosse um tesouro de piratas com joias, moedas…- Sonhei eu. - Gosto desta ideia! Vamos ficar ricos e famosos! – Delirou o José. A descida para o Farol do Arnel é acentuada e pode ser perigosa se escorregarmos por ali abaixo. Nem medimos o perigo e voamos. Literalmente! Chegámos num ápice às rochas que davam acesso à gruta. A maré estava cheia, por isso, aproveitámos o compasso de espera para contemplar, novamente, o oceano. Ao longe, observámos um grupo de golfinhos que diligentemente acompanhavam um barco de visita às baleias (Whale Watching) enquanto o sol se erguia num céu resplandecente. Finalmente, a maré vazou…Num ímpeto, erguemo-nos e dirigimo-nos para a gruta. Sobre a nossa cabeça, um milhafre fazia um voo pautado pelo ritmo do nosso andamento e, de quando, em quando, soltava um piar estridente que ecoava pelas rochas.

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- Isto é mau augúrio! – Opinou a Lúcia.- O milhafre é uma ave de rapina e deve estar a pressentir algo! - Pois deve! – Disse o António.- Pressente as tuas asneiras! Desatámos a rir às gargalhadas e a Lúcia amuou. Chegámos à gruta. Por alguma razão, ela parecia maior e mais escura. Detivemo-nos na sua entrada, mas ganhámos coragem e escavámos em busca da caixa. Com alguma força e persistência, o António e o José conseguiram puxar a caixa. De

madeira

envelhecida,

negra,

mas

rija,

fora trancada por um ferrolho

agora

apodrecido. O José abriua

em

busca

do

dito

tesouro de piratas. Nada. Lá dentro, nem jóias, nem

moedas,

nem

maldição…apenas

um

pequeno livro com uma capa

estragada

pelo

tempo. A Lúcia estremeceu… O José esmoreceu… O António suspirou…E eu senti um arrepio repentino. Agarrei no livro e abri-o. Nesse momento, o milhafre que nos acompanhara pousou do seu voo plano à entrada da gruta e, com o seu olhar penetrante, observava cada um dos nossos movimentos. Piou como se nos ordenasse algo. A Lúcia contorceu-se de medo e já ia pronunciar algo de disparatado quando me antecipei e ordenei: - Deixem de ser medricas! Sentemo-nos! Sentámo-nos em círculo, e eu abri o livro. As folhas estavam amareladas e já apresentavam sinais de degradação, havendo algumas folhas já carcomidas.

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Estávamos na presença de um diário. A caligrafia era incrivelmente bem desenhada, mas senti muita dificuldade em lê-la. Com os olhos esbugalhados e um frio no fundo do meu estômago comecei a arrancar as palavras. Aqui vão elas: - «18 de julho de ano 1514 de Nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje é um dia muito especial para esta terra de boa gente que me soube acolher e resgatar de uma vida de pecado, maldade e de desonestidade. Hoje, esta terra tornar-se-á vila porque receberá carta de foral, por ordem de el-rei D. Manuel I, Rei de Portugal e dos Algarves, de Aquém e de Além-mar, Senhor da Navegação e da conquista de Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. Faz cinco anos que aqui vivo. Chamo-me Pedro Gonçalo Velho Tomé e fui pirata de ocupação, opção e coração. Sou descendente de uma família nobre, por isso, sei escrever. No entanto, não quis ter uma vida de nobre a acompanhar reis, caçar, cuidar de terras. Precisava de aventura, de paixão, de correr riscos, de conhecer outras terras descobertas pelos portugueses, enfim, precisava de ser feliz! Durante dez anos, naveguei por oceanos e mares, lutei contra piratas espanhóis, roubei tesouros e preciosidades da Índia, saquei povoações costeiras, fui ferido e magoado, defendi-me e ataquei. No meu código de pirata, nunca matamos ou ferimos povoadores. Eram pessoas simples e de bem. Numa noite estrelada de Outono, eu e a minha tripulação pudemos confirmar pelos astros que estávamos a Nordeste do oceano Atlântico e avistávamos ao longe uns rochedos escarpados. Estávamos no mar há dias e decidimos aproximar- nos da costa para ancorar…carecíamos de comida e de água fresca, e seríamos, em breve, atacados por uma

