Livro: Educação e cultura de paz

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Coordenação editorial: Kátia Roel

Revisão: Adriana Mioto

Arte da Capa: Waldete Bazzo

Diagramação miolo e capa: Felipe Arcoverde

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Educação e cultura de paz : olhares a partir da abordagem do vivendo valores na educação / organização Paulo Sergio Barros, Núbia Hübner. -- São Paulo : Editora Brahma Kumaris : Vivendo Valores na Educação, 2023.

Vários autores. Bibliografia.

ISBN 978-65-990349-7-8

1. Cultura de paz 2. Educação intercultural 3. Professores - Formação profissional 4. Psicologia comportamental 5. Valores humanos I. Barros, Paulo Sergio. II. Hübner, Núbia.

23-164702

CDD-158.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Educação 370

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

EDUCAÇÃO E CULTURA DE PAZ:

Olhares a partir da abordagem do

Vivendo Valores na Educação

Paulo Sergio Barros Núbia Hübner (Organizadores)

São Paulo-SP (2024)

SUMÁRIO

AUTORES (6)

APRESENTAÇÃO (10)

EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E EM VALORES

HUMANOS: O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA

AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA (16)

Paulo Sergio Barros

VIVENDO VALORES NA EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO COM EDUCADORAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL (35)

Núbia Hübner

ARTE, CRIATIVIDADE E VALORES: PRÁTICAS

ESSENCIAIS PARA A EDUCAÇÃO (44)

Waldete Bazzo

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E O VIVENDO

VALORES NA EDUCAÇÃO: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO (60)

Francisca Valdelice Araújo do Vale

EDUCAÇÃO COM ENCANTO: NARRATIVAS SOBRE A

TRAJETÓRIA E AÇÕES DE WANDA CANTO COM O VIVENDO VALORES NA EDUCAÇÃO - VIVE (78)

Anna Maria de Oliveira

Cleide Romero

Núbia Hübner

Paulo Sergio Barros

VALORES HUMANOS NA PERSPECTIVA DE UMA CULTURA

DE PAZ: O PAPEL DA ESCOLA FRENTE A ESSE DESAFIO (94)

Maria Joyce Maia Costa Carneiro

A PEDAGOGIA DO SER: O DESVELAR DE UM NOVO

PARADIGMA EDUCACIONAL TRANSDISCIPLINAR (102)

Dulce Moreira Sampaio

TURISMO PELA PAZ: FORMAÇÃO DE MULHERES E VALORES PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL (113)

Joseane Alves dos Santos

EDUCAÇÃO EM VALORES E CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ: REVISÃO TEÓRICA E RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR (130)

Patrícia Costa da Silva

RESILIÊNCIA HUMANA NA PANDEMIA DE COVID-19: UM

ENFRENTAMENTO A PARTIR DE VALORES HUMANOS (144)

Horocidio Marques

CONSIDERAÇÕES SOBRE INCLUSÃO E CONVIVÊNCIA COM O DIFERENTE A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA SISTÊMICA (154)

Marcelo Campos

A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E EDUCAÇÃO EM TEMAS SENSÍVEIS: A NECESSIDADE DE UMA ATMOSFERA DE VALORES EM SALA DE AULA (169)

Paulo Sergio Barros

Bruno Falcão Batista

AUTORES

Paulo Sergio Barros

Mestre em História, doutorando em Educação, membro do grupo gestor do Vivendo Valores na Educação - VIVE no Brasil e professor da Brahma Kumaris e da Secretaria de Educação do Estado do Ceará. Tem experiência com docência no ensino fundamental, médio, educação de jovens e adultos e superior e trabalhos publicados nas áreas de história, educação e literatura (poesia).

Núbia Hübner

Professora de Matemática e Física, Pedagoga, Psicopedagoga com especialização em Dislexia. Atuou nos Conselhos Municipais de Educação, Assistência Social e Políticas de Drogas entre 2012 e 2018, na cidade de Vinhedo-SP. Atualmente cursa Neurociência, Psicologia Positiva e Mindfulness na PUC-PR. É membro do grupo gestor do Vivendo Valores na Educação - VIVE no Brasil como coordenadora administrativa.

Waldete Bazzo

Licenciada em Artes Visuais e Música, pós-graduada em Educação e História da Arte. Possui formação em Yoga clássico, Florais de Bach e Ayurveda. É praticante e professora de meditação e membro do grupo gestor do Vivendo Valores na Educação - VIVE.

Francisca Valdelice Araújo do Vale

Engenheira Agrônoma - bacharelado e licenciatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialização em Gestão e Avaliação da Educação Pública pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC. Professora de Biologia da rede pública do Estado do Ceará.

Maria Joyce Maia Costa Carneiro

Graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Pedagogia/Administração escolar pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestra em Políticas Públicas em Educação e Doutora em Educação, ambas pela UFC.

Anna Maria de Oliveira

Tem 28 anos de experiência na área da educação. Pedagoga especializada em Gestão Escolar, professora formadora e coordenadora pedagógica. Fundadora e curadora de projetos da Academia

Confluência - Desenvolvimento Humano para Autogestão.

Cleide Romero

Psicóloga, pedagoga, especialista em Administração dos Serviços Públicos de Saúde, voluntária desde 2005 e atualmente membro da equipe de gestão do Vivendo Valores na Educação como coordenadora de capacitação.

Dulce Moreira Sampaio

Pedagoga, mestra em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social, Especialização em Terapia Organizacional. Autora de vários projetos de desenvolvimento humano e relações interpessoais. Escritora.

Joseane Alves dos Santos

Educadora popular, pedagoga de formação, mestra em turismo e musicista autodidata, difusora dos valores na formação para o engajamento comunitário de meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade.

Patrícia Costa da Silva

Psicóloga clínica e docente em cursos de graduação e pós-graduação. Mestre em Psicologia Social (UFRGS), especialista em Grupos (SBDG), pós-graduada em Terapia Familiar (CEFI). Diversas formações nas áreas de educação e psicoterapias. Possui formação no Programa VIVE (Brahma Kumaris) e como facilitadora de Círculos de Paz (AJURIS-RS).

Herocides Marques

Pedagogo, pós-graduado em Neuropsicologia, mestre em Educação, doutorando em Psicologia, instrutor de meditação, palestrante e escritor.

Marcelo Campos

Historiador e mestre em Ciências da Religião pela PUC Campinas. Tem diversas formações nas áreas de análise comportamental e terapias integrativas. Trabalha como terapeuta e constelador sistêmico.

Bruno Falcão Batista

Professor de educação física da rede municipal de Fortaleza (CE). Especialista em saúde mental com caráter de resistência e em educação física adaptada. Mestre em Psicologia e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará.

Lembro-me de ter visitado o Brasil algumas vezes, alguns anos depois da criação do Vivendo Valores na Educação em 1996. Vinte sete anos depois, o Brasil continua a ser um líder no VIVE. Adoro o trabalho que eles têm feito com centenas de milhares de crianças e jovens adultos nas escolas, e o trabalho que fizeram com crianças de rua. Obrigada, Paulo Barros, Núbia Hübner e aos meus amigos e colegas no Brasil pelo seu trabalho incrível, por sua dedicação e por partilharem as suas experiências. A sua profunda compreensão da importância da atmosfera baseada em valores, criando um ambiente de paz, carinho e respeito no qual todas as pessoas crescem em direção ao seu potencial, mostra-se na forma como modelam e vivem os seus valores. Sinto-me sempre inspirada pelas suas histórias e sei que outros as acharão edificantes.

Com o meu profundo respeito pela sua coragem e destemor em viver os valores da paz, carinho e justiça de que o mundo tanto precisa, e com profundo apreço pelo benefício que estão criando para as crianças e jovens adultos, famílias e comunidades.

Autora principal da série de livros do Vivendo Valores na Educação - VIVE

Co-fundadora da Living Values Education

APRESENTAÇÃO

Este livro é celebrativo! Foi pensado para comemorarmos os 25 anos do Vivendo Valores na Educação (VIVE), em 2021. Coisas inesperadas aconteceram no percurso que nos fizeram adiá-lo. A principal delas foi a pandemia da covid-19. Retomado o projeto, outras ideias e outros colaboradores possibilitaram a sua realização. Celebremos!

O VIVE é uma abordagem educacional dedicada a educar corações e mentes de crianças e jovens e foi inicialmente desenvolvido por educadores e para educadores de acordo com o Grupo de Educação do UNICEF e a Brahma Kumaris, em 1996, quando vinte educadores dos cinco continentes reuniram-se na sede do UNICEF em Nova York para discutir as necessidades dos estudantes em todo o mundo, suas experiências de trabalho com valores e como os educadores poderiam integrar valores para preparar melhor os estudantes para a aprendizagem ao longo da vida.

Trata-se de um empreendimento global que fornece uma abordagem e ferramentas para ajudar os estudantes a se conectarem com seus próprios valores e a vivê-los e propõe uma série de atividades com valores para educação infantil, fundamental e média, destacando valores como paz, respeito, amor, cooperação, felicidade, honestidade, humildade, responsabilidade, simplicidade, tolerância, liberdade e união para envolver os estudantes na exploração e escolha de seus próprios valores pessoais enquanto desenvolvem habilidades intrapessoais e interpessoais para “viver” esses valores. Nesse sentido, o VIVE desenvolveu uma abordagem planetária, respeitando cada pessoa e cada cultura, garantindo que seu material didático tivesse uma variedade de atividades com valores representando a diversidade cultural da humanidade.

A implantação do VIVE é facilitada pela Associação Internacional Vivendo Valores na Educação (ALIVE), uma associação sem fins

lucrativos, que congrega organizações de todo o mundo preocupadas com valores educacionais. Com base em uma forte base de voluntários, o avanço e a implementação do Vivendo Valores na Educação têm sido historicamente apoiados pela UNESCO e por uma série de outras organizações, agências, órgãos governamentais, fundações, grupos comunitários e indivíduos, e faz parte do movimento global por uma cultura de paz.

Nos primeiros estágios de desenvolvimento do VIVE, internacionalmente, a Brahma Kumaris contribuiu muito, ajudando a editar os materiais-piloto iniciais e divulgando-os através de sua rede global de centros e com programas de formação e seminários para educadores. Como uma organização de paz profundamente interessada em valores, a Brahma Kumaris continua a fornecer apoio ou parceria ao VIVE, coordenando-o no Brasil como uma associada da ALIVE.

O Brasil foi um dos países pioneiros na implementação do VIVE e, consequentemente, na produção de material didático relacionado à realidade sociocultural brasileira1, bem como a edição do jogo de livros do VIVE internacional2 pela Editora Brahma Kumaris.

Nestes 27 anos de atividades no Brasil, o VIVE desenvolveu atividades em centenas de instituições através de seu curso de formação para educadores, palestras e oficinas, seminários, fóruns e encontros em escolas, ONGs, secretarias de educação, faculdades e universidades, e a participação em eventos nacionais e internacionais como congressos, fóruns, feiras, painéis etc., proporcionando a

1 Vivendo Valores na Escola - Professor, Vivendo Valores na Escola - Orientador, Dominó Vivendo Valores (indisponíveis); o CD Vivendo Valores (Meditação) e CD Criança Vive Cantando (Canções), disponíveis em plataformas digitais e na Editora Brahma Kumaris. Destacamos o livro Educaçãoevaloreshumanos noBrasil:trajetórias,caminhoseregistrosdoProgramaVivendoValoresnaEducação (Publicado pela Editora Brahma Kumaris em 2009 e disponível em formato digital na Amazon) e ProgramaVIVERudá: reconectando com nossa essência , também disponível na Editora Brahma Kumaris. Além de outros materiais (vídeos, artigos etc.) disponíveis em: https://vivendovalores.org.br.

2 Atividades com valores para crianças de 3 a 6 anos, Atividades com valores para estudantes de 7 a 14 anos, Atividades com valores para jovens, Guia de capacitação Vivendo Valores, Guia de capacitação Vivendo Valores para pais.

um grande número de educadores e estudantes a experiência da prática educacional fundamentada em valores humanos.

Assim, o caminho proposto ao longo das páginas deste livro é o da experiência de valores humanos na educação. A obra nos apresenta algumas pesquisas e práticas educacionais sobre trabalhos com valores humanos no ambiente escolar e acadêmico. As narrativas abordadas neste livro são resultados de atividades pedagógicas, de formação de educadores e investigativas recentes sobre educação em valores humanos, tendo o VIVE como referência.

Então, caro leitor, “caminhemos” por cada um dos textos que compõem este livro. São narrativas efetivas, amorosas, transformadoras, resultados de uma educação humana sedimentada em princípios da espiritualidade e da cultura de paz.

No primeiro artigo, Paulo Sergio Barros propõe um entrelaçamento conceitual entre educação intercultural e em valores humanos em uma experiência pedagógica levada à cabo na Escola Estadual de Educação Profissional Maria José Medeiros (Fortaleza-CE), a partir do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena com estudantes do Ensino Médio.

Núbia Hübner narra uma experiência pessoal como formadora do VIVE para educadoras de educação infantil no estado de São Paulo. A autora destaca a atmosfera de valores criada durante a formação, o que proporcionou mudanças relevantes na consciência que as professoras desenvolveram sobre seus valores e da prática docente.

Waldete Bazzo reflete sobre a relação entre arte, criatividade e educação em valores, propondo práticas pedagógicas com um espectro diverso a partir de diferentes matizes da arte, objetivando uma educação com mais consciência, significado e ações construtivas para um ser humano melhor.

Patrícia Costa Silva revisa o embasamento do VIVE e dos Círculos de Construção de Paz, demonstrando as congruências e diferenças entre ambos, objetivando inspirar outros educadores a enriquecer suas práticas de educação para a transformação humana.

Francisca Valdelice Araújo do Vale analisa as possibilidades de educação em valores humanos a partir das habilidades socioemocionais dispostas na Base Nacional Comum Curricular - BNCC e abordagem educacional do Vivendo Valores na Educação - VIVE, sugerindo para as escolas e professores caminhos para a educação em valores.

Anna Maria de Oliveira, Cleide Romero, Núbia Hübner e Paulo Sergio Barros narram suas trajetórias de aprendizagem com Wanda Canto, artista e ex-coordenadora pedagógica do VIVE. Destacam as habilidades e as virtudes de Wanda Canto nos processos de criação de material e formação de educadores, sobretudo a sua relação amorosa, respeitosa, amistosa e humilde no relacionamento com educadores enquanto desempenhava suas atividades com o VIVE, causando impactos e transformações em suas vidas.

Maria Joyce Maia Costa Carneiro enfatiza os desafios que a escola enfrenta no seu cotidiano e como uma educação em valores humanos é de fundamental importância para influenciar relações saudáveis, principalmente no envolvimento do aluno nesse cenário, considerado como um desafio a ser construído paulatinamente. Defende que a escola deve fortalecer uma ação pedagógica mantenedora de uma proposta que incentive a adoção dos valores humanos como forma de enfrentar os conflitos no dia a dia, passando a vê-los como crescimento pessoal.

Dulce Moreira Sampaio ressalta a importância da educação e da prática transdisciplinar que desenvolve os valores humanos para que contribuam para percepções e visões de mundo que

alimentem a alma do educador e do educando no caminho da transformação humana e social.

Herocidio Marques reflete sobre o papel da educação em momentos de desafios emocionais, econômicos e educacionais e os possíveis processos de resiliência nas pessoas que se envolveram direta ou indiretamente na pandemia da covid-19. O autor defende a prevenção tanto no sentido médico farmacológico, quanto no sentido psico-neuro-imunológico. Nesse contexto, apresenta como necessária a educação em valores humanos capaz de consolidar laços afetivos para amparar solidariamente a convivência entre as pessoas.

Joseane Alves dos Santos apresenta a trajetória de meninas e mulheres de territórios populares brasileiros que por meio do programa Turismo pela Paz se organizam coletivamente para trabalhar valores imprescindíveis na convivência comunitária como paz, solidariedade, amor e prosperidade em prol da promoção do bem viver.

Marcelo Campos narra a sua experiência docente com estudantes do Ensino Fundamental durante o ano pandêmico de 2021. O autor propõe um olhar “carinhoso” no sentido de estimular, valorizar e praticar a inclusão que se impôs durante a pandemia e entende que essa percepção se alinha à abordagem educacional do VIVE.

No último capítulo, Paulo Sergio Barros e Bruno Falcão Batista tratam de experiências vivenciadas em escolas públicas do Ceará com educação remota durante a pandemia da covid-19 (2020 e 2021), com estudantes do Ensino Fundamental e Médio. Suas narrativas descrevem, de certa forma, a realidade experienciada em muitas escolas por muitos professores, gestores e estudantes brasileiros, sobretudo em escolas públicas, as mais vulneráveis aos impactos causados pela pandemia, e como uma educação em valores foi essencial em suas práticas.

Desejamos que os textos que compõem este livro possam estimular em outros educadores a vontade de construir uma educação alicerçada em princípios humanitários de paz e espiritualidade para mudanças individuais e coletivas. Desejamos-lhes uma boa leitura!

EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E EM

VALORES HUMANOS: O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA E INDÍGENA

Otesourodaunidadehumanaéadiversidadehumana, o tesouro da diversidade humana é a unidade humana.

Em um contexto histórico nacional e mundial densamente marcado pelo multiculturalismo, conflitos, injustiças e desigualdades, a educação intercultural e em valores humanos urge no âmbito de realidades escolares complexas e diversas como a brasileira. Não basta só reconhecermos a multiculturalidade na sociedade, é preciso que a educação a problematize e reconheça os direitos de indivíduos e grupos e desenvolva compromisso e empatia com a alteridade.

Da mesma forma, não é suficiente somente falar de valores humanos ou vislumbrá-los nos currículos. Eles precisam ser ensinados e vivenciados subjetivamente e socialmente na sala de aula e em outros contextos de interações, sejam esses harmoniosos, conflitivos, diversos ou de incertezas, de forma que seja uma prática que esteja no cerne de uma formação de cidadania planetária.

Este texto propõe um entrelaçamento conceitual entre educação intercultural e em valores humanos por ser relevante para a realidade educacional brasileira historicamente complexa e culturalmente diversa, bem como marcada por injustiças sociais e

diferentes maneiras de violação dos direitos humanos.

O artigo é resultado de uma experiência pedagógica levada à cabo na Escola Estadual de Educação Profissional Maria José Medeiros (Fortaleza-CE) sobre educação intercultural e em valores humanos a partir do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena com estudantes do Ensino Médio.

Interculturalidade e educação

Interculturalismo é um conceito amplamente discutido por cientistas sociais, historiadores e pedagogos como referencial para analisar sociedades diversas e complexas culturalmente. Para Candau (2008), a interculturalidade propõe relações sociais abertas e interativas, que acentuam o aprendizado mútuo entre indivíduos e grupos e é mais adequada para a construção de sociedades democráticas, pluralistas e inclusivas que articulem políticas de igualdade e de identidade.

Salles e Garcia (1997 ) afirmam que a visão intercultural permite intercâmbios e diálogos entre culturas e o enriquecimento mútuo entre grupos culturais em contato, e não considera nenhuma cultura superior a outra e com direito a dominá-la, tampouco entende que todas as culturas são iguais. Portanto é necessária uma reflexão crítica dos elementos culturais, começando pelos da própria cultura, para desterrar valores que se opõem aos valores humanos universais que devem ser compartilhados por todas as culturas. Daí a necessidade de um contínuo diálogo sobre os valores interculturais.

Conforme Padilha (2004) o interculturalismo entende que os indivíduos se tornem interculturais, ou seja, que eles podem atuar nas diferentes culturas já que a igualdade e a justiça social estariam pressupostas. Essa compreensão advoga a existência de uma estrutura social igualitária, apostando no desenvolvimento das relações sociais e políticas entre os diferentes grupos.

Fleuri (2001, 2018) entende que a perspectiva intercultural busca desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos diferentes como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo. Assim, no âmbito educacional, ela propõe novas estratégias de relação entre sujeitos e entre grupos diferentes. Busca, portanto, promover a construção de identidades sociais e o reconhecimento das diferenças culturais, procurando sustentar a relação crítica e solidária entre elas.

Para Walsh (2005, 2013), a interculturalidade é uma ferramenta, um processo e projeto que se constrói no seio da diversidade e requer a transformação das estruturas, instituições e relações sociais, assim como a construção de condições de ser, estar, pensar, conhecer, aprender, sentir e viver distintas. A perspectiva intercultural propõe mudanças sociais, diálogo, compreensão, solidariedade, explicitação dos conflitos, dentre outros aspectos que caracterizam as desigualdades e as diferenças em sociedades multiculturais. Trata-se, portanto, de um campo de complexas relações sociais onde há negociações e intercâmbios culturais e no qual se busca desenvolver uma interrelação equitativa entre indivíduos, povos, conhecimentos e práticas culturalmente diversas.

A educação intercultural promove a integração criativa e cooperativa, o diálogo e a convivência respeitosa entre as diferentes expressões culturais e sociais em convívio, além de desenvolver e fortalecer os valores humanos. Isso contribui para que os estudantes implementem transformações em sua realidade pessoal, escolar e de formação cidadã, fortalecendo valores de convivência como a paz, a tolerância, a liberdade, o respeito dentre outros. A educação intercultural é constituída pela necessidade de criar contextos de ensino-aprendizagem que favoreçam a integração criativa e cooperativa de diferentes sujeitos, assim como a relação entre os seus contextos sociais e culturais diferentes (Padilha, 2004). Ela vai além do reconhecimento da existência de uma

diversidade no espaço escolar, pois fomenta a constituição de um diálogo apreciativo e respeitoso entre as diferentes expressões culturais em convívio sem negar os conflitos inerentes a esse convívio. Nessa perspectiva, há intrínsecas relações entre uma educação intercultural e em valores humanos.

Educação em Valores humanos

Conforme Tillman e Colomina (2003); Zecha (2007) e Lovat (2010), educação em valores pode ser entendida como educação moral, educação do caráter, educação para a cidadania, educação espiritual, educação do desenvolvimento social ou educação ética. Tillman e Colomina (2003) ressaltam essa perspectiva ampla ao propor que a educação deve ser prática, dinâmica na vida escolar e cotidiana fora da escola, de forma que os estudantes possam fazer escolhas sociais e pessoais positivas, desenvolvam comportamentos e traços de personalidade baseados em valores que os tornem cidadãos comprometidos com uma cultura de paz para o mundo.

É ponto comum entre esses autores que a educação em valores necessita ser prática, associada ao currículo e impactar nas escolhas individuais e sociais cotidianas dos estudantes. Nesse sentido, qualquer prática pedagógica, sobre qualquer disciplina, deve ser também uma ação para a educação em valores humanos. Compreendemos que para a mesma ser efetiva, participativa e autêntica deve também levar em consideração a comunidade (estudantes, pais, professores etc.), enfatizando uma compreensão mais profunda e crítica de democracia, equanimidade, direitos humanos e justiça social.

Jares (2008) relaciona os valores humanos à educação como uma forma de praticar o respeito e a tolerância pela diversidade. Aprender a conviver, segundo ele, é um conjunto de regras ou valores que também são funções atribuídas à educação formal.

Assim, a educação para a convivência deve ser considerada como questão prioritária para o conjunto da cidadania. O autor assinala uma série de valores importantes para a convivência: respeito, diálogo, solidariedade, não-violência, etc. Jares entende que aprender a conviver significa praticar valores como a equanimidade, na conjugação da relação igualdade e diferença, justiça, paz e direitos humanos, rechaçando qualquer política segregacionista no seio escolar.

Há um ponto em comum entre os autores supracitados: os valores humanos são construídos e se expressam socialmente, adquirem significados de acordo com as culturas e carregam uma grande carga de subjetividade. Cremos que nessa subjetividade esteja a universalização, a “intertransculturalidade”, ou seja, valores como algo que permeia todas as culturas e sociedades.

Entendemos também valores humanos como características espirituais compartilhadas socialmente. Os pensamentos, a comunicação e as atitudes são os meios em que o eu espiritual se relaciona com o âmbito social, promovendo transformações subjetivas e intersubjetivas e mudanças planetárias. Isso nos aproxima na diversidade religiosa e recaptura a compreensão do valor de indivíduos, culturas e religiões etc. (TILLMAN e COLOMINA, 2003).

Tillman e Colomina (2003) e Tillman (2019) propõem modelos de atividades que conectam o espiritual, o social, o intelectual e o emocional com diferentes estímulos, técnicas e linguagens que contribuem para o desenvolvimento holístico dos estudantes. Elas podem ser aplicadas ou criadas envolvendo pesquisa, produção textual, arte, esporte, com técnicas introspectivas (relaxamento, visualização, meditação) e projetos diversos sobre cultura, meio ambiente, direitos humanos etc.

Isso cria uma atmosfera de valores (TILLMAN e COLOMBINA, 2003) na qual os estudantes desenvolvem habilidades relacionadas ao

seu crescimento cognitivo, emocional e espiritual e tornam-se comprometidos com os valores humanos em suas vidas. Tal atmosfera é efetiva e positiva para o desenvolvimento e a aprendizagem e desperta nos estudantes sentimentos de serem amados, respeitados, escutados, valorizados e seguros.

Para as autoras, a educação fundamentada em valores humanos preveniria muitos problemas globais como a ganância que causa colapsos econômicos; desenvolveria a honestidade e o respeito pelos outros, fazendo uma grande diferença nas relações sociais; semearia a compaixão, o respeito e a tolerância por cada pessoa e cultura, evitando conflitos; e desenvolveria a compreensão de que por trás das injustiças, da desigualdade social, dos conflitos, dos preconceitos, da devastação ambiental e de outros problemas mundiais está a ausência desses valores.

A abordagem do VIVE sobre valores humanos é, nessa perspectiva, uma expressão de intertransculturalidade, ou seja, permeia as culturas independentemente de suas referências históricas ou socioculturais e, apesar dos conflitos e tensões que por vezes se expressam entre tais diferenças, assumem um papel de elo dos anseios de muitas culturas, sociedades e indivíduos por um mundo melhor. Dessa forma, a educação em valores humanos é essencial para uma formação cidadã terrena, a qual conduziria os estudantes à essência de sua consciência humana, conectada com as demandas planetárias por equidade, justiça, paz, tolerância, respeito etc.

O ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena a partir de um referencial intercultural e em valores humanos Durante o ano de 2019, desenvolvemos uma prática com o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena (EHCAI) com estudantes de Ensino Médio na Escola Estadual de Ensino Fundamental Maria José Medeiros. Para tanto, usamos os referenciais das leis

Nº 10.639/2003 (que trata da obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira) e Nº 11.645/2008 (que inclui ensino de história e cultura indígena) que tratam do EHCAI na educação básica brasileira (BARROS, 2014).

A temática foi trabalhada a partir do viés intercultural em diálogo com educação em valores humanos, propondo um processo de ensino-aprendizagem centrado no conhecimento, compreensão, diálogo e respeito pela diversidade de culturas. Também oportunizou aos estudantes uma reflexão sobre suas condições sociais e culturais na escola e na sociedade a partir de um referencial que lhes possibilitasse compreender o contexto social no qual se inseriam sob uma perspectiva crítica, humana, inclusiva e transformadora.

Procuramos pôr em prática uma ação educacional dialógica em um campo de diversidade cultural com suas diferentes possibilidades, reações, enfrentamentos e conflitos com seus vieses culturais e ideológicos típicos da sociedade brasileira. Embora a prática estivesse centrada no EHCAI, ela considerou a relação entre as diferentes culturas em contextos complexos que produzem os confrontos entre diferentes visões de mundo.

A escola, como um espaço de interação de culturas, como uma instituição representativa de uma sociedade multicultural, fomentou possibilidades para que os estudantes pudessem observar, identificar, viver e aprender com as diferenças.

Compreendemos, como advoga Candau (2008), que a educação intercultural promove o reconhecimento do “outro” e possibilita o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Ela cria meios de proporcionar espaços que favoreçam a tomada de “consciência da construção da nossa própria identidade cultural, no plano pessoal, situando-a em relação com os processos socioculturais do contexto em que vivemos e da história do nosso país” (p. 25-27).

O EHCAI está na prática pedagógica da escola como uma ação que objetiva abranger essa complexidade de sujeitos parcialmente representada no seu seio, visando favorecer o diálogo, a compreensão, a empatia e almejando a superação das estruturas socioculturais geradoras de discriminação e de exclusão. Ela contempla temáticas distintas que permeiam os desejos, os sentimentos e a cultura escolar local e nacional dos diferentes grupos e culturas, possibilitando o diálogo, o respeito, a interrelação solidária, o reconhecimento e a aceitação de identidades e das diferenças.

Entendemos que trabalhar com a temática afro-indígena, assim como de outros segmentos minoritários proporciona uma educação para a diversidade, a compreensão, a tolerância, o respeito, a paz e a cooperação essenciais para a formação humana dos estudantes. Também contribui para romper com uma perspectiva de educação que reforça uma cultura hegemônica e coesa, uma visão etnocêntrica que insiste em permanecer nos currículos. A educação intercultural e a em valores humanos entrelaçam-se e fomentam um diálogo frutífero no sentido de constituir uma cidadania planetária pautada em valores humanos universais e transformadores dos indivíduos e das sociedades.

O EHCAI é relevante para a educação por diferentes aspectos. Para os afrodescendentes, é importante para maior conhecimento das suas raízes africanas e de sua participação na construção da sociedade brasileira. Isso ajudará na superação de mitos que discursam sobre a suposta indolência e inferioridade dos africanos e descendentes. Também é importante conhecer os movimentos sociais de africanos e afrodescendentes no Brasil e o avanço na conquista de espaços, direitos e voz na sociedade. Ainda existe a permanência incômoda do racismo e outras formas de exclusão nos dias de hoje e a educação em valores humanos é um importante meio para superar essas relações de violação de direitos humanos.

Sobre os povos originários, é importante superar a visão destes como selvagens, incivilizados, exóticos, homogêneos e situados no passado, além de uma visão histórica e cultural de que sua contribuição para a formação sociocultural brasileira restringe-se à culinária, à dança, a adereços e a objetos de uso domésticos (uma história para turistas), fechando os olhos para a resistência indígena à colonização, para a diversidade etnolinguística desses povos no presente e toda sorte de pressões, preconceitos e violência que enfrentam.

Para indígenas e afrodescendentes, o valor das leis de 2003 e 2008 está nas suas conquistas políticas e sociais, no enriquecimento curricular e um ensino de História mais crítico (não só para afrodescendentes e indígenas). Houve, de fato, um avanço na educação, no sentido de contemplar a diversidade cultural brasileira.

A compreensão de valores na perspectiva discente

O EHCAI pautou-se na educação intercultural e em valores humanos. Sobre esse último aspecto, a compreensão e a prática de valores se deram através de diversas ações vivenciadas nas disciplinas de História e Projetos Interdisciplinares. Destacamos, em primeiro lugar, as oficinas sobre valores humanos (a partir da metodologia do VIVE) e sobre conteúdos curriculares relacionados à cultura e história afro-indígena. Ademais das oficinas, outras atividades como produção textual, mostra de curtas, aulas de campo, seminários, mesas-redondas, exposições, debates, saraus, trabalhos estudantis apresentados em feiras da escola e da Secretaria de Educação do Estado do Ceará, dentre outras.

Durante o processo, observamos e registramos através de textos, fotografias e vídeos e, ao final de um ano de experiência, foi proposto aos estudantes um questionário com duas questões: 1- O que são valores humanos e quais deles você prática e em que situações? 2- Como o ensino de história e cultura brasileira e indígena

lhe ajuda a praticar esses valores consigo e com a diversidade?

Sobre a primeira questão, parte considerável dos estudantes conhecia sobre valores humanos, e os que não conheciam o termo, identificavam valores em si, nos outros em situações cotidianas. Uma quantidade relevante expressava sua compreensão de valores através de noções simples como citações de virtudes, sem conceituar e com poucos exemplos práticos.

Cinco valores se destacaram nas respostas: paz, amor, respeito, tolerância e compreensão. Os exemplos desses valores na família, amigos e escola apareceram nas situações que lhes requeriam respeitar diferenças culturais, ideológicas, etárias e sociais e questões emocionais. Algumas respostas destacavam questões históricas, filosóficas e sociológicas como direitos humanos, justiça social, democracia, ética e moral. Representamos a variedade de compreensão em seis temas.