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maleita estranha: gengivas com muito inchaço, dores terríveis nos dentes e na boca e uma morte certa, o temível escorbuto! Desta vez, não queríamos amedrontar as povoações, apenas pedir gentileza de trato para connosco. Do nada, como se o mar lesse o meu pensamento, as águas agitaram-se debaixo do nosso barco. Primeiro pensei nos terríveis monstros marinhos que, afinal, ainda poderiam existir e esconder-se ao largo daquelas ilhas para proteger os seus habitantes. Benzi-me uma dúzia de vezes e agarrei-me à cruz de madeira que trazia ao pescoço e que me fora dada por um missionário português que vagueava por terras do oriente, na Índia. Pouco depois, a brisa deixou de ser suave, e um vento gélido rasgou uma das nossas velas. Gritei pelos meus companheiros, amarrámos as restantes velas, fechámos as escotilhas e rezámos. O mar estava revolto e agressivo. Pouco mais me consigo recordar deste triste episódio. Dei por mim, num alvorecer tranquilo, deitado numa areia estranha: grossa e cinzenta. Com o rosto ferido, sentei-me e olhei em volta. Vi destroços do meu barco a pairar no mar, assim como barris de rum a serem arrastados para longe. Dos meus parceiros, nada. Não era difícil perceber o que se passara. Pousado ao meu lado, estava um pássaro estranho. Tinha um bico duro e enganchado, penas acastanhadas e garras rijas. Era uma ave de rapina que apenas me observava. Levantei-me a muito custo e lá me arrastei por entre pedras negras que escondiam caranguejos tontos e teimosos. O mar continuava a sua vida repetitiva, para a frente e para trás, traz água e leva areia, envolto num sossego que até me assustava. Saí daquele areal e percorri um caminho de terra muito subido, entre mata com plantas que nunca tinha visto em lado algum; mais tarde, soube que era louro, pau-branco e urze. A ave acompanhava-me, e eu tinha muito medo dela. E se eu estivesse a apodrecer e ela estivesse à espera para me devorar? Continuei a caminhar e não via nenhuma alma de Deus por perto. Estaria numa ilha encantada, daquelas que os marinheiros portugueses ouviam falar, onde viviam criaturas estranhas e o diabo andava à solta?

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Finalmente, cheguei a uma pequena povoação e provoquei um pânico geral: as mulheres gritavam, as crianças fugiam e os poucos homens que por ali estavam procuravam paus e pedras para me atacar. Se não me protegesse, haveria sova na certa. Com a minha mão direita, tirei o que restava da minha espada…sim, o que restava, pois ela havia-se partido quando fui arrastado para a areia. Além do cansaço, da fome, dos ferimentos, eu era um pirata desonrado e envergonhado que nem me podia defender. Mesmo assim, retirei o resto da minha espada e uma garrafa de rum e depositei tudo quanto tinha no chão, em sinal de rendição. (Ainda hoje penso, passados cinco anos, que mal poderia eu fazer àquelas criaturas, se nem espada ou punhal possuía?). Quando levantei os olhos do chão, o meu mundo girou num ápice. Por fome? Não! Por dores? Não! Por ataque do dito pássaro? Não! Simplesmente por ela. Quem poderia ser? Ainda pôs a hipótese de ter morrido e de um anjo ter aparecido para me acompanhar a Deus Todo Poderoso, mas esta ideia depressa me passou, pois levei uma pancada tão intensa na cabeça que caí por cima de um poço de lama.» - Este pirata é um bocado azarado. – Comentou o António. - Eu cá acho que ele estava no sítio errado na hora errada. – Observou o José. - E depois, Catarina? Continua a ler! – Ordenou a Lúcia, ansiosa. O milhafre piou como se também estivesse a opinar. - José, – pedi eu – vai ver a maré. Se ela estiver já a subir, temos de nos ir embora, caso contrário, ficaremos presos na gruta e não conseguiremos sair daqui. - Ainda temos mais umas horas. Vá, despacha-te a ler. Vamos ver o que outras desgraças esperam por este pirata. – Disse o José. Fez-se silêncio, e eu continuei a ler:

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-«Quando acordei, estava encarcerado, acompanhado de ratazanas negras que deambulavam de lá para cá e de cá para lá. Rezei para que não fossem as da Índia, aquelas que transportavam a peste negra. No entanto, não conseguia deixar de pensar na bela donzela que vira: com uns longos cabelos negros entrançados à volta da cabeça e uns olhos amendoados. Transportava uma trouxa de roupa para lavar, e no seu ombro, uma ave, igual àquela que me perseguia, estava pousada e tranquila. Era oficial: estava perdido de amores. Palavra de pirata! Passaram-se dias. Como visita, tinha apenas a bendita ave que se empoleirava na janela do cárcere. Finalmente, surgiu alguém…um membro do clero, o padre Gonçalves, para ouvir-me em confissão. Expliquei-lhe quem era e que pretendia deixar de ser pirata, pois estava perdido de amores. O padre, que era barrigudo e baixote, ouviu-me e desatou numa gargalhada sem fim. - Quem é a felizarda? – indagou-me o padre. - Não sei a sua graça (nome), nem a sua idade, nem a sua família. Só sei que ela transportava uma ave, igual àquela que ali está empoleirada, enquanto andava pela rua. – Respondi-lhe. - Ah! É a Maria do Mar, a jovem encantadora de animais. - Não percebo… - A Maria nasceu no barco que trouxe a sua família do Algarve para continuar o povoamento desta terra, em plena viagem pelo mar. Não se conhece a sua voz, pois ela não articula nenhuma palavra. Ouve-nos, mas não nos responde. Apenas comunica com os animais, e são eles os seus grandes companheiros do seu dia-a-dia.- Explicou-me o padre. - Pois a mim, isso não importa. Casarei com ela, custe o que custar.- Decidi naquele momento.

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- Não tenhas grandes esperanças, meu mancebo! Foste e és um pirata pecador. Duvido que a família da Maria te aceite, pois foram dos primeiros povoadores desta terra e são gente de trabalho e respeito, mas, mesmo assim, vou-te dar a minha ajuda e seja o que Deus quiser. Mas, primeiro, tenho de arranjar forma para te tirar daqui. Ajoelhei-me e beijei as mãos do padre. - Serei, a partir de hoje, um homem exemplar. - Prometi com alma e coração. O padre Gonçalves foi buscar o resto da minha espada , onde estava o brasão da minha família nobre talhado, e apresentou-o ao alcaide e responsabilizou-se por mim. À chegada à sua casa, o padre obrigou-me a tomar banho, coisa que eu já não fazia há muitos meses, aparou-me a barba e o cabelo, vestiu-me e deu-me de comer. Vi-me ao espelho e não me reconheci. Primeiro, achei-me piroso, pois não estava habituado àqueles trajes desde que decidira ser pirata, mas depois, lá me achei engraçado. À parte de tudo isto, o pior ainda estava por vir…Fui à missa. Não, ainda não é tão mau…Fui à missa como sacristão! A

população

assustou-se

e

benzia-se

repetidamente quando me viu. Lá, o padre Gonçalves, no sermão da missa, explicou quem eu era:

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- Caríssimos irmãos, perante o vosso espanto, quero apresentar-vos o nosso irmão convertido a Deus Pai Todo Poderoso, Pedro Gonçalo Velho Tomé, descendente da mais fina nobreza de Portugal. Decidiu viver na nossa povoação, querendo também constituir aqui família. – Explicou o padre.» O milhafre esvoaçou e aterrou na cabeça da Lúcia. Ela pulou e gritou: - A maldição está no ar… - No ar, não está! Está, mais propriamente, no topo da tua cabeça. A ver se te ilumina mais qualquer coisinha! – Interveio sarcasticamente o António. - Vamos levar o livro para a nossa escola e mostrá-lo ao professor de História? – Sugeriu o José. - Ideia de jerico! – Repetiu o António. - Nem pensar! – Exclamei bruscamente – Queres que o professor esmurre a mesa, salte da cadeira e se ponha a desenhar coisas abstratas no quadro? - Cruz credo! Dispenso! Isto é outra maldição. Mal por mal, que seja o pássaro.Opinou a Lúcia num rasgo de bom humor. - E se o mostrássemos à professora de Português? – Sugeriu novamente o José. - Nem penses! A professora ainda nos vai obrigar a identificar pronomes, determinantes, verbos, advérbios, adjetivos, nomes…temos trabalho de casa para quinze dias! Deixa-te estar quieto! – Resmungou o António. O José vai espreitar lá fora e, esbaforido, grita: - Depressa! A maré está a encher.

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-

Tira-me

este

bicho

da

cabeça. Estou toda arranhada! – Pediu a Lúcia. O António pegou no pássaro e levou-o ao ombro. No entanto, o milhafre não tirava os olhos da Lúcia. Acho que pensava que o seu cabelo daria um bom ninho! Voltámos a enterrar o livro negro e corremos em direção a casa. Aquela subida do farol do Arnel deixou-nos exaustos. Chegámos à vila, e cada um regressou a sua casa. A minha mãe estranhou a demora, e eu expliquei que andava a passear e a cheirar as flores. Ela fingiu que acreditou e mandou-me tomar banho. No dia seguinte, voltámos à gruta, bem cedinho. O milhafre já lá estava. E quando a Lúcia entrou ele, imediatamente, piou e lá voltou para cima da sua cabeça. - É oficial! O milhafre tem uma paixão assolapada por ti! – Gozou o António. - Pelo menos tenho uma ave que gosta de mim, pois há aquelas aves raras, a tua pessoa, que nunca terá uma cabeça para pousar! – Resmungou a Lúcia. - Caluda! Vamos continuar a saber os azares, amores e desamores do nosso pirata. – Ordenou o José. Retomei a leitura… «Com alguma resistência e medo, a população lá me foi aceitando, e a frequência à igreja foi aumentando, em especial das donzelas. O meu olhar, enquanto ajudava à missa, recaía sempre sobre a Maria do Mar.

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Os dias foram passando e eu precisava de uma ocupação para que me pudesse sustentar. Como conhecia muito bem o mar, decidi tornar-me pescador. De acácia, consegui construir um barco e, todos os dias pela madrugada, lançava-me ao mar. Evidentemente, ia muito bem acompanhado pela bendita ave que, por estas bandas, era chamada de Queimado (milhafre). A Maria do Mar vinha-me esperar, acompanhada pela sua ave, igual à minha, à beira da praia, pela manhã, e ajudava-me a transportar o resultado da pesca encosta acima. Claro que os primeiros peixes eram oferecidos àquelas aves. Eu e a Maria começámos a comunicar por gestos. A linguagem do amor não precisa de se expressar apenas por palavras. Chegando à povoação, Nordeste, punha à venda o resultado da pesca, à tarde, ajudava a população no que podia: agricultura, comércio, pecuária…À noitinha, contavalhes histórias de países distantes, dos seus povos, das suas maneiras de viver, das suas línguas, da sua comida…Devagarinho, fui sendo aceite por todos e sentia-me em casa no meio daquelas pessoas humildes, trabalhadoras e honestas. Obtive a autorização dos pais de Maria para cortejá-la. Os dias foram passando, e a minha paixão pela Maria do Mar foi crescendo. Para comunicarmos melhor, fui-lhe ensinando a ler e a escrever, e ela foi-me ensinando a comunicar com os animais, a compreender as suas necessidades, os seus movimentos, as suas emoções… Descobri que aquela ave que me acompanhava, o Milhafre ou o Queimado, pressentia que eu era uma pessoa nobre de sentimentos e tinha-me adotado.