1. Valores citados isoladamente ou como uma atitude social. Alguns estudantes citaram valores de forma isolada, sem nexos com a realidade cotidiana (amor, paz, qualidades, virtudes, por exemplo). Nessa perspectiva, valores como o respeito, o amor, a paz e a tolerância foram os mais citados. Outros citaram os valores associados a uma atitude em relação a outras pessoas: “Respeitar, não ter preconceito”, “Praticar a paz, o amor e o respeito para não julgar os outros”, “Respeitar e valorizar os outros” etc.

2. Valores como qualidades relacionadas à formação moral, ética e do caráter. Nessa perspectiva, percebemos definições como “qualidades do nosso caráter”, “valores éticos” relacionados à conduta em sociedade. Expressavam um entendimento dos valores como qualidades humanas que são constituídas e valorizadas socialmente e seminais para uma boa convivência. Observamos que termos como “pensar”, “agir”, “conduta”, “comportamento”, “aprendizado” surgiram com frequência nas narrativas.

3. Valores como qualidades adquiridas socialmente e essenciais para o convívio social. Nesse tema, como no anterior, há uma percepção explícita nas falas discentes que valores como o respeito, a paz, a compreensão, a tolerância e o amor são qualidades imprescindíveis para um bom convívio social. Porém percebemos maior destaque dado à compreensão da natureza prática desses valores pensados e vividos em função da intersubjetividade. Esse aspecto estava óbvio na maneira como ressaltavam a necessidade de se aprender a compreender o outro: “São características de uma determinada pessoa ou grupo que determinam a forma como a pessoa se comporta e interage com outros indivíduos”; “É tratar o próximo da forma como gostaríamos de sermos tratados, ou seja, de forma ética e compreensiva”.

4. Valores como características inatas ou espirituais do indivíduo. Nessa linha de raciocínio, os valores estão na natureza humana e se expressam na ação social. Os valores são subjetivos, contudo a sociedade e a escola têm o papel de contribuir para desenvolvê-los nos estudantes. Afirmações como são características individuais, particulares, espirituais, inatas, religiosas; expressões de amor pela natureza e pelo outro emergiram nas narrativas discentes com uma frequência.

5. Valores como atributos relacionados à democracia, à cidadania e aos direitos humanos. Esses temas associam valores a uma compreensão sociológica e história de democracia, cidadania e direitos humanos. Observamos a frequência de termos como “princípios de cidadania”, “direitos humanos”, “liberdade”, “direitos e deveres”, “igualdade social” e “justiça social” inseridos em contextos sociais de reivindicações e conquistas, exclusão e inclusão e direitos humanos e cidadania. Com frequência, a ideia de valores se relaciona à formação cidadã: consciência de “direitos” e “deveres”, constituição de uma sociedade com “valores democráticos com garantias de equidade e justiça social e direitos humanos”. É ilustrativa a fala de um estudante: “Valores significam a importância que damos aos direitos humanos individuais que todos nós temos e que são importantes para a democracia”.

6. Valores como qualidades de identificação e respeito pela alteridade. Esse tema revelou uma relação estreita entre EHCAI e valores humanos, ressaltando a necessidade de convívio respeitoso com a diversidade cultural brasileira. Percebemos que os valores ganhavam maior sentido quando em função do outro e em convívio social pautado na aceitação, empatia, solidariedade e no respeito. Questões raciais, étnicas, tradições, crenças e saberes de outras culturas ganharam destaque.

Cremos que uma das formas de a escola fortalecer os valores que os estudantes trazem consigo está em proporcionar a compreensão dos mesmos de forma cognitiva e efetiva (o entendimento e a prática). Nesse sentido, as atividades voltadas para a educação intercultural e em valores humanos mostraram-se relevantes à medida que percebemos que as experiências pessoais se estendiam às práticas coletivas e reflexões sobre uma visão de mundo mais humana, uma vez que os valores eram melhor compreendidos com uma prática educacional intercultural.

Diversidade cultural e valores humanos no currículo

A segunda questão proposta (Qual a contribuição do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena para o aprendizado de valores humanos na relação com a diversidade?) objetivava associar o EHCAI e valores humanos, apreendendo a importância dos temas como contributo para uma sociedade mais justa e democrática, de convívio respeitoso e tolerante com a diversidade. A análise das respostas discentes formulou seis eixos temáticos, analisados a seguir.

1. Ensina a reconhecer, a respeitar e a conviver com a diversidade humana. Esse tema nos levou a observar a relevância dada pelos estudantes ao ensino de história para compreender, respeitar e conviver bem com as diferenças culturais de antes e de hoje. Testemunhos discentes ressaltam esse aspecto: “O ensino de história nos mostra várias crenças, culturas e religiões que devemos respeitar, pois somos todos iguais, apesar de sermos de culturas diferentes”, narrou um estudante. Outro destacou que

“Quando entendemos a história deixamos, aos poucos, de sermos ignorantes e começamos a ter conhecimento sobre a variedade de culturas no tempo e no espaço e criamos nosso próprio ponto de vista sobre a diversidade”.

2. O ensino de História com uma metodologia diversificada contribui para compreender a história e cultura africana, afro-brasileira e indígena e de outras minorias, ajudando na formação cidadã e compreensão de direitos e valores. A metodologia do ensino de história é fator preponderante para compreender a história afro-brasileira e indígena, assim como de outros segmentos sociais minoritários, conforme a compreensão de muitos estudantes. Isso se expressou no interesse maior pelas atividades propostas que lhes possibilitavam estudar as temáticas afro-indígenas a partir de abordagens interdisciplinares, metodologia diversificada e pautadas teoricamente no interculturalismo. Esse aspecto foi destacado nos questionários quando relacionado a possibilidades “de maior conhecimento”, “melhor entendimento da cultura do outro” e “compreender outros significados”.

3.Ajuda a compreender os movimentos sociais dos excluídos e suas lutas políticas por justiça e cidadania. Embora seja um tema formulado por pouca representatividade nas respostas, ilustra uma percepção social e política na compreensão da história e cultura afro-indígena. Tratou, dentre outros pontos, de movimentos sociais por direitos e demarcações de terra, educação, moradia etc. Uma estudante relatou que o estudo das temáticas afro-indígenas lhe possibilitou “maior conhecimento sobre as lutas desses povos, o que passaram e tudo que já superaram para que todos nós pudéssemos ser quem somos”.

4. Explica as causas de preconceitos e discriminações construídos historicamente contra afrodescendentes e indígenas e como destruí-los. Esse tema reforçou a importância do conhecimento histórico como fonte de informação para desconstruir preconceitos, estereótipos e visões de mundo no que concerne aos segmentos afro-brasileiros e indígenas. Algumas falas discentes corroboram nessa perspectiva: “O conhecimento de outros grupos

sociais e etnias nos dá mais compreensão e tolerância e desfazemos preconceitos”; “[...] O ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena estimula o respeito e a tolerância pelas diferenças sociais e étnicas. O conhecimento esclarece as origens históricas de comportamentos e práticas excludentes, assim como nos ensina meios para desconstruí-los. As falas discentes estavam no cerne dos temas “sensíveis e controversos” abordados em sala de aula (BARROS e DA COSTA, 2021) à medida que as narrativas discentes adentravam em assuntos como escravidão, racismo e violação de direitos humanos na sociedade brasileira.

5. Ajuda a reconhecer os valores civilizatórios africanos, afro-brasileiros e indígenas. O EHCAI, por sua pertinência histórica e por tratar da realidade social contemporânea dos estudantes, causou interesse e sentido de transformação na forma de interpretar a realidade, assim como no modo de entender as razões históricas de exclusões, preconceitos e discriminações que muitos deles enfrentam no presente. Os valores civilizatórios afro-indígenas associados ao corpo, território, religiosidade, linguagem, abriam-lhes perspectivas de compreensão da multiculturalidade brasileira de uma forma problematizadora, contribuindo para superar estereótipos e preconceitos. O relato discente ilustra: “Se foi possível se construir reconhecimento e compreensão tendo acesso ao conteúdo cultural e histórico afro-brasileiro e indígena, nada mais plausível que ser gerado, em conjunto, respeito às referências culturais e ancestrais transmitidas e importantes para os dias de hoje”.

6. O ensino de História contribui para a formação de valores e consciência cidadã, importantes para um convívio respeitoso e compreensivo com o outro. Esse tema esteve presente em várias respostas dos estudantes com o enfoque dado aos princípios democráticos, de direitos e valores humanos que chamaram a atenção dos mesmos para um aprendizado que vai além da História. O termo caráter destacou-se nos textos, pondo em relevo o ensino de história para a formação humana e cidadã dos estudantes. Um estudante relatou: “Adquirimos conhecimentos sobre afro-brasileiros, indígenas e diversas outras culturas [...] importantes para a nossa formação cidadã, pois aprendemos a respeitar e a entender um pouco de cada cultura”.

O EHCAI, sob o viés intercultural, foi de fato relevante para o aprendizado de valores humanos na relação com a diversidade. Percebemos isso no interesse dos estudantes pela história dos movimentos sociais de afrodescendentes e indígenas (e outras minorias) que reivindicam paz, respeito, compreensão e justiça; pela compreensão da diversidade cultural brasileira para entender a nossa formação social; pela diversidade cultural como riqueza e beleza, mas também como uma das explicações para entender a raiz dos preconceitos e discriminações que sofrem e como desconstruí-los; pela relevância da educação intercultural em valores humanos para o despertar dos valores subjetivos e da alteridade; pela multiculturalidade e assimetrias da sociedade brasileira como marcos para desenvolver a consciência de direitos humanos; e pelos seus valores ancestrais africanos e indígenas como referenciais para as demandas de mudança do mundo.

Considerações finais

A educação intercultural e em valores humanos a partir do EHCAI sobressaiu-se como uma ação pedagógica que estimulou o reconhecimento dos valores dos estudantes e de outros grupos culturais, proporcionando uma melhor convivência com a diversidade. Ela contribui para a formação cidadã e consciência de direitos humanos como forma de superar práticas de injustiças sociais, preconceitos e discriminações. Desperta a aceitação e percepção de diferentes visões de mundo no seio das alteridades que podem nos fornecer respostas ou caminhos para as mudanças que desejamos em nossas vidas, na sociedade e no mundo.

À guisa de conclusão, retomamos alguns aprendizados (e apontamos outros) percebidos nos estudantes ao longo do processo da ação pedagógica desenvolvida.

1. Apreço pela diversidade, manifestando-se através da valorização do respeito, da compreensão e do convívio com as diferenças culturais de grupos e indivíduos.

2. Reconhecimento dos valores civilizatórios africanos, afro-brasileiros e indígenas como legado para o presente e o futuro do Brasil e do mundo.

3. A importância do conhecimento histórico para ensinar a compreensão e o respeito para uma convivência humanizada e democrática com as diferenças.

4. Vivenciar valores humanos na educação desenvolve a compreensão, a aceitação, o diálogo e a superação dos conflitos de forma que as relações sociais sejam cooperativas, respeitosas e empáticas.

5. Conhecer e aceitar a diversidade cultural é praticar a compreensão humana, ou seja, conviver com a beleza da alteridade, com o conjunto da personalidade de cada indivíduo e com a nossa missão propriamente espiritual.

6. A educação intercultural e em valores humanos é dialógica, interativa, cooperativa, respeitosa e solidária, pois entrelaça valores, culturas e saberes, valoriza a diversidade e o comprometimento com os direitos humanos para uma cidadania planetária.

A experiência pedagógica aqui narrada reverberou, concomitantemente, em outras turmas, bem como a posteriori. Dessa forma, continuou como uma prática na escola. Contudo entendemos que a mesma pode dar-se de forma ampla e inclusiva como uma prática da instituição e interdisciplinar.

Do ponto de vista dos estudantes, cremos ter sido essencial perceber, aceitar e estabelecer diálogos com suas diversidades, ideias, sentimentos, visões de mundos e proporcionar uma educação problematizadora, holística e na qual eles também fossem protagonistas. Dessa forma, a educação intercultural e em valores

humanos foi essencial para a reflexão, o debate, o aprendizado do contexto histórico e social vividos, assim como os anseios e utopias sobre o porvir.

Não permanecemos alheios ao crescimento e intensidade de preconceitos, discriminações, intolerâncias, ameaças e toda sorte de violência sofridas pelas minorias sociais. Contudo, a educação pode abraçar as belezas, os sonhos e as utopias do passado e do presente e tornar cheio de esperança o porvir. Nesse sentido, procuramos aprender a praticar os nossos valores com as nossas experiências históricas e dos outros, com os valores de outros indivíduos, grupos sociais e os nossos.

Referências

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VIVENDO VALORES NA EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO COM EDUCADORAS DE EDUCAÇÃO

INFANTIL.

Fui convidada pela escola NAP Cursos Profissionalizantes de Valinhos, no estado de São Paulo, a preparar uma apostila e ministrar um curso de Auxiliar de Creche a partir de janeiro de 2022. A escola, surpreendentemente, solicitou também que as alunas fossem, paralelamente, capacitadas com a abordagem do Vivendo Valores na Educação - VIVE. Desse modo, fiquei um tempo ainda refletindo para entender e processar tal pedido.

Nas escolas, como voluntários do VIVE, somos convidados a capacitar a equipe de gestão escolar e professores, mas em ambiente fora da sala de aula, inclusive em horários que não interfiram na agenda de aulas. Seria a minha primeira experiência em que a capacitação VIVE estaria inserida no cronograma de conteúdo de um curso.

Duas turmas foram formadas, alunas do curso de quinta-feira e alunas do curso de sábado, casualmente distintas em seu modo de comportar-se perante a vida, como também com diferentes olhares para os conceitos de valores humanos, o que tornou o curso rico em troca de experiências. Por exemplo, a turma de quinta-feira discutia o valor tolerância com grande eloquência, havia debates em sala de aula que só terminavam quando era compreendido o verdadeiro significado do valor. Já a turma de sábado, ouvia atentamente sobre o mesmo valor, ficava introspectiva, emocionava-se e, por fim, compartilhava sua percepção,

alinhando-se harmonicamente com a proposta do valor. Foi um campo de experiência sobre as inteligências múltiplas e a inteligência emocional.

Este texto narra uma experiência de formação do VIVE em conjunto com o curso Auxiliar de Creche. Prática que demonstrou que quando o aluno é reconhecido como um ser integral, em que sua constituição física, mental, emocional e espiritual é respeitada e valorizada, o aluno assimila os conteúdos pedagógicos não de forma mecanizada e passiva, mas de forma ativa, numa consciência da importância de si mesmo como cidadão do mundo com seus direitos e deveres apoiados pelo claro entendimento de seus valores como ser humano.

Formação e transformação com os valores

O curso Auxiliar de Creche era voltado para o atendimento na Educação Infantil de crianças na faixa etária de 0 a 6 anos, com ênfase na primeiríssima infância, onde temos crianças na faixa etária de 0 a 3 anos (HÜBNER e ARAÚJO, 2022). Dividimos as aulas nos fundamentos pedagógicos exigidos para o curso, tais como ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), Conselho Tutelar, BNCC (Base Nacional Comum Curricular), Primeiros Socorros e outras diretrizes, além da prática pedagógica. No meio desses estudos sistemáticos, o VIVE foi incluído com toda sua riqueza de conteúdo para a educação em valores humanos.

Durante o curso fui observando mudanças significativas no comportamento das alunas, muito mais quando tínhamos os exercícios ou atividades que envolviam comportamentos em relação aos valores. Uma das participantes3 narrou:

3 Usamos pseudônimos para identificar os autores dos textos.

Participar do curso de Auxiliar de Creche junto com uma formação do Vivendo Valores na Educação, me deixou na menteamensagemquecadaumdenóséumsujeitohistóricoededireitos,enãosóporqueosestatutoseleisassim o dizem, mas porque a lei do ser humano diz através dos valoresedaéticaqueencontramosdentrodenós.Estamos vivendo num mundo digital, onde nem sempre sabemos o queérealounão,entãotemosquecuidardenósedenossa família, sendo muito importante começar em casa o respeito, a tolerância, a prática de escuta ativa e a resolução deconflitos.Ganheimaissegurançaeconfiançanosmeus pensamentos e ações, sempre iniciando em mim, as atitudes com os valores humanos que todos nós temos dentro denós,bastabuscaretrazerparaavida(LuciaGonçalves).

Na primeira aula, apresentei o VIVE, sua origem, história, seu propósito, objetivos e material pedagógico. Comentei que ‘o tema Vivendo Valores foi adotado a partir de um princípio no Preâmbulo da Declaração das Nações Unidas: Reafirmar a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e valor da pessoa humana...’ (UNICEF, 2023), porém notei que essa mensagem passou despercebida para a maioria das alunas.

Na aula sobre Inteligências Múltiplas de Howard Gardner (2012), a alegria começou a transparecer quando foi entendido que todos nós somos dotados de múltiplas inteligências. Essa aula agregou o valor da autoestima, do respeito e do autorrespeito, da liberdade de expressão, da tolerância e do amor, sendo que os demais valores caminham juntos em menor ou maior escala. A turma de quinta-feira vibrou de alegria com tantas possibilidades, e a turma de sábado esboçou um compartilhamento de exemplos. Em comum, as duas turmas sentiram-se leves em saber que o VIVE reconhecia as múltiplas inteligências e que a educação atual também caminhava nesse viés, principalmente através de educadores que reconheciam o valor da pessoa como ser humano, em

sua dignidade e direitos fundamentais, como já dito sobre o tema Vivendo Valores. O testemunho de outra participante do curso é ilustrativo:

MelembrodaprimeiraauladoVIVE.Devíamosnosapresentarcomoumanimaledizermosascaracterísticasdeleque seidentificavamcomasnossas.Euescrevileoa,porqueao mesmo tempo que queria ficar em casa e proteger meus filhos, também queria buscar algo para mim, para o meu crescimento pessoal e profissional. Tive que lutar com o meu marido para fazer o curso, mesmo me comprometendo a deixar o jantar pronto e as crianças arrumadinhas. Durante o curso fui ganhando uma nova percepção sobre mim mesma, já não aparentava uma leoa, mas sim uma borboleta saindo do casulo e, no final, já me sentia uma borboleta. A paz, o respeito, a felicidade, a tolerância e o amor estavam latentes dentro de mim, esperando para se manifestarem.Entendiqueamãeborboletairiainspirarseu lar e trazer leveza, enquanto a leoa estaria sempre tensa, emalertaparaatacar.Valoresmederamasasesuavidade (MariaJosédeSouza).

As atividades sobre Escuta Ativa e Resolução de Conflitos foram encenadas pelas turmas divididas em grupos com minha orientação e antes de receberem o conteúdo sobre essa aula. Na atividade sobre Escuta Ativa, fizemos o exercício em duplas de forma diferente: enquanto numa dupla o diálogo transcorria com a ouvinte prestando atenção e demonstrando compreensão, na outra dupla, a ouvinte olhava o celular, o relógio, fingia ficar desatenta e outros recursos de uma má escuta. Quanto à atividade Resolução de Conflitos, orientei as alunas a formarem trios, sendo duas delas protagonistas de um conflito que elas mesmas criariam para encenar e uma terceira aluna seria a mediadora do conflito. Assim tivemos de tudo, crianças e adultos, choros e risadas, aliás muitas risadas das fidedignas encenações. Nessa atividade,

as turmas já mantinham comportamentos muito semelhantes.

Concluídas as atividades, inseri o conteúdo sobre Escuta Ativa e Resolução de Conflitos e deixei que as turmas compartilhassem suas percepções nas experiências vividas com os exercícios e o quanto esses conhecimentos recém-descobertos poderiam contribuir em suas vivências na escola. Foram unânimes os sentimentos compartilhados como se as duas turmas se alinhassem no mesmo pensamento. Senti que foi uma aula válida para a vida de todas, não só para a escola.

A partir daí passamos por atividades que fazem parte da formação do VIVE como o Mapa Mental, Inteligência Emocional e por atividades de arte com tinta, lápis de cor, massinha modeladora, inclusive a famosa torta mundial ou torta do amor, que reforçam a interiorização dos valores. Criamos o saudável hábito de fazermos uma meditação sobre os valores antes de iniciarmos a aula, o que foi profundamente salutar para todos. A meditação sobre o mesmo valor era repetida periodicamente, para que adentrasse a consciência com entendimento e verdade. Após a meditação, instituímos a prática da leitura deleite. Nessa atividade, cada aluna trazia material para leitura, com textos simples e bonitos para completar o aprendizado trazido pela meditação. Explico que a leitura deleite ocorre pelo simples prazer de ler, não tem a obrigação de trabalhar em aula o texto que foi lido. Depois da meditação, da leitura e de uma breve reflexão sobre o aprendizado, seguíamos para os conteúdos da aula do dia e abríamos uma argumentação sobre o tema.

Essa rotina de meditação, leitura deleite, reflexão sobre o conteúdo assimilado, inserção e trocas de ideias sobre o novo conteúdo enriqueceram enormemente as aulas de maneira que, a certa altura, as alunas só queriam o VIVE como fonte de aprendizado e vivência, tamanho o bem que estava fazendo para todas, inclusive à professora.

Muito interessante os vários diálogos trazidos pelas alunas, as mudanças e transformações que estavam empreendendo em sua vida pessoal, familiar e profissional. Diziam que estavam vendo o mundo com olhos mais amorosos, pacientes e tolerantes. Sentiam-se mais confiantes e felizes. Os demais conteúdos do curso passaram a ter um olhar diferenciado, não mais só técnicos, não mais só em leis, mas passaram a ser vistos e compreendidos a partir de uma perspectiva de valores humanos. Ficou óbvio o quanto nos reconhecermos como seres de paz e de amor faz-nos melhores profissionais, não apenas melhores seres humanos.

Lembro-me de, no início do curso, fazer a atividade de visualização ‘Imaginando um mundo pacífico’, e o quanto foi difícil de ouvirem, de entenderem, de assimilarem a mensagem, e assim, quase nada tinham para compartilhar, porém fazendo essa atividade quase no final do curso, havia transformação no grupo e prazer em ouvir e vivenciar aquele momento. Houve vários compartilhamentos das visualizações e dos sentimentos que despertavam. Outra participante compartilhou:

Eueraumamãemuitoagressivacommeufilho,poreleser bemarteiro,masaprendiqueéprecisoescutarcomocoraçãoemanterumdiálogoparaaresoluçãodeconflitos.Hoje estoutrabalhandonaeducaçãoinfantilepercebooquanto de tolerância e respeito preciso comigo mesma e com as criançasqueatendo(RuthA.C.Lima).

Encerramos o curso com duas aulas suplementares sobre valores a pedido das alunas. Conversamos sobre o Modelo Teórico do VIVE e a importância da dimensão intrapessoal como centro ou eixo de nossa vida, pois é a partir dessa dimensão que aprendemos e aplicamos nosso conhecimento de diversas formas. O VIVE oferece muitas atividades para vivenciar valores, ajudando-nos a identificar em nós qualidades e potencial humano, que são nossas habilidades inatas.

Quandooindivíduoreconheceedesenvolveasqualidades que são só suas, assim como a espiritualidade, aumenta aquelesaberqueficanocentromesmodaroda:adimensão intrapessoal. E depois esse saber vai se irradiar num exemplo brilhante, vivo, de como despertar o potencial e realizá-lopormeiodopensamento,dapalavra,dahabilidadeedotalento(TILLMANeCOLOMINA,2005,p.37).

O VIVE trouxe conexão entre as alunas e entre professora e alunas através da afetividade. Criamos um vínculo afetivo de respeito, amizade, amorosidade e felicidade. Várias alunas já estão empregadas na área como docentes e outras estão estagiando. Tenho certeza de que são educadoras com uma nova visão do processo de educar e eu me sinto muito honrada por ter participado dessa conquista.

Expectativa e esperança: O VIVE no cerne do ethos escolar Há nos tempos atuais uma necessidade urgente de valores norteando nossas vidas, nossa convivência. Aumentar a formação dos educadores, seja na forma presencial, na forma virtual, ou na forma híbrida, é um grande passo na transformação positiva do processo educacional. Formar também demais pessoas interessadas na cultura de valores é preencher a sociedade com faróis que poderão mostrar o caminho de valores para outras pessoas.

AexperiêncianosmostraqueaabordagemdoVIVEpossibilitaacriaçãodeumaatmosferabaseadaemvalores,melhorandoassimaqualidadedaeducaçãoedoindivíduocomo um todo. Assim o ambiente escolar se torna um espaço afetivo,acolhedor,positivoerespeitosoparatodos.ApedagogiadoVIVEfoialicerçadacombasenosvaloreshumanos universaisetemcomoopropósito:Proporcionarprincípios orientadores e ferramentas para o desenvolvimento integral da pessoa, reconhecendo que o indivíduo é composto

pelas dimensões física, intelectual, emocional e espiritual (TILLMANeCOLOMINA,2005,p.38).

Alguns de seus objetivos

• Ajudar indivíduos a pensar e refletir sobre diferentes valores e as implicações práticas de expressá-los em relação a si mesmos, aos outros, à comunidade e ao mundo em geral.

• Aprofundar o conhecimento, o entendimento, a motivação e a responsabilidade com relação a fazer escolhas pessoais e sociais positivas.

• Inspirar indivíduos a escolherem seus próprios valores pessoais, sociais, morais e espirituais, e a estarem cientes de métodos práticos para desenvolvê-los e aprofundá-los.

• Incentivar e dar suporte aos educadores e cuidadores para encararem a educação como uma forma de fornecer aos estudantes uma filosofia de vida, facilitando assim seu crescimento geral, desenvolvimento e escolhas para que possam integrar-se à comunidade com respeito, confiança e propósito. (TILLMAN e COLOMINA, 2005, p. 38).

Que possamos multiplicar os Educadores e demais pessoas interessadas a compartilharem os valores para um mundo melhor e assim podermos “reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana...” (TILLMAN e COLOMINA, 2005, p. 39).

Podemos juntos mudar a atmosfera atual, transformá-la numa atmosfera de valores, com paz, respeito, amor, responsabilidade, honestidade, humildade, liberdade, felicidade, cooperação, simplicidade, união e tolerância. Vamos viver através dos valores que nos dão a nobreza de sermos humanos. VIVA o VIVE!

Referências

TILLMAN, D; COLOMINA, P. Q. Guia de capacitação do educador. São Paulo: Brahma Kumaris, 2005.

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ARTE, CRIATIVIDADE E VALORES: PRÁTICAS ESSENCIAIS PARA A EDUCAÇÃO

Introdução

A arte é fundamental na vida de todo ser humano. Mesmo que não percebamos, ela pode permear a existência desde a fase intrauterina até o último momento.

A criança se desenvolve ouvindo canções de ninar, ritmando, brincando, cantando, expressando-se corporal e sonoramente. Através de linhas e cores, ela também vê a mágica acontecer no papel em branco.

Ouvir canções de ninar desde a mais tenra idade e músicas adequadas à faixa etária que soam com delicadeza aos ouvidos que estão descobrindo o mundo é como “leite materno sonoro” que envolve a criança e dá segurança (conceito utilizado por Flávia Betti, pesquisadora e especialista em música infantil, na linha antroposófica há mais de 30 anos). Essas práticas são momentos de nutrição que criam rotinas amorosas e de cura para professores, família e crianças.

As histórias, a fantasia, o contato com a natureza, o olhar as estrelas, os pássaros, podem fazer parte desse momento mágico de descoberta do mundo através das aulas de musicalização e do olhar atento dos responsáveis.

Nesses primeiros anos, é fundamental o exemplo, a segurança, o

cuidado e as possibilidades que apresentamos à criança. Envolver a vida com arte pode continuar por toda a existência.

Se faz oportuno compreender melhor essa dinâmica de vida, arte e seus significados. Para tal, acrescentamos nesse estudo um olhar sobre a importância da criatividade e dos valores.

Esse texto é parte de uma pesquisa maior (BAZZO, 2004) revisada e adaptada para o formato de artigo. Ele tem como finalidade refletir e olhar para estes temas, buscando ampliar horizontes e trazer uma vida com mais consciência, significado e ações construtivas em um mundo carente de valores.

Arte e Criatividade

A arte pode ser entendida como conhecimento específico das diferentes linguagens (artes visuais, música, teatro, dança, literatura) e se utiliza de signos verbais e não verbais. Enquanto linguagem, ela pressupõe leitura e comunicação.

Na obra de arte pode-se observar forma, conteúdo e expressão e através dela, o homem pode expressar e comunicar sentimentos, emoções e visão de mundo. A arte pode ser estudada, praticada, expressada, utilizada em intervenções ou terapeuticamente. Em algumas sociedades, como de alguns povos originários ou tradições ancestrais, ela não está separada da vida, do cotidiano ou dos ritos religiosos. No oriente tem funções diferentes das ocidentais e está ligada à própria vida e à espiritualidade. A função e a estética da arte mudam de acordo com o contexto, com a localização e com o tempo.

Segundo Bastide,

Umadasprincipaisinterpretaçõesdaarteconsisteemconcebê-la como um sistema de sinais, portanto como uma linguagem. Ora, a linguagem é um meio de comunicação,

éomóvelquepermiteasalmasfechadastransporasfronteirasdeseuisolamentoparaentraremcontatoumascom as outras, compreender-se, comunicar-se pelos mesmos símbolos e agir em harmonia[...] arte é uma linguagem, também é um instrumento de solidariedade social [...] AugustoComtejáachamava“aúnicaporçãodalinguagem universalmente compreendida por toda a nossa espécie (BASTIDE,1979,p.184).

Arte e criatividade estão intimamente ligadas. Através da arte o ser humano é capaz de exercitar o seu poder de criação. Somos seres pensantes, sensíveis, reflexivos, criadores e atuantes socialmente.

A criação ocorre em todas as áreas do conhecimento. Embora esteja intimamente ligada à arte e possa ser exercitada pela mesma, não é apenas um privilégio seu.

De acordo com Vergara (1999, p. 2) “Criatividade é um processo por meio do qual as ideias são geradas, desenvolvidas e transformadas em algo. É um desvio ao estabelecido. É um pensamento divergente.” A autora do texto defende a liberação do potencial criativo, que é inerente ao ser. Ela questiona o que é feito com esse potencial, pois na criança ele é visível e vai se perdendo com o tempo.

Para falar em criatividade é necessário olhar o contexto no qual se está inserido: mundo, ambiente, família, sociedade, e perceber como eles influenciam nesse processo. Olhando para as características do mundo contemporâneo, observamos mudanças acontecendo em alta velocidade, então o homem vai criar sendo influenciado por essa velocidade. Hoje os pintores não levam o mesmo tempo para pintar um quadro como na época do Renascimento; a música que é criada hoje (por exemplo: instrumentos, sonoridade, estilo, função, temática) não é a mesma do período Barroco.

Segundo Vergara (1999), é importante perceber que para ocorrer o desenvolvimento do potencial criativo do aluno, o professor precisa anteriormente avaliar seu processo criativo, as influências que recebe e até que ponto é uma pessoa criativa. Assim poderá saber se inibe ou estimula a criatividade de seu aluno.

Continuando com Vergara (1999, p. 4): “O sistema educacional pouco estimula o desenvolvimento do potencial criativo... Desconsidera a imaginação e a fantasia como manifestações importantes da experiência de cada aluno.” A falta de estímulo e a desconsideração com aspectos criativos no sistema educacional e na própria vida levam à compreensão de que não há como inspirarmos criação ou processo criativo se nós mesmos, enquanto educadores, não exercitarmos a criatividade em nossas vidas seja no campo das artes ou no dia a dia.

Criatividade é encontrar respostas diferentes para cada situação, é não dar respostas mecânicas, fragmentadas, descontextualizas, automáticas. Pode-se dizer que o homem contemporâneo impregnado de automatismo e no modo on-line distancia-se de seus potenciais internos e da natureza. Diversos artistas já se preocupavam no início de século XX com esta mecanização do homem.

Sylvia Vergara diz:

Criatividadeestáassociadaaumsentimentodeplenitudee deprazer,sejanaproduçãodeideias,sejanasuacolocação emprática.Oexercíciodacriatividadefortaleceossentimentos de competência e de valor pessoal, ambos componentesdeautoestima,sentimentoqueliberacapacidadesqueo aluno,muitasvezes,nemsupunhater(Vergara,1999,p.4-5).