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Certa manhã de Primavera, chegara eu da pesca, carregado de atuns e chicharros, e não vi a minha Maria à minha espera, como era costume. Estranhei…Estranhei mais ainda quando vi o seu milhafre empoleirado nas rochas basálticas da praia. Tive um mau pressentimento e voei pela encosta acima, abandonando na praia tudo quanto tinha pescado. Fui diretamente à casa onde a Maria vivia, com os dois milhafres a sobrevoarem os meus passos. Quis gritar! Quis morrer! A minha Maria estava deitada numa cama como se estivesse morta. Respirava tranquilamente, mas estava com os olhos fechados, com os lábios cerrados e sem qualquer movimento. - Que se passa com a Maria? – Indaguei. - Não sabemos! Já chamámos o curandeiro, e ele disse-nos que ela está sob um grande encantamento.- Respondeu a mãe. - Como é que se quebra este encantamento?- Quis saber. - Diz-se que aqui nesta terra de Nordeste vive um pequeno pássaro, chamado de Priolo, cujo piar é mágico e cura qualquer maleita. - Vou buscá-lo! Onde está ele? - Diz-se que está escondido na floresta mágica da Laurissilva, algures na Serra da Tronqueira! – Disse o pai.» - «Como hei de reconhecê-lo? - Parece-me que deve ser igual a este. – Interveio o pai Entregou-me o desenho da Maria, e ali estava um pequeno pássaro muito bonito, de formas arredondadas e de cor preta, com uma pequena pulseira na sua pata.» - Estou a ficar sem pinga de sangue! – Desabafou a Lúcia. - Mesmo assim, ainda tens muitos nutrientes…- Ironizou o António.

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A Lúcia atravessou-lhe os olhos. - Quem diria que o Priolo teve esta fama? – Interroguei eu. - Será que é por causa disto que ele está em vias de extinção? – Perguntou o José. - Vamos esconder-nos! – Sugeriu o António. - Que ideia desentoada! Por alma de quem havemos de nos esconder pois já estamos escondidos na gruta? – Opinou a Lúcia. - Porque estão a chegar pessoas à procura de lapas e se nos veem aqui, vão querer saber o que andamos a aprontar. Compreendeu, dona Lúcia? – Explicou o António. Escondemo-nos num canto, e o milhafre pôs-se à porta da gruta a espantar aqueles que iam aparecendo. Meia hora depois, fez-se silêncio. - O perigo já passou! – Disse o José. - Temos de nos ir embora! Está a começar a chover e, daqui a nada, o mar começa a revoltar-se.- Sugeri eu. O mau tempo assolou a ilha: ventos ciclónicos, chuva intensa, mar tempestuoso que agredia as rochas e as encostas. Estava com muito medo que a gruta tivesse ficado soterrada e o diário do pirata estivesse desaparecido. Assim, nunca saberíamos como aquela história tinha terminado. Conseguimos regressar à gruta dois dias depois.