A abordagem triangular de Ana Mae Barbosa (MUTUOKA, 2018) é um método de ensino da arte através do conhecer, do fazer

artístico e do saber apreciar uma obra de arte. Através dessa metodologia, o aluno amplia seus conhecimentos e habilidades, desenvolve seu poder de apreciação e consequentemente valores como autoconfiança, autoestima e outros.

Vergara (1999) propõe algumas práticas simples e interessantes como facilitadoras para desenvolver a criatividade. A autora sugere exercícios respiratórios, associações, completar histórias, inventar jogos, explicar acontecimentos por meio de metáforas, realizar atividades artísticas em geral, realizar atividades esportivas, lúdicas e as que integram mente e corpo, como exemplo o tai-chi-chuan e o yoga, trabalhar com material de sucata, organizar eventos culturais, levantar múltiplas possibilidades na solução de um problema, observar a natureza, visitar museus, feiras de ciências e exposições, assistir a concertos musicais, transformar uma ameaça em oportunidade, entrar em contato com sentimentos, identificá-los e representá-los de várias formas e desenvolver sintonia com outras mentes.

Esses exercícios acima sintetizados podem ser utilizados para liberar o potencial criativo e simultaneamente desenvolvem e enfatizam as Inteligências Múltiplas (teoria desenvolvida por Howard Gardner) e valores como organização, respeito, compreensão, liberdade, criação, responsabilidade e outros, quando realizados em aulas de artes.

Arte, expressão e valores

Mas como articular estes saberes? Qual a relevância desse estudo? Segundo a perspectiva de Tillman (2004, p. 35), um dos modelos úteis para ajudar a identificar as qualidades e o potencial humano é o de Inteligências Múltiplas. Essa teoria sugere que existem oito dimensões inter-relacionadas de aprendizado que ajudam a identificar capacidades e comportamentos em todos nós. Não me deterei ao tema, mas menciono que as Inteligências Múltiplas

se referem às dimensões corporal/cinestésica, ambiental/ética, matemática/lógica, musical/rítmica, interpessoal, intrapessoal, verbal/linguística e visual/espacial (TILLMAN e COLOMINA, 2004, p. 35). Essas dimensões ajudam identificar qualidades, potenciais, capacidades e comportamentos.

Esse estudo dedica atenção especial às artes, à criatividade, ao desenvolvimento de valores e considero fundamental a prática da disciplina e do silêncio. Ambos remetem à autodisciplina, que nos ajuda a construir e sustentar a vida e seus objetivos.

De acordo com essa ênfase e pensando no planejamento das aulas de artes, é importante focar no desenvolvimento da criança e do jovem e no sentido que possam dar à vida. Dessa forma, parto de algumas reflexões:

1. Por que Arte e Valores no planejamento?

2. Qual a importância e função ambos teriam na atualidade?

3. O que podem propiciar, facilitar ou desenvolver na formação de uma geração?

4. O que e como trabalhar com arte e criatividade envolvendo valores e tornando esse processo significativo para os alunos?

O homem se expressa verbalmente, mas sua comunicação não verbal acontece a todo momento, seja através do olhar, da postura física, da aparência, da vestimenta, do comportamento ou da fisionomia. Na maioria das vezes, essa comunicação não é consciente, intencional, mas existe. De modo geral, na arte existe uma intenção, um longo período de trabalho, pesquisa e reflexão, e ela é um meio de expressão e comunicação da percepção de mundo vista sob vários ângulos.

Em todas as culturas, de todos os tempos o homem se expressa através de sua arte e na sociedade contemporânea ela se apresenta

com novos significados, novas estéticas e novas intenções, mas não perde seu valor de aproximar o homem de si mesmo, do outro e de outras culturas.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) - Arte, 5ª a 8ª séries

Oprocessocriadorpodeocorrernaarteenaciênciacomo algo que se revela à consciência do criador, vindo à tona independentedeprevisão,massendoposterioraumimprescindível período de muito trabalho sobre o assunto. Assim, é papel da escola estabelecer os vínculos entre os conhecimentos escolares sobre a arte e os modos de produção e aplicação desses conhecimentos na sociedade (PCNSArte,5ªa8ªséries1998,p.31).

A expressão da arte é um instrumento poderoso que remete à pesquisa e à compreensão de questões sociais e inerentes ao ser humano como sua psique, crenças, potencial criativo, valores, fazendo uma conexão com o mundo que o cerca. Imagens do consciente e do inconsciente são trazidas à tona através da produção ou da apreciação artística. Doutora Nize da Silveira foi uma pioneira no Brasil nesse sentido. Em seu livro Imagens do Inconsciente (2015), ela mostra trabalhos realizados em hospitais psiquiátricos. A terapia artística utilizada na Antroposofia (HEIDE; HAUSCHKA, 1987) também tem cunho terapêutico e expressivo.

Através do fazer artístico, o homem faz um mergulho dentro de si mesmo e percebe desafios, busca soluções, deixa surgir imagens subterrâneas, questiona, depara-se com simbolismos, constrói conhecimentos, faz uma leitura de si e do mundo, se reconhece e amplia horizontes, tornando-se mais consciente dos desafios do caminho e do desenvolvimento de seus potenciais.

Sala de aula e professor

As aulas de arte podem propor que o ser humano não apenas faça uma leitura estética das obras construídas ao longo do tempo, mas que aprenda a ler o mundo em sua volta, a fazer uma leitura de si mesmo, a construir-se e expressar-se, inspirando-se em valores inerentes à própria arte. Essa perspectiva de arte é enfatizada pela abordagem do Vivendo Valores na Educação - VIVE.

De acordo com as temáticas das aulas de arte, sempre é possível introduzir reflexões e conscientizações que detectem e propiciem a prática de valores explícita ou implicitamente. O resultado pode ser percebido ao longo do tempo, pois as salas de aulas se mostram mais acolhedoras, e colaborativas com construções coletivas e acordos, práticas de tolerância e respeito e melhora nas condutas individuais e relações, onde se observa que as inteligências interpessoais e intrapessoais vão se desenvolvendo ao longo do processo.

Nesse sentido, o professor tem um papel relevante de ser o primeiro a trabalhar-se, autoperceber-se com constância, fazer ajustes quando há deslizes em sua prática, pausar para refletir e acalmar-se quando pensar em desistir diante dos inúmeros desafios externos e internos; encontrar novas formas de agir, estudando, se instrumentalizando e apesar de saber que é o guia da jornada, ter claro que não é o único detentor do saber, que o processo de ensino-aprendizagem se dá dos dois lados. Se faz necessário praticar a humildade e acima de tudo treinar encontrar a felicidade a cada dia, a cada descoberta, a cada prática.

Segundo Freire,

[...] precisamos demonstrar que respeitamos as crianças, suasprofessoras,suaescola,seuspais,suacomunidade, querespeitamosacoisapública,tratando-acomdecência. Sóassimpodemoscobrardetodosorespeitotambémàs

carteiras escolares, às paredes da escola, às suas portas. Só assim podemos falar de princípios, de valores. O ético estámuitoligadoaoestético.Nãopodemosfalardaboniteza do processo de conhecer se sua sala de aula está invadidadeágua,seoventofrioentradecididoemalvado salaadentroecortaseuscorpospoucoabrigados(FREIRE, 2000,p.34-35).

Ainda é necessário observar que não se pode falar em educação se não houver condições mínimas em termos físicos e estruturais. É necessário haver pesquisa, invenções, inquietações, buscas, resoluções e reivindicações por parte do professor. Não se pode falar em ensino-aprendizagem se primeiro não se criar um mínimo de organização do espaço e das pessoas envolvidas: é preciso aprender a conviver, respeitar e viver em um ambiente coletivo. Esse é um processo a ser co-construído, senão será um jogo de faz de conta, para não dizer perigoso, em longo prazo.

Arte, valores e práticas

Eu ousaria dizer que o VIVE e a arte são inseparáveis e\ou complementares. Segundo Tillman, a principal criadora de material didático do VIVE,

As artes são um meio maravilhoso para os estudantes expressarem suas ideias e sentimentos criativamente - e tornarumvaloroseupróprio.Desenhar,pintar,fazermóbiles efazermuraiscombinamcomartesdeperformance.Dança, movimento e música permitem a expressão e constroem umsentimentodecomunidade.Outrasatividadessolicitam aos estudantes fazerem diários e escreverem histórias criativasepoesia(TILLMANM,2023,p.7).

O homem contemporâneo vive em uma sociedade cada vez mais poluída visual e sonoramente. Por isso, desaprendeu a ouvir e a ver o que é essencial. Seu fluxo interno está bastante acelerado,

com isso experimenta muita turbulência mental. É necessário aprender a desacelerar. E justamente para desacelerar, precisa estar presente e inteiro. Para tanto, uma educação pautada em valores e práticas introspectivas e contemplativas (meditação, visualização e relaxamento) é essencial.

Dentro desse raciocínio, um primeiro valor a ser resgatado é o silêncio. É preciso saber “vê-lo” em uma obra de arte. Uma criação artística pode nos inspirar a olhar em nosso entorno e perceber as profundas transformações pela qual a sociedade contemporânea vem passando. Também deve nos estimular a ouvir o que não é dito, ver o que está oculto, ler o que está nas entrelinhas.

Nas mídias sociais e outras esferas da sociedade, percebe-se a urgência de ações voltadas à prática de valores. No entanto, diria que é um grande desafio necessário de instituições como família, igreja, Estado, escola, o planejamento e desenvolvimento de ações contra a violência e outras temáticas atuais, urgentes.

Valores humanos como responsabilidade, concentração, organização, cooperação, empatia, compaixão e outros são norteadores dessa vida mais consciente, responsável e presente.

Valores, arte e exercício de criatividade

Nas aulas de música

1. Nos primeiros anos da educação infantil, a criança começa a conscientizar-se do valor da escuta ao perceber os sons e “silêncios” em sua volta, ao experimentar as sonoridades vindas de objetos, do seu corpo, de músicas ou instrumentos, ao ouvir os sons, a emiti-los, ao aprender a cantar. Ao passar um instrumento para seu amigo, aprende que tem hora de compartilhar. No momento de “brincar” com sons fortes ou fracos, ou com diferentes timbres sonoros, exercita o valor da concentração que envolve escuta, atenção, discernimento e autocontrole.

2. Nas séries iniciais, a criança pode desenvolver os valores da organização, respeito e responsabilidade, dentre outros, trabalhando com os mesmos elementos acima propostos, porém de forma mais profunda e com conceitos mais elaborados. Pode-se introduzir o aprendizado de um instrumento musical em sala de aula, onde todos aprendam a ter respeito pelas regras de uma prática em conjunto, onde aprendem a ouvir e afinar-se. Assim, a criança aprende sobre a necessidade de organizar-se e treinar a música para que possa ser compartilhada.

3. As crianças podem escolher a temática de uma música com o valor felicidade, por exemplo, e farão uma pesquisa a ser trabalhada, cantada e tocada em sala de aula.

4. O professor pode trabalhar com a temática do valor paz usando para as aulas de canto coletivo ou de aprendizado de um instrumento os CDs VIVE 4 de músicas, ou o outro com comentários que contemplam a temática de valores, para relaxamento ou visualização no início das aulas. Também pode utilizar as músicas do cancioneiro popular ou mídias que contenham o valor paz, preparar um repertório e trabalhar conjuntamente com um grupo que esteja preparando uma encenação para um projeto especial da escola.

Mesclando as várias vertentes da arte

1. Propor ao aluno pesquisar os significados de paz e construir frases e poemas.

2. Sugerir a partir de um conto ou poema que se faça uma recriação ou ilustração e depois fazer varais e exposições.

3. Incentivar a pesquisa e a coleta de músicas e valores de diferentes povos, introduzindo conceitos de etnomusicologia e cultura dos povos originários para que possam ser compartilhados e vivenciados em sala de aula. Juntamente com a vivência da música, dos batuques, dos cânticos, dos

4 Criança vive cantando (canções) e Vivendo Valores (comentários de meditação), disponível na Editora Brahma Kumaris: https://www.editorabk.org.br e plataformas digitais.

valores, enfatizar o respeito à diversidade cultural e étnica

4. Experimentar e recriar sons da natureza, explorando essas sonoridades em sala de aula através de instrumentos de percussão variados ou criados pelos estudantes com materiais diversos que iriam para o lixo. Assim estará praticando o valor da simplicidade e da sustentabilidade.

O professor poderá:

1. Passar um comunicado aos pais, salientando a importância do apoio na prática do aprendizado de um instrumento, porque no começo alguns pais podem se sentir incomodados e não darem apoio. Dessa forma pode-se trabalhar valores como responsabilidade, organização, tolerância, respeito com as crianças e os pais.

2. Fazer uma carta de apresentação do trabalho e da necessidade de apoio e ações conjuntas no início do ano letivo.

3. Manter comunicação ao longo do ano.

A prática de desenvolver projetos dentro da escola sempre é bastante salutar. Temas amplos que envolvam toda comunidade podem ser explorados, pois muitas temáticas atuais envolvem a prática de valores direta e indiretamente. Desenvolvimento de projetos pode parecer mais trabalhoso, em princípio, mas promove um diálogo com questões sociais, e os debates e retornos são sempre animadores e promovem crescimento, além das experiências ficarem firmemente registradas.

A vida acelerada e extremamente virtual está carente de práticas que incluam projetos, trabalhos em rede, convívio e ações conjuntas.

Artes visuais

O aluno poderá:

1. Trabalhar com o valor paz na Educação Infantil e no Ensino Fundamental escolhendo heróis da paz já existentes ou criar os seus próprios heróis com materiais artísticos diversos.

2. Criar histórias a partir dos heróis que criou.

3. Encenar a partir das histórias criadas.

4. Pesquisar sobre contos de diferentes povos e fazer um caderno de ilustrações de contos e para cada ilustração, uma mensagem contendo um valor previamente selecionado.

O professor poderá:

1. Trabalhar com os alunos do Ensino Médio as obras Guerra e Paz de Cândido Portinari ou Guernica de Pablo Picasso, ou ainda propor outras que reflitam sobre violência, como obras mais contemporâneas de artistas brasileiros que retratem questões da utilização do próprio corpo para fazer arte, questões como mutilações, radioatividade etc. Interessante também trabalhar com grafites, murais e intervenções, com a temática do valor paz em contraste com a guerra, a violência.

2. Promover “cine pipoca” com escolha adequada de filmes e depois debatê-los ou solicitar a apresentação de uma resenha ou comentário sobre os mesmos, onde deverá ser enfatizado o contexto, quais os valores contidos, o porquê da presença dos mesmos e qual o aprendizado.

É sempre importante conectar ao currículo, frases, vivências, apreciações, leituras e releituras conectadas ao conteúdo da obra de arte e ao valor em questão.

Valores, expressão e inspirações

Apresentei formas de trabalhar os conteúdos de artes e suas

especificidades, mesclando várias vertentes com o exercício da criatividade e a conscientização e prática de valores, de acordo com minha experiência em sala de aula como professora de artes e música. Procurei sempre me inspirar no programa VIVE, nas tendências da arte-educação e nas necessidades sociais que consigo perceber.

A seguir, estão apresentadas resumidamente algumas formas de trabalhar valores através das artes de acordo com Diane Tillman, que diz: “Os alunos são encorajados a refletir sobre os valores e experimentá-los de forma artística e criativa por meio das artes” (2003, p. XVI). Por exemplo:

• Criar slogans sobre a paz

• Criar uma escultura da liberdade

• Desenhar algo que relembre a simplicidade (pede-se aos alunos que saiam um pouco para passear na natureza)

• Dançar a expressão da cooperação

• Pesquisar músicas, símbolos ou poemas que contribuam com o pilar da compaixão

• Ouvir músicas sobre diferentes valores

• Criar frases, slogans e cartazes sobre a paz

• Escrever poesia ou fazer um desenho ou pintura com as cores da paz ou da raiva

• Expressar artisticamente uma mensagem para o mundo

• Compor uma música ou poema sobre a família humana

• Desenhar ou criar uma dança sobre a tolerância

• Fazer uma colagem com as cores da felicidade

• Criar uma enquete sobre honestidade e desonestidade

Considerações finais

As possibilidades são inúmeras e mesmo que o mundo seja dinâmico e algumas vezes exija mudança para acompanharmos o fluxo da história, sempre é sábio, salutar, responsável, aprendermos e reverenciarmos os mestres, os que vieram antes de nós, e lembrarmos da imutabilidade dos valores, dentro de um mundo altamente mutável.