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As férias estavam a terminar, e nós tínhamos de acabar de ler o diário e ainda tínhamos de acabar os horrores de trabalhos de casa de português e matemática. Tínhamos de estar o mais bem preparados possível para os benditos exames do 6º ano. Que tortura! Quando chegámos à boca da gruta, ficámos muito apreensivos! A entrada estava minúscula, pois com a tempestade, muitas pedras haviam caído. Era impossível entrar! E se retirássemos as pedras, poderia haver uma derrocada. - É melhor dar-mos meia volta e regressar à vila. Isto é mau sinal! – Agoirou a Lúcia. - Mau sinal é ficarmos sem saber o fim da história de amor do pirata! – Disse o António. O milhafre sobrevoou as nossas cabeças e lá entrou na gruta. Pouco depois, trouxe o diário do pirata encaixado no seu bico e deixou-o cair no meu colo, como se conhecesse a nossa curiosidade. Sentados atrás da gruta, ao lado de uma bonita e cristalina cascata, recomeçamos… «E é para lá que eu irei! Naquele momento, sempre acompanhado pela minha ave, andei, corri, subi, desci, tropecei, trepei, escorreguei e caí vezes sem conta. Quando cheguei à Serra da Tronqueira, busquei a floresta Laurissilva. O seu cheiro era inebriante, e as plantas endémicas eram lindas. Aprendi a reconhecê-las: Louro, Pau-branco, Azevinho, Sanguinho, Urze, Folhado. Havia uma paz indescritível! A natureza no seu melhor. Fechando os olhos, imaginava um conjunto de espíritos de sereias que haviam abandonado os mares devido aos maus piratas e se haviam refugiado naquele pedaço do paraíso; de animais estranhos e exóticos, de espíritos protetores…

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Esperei, desesperei dias e dias. Ouvia piar mas Priolo, nem vê-lo! Até que o meu milhafre veio bem acompanhado! Pousou no meu ombro juntamente com o dito passarito. Apresentava um bico negro e forte, o corpo de cor cinza e a cauda preta. Aprendi a reconhecê-lo à distância pelo seu cantar característico, curto, flautado e melancólico, bastante distintivo do piar do milhafre. Contra ventos, frio, granizo, sol intenso, chuva…regressei à povoação e, ao longe, ouvi um choro grave e aflitivo e os sinos da igreja a repicar.

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Dirigi-me à casa da minha Maria e nada nem ninguém vi… Corri para a igreja, e disseram-me da tragédia que se abatera sobre mim, sobre aquela família…A minha Maria morrera. Cheguei à sua sepultura e chorei, chorei, chorei tanto, tanto…Ambos os milhafres, como se se estivessem a despedir, piaram baixinho e pousaram as suas garras sobre a terra mole e revolvida. O bom padre levou-me, novamente para sua casa, e tentou consolar-me como podia. Nada me fazia efeito, aliás, acho que uma parte de mim morreu com a minha Maria do Mar. Deixei de comer, de dormir, de rir, de pescar… Todos os dias ia visitá-la e por lá ficava todo o dia, até ao sol se esconder lá longe no horizonte, ouvindo o sossego da natureza, acompanhado, claro, pelos dois milhafres que lhe traziam minhocas e pequenos roedores pendurados nos seus bicos duros. Na sua sepultura nasceu um cedro, que se tornará numa árvore robusta e perfumada. Acredito que a minha Maria queira viver através da natureza. Os milhafres, estes, poderão ali pousar e contemplar a ilha na sua imensa beleza. No entanto, no sítio onde caíram as minhas lágrimas, nem uma erva daninha nasceu. A terra ficou estéril, assim como o meu coração. Passaram-se dois longos anos marcados pela dor e pela tristeza, e eu tomei uma decisão: pela ponta da madrugada, após os festejos da atribuição da carta de foral e esta terra que se tornará vila, pegarei no meu barco e lançar-me-ei ao mar. Não, não se assustem, não me tornarei pirata novamente, mas não consigo fugir ao meu destino. Sinto um apelo do mar como se fosse um chamamento da minha Maria. É este o meu destino, e não posso negá-lo! Sei que perto desta ilha de São Miguel há mais oito ilhas, e uma delas recebeu o nome de Graciosa, que significa engraçada, e é para lá que irei. Quem sabe o que lá encontrarei?

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Regressarei a esta terra, pois deixo aqui a minha alma: a Maria, o milhafre e os amigos povoadores mas, por agora, preciso de encontrar a minha paz de espírito, e só o mar ma pode devolver. A vós que estais a ler o meu diário, gostaria que aprendessem uma lição com a minha Maria: somos parte da natureza e não donos dela. Os animais e as plantas precisam de ser respeitados e cuidados. Por isso é que nasceu um cedro na sua sepultura: para se tornar um abrigo para as aves. Adeus e fiquem sabendo que o meu espírito pairará sobre esta terra para protegêla.»