É fundamental estarmos atentos ao nosso entorno e ao mundo interno. Às vezes mesmo que estejamos cansados e não tenhamos ânimo para ler, uma frase, uma música ou uma obra podem servir de inspiração e tornar não só nossas aulas mais desafiantes e significativas, assim como as vidas.

Como professores, podemos criar ou buscar grupos em que possamos nos apoiar e nos desenvolver mutuamente, fazendo pausas nas demandas diárias, muitas vezes intensas. Podemos começar com práticas contemplativas, meditativas ou buscar novos conhecimentos.

Este é um estudo em construção. Sempre estamos abertos a aprender sobre novas formas de olhar o mundo, a arte, os valores, a criatividade e outras temáticas. Estamos em constante aprendizado e ressignificações e é gratificante termos a oportunidade de compartilhar estudos, pesquisas, saberes e experiências, ampliando a visão do eu e do mundo.

Tudo começa a partir de nossas escolhas e valores e o que queremos experimentar e compartilhar. Será que queremos deixar o mundo melhor? Se sim, o trabalho é imenso, e para isso estamos aqui.

Feliz jornada a todos com muitas pausas restauradoras.

Referências

BASTIDE, R. Arte e Sociedade. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1979.

BAZZO, W. R. Valores, disciplina e arte: uma educação para o século XXI. Monografia (Especialização em Educação e História da Arte). FACINTER, Curitiba, 2005.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte - 5ª a 8ª série. Brasília MEC/SEF, 1998.

FREIRE, P. A. Educação na Cidade. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2000.

HEIDE, P.; HAUSCHKA, M. Terapia artística, vol. 1. São Paulo: Antroposófica, 1987.

SILVEIRA, N. Imagens do Inconsciente. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2015.

TILLMAN, D. Atividades com valores para jovens. São Paulo: Confluência, 2003.

TILLMAN, D. Com os nossos corações. A necessidade da educação em valores. Disponível em: <https://vivendovalores.org.br/textos/Diane-Tillman-COMNOSSOS-CORACOES.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2023.

TILLMAN, D; COLOMINA, P. Q. Programa Vivendo Valores na Educação: Guia de Capacitação do Educador. 1ª ed. São Paulo, Confluência, 2004.

VERGARA, S. C. Criatividade. Teleconferência: Semana de estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, PUC, Fevereiro de 1999.

MUTUOKA, I. Ana Mae Barbosa e a educação por meio da arte. Centro de Referência em educação integral, 26 de novembro de 2018. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/reportagens/ana-mae-barbosa-e-educacao-por-meio-da-arte/. Acesso em: 24 mar. 2023.

BASE NACIONAL COMUM

CURRICULAR E O VIVENDO VALORES

NA EDUCAÇÃO: UM DIÁLOGO

NECESSÁRIO

Francisca Valdelice Araújo do Vale

Aeducaçãodeveproduzirmaisdoqueindivíduosqueconsigamler,escreverecontar.Eladevenutrircidadãosglobais queconsigamenfrentarosdesafiosdoséculoXXI.

BanKi-Moon,WorldofEducationForum,Incheon,Unesco, 2015

Introdução

As preocupações com a educação para o século XXI antecedem o início do nosso Século. Delors (1996) e a Comissão Internacional da Educação para o Século XXI, no relatório Educação: um tesouro a descobrir, organizado para UNESCO, aponta a importância do papel da educação no desenvolvimento pessoal e social dos estudantes, bem como no despertá-los e capacitá-los para a prática de valores humanos. A UNESCO acredita na educação como elo para conciliação e paz mundial. Nessa mesma linha futurista da educação, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), nos anos 1990, propôs um Paradigma do Desenvolvimento Humano, o qual pressupõe que para mensurar a melhoria na qualidade de vida, é necessário considerar três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde.

Esses aspectos refletiram na realidade brasileira. A busca

incessante de melhoria da educação para atender as exigências da sociedade contemporânea indica a necessidade de mudanças no fazer educacional. Isso implica lidar com a diversidade de comportamentos socioemocionais dos estudantes em suas várias fases de desenvolvimento, respeitando suas individualidades, crenças, religiosidades e questões étnico-raciais. Essas melhorias exigem respostas positivas advindas de um novo fazer educacional na educação básica.

A educação básica é constituída por três níveis de ensino: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. É nesse período de escolarização que o educando passa por seu crescimento físico, intelectual, seu autoconhecimento, sua autoafirmação, momentos de buscas e de conquistas para o exercício de sua cidadania plena. Isso requer uma educação para além do conhecimento conteudista, exige educar para a vida, para o bem conviver, utilizando-se de valores como respeito, amorosidade, empatia para que os conflitos sejam resolvidos e as diferenças respeitadas.

É nesse contexto de educação plena que este texto propõe uma reflexão dialógica entre as competências socioemocionais dispostas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a abordagem educacional do Vivendo Valores na Educação (VIVE), sugerindo para as escolas e professores caminhos para a educação em valores e, dessa forma, fortalecer o desenvolvimento dessas habilidades tão importantes para a educação integral do aluno.

Propomos, portanto, que a aplicação da proposta do VIVE nas escolas, em consonância com as competências socioemocionais da BNCC, venha a contribuir para o crescimento individual e coletivo dos educandos, dando-lhes sustentação para a prática de valores como a empatia, o respeito, a justiça, a responsabilidade, a autoconfiança e a sociabilidade, melhorando os relacionamentos entre eles e destes com professores e demais segmentos da comunidade escolar, implicando no sucesso do ensino-aprendizagem.

Base Nacional Comum Curricular - BNCC

A BNCC é

umdocumentodecaráternormativoquedefineoconjunto orgânicoeprogressivodeaprendizagensessenciaisparaa educação básica em conformidade com o Plano Nacional deEducação(PNE)eestáorientadapelosprincípioséticos, políticoseestéticosquevisamaformaçãohumanaintegral eaconstruçãodeumasociedadejustademocráticaeinclusiva[...].ABNCCeoscurrículosseidentificamnacomunhão de princípios e valores que orientam a LDBEN e as DCN paraumaformaçãoedesenvolvimentohumanoglobal,em sua dimensão intelectual, física, afetiva, social, ética, moral esimbólica”(BRASIL,2017,p.12).

A elaboração da BNCC estava prevista desde a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996. O documento foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2017.

Para a educação básica, a BNCC propõe o desenvolvimento de dez competências gerais que são desdobradas em competências por áreas e disciplinas. A BNCC define competência como a mobilização de conhecimentos (conceitos, procedimentos), habilidades (práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver e demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (BRASIL , 2017, p. 8).

Este documento normatiza exclusivamente a educação escolar, atendendo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) em consonância com os princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva (BRASIL, 1996, p. 7).

A BNCC é uma referência nacional para a criação dos currículos e propostas pedagógicas das instituições escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, integra a política nacional da Educação Básica, contribui no alinhamento de política e ações na formação e avaliação de professores, avaliações de conteúdos educacionais e os critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação (BRASIL, 2017, p. 8).

Como um documento normativo, a BNCC assegura aos estudantes não apenas o aprendizado cognitivo com direcionamento acadêmico, mas também o acesso a uma educação que os forme integralmente, visando seus sucessos em todos os aspectos. No âmbito pedagógico, desenvolve dez competências gerais como direitos de aprendizagem e desenvolvimento no decorrer de toda a educação básica.

Neste texto, não intencionamos discutir a BNCC em seu âmbito geral, mas fazer um recorte focado nas competências de números 6 a 10 que têm um direcionamento mais acentuado para os campos socioemocionais, a saber:

• Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

• Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.

• Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional,

compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros com autocrítica e capacidade para lidar com elas.

• Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.

• Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários (BRASIL, 2017, p. 9).

Essas competências socioemocionais são consideradas ensinamentos basilares na educação integral dos estudantes de forma que eles sejam capazes de respeitar, expressar sentimentos e emoções, agir com progressiva autonomia emocional; atuar em grupos e demonstrar interesse em construir novas relações, respeitar a diversidade e solidarizar-se com os outros; conhecer e respeitar regras de convívio social e manifestar respeito pelos demais.

Dessa forma, a BNCC avança rumo à educação integral, perpassa as competências cognitivas e atinge as socioemocionais. Para que esse novo educar aconteça na sala de aula, é muito importante que o professor esteja emocionalmente bem preparado para atuar além do conhecimento cognitivo, ser exemplo de equilíbrio socioemocional, agindo de forma respeitosa e com amorosidade. Vemos, nesse sentido, uma estreita relação com a ideia de atmosfera de valores proposta pelo VIVE, na qual professores e estudantes criam atividades e relacionamentos que os façam sentir-se respeitados, amados, seguros, escutados e compreendidos (TILLMAN e COLOMINA, 2003).

De acordo com Abed (2014), para que aconteça a promoção das competências socioemocionais na sala de aula, é necessário que o professor esteja engajado para mediar o processo. Nessa perspectiva, entendemos que os professores devem apropriar-se de ferramentas e abordagens educacionais fundamentadas em valores como os que propõe o VIVE, sobre o que trataremos no próximo tópico.

Vivendo Valores na Educação (VIVE)

O VIVE tem como propósito oferecer princípios e ferramentas orientadores para o desenvolvimento integral do ser humano, reconhecendo que o indivíduo é constituído pelas dimensões físicas, intelectual, emocional e espiritual. De acordo com Tillman e Colomina (2003), é uma abordagem educacional baseada em valores que dispõe de uma diversidade de atividades experimentais e metodologias práticas direcionadas a educadores, para que esses possam dar suportes às crianças e jovens na exploração e desenvolvimento de valores universais como: Cooperação, Liberdade, Felicidade, Honestidade, Humildade, Amor, Paz, Respeito, Responsabilidade, Simplicidade, Tolerância e União.

Conforme Tillman e Colomina (2003, p. 213), o VIVE tem como objetivos:

• Ajudar os indivíduos a pensarem e refletirem sobre os diferentes valores e as implicações práticas de expressá-los em relação a si mesmos, aos outros, à comunidade e ao mundo.

• Aprofundar o entendimento, a compreensão, a motivação e a responsabilidade no tocante as suas escolhas pessoais e sociais positivas.

• Inspirar os indivíduos a explorarem, experimentarem, expressarem e escolherem seus próprios valores pessoais, sociais, morais e espirituais e aprenderem métodos práticos para desenvolvê-los e aprofundá-los.

• Incentivar os educadores e responsáveis a considerarem a educação como algo que dá aos estudantes uma filosofia de vida, facilitando com isso seu crescimento global, seu desenvolvimento e opções para que possam integrar-se à comunidade com respeito, confiança e propósito.

Pressupostos básicos do VIVE

• Os valores universais ensinam respeito e dignidade para todos. Aprender a usufruir esses valores promove o bem-estar dos indivíduos e da sociedade como um todo.

• Todo aluno se importa com os valores e tem a capacidade de criar e aprender positivamente quando tem a oportunidade.

• Os estudantes florescem numa atmosfera baseada em valores e num ambiente positivo e seguro de respeito mútuo e carinho, onde alunos são considerados pessoas capazes de aprender a fazer opções socialmente conscientes ( TILLMAN e COLOMINA, 2003, p. 220).

Nesse panorama, a abordagem do VIVE acredita na essência das crianças e jovens, em contextos sociais e culturais diversos, e advoga que os estudantes têm condições de aprenderem os valores e conviverem em harmonia, utilizando a linguagem universal do amor, do respeito e da justiça. Nesse sentido, o VIVE desenvolveu várias atividades e metodologias para serem trabalhadas por educadores do mundo inteiro, disponíveis em uma série de livros para educação em valores para escolas e outras instituições que educam crianças e jovens5 .

5 Para mais informações sobre livros e artigos do VIVE consultar as páginas internacional e nacional: https://livingvalues.net/values-for-schools/ e https://vivendovalores.org.br/

Tecendo saberes a partir da perspectiva da BNCC e do VIVE

Neste tópico trataremos do diálogo entre as competências socioemocionais da BNCC e a abordagem em educação e valores do VIVE. Corroboramos com a ideia de competência como a capacidade de mobilizar, articular e colocar em prática conhecimentos, valores, atitudes e habilidades, seja no aspecto cognitivo, socioemocional ou na inter-relação dos dois. No que tange à competência socioemocional, compreendê-la como meio de relacionar-se com os outros e consigo mesmo, compreender e gerir emoções, estabelecer e atingir objetivos, tomar decisões autônomas e responsáveis e enfrentar situações adversas de maneira criativa e construtiva.

As competências socioemocionais priorizadas nesse contexto são aquelas que desempenham um papel crucial na obtenção do sucesso escolar e na vida futura das crianças e jovens, pois são habilidades desenvolvidas ao longo da vida e do processo de aprendizagem e que se conectam à capacidade de cada indivíduo lidar com suas próprias emoções, desenvolver autoconhecimento, se relacionar com o outro, ser capaz de colaborar, mediar conflitos e solucionar problemas (LíderemMim, 2021).

A exequibilidade de cada competência socioemocional da BNCC está diretamente associada ao conhecimento e à vivência prática dos valores, os quais devem ser trabalhados desde a educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio. Isso requer que os professores dos diversos segmentos escolares estejam bem preparados para contribuírem no ensinamento, na vivência e no fortalecimento desses valores nos estudantes.

Sugerimos neste texto uma tecitura entre as cinco competências socioemocionais da BNCC em análise e os componentes de capacitação para educadores do VIVE. A abordagem teórica do VIVE propõe a constituição de uma atmosfera de valores em ambientes educacionais nos quais os estudantes possam sentir-se amados,

respeitados, valorizados, compreendidos e seguros. Uma série de questões são fundamentais para fomentar tal atmosfera: currículo, infraestrutura, educação em valores, resolução de conflitos com diálogo dentre outras ações. As competências socioemocionais listadas abaixo proporcionam estreitos diálogos com os cinco “sentimentos” necessários para criar a atmosfera de valores.

Competência número 6

Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

Valores a serem trabalhados: amor, respeito, felicidade, tolerância, liberdade, honestidade e reponsabilidade.

Emoção do aluno: sentir-se valorizado, respeitado, seguro e responsável.

Percebemos em ambas a valorização da diversidade cultural, assim como os valores associados à formação cidadã e habilidades relacionados ao aprender a fazer e agir com responsabilidades.

Competência número 7

Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.

Valores a serem trabalhados: respeito, responsabilidade, honestidade e cooperação.

Emoção do aluno: sentir-se confiável, responsável e compreendido.

Essa competência tem uma relação intrínseca com os princípios do VIVE no que concerne aos direitos humanos, à sustentabilidade e consumo no sentido de desenvolver uma relação mais humana com a alteridade e o planeta. Isso implica o sentimento de responsabilidade, cuidado e empatia no fazer cotidiano.

Competência número 8

Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.

Valores a serem trabalhados: humildade, felicidade, honestidade, ética, responsabilidade e tolerância.

Emoção do aluno: sentir-se feliz e autoconfiante.

O VIVE advoga que a educação parte também pela educação espiritual, ou seja, a prática dos valores humanos. Como uma abordagem holística, as emoções são um aspecto essencial nos relacionamentos intrapessoais e interpessoais. Habilidades socioemocionais de lidar com a apatia, a raiva e outras emoções estão no cerne das atividades VIVE. As atividades com valores sobre a paz e o respeito dão primazia a esse aspecto, desenvolvendo bem-estar e autoconfiança.

Competência número 9

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos, a cooperação, fazendo-se respeitar respeitando o outro e os direitos humanos com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.

Valores a serem trabalhados: amor, respeito, honestidade, liberdade, paz, cooperação, humildade, tolerância, responsabilidade, união e simplicidade.

Emoção do aluno: sentir-se tolerante, respeitado e empático.

Nesta competência há princípios abordados pelo VIVE como o convívio respeitoso e apreciativo com a pluralidade de culturas e comportamentos, a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos a cooperação e o respeito.