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- Que final de triste! Não estava nada à espera deste final tão dramático! – Declarei eu, choramingando. A

lúcia

lacrimejava

e

resmungou: - Eu sabia que era uma

história

amaldiçoada! - Maldição vai ser aturar-te nos próximos dias…- Replicou o António, ironicamente. Naquele momento, o milhafre emitiu um piar doloroso e assustador, como se nos estivesse a avisar de algo. Voava em círculos sobre as nossas cabeças. - Pelo sim, pelo não – declarou o José – é melhor irmos ver o que ele quer. Ao sairmos detrás da gruta observámos o mar a agitar-se de forma brusca e algumas pedras a escorregar pela encosta. Debaixo dos nossos pés a terra começou a agitar-se. Parecia que estava a ondular-se. - É um tremor de terra! – Gritei com o coração nas mãos. Começámos a correr sem destino e aqueles momentos pareceram uma eternidade. A terra roncava! Era algo assustador! Corria, chorava, gritava e caí por cima das pedras. O diário escorregou-me das mãos. Ainda tentei levantar-me e apanhá-lo. Já foi tarde. Veio uma onda maior do que as outras e arrastou-o para o meio do oceano. Quando tentei agarrá-lo, uma das páginas soltou-se e eu guardei-a junto ao coração até conseguirmos sair das rochas.

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O mar acalmou, a terra calou-se, e parecia que nada tinha acontecido. Olhámos para trás: a gruta estava destruída e o diário naufragado. Alguns pedaços de madeira flutuavam, até pareciam os escombros do barco do pirata. Quase que dei razão às cismas da Lúcia. Uma maldição tinha-se abatido sobre nós! O diário desaparecera de vez, mas restara uma folha. Retirei-a do peito e vi um desenho antigo: era o pirata abraçado à sua Maria e acompanhado pelos milhafres. Em baixo estava assinado o nome do padre Gonçalves. As lágrimas rolaram-nos pelas faces abaixo. Estávamos tão trémulos e emocionados. - E agora o que vamos fazer com esta folha do diário? – Indagou o José. - Vamos levar para a escola? Para a câmara? Para o museu? Para casa? – Quis saber a Lúcia. - Não! – Respondeu o António.- Temos de lhe dar um destino nacional. Haveremos de pensar em algo. Até lá, sugiro que entreguemos à nossa Diretora de Turma para que possa cuidar desta relíquia em segredo. A nossa Diretora de Turma, que também é a nossa professora de Português, não acreditou naquilo que lhe contámos. Fez-nos perguntas e mais perguntas para ver o nosso grau de coerência e coesão. Após ter concluído que estávamos a ser verdadeiros, eis a sugestão que nos foi dada: - Queridos, recebi a sugestão da Fnac Kids para um desafio nacional que consiste na redação de um conto. A nossa turma irá aceitar o convite. – Prosseguiu a professora. - Catarina, queres fazer a sugestão de um tema? - Sim, professora. E que tal imaginarmos a chegada de um pirata à nossa vila? - Mas tem de ter uma maldição escondida! – Opinou a Lúcia. A turma gostou da ideia e aqui está o resultado do nosso trabalho, ou melhor dizendo, do resultado do desabafo do nosso pirata.

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Nos nossos banhos de mar, na nossa praia do Lombo Gordo, nos nossos miradoiros da Ponta do Sossego e da Ponta da Madrugada, ficámos a imaginar o rosto do nosso pirata, o seu riso, o seu choro, a sua alegria, a sua agonia, a sua persistência e o seu espírito aventureiro. Acho que cada um de nós tem um bocadinho da sua personalidade. Pelo menos, nós, os nordestenses, temos! Gosto de pensar assim!