Competência número 10

Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

Valores a serem trabalhados: respeito, responsabilidade, paz, simplicidade, humildade, amor e tolerância

Emoção do aluno: sentir-se seguro e respeitado

Nessa competência está presente a capacidade de o estudante fazer escolhas pessoais e sociais positivas de forma que assuma autonomamente com responsabilidade e resiliência as responsabilidades em todos os campos de suas vidas.

Para trabalhar os valores e as emoções pontuadas nas competências socioemocionais acima, sugerimos seguir o cronograma dos “Componentes de Capacitação” do VIVE, que prepara o professor para administrar suas emoções e as dos estudantes a partir da criação de uma atmosfera baseada em valores, estimulando-os a refletirem seus atos e atitudes, bem como seus comportamentos para administrar as diversidades de posturas e sentimentos socioemocionais dos educandos dentro e fora da sala de aula.

O quadro a seguir mostra as atitudes e atos do professor no trato das emoções dos alunos no trabalho com valores, criado a partir da abordagem do VIVE.

Quadro 1 - Atitudes e atos do professor no trato das emoções dos alunos no trabalho com valores

ALUNO

PROFESSOR VALOR

Amor Sentir-se amado

- Fazer da sala de aula um ambiente onde os alunos podem se expressar e se sintam amados pelo que são e não apenas pelo que dizem, têm ou fazem.

- Mostrar cordialidade, carinho e bondade.

- Reforçar as qualidades positivas de cada estudante.

- Criar um ambiente saudável, holístico sem favorecimentos.

Amor e Respeito Sentir-se compreendido

- Cada aluno é um ser com suas próprias emoções e processos.

- Todo aluno aprende melhor quando suas emoções e seu nível de facilidades são aceitos e respeitados.

- Ouvir

- Ouvir com abertura sem expectativas.

- Abrir espaços para expressão dos sentimentos e ideias; para aceitar e processar com clareza as respostas às suas necessidades e às situações.

Respeito

Sentir-se respeitado

- O professor estabelece na sala um clima de respeito mútuo e compreensão

- Ouvir cuidadosa e atentamente o que o aluno diz.

- Gastar tempo para reconhecer as emoções por trás das palavras -estabelecer normas da classe com os estudantes.

- Definir limites claros caso os estudantes transgridam as normas.

- Tom de voz do educador na sala deve ser coerente com a criação de uma atmosfera baseada em valores: carinhoso, incentivador, claro, firme ou sério.

Respeito e Tolerância Sentir-se valorizado

- Acredita que o aluno aprende e progride em níveis diferentes.

- Valoriza todos os alunos, acredita em sua capacidade de compreender e aprender a ser pacífico e feliz.

- Mostrar entusiasmo pelo aluno e pela tarefa.

- Comunicar expectativas através da crença na capacidade de aprendizagem de cada aluno.

- Criar situações positivas de aprendizado para ajudar os alunos a compreender e aprender no ponto em que estão.

- Apresentar desafios e objetivos ao alcance deles. O sucesso aumenta o interesse e a autoconfiança.

- Reforça as mudanças e os atos positivos, destacando o progresso dos alunos.

Paz e Respeito Sentir-se seguro

- A sala de aula é um lugar onde cada um pode experienciar dignidade e sensação de segurança.

- Tratar os erros como uma fonte de informação, partida de um novo aprendizado.

- Assegurar que ninguém tem permissão de lesar e ser lesado por outros.

- Orientar sobre as formas de ser, se comportar, o que fazer e não fazer.

- Compreender as discussões para ajudar os alunos nas decisões mais acertadas.

- Ser coerente e claro em relação às normas de comportamento e levar até o fim e com tranquilidade as consequências justas para o mal comportamento.

Fonte: Elaborada pela autora com base no Guia de Capacitação do Educador do VIVE.

O Guia de Capacitação do Educador (TILLMAN e COLOMINA, 2003) disponibiliza uma diversidade de atividades com valores para serem trabalhadas na escola e na sala de aula. Ele oferece temas para reflexão, imaginação, relaxamento, concentração, expressão artística, autodesenvolvimento, consciência cognitiva da justiça social e desenvolvimento da capacidade de coesão social e atividades para trabalhar a “escuta ativa e a “resoluções de conflitos”. Essa proposta do VIVE apresenta-se como uma ferramenta didática essencial para pôr em prática essas competências socioemocionais da BNCC.

Considerações finais

A BNCC avança consideravelmente comparada à LDBEN e PCN dos anos 1990. Os efeitos práticos nas escolas (produção de material didático, formação de professores e a nova educação básica proposta que está apenas começando) ainda não nos dão experiências e dados suficientes para analisarmos os impactos positivos.

Diante dessas dificuldades e a necessidade de ter acesso a formações e material didático, a abordagem do VIVE é uma das opções que contribui para a efetivação de uma educação fundamentada nas habilidades socioemocionais.

De acordo com Tillman (2001, 2005) e Tillman e Hsu (2006), as crianças e os jovens têm condições de perceber, compreender e agir de forma que promovam a paz e a justiça e o respeito à diversidade. As autoras fortalecem, através das atividades propostas para sala de aula, um mundo sem exclusão, digno e respeitoso entre todas as pessoas de todas as culturas, acreditam nos valores como chaves para a compreensão, enfrentamento e superação dos desafios mundiais contemporâneos. Nessa mesma direção, as competências socioemocionais propostas pela BNCC reforçam, no âmbito curricular, a necessidade e a abertura para uma educação holística, considerando que o estudante deve ter as suas dimensões físicas, cognitivas, sociais, emocionais e espirituais trabalhadas no cotidiano escolar.

Cientes de que esse texto pode contribuir para a efetivação das competências socioemocionais na escola, sugerimos que professores, diretores e coordenadores busquem conhecer a abordagem educacional em valores humanos do VIVE. Como uma perspectiva de educação holística centrada na espiritualidade, na diversidade de culturas e perspectivas curriculares diversas, o VIVE apresenta-se como uma abordagem teórica e metodológica

criativa e efetiva para uma educação que considera o indivíduo integralmente.

Referências

ABED, A. L. Z. O desenvolvimento das habilidades socioemocionais como caminho para aprendizagem e o sucesso escolar de alunos da educação básica. São Paulo: 2014. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index. php?option=com_docman&view=download&alias=15891-habilidades-socioemocionais-produto-1-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 25 jan. 2022.

BRASIL. Base Nacional Curricular Comum. Ministério da Educação. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versaofinal_site.pdf. Acesso em: 01 mai. 2022.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394 de 1996). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1996/lei-9394-20-dezembro-1996-362578-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 01 mai. 2022.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf. Acesso em: 01 mai. 2022.

INSTITUTO AYRTON SENNA (IAS). Competências socioemocionais: material para discussão. Rio de Janeiro: IAS, 2014. Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/para-educadores/socioemocional-para-educadores. html. Acesso em: 28 jan.2022.

CARVALHO, R. S.; SILVA, R. R. D. Currículos socioemocionais, habilidades do século XXI e o investimento econômico na educação: as novas políticas curriculares em exame. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 173-190, jan-mar, 2017. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/er/n63/1984-0411er-63-00173.pdf. Acesso em 28 jan. 2022.

DELORS, J. (Org.). Educação: um tesouro a descobrir. Brasília: São Paulo:

UNESCO/Cortez Editora, 1996.

O que são competências socioemocionais? Líder em mim. 22 jun. 2021. Disponível em: https://www.olideremmim.com.br/competencias-socioemocionais/. Acesso em: 29 mai. 2022.

PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Disponível em: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0.html. Acesso em: 30 jan. 2022.

TILLMAN. D. Atividades com valores para estudantes de 7 a 14 anos. São Paulo: Brahma Kumaris, 2001.

TILLMAN. D. Atividades com valores para jovens. São Paulo: Confluência, 2005.

TILLMAN D.; COLOMINA, P. Q. Guia de capacitação do educador. São Paulo: Brahma Kumaris, 2003.

TILLMAN, D.; HSU, D. Atividades com valores para crianças de 3 a 6 anos. São Paulo: Brahma Kumaris, 2006.

EDUCAÇÃO COM ENCANTO: NARRATIVAS

SOBRE

A TRAJETÓRIA

E AÇÕES DE WANDA CANTO COM O VIVENDO VALORES NA EDUCAÇÃO - VIVE

Anna Maria de Oliveira Cleide Romero Núbia Hübner

Paulo Sergio Barros

Introdução

A arte-educadora e artista plástica paulista Wanda Canto faz parte do grupo de educadores que iniciou as atividades do Vivendo Valores na educação - VIVE no Brasil em 1996. Ela foi uma das primeiras formadoras e atuou na área de capacitação de educadores e de formação de novos formadores de professores, contribuindo para a expansão do programa no estado de São Paulo, assim como em outros estados. Foi coordenadora pedagógica do VIVE nacionalmente e participou de várias formações e seminários internacionais, nacionais e regionais do programa, além de revisão do material internacional traduzido ao português (TILLMAN, 2001; 2003) e produção de material para as formações de educadores. Como arte-educadora, dava especialmente atenção à arte nas suas ações no campo da educação em valores humanos. Suas vivências com sala de aula e gestão escolar e o encanto pela abordagem educacional em valores humanos concediam-lhe a autoridade da experiência e, consequentemente, a inspiração para que outros educadores refletissem e ressignificassem o seu fazer educação.

Na sua trajetória profissional, Wanda Canto acumulou uma série de experiências acadêmicas e profissionais. Sua formação secundária voltada para o magistério foi na Escola Normal Anhanguera e formação superior na Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Trabalhou como ilustradora de revista, especializou-se em Arte e Educação e fez parte do grupo de planejamento responsável por projetos sociais em Arte-educação no estado de São Paulo. Fez exposições e participou de diversas feiras de arte e festivais nos quais ministrou oficinas de tapeçaria. Também trabalhou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo com oficinas de tapeçaria e mosaico. Por mais de duas décadas coordenou as atividades do Estúdio 56, um ateliê que oferecia cursos e oficinas com foco para mulheres adultas. Contudo foi como professora e gestora escolar em escolas públicas de São Paulo que Wanda Canto mais atuou profissionalmente, sempre paralelamente às atividades de artista.

Como artista plástica e arte-educadora experiente no campo da organização e participação de eventos, docência e gestão escolar e seu talento criativo, Wanda Canto agregou beleza, simplicidade e criatividade ao VIVE. Vivenciamos e usufruímos do seu talento criativo através das oficinas, formações e material criado como apoio para os formadores de educadores. Wanda Canto registrou parte de sua criatividade em texto (CANTO, 2009) no qual narra percursos de educação em valores humanos através da arte em oficinas e formações para educadores em São Paulo.

Segundo Alexandre Canto, seu filho, que concedeu entrevista para os autores deste texto, a trajetória da educadora e artista se confundem. Conforme Alexandre Canto, atuar no VIVE era o que mais gostava e a emocionava. Os mais de 20 anos de dedicação voluntária ao VIVE proporcionou-lhe exercer as suas duas paixões, ou seja, ser educadora e a artista.

Neste texto há uma junção de narrativas da trajetória de Wanda Canto como educadora voluntária a partir de seu trabalho de

coordenação pedagógica e de criação de material, mas sobretudo da sua relação amorosa, respeitosa e humilde com aqueles com quem ela relacionou-se enquanto desempenhava suas atividades com o VIVE. É irrefutável a qualidade, o valor e profundidade que as suas experiências como professora, gestora escolar e artista deram ao VIVE. É inestimável o quanto a sua criatividade, respeito, entusiasmo e amizade foram inspiradores para muitos de nós do grupo original do VIVE, bem como daqueles que tomaram o percurso no período de sua dedicação como formadora e coordenadora pedagógica. E, certamente, não podemos deixar de pensar quão impactante foram suas formações e oficinas em educação e valores humanos para os milhares de educadores de diferentes partes do Brasil.

Cada tópico deste texto foi escrito por um de seus amigos-parceiros durante anos, até a sua “aposentadoria”. Neles estão nossas percepções e sentimentos; aprendizagem e gratidão; amizade e admiração. Narrativas que revivem, reforçam e continuam a nos inspirar com suas ações como arte-educadora, coordenadora pedagógica e facilitadora VIVE e de suas virtudes e as repercussões, inspirações e fortalecimento das atividades com valores humanos no Brasil, tendo como perspectiva a abordagem do Vivendo Valores na Educação.

Assim, no primeiro tópico do texto, "A educação em valores com alegria e a opção pela arte", Paulo Sergio Barros narra como Wanda Canto usava especialmente a virtude da alegria, seu talento artístico e a experiência como educadora como inspiração e transformação na prática profissional de muitos educadores.

No tópico dois, "A prática do respeito na formação de educadores em valores humanos", Anna Maria de Oliveira ressalta também as habilidades de Wanda Canto com facilitadora do VIVE e o impacto positivo para muitos educadores, mas sobretudo na sua vida pessoal, resultado do trabalho conjunto por vários anos, do

aprendizado e da amizade constituída.

Cleide Romero, no tópico três, "Wanda Canto, o VIVE, a educação em valores na escola e um exemplo a seguir", destaca a idiossincrasia de Wanda Canto como artista e formadora de capacitadores e de educadores para aplicar a abordagem do VIVE em sala de aula e quão importante foi para o seu envolvimento com a educação em valores humanos.

O tópico escrito por Núbia Hübner, "O caminho de valores com Wanda Canto", narra o percurso de formação para atuar como educadora a capacitadora de outros educadores para aplicar o VIVE. Ela ressalta como as virtudes da simplicidade, da felicidade, da delicadeza, da sabedoria e do bom humor, assim com o talento artístico de Wanda Canto foram seminais para inspirar-lhe a reconhecer em si valores como a paz, o respeito, o amor e a consideração e como a partir de si poderia se estender aos outros através de sua ação docente.

A educação em valores com alegria e a opção pela arte

Paulo Sergio Barros

Um dos aspectos que merece destaque na personalidade de Wanda Canto era o encantamento pela educação plena, holística, especialmente destacando a espiritualidade a partir da criação de um ambiente onde as virtudes de professores e estudantes pudessem constituir uma atmosfera de respeito, amor, escuta, aceitação, segurança e criatividade. Nesse sentido, ela era, enquanto planejava, criava, dialogava e desenvolvia as atividades um exemplo daquilo que é o cerne da abordagem educacional do VIVE, ou seja, a criação de uma atmosfera de valores em ambiente educacionais (TILLMAN e COLOMINA, 2003).

Wanda Canto expressava com maestria algo que está no cerne do aporte teórico e metodológico do VIVE: a arte como expressão

dos valores. Nessa perspectiva, ela afirmava que o “resgate dos valores humanos” inerentes a cada indivíduo é possível através de atividades sistematizadas nas quais se estabelece um diálogo entre valores e arte. Nas primeiras atividades levadas a cabo em São Paulo

“[...] pensei em criar uma oficina onde poderíamos refletir sobrevalores,fazendo,aomesmotempo,comtrabalhocom artes.Talinteressesurgiupelofatodequesouarte-educadora por formação (...). A arte faz parte da minha vida em todososmomentos,particulares,profissionaisederelacionamento”(CANTO,2009,p.129-130).

No seu artigo (CANTO, 2009) e principalmente no material criado com dinâmicas e modelos de oficinas que Wanda Canto organizava e compartilhava conosco na qualidade de coordenadora pedagógica do VIVE, percebíamos como a arte constituía-se no eixo vertebral de sua ação para a vivência de valores. Em termos práticos, nós, os formadores mais experientes que passaram por formações conduzidas por ela, tivemos o privilégio de vivenciar esse encantamento, entusiasmo e criatividade em distintas oportunidades.