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Curiosidades: Farol do Arnel – Trata-se de uma torre prismática branca com quinze metros de altura e edifício anexo. Situado na zona oriental da Ilha de São Miguel e de arquitetura muito característica, o farol da Ponta do Arnel foi o primeiro farol a ser implantado no Arquipélago dos Açores e entrou em funcionamento em 26 de Novembro de 1876. Floresta Laurissilva - é o nome dado a um tipo de floresta húmida subtropical, composta maioritariamente por árvores da família das lauráceas e endémico da Macaronésia, região formada pelos arquipélagos da Madeira, Açores, Cabo Verde e Canárias. A palavra laurissilva deriva do latim Laurus (loureiro, lauráceas) e Silva (floresta, bosque). Milhafre/Queimado – Única espécie de rapina diurna dos Açores, sendo a ave mais emblemática deste arquipélago com outra ave, o cagarro. Nordeste – é uma vila e um município português na ilha de São Miguel com 101,51 km² de área e 4 937 habitantes (2011), subdividido em 9 freguesias.

Ponta da Madrugada – Deste miradouro obtêm-se uma vista imensa sobre a costa norte da ilha e sobre parte das montanhas do concelho do Nordeste. Toda esta área se encontra povoada por uma rica cobertura florestal onde predomina a Laurissilva típica da Macaronésia. Ponta do Sossego – Oferece uma vista ampla sobre a costa norte da ilha bem como sobre parte das montanhas do Nordeste. Este miradouro é em parte ajardinado não só com plantas de flor mas também com flora endémica típica da Macaronésia e é possível merendar à sombra de telheiros de colmo. Praia do Lombo Gordo –já foi detentora de Bandeira Azul tem uma característica muito pouco vulgar. Encontra-se fortemente influenciada pelas correntes marítimas relacionadas com fenómenos de assentamentos de areias facto que leva a que com uma periodicidade de 7 anos tenha um areal muito extenso para que nos 7 anos seguintes fique reduzida a praticamente metade da sua extensão. Priolo – É nos contrafortes da Serra da Tronqueira e no Pico da Vara que se encontra o Priolo, passiforme em vias de extinção. Este pássaro que até aos princípios de 2007 apenas podia ser observado nas imediações desta Serra e no Pico da Vara tem sido encontrado já em 2008 a menores altitudes graças aos cuidados de proteção que lhe têm sido aplicados.

Serra da Tronqueira – acidente geológico que tem o seu ponto mais elevado a 906 metros de altitude acima do nível do mar. Aqui localiza-se também o Centro Ambiental do Priolo.

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Agradecimentos A turma do 6º ano, turma D, e a sua Diretora de Turma, Fátima Margarida Ferreira, quer expressar o seu imenso agradecimento aos seguintes professores: Óscar Carreiro, que sendo nosso professor de Educação Física, apoiou-nos, pacientemente na digitalização das nossas imagens; Sílvia Preto, nossa professora de Educação Visual e Tecnológica, que nos apoiou na encadernação do nosso livro; Nélia Miranda, Vice-presidente do Conselho Executivo que, na qualidade de professora de Português, nos reviu todo o texto; Nuno Amaral, Presidente do Conselho Executivo, por nos ter dado a conhecer a iniciativa da Fnac Kids; e, muito particularmente à professora Sónia Nicolau, nossa docente de Cidadania, na área das Tecnologias da Informação e Comunicação, que coordenou todos os acertos e correções nas nossas ilustrações, paginação e organização gráfica, com imensa simpatia, paciência e disponibilidade.

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Uma aventura de gente de outros tempos vivida por uma geração 500 anos depois.

A irreverência da adolescência dos alunos da Escola Básica e Secundária do Nordeste envolvidos pela história do seu concelho - que em 2014 comemora 500 anos da sua elevação - voam numa história de mar, de tesouros e de amor. Amor de pirata, de terra e mar, em que aves que marcam os Açores- priolo e milhafre - são testemunhas desse amor. Aqui vinca-se a, sempre, relação nos Açores dos nascidos ou de coração, ao mar.

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