Recordo algumas ocasiões em encontros nacionais de formadores e coordenadores regionais do VIVE e no Seminário Nacional Vivendo Valores (1999), ambos em Serra Negra-SP e no seminário estadual Vivendo Valores na Educação (2004) em Caucaia-CE como foi marcante a sua participação conduzindo atividades sobre educação e valores a partir de uma sensibilização interior usando matizes como o mosaico, o desenho, a pintura e a dramatização. A bandeira da paz era uma das atividades que causava impacto forte nos participantes. Constituía-se de pinturas individuais em pedaços quadrados de pano branco depois de todos passarem por uma vivência meditativa sobre o valor paz. Posteriormente, eram costurados de forma que formava uma grande bandeira com

expressões plásticas sobre a paz. A bandeira era exposta e usada em outras ocasiões em exposições sobre valores e educação. Inclusive uma dessas bandeiras feitas com educadores é a arte da capa do livro Educação e Valores Humanos no Brasil: trajetórias, caminhos e registros do Programa Vivendo Valores na Educação (BARROS & NONATO JÚNIOR, 2009). Destacam-se também as atividades com mosaico e bijuterias de papel, desenho, dramatização e mapeamento mental; todas envolvendo a criatividade, a reflexão, o silêncio e a transformação pessoal.

Wanda Canto também ensinava valores com sua visão de mundo, ética e valorização do outro. Nesse sentido, sempre nos chamava a atenção seu entusiasmo, alegria e esperança na educação e no VIVE como uma ferramenta de transformação no ato de ensino-aprendizagem. A escuta era um dos métodos que ela usava para ensinar e aprender. Gostava de ensinar o que sabia sobre arte e docência. Apreciava aprender com as experiências dos demais, mesmo os menos experientes. Nessa relação de ensino-aprendizagem dialógica, ela ia além, pois nos ensinava valores ao compartilhar suas experiências, talentos, virtudes, atividades, leituras, livros, objetos de arte frutos de sua criação e a sua valiosa amizade.

A prática do respeito na formação de educadores em valores humanos

Anna Maria de Oliveira

Tive o privilégio de conhecer a querida professora Wanda Canto em abril de 2005 na capacitação para educadores do Programa Vivendo Valores na Educação.

Era um sábado lindo de sol, cheguei cedinho na sede do Centro de Meditação Raja Yoga Brahma Kumaris, no bairro Perdizes em São Paulo, e fui embora no final da tarde, depois de imersão de oito horas em valores humanos, vivenciando o valor respeito na prática.

O ambiente era acolhedor, alegre e ao mesmo tempo envolto num silêncio diferente. Ali estava Wanda com seus olhos atentos, brilhantes e a fala pausada, repleta de acolhimento e amor.

Durante uma das vivências, cujo foco era a escuta ativa, uma colega de trabalho, que também aceitou o convite para ali estar, relatou certa dificuldade pessoal que estava enfrentando, ficou emocionada e chorou.

Jamais havíamos conversado sobre o que de fato se passava em seu coração, nesse momento senti profundamente que estava participando de uma formação diferente, não era apenas teoria e sim algo que tocava o coração e a essência.

Wanda apresentava a história, princípios e objetivos do Programa Vivendo Valores na Educação intercalando com atividades práticas, reflexivas, descontraídas e meditativas.

A vivência Visualização da Escola , parte do tema “A criação de uma atmosfera baseada em valores” (TILLMAN e COLOMINA, 2003), fez meu coração pulsar forte, nutrindo mais meu propósito de ser uma educadora que poderia fazer a diferença em ambientes educacionais.

A forma gentil com que Wanda conduziu as reflexões após a visualização trouxe leveza e ao mesmo tempo a conclusão de que cada pessoa na comunidade escolar tem sua responsabilidade em tornar o ambiente um lugar melhor para viver e conviver, ensinar e aprender.

No segundo semestre de 2005, Wanda aceitou o convite para conduzir a capacitação para todos os colaboradores da Organização Social Núcleo Coração Materno (Freguesia do Ó - São Paulo), onde minha atuação era na coordenação pedagógica do Centro para Crianças e Adolescentes.

A diretoria da organização social aceitou contribuir com os custos de deslocamento de Wanda para que ela pudesse conduzir um encontro mensal com mais de cinquenta colaboradores de diferentes setores durante cinco meses.

Foi um desafio lidar com resistências, questionamentos, alegrias, atividades em grupo e individuais, mas ao término do processo de capacitação, todos estavam gratos pela presença, respeito e gentileza de Wanda nos inspirando a sermos educadores de nós mesmos, crianças, adolescentes, famílias e colegas de trabalho, mais conscientes de nossos valores pessoais e da organização social.

A partir dessas experiências, em final de 2006 passei a representar a organização social em Painéis de Valores durante seis anos (BARROS & NONATO JÚNIOR, 2009). Com as escolas e as organizações sociais que estavam implementando o Programa Vivendo Valores, a cada ano aprendia mais sobre a prática pedagógica fundamentada em valores e me aproximava de Wanda.

Em maio de 2006, tive a oportunidade de participar do I Seminário de Educadores em Serra Negra, na sede de retiros do Centro de Meditação Raja Yoga Brahma Kumaris, então, algo mais profundo aconteceu.

Meu coração pulsava forte naquele lugar, com aquelas pessoas e com Wanda. Senti que havia mais para viver e conhecer. Participei de meditações matinais, eram opcionais, e percebi que para praticar valores seria importante conhecer e aprender sobre meditação. Senti necessidade de estudar e praticar a meditação Raja Yoga.

A partir disso, compreendi que o VIVE tinha e tem seu alicerce em bases teóricas como: Os Quatro Pilares da Educação para o século XXI (Jaques Delors), Escuta Ativa (Carl Rogers), Mapa

Mental (Tony Buzan), Inteligências Múltiplas (Howard Gardner), Andragogia (David Kolb), mas sobretudo na filosofia milenar da meditação Raja Yoga.

A professora Wanda, através do VIVE, me “apresentou” uma nova relação com a espiritualidade e a prática de valores humanos na vida e na educação. Ela foi a “ponte” para experiências incríveis que tive na década seguinte.

Em 2014 passei a integrar a equipe de formadores de educadores do VIVE e então aprendi mais e mais com Wanda sobre a arte de acolher e respeitar a todos, “veteranos” e “novatos”. Pude acompanhar de perto capacitações facilitadas por Wanda, ouvir relatos incríveis de suas experiências em São Paulo, Brasil e encontros internacionais em Londres.

A pedido, insistente dela, que via em mim alguém que poderia assumir seu papel na coordenação dos grupos de formadores do VIVE no Brasil, de 2016 a 2018, aceitei o desafio, tendo sua presença como mentora, conselheira amorosa, mesmo sentindo dúvidas se poderia dar conta de tal responsabilidade. Wanda queria tempo para dedicar-se ao ensino de arte com mulheres, estar próxima de sua família, viajar e cuidar da saúde. Como todo mestre cheio de sabedoria, sabia que era o momento de participar do VIVE de outra forma e assim o fez.

A professora Wanda Canto é a mestra alegre, amorosa, gentil e empática que me ajudou a ver, vivenciar e praticar educação em valores humanos com o coração preenchido de espiritualidade. Não há universidade, diploma ou curso no mundo que represente as experiências que vivi ao seu lado e ao lado das pessoas que formavam o time que ela coordenou.

Sou imensamente grata a Wanda, ao Programa Vivendo Valores, a todos que prepararam o terreno e ao Centro de Meditação Raja

Yoga Brahma Kumaris por fazerem parte da minha jornada como pessoa, educadora e alma.

Wanda Canto, o VIVE, a educação em valores na escola e um exemplo a seguir

Cleide Romero

Wanda Canto é uma educadora que, através da arte, passou seus conhecimentos e ajudou muitas pessoas a descobrir seu próprio talento. Quando a conheci, em julho de 2005, descobri não só a educadora, mas também o ser humano fantástico. Ela divulgava o Vivendo Valores na Educação - VIVE para que mais e mais educadores fizessem da própria vida profissional um campo de vivência de valores humanos.

A Capacitação de Educadores é o curso para educadores que trabalham com crianças ou jovens, realizado em 30 horas de formação em 5 ou 6 sessões. Nele, a partir de vivências básicas, trabalha-se a tomada de consciência e as condições dos participantes para examinar seus próprios valores, as necessidades emocionais das crianças-alunos, a colaboração e a comunicação na sala de aula etc. Tudo isso com a finalidade de construir comportamentos positivos, estabelecer uma disciplina baseada em valores e propiciar a criação de uma atmosfera baseada em valores na sala de aula e na escola.

Foi dessa forma, vivenciando a capacitação do VIVE, que entendi e apreciei a proposta e Wanda Canto, sua coordenadora pedagógica, abriu-me o cenário de vivência dos valores humanos na escola.

A capacitação que fiz em 2005 foi realizada no “Estúdio 56”, a escola onde Wanda era arte-educadora e usava seu espaço particular de trabalho para expandir o VIVE. Dessa forma, compartilhando generosamente seus conhecimentos e sua experiência com educação em valores, ela me conquistou.

Durante a capacitação, fui conhecendo os diversos materiais do VIVE existentes no Brasil, que são suportes desenvolvidos para os educadores realizarem o trabalho com valores humanos com seus alunos. O material é farto com os livros de atividades para crianças de 3 a 6 anos, de 7 a 14 anos, de jovens, orientações para formar e trabalhar com grupos de pais e para a implementação de um ambiente de valores na escola. Não tive dúvidas, comprei todo o material e imediatamente fui convocada por Wanda Canto para fazer a primeira capacitação numa escola da prefeitura de São Paulo.

Ter chegado ao VIVE através do olhar de Wanda Canto foi interessantíssimo. Trouxe leveza ao meu jeito de capacitar e ajudar o outro a descobrir seus próprios valores vivenciando-os através de dinâmicas simples, leves e acolhedoras.

Wanda Canto participou e deu vida ao VIVE desde sua implantação no Brasil e com especial atenção formou, através da Capacitação de Instrutores de Professores/Educadores, muitas equipes de voluntários, que a auxiliaram a capacitar educadores em muitas escolas em todo o Estado de São Paulo e em alguns Estados do Brasil.

A Capacitação de Instrutores de Professores/Educadores é um seminário que forma instrutores para realizar a capacitação, estudando a capacidade de expressão verbal dos adultos, os diversos autores das diferentes teorias que embasam uma educação humanista, inclusiva, com visão dinâmica do mundo e do ser humano, aprofundando o entendimento do programa, sua história, os pressupostos essenciais, conceitos básicos, as técnicas e os materiais que ajudam o educador na tarefa de criar a atmosfera baseada em valores e uma cultura de paz dentro da educação (TILLMAN; COLOMINA, 2003).

Acredito que o legado deixado por Wanda Canto enquanto

formadora do VIVE, além do que já foi dito, foi sua capacidade de fazer parcerias, formando equipes e estruturas de trabalho de forma a manter a visão humanista e o espírito colaborativo, cernes do VIVE, somando os interesses de todos os participantes.

Como pessoa, seu comprometimento com a formação de educadores foi para mim exemplar, pois havia uma disciplina humilde para conciliar tantos interesses e paixões que o VIVE concentra e pelo seu potencial, sua prática e seu trabalho cotidiano aos que o fazem, aos que o mantêm e aos que o levam para além de mera vaidade pessoal, num compromisso verdadeiro com os valores humanos.

O caminho de valores com Wanda Canto

Núbia Hübner

Em meados do ano de 2005 fui apresentada à Brahma Kumaris (BK) por Mariane Orsi, na época dentista de meus filhos e voluntária da BK em Campinas-SP. Atualmente Mariane atua como Coordenadora do Ponto de Atividades BK em Vinhedos-SP, além de outras ações voluntárias na própria BK. Graças à influência dela, fiz o curso introdutório de meditação raja yoga e chorava compulsivamente durante as aulas quando o professor Cícero Fornari dizia quem de fato sou: ‘uma alma pura e cheia de paz’. Abri minha sensibilidade para quem eu era e queria aprender mais. Soube por Mariane que a BK tinha o programa VIVE - Vivendo Valores na Educação, que poderia ser interessante para mim. Fiquei encantada com um programa de valores voltados para a educação, mesmo não tendo ainda uma percepção clara do que seriam valores na educação.

No final de 2005, Ken O’Donnell, Coordenador da BK na América do Sul, facilitou na sede da BK em Serra Negra, SP, um curso chamado “Faça de 2006 o melhor ano de sua vida”. Lá estava eu aproveitando cada segundo daquele curso. Sim, 2006 foi um ano

que veio para mim numa caixa de tesouro. No final de 2006, Ken O’Donnell fez novamente o mesmo formato de curso, sendo que do curso anterior de 2005, apenas eu estava presente, o que significava que eu tinha de fato absorvido o aprendizado.

No início de 2006 me inscrevi no curso de capacitação do VIVE que aconteceria em São Paulo, numa das salas da editora Brahma Kumaris, com Wanda Canto. Percorri mais de 100 quilômetros até chegar ao local ansiosa e curiosa para saber sobre os tais valores.

Cheguei acelerada ao local, mas a recepção calma, serena e humana me fizeram entrar na sintonia de paz desde o começo. Era tudo novidade para mim, acostumada com cursos técnicos e de cálculos, com egos disputando atenção e colocação. Wanda Canto discorreu com simplicidade e felicidade sobre como seria o curso, numa consciência espiritual.

Era a primeira vez que via uma pessoa como Wanda Canto, delicada e sábia em tudo que falava, além de um excelente, constante e inteligente bom humor. Apresentou-me um mundo novo, de paz, de respeito, de consideração, que começava em mim e a partir de mim poderia se estender aos outros.

Inicialmente ela disse: ‘cada um desenvolve-se a seu tempo, devemos respeitar a natureza de cada indivíduo’. Logo em seguida, fizemos a atividade de visualização ‘Imaginando um Mundo Pacífico’. Nessa experiência iniciei meu aprendizado sobre valores, percebendo que já tinha a paz dentro de mim e que poderia encontrá-la a qualquer momento no fundo de minha alma, até que ela permanecesse na superfície, até que eu me tornasse paz.

Passamos por encenações de Resolução de Conflitos e Mapas Mentais, ferramentas que utilizo até hoje em qualquer situação de minha vida.

Lembro-me do impacto que a atividade com o valor amor me causou. Eu que achava que sabia o que era amor já em formato fechado. Deparei-me com a ideia de que o amor é nossa eterna busca, nosso eterno graal. Quanto mais amor experimentamos, mais amor temos condições de experimentar, de ter e de doar.

Como lição de casa, tínhamos que analisar um texto que falasse sobre o valor amor. Escolhi uma música do Jota Quest que se chama “O que eu também não entendo”. Num certo momento da música o vocalista canta, “será que amar é mesmo tudo? Se isso não é amor, o que mais pode ser? Estou aprendendo também.”

Pensei comigo: quando eu estiver cheia de amor, haverá ainda mais e mais amor? Então o amor é uma fonte inesgotável de energia e o meu ser pode transbordar tranquilamente de amor! Daí veio aquela estalada na consciência entendendo que o amor é o valor mais precioso que temos, que ele é infinito em poder, em força, em energia, é o agente transformador e salvador de nossas vidas.

Na atividade de visualização ‘Imaginando um mundo amoroso’, mais uma vez percebia que já trazia dentro de mim a energia do amor.

Seguia pela estrada, retornando para casa, num estado de graça pela percepção apreendida.

Não me lembro do tempo que durou o curso, mas ansiava de alegria quando se aproximava o dia do encontro de capacitação. Finalizei o curso e iniciei na região de Campinas a capacitação de várias escolas e ONGs várias vezes acompanhada por Wanda Canto.

Formamos um bom grupo de educadores atuantes no VIVE e Wanda Canto nos capacitou para sermos instrutores de professores. Assim atuamos com um time muito participativo e

colaborador.

Wanda Canto tinha uma chácara em Vinhedo, que chamava carinhosamente de chacrinha. Sempre que vinha para cá me avisava por e-mail, então nos encontrávamos para um café preparado por seu atencioso marido Helinho, e ela sempre me presenteava com algum material do VIVE, relatando a experiência que havia tido com aquele material. Era impressionante como ela inspirava valores, bem como sua incrível capacidade de criar atividades com valores. Seu talento artístico era notável.

Trabalhei para duas ONGs em Vinhedo, parceiras da prefeitura, cujo Projeto Pedagógico foi norteado pelo VIVE. Numa dessas ONGs havia a premissa que o pensamento devia se alinhar ao sentimento de forma positiva. Então nada como os valores para colaborarem nesse processo. Era corretamente dito que os sentimentos em desalinho são causas de grandes conflitos e que o educador deve auxiliar a criança/adolescente a identificar os conflitos e ajudá-lo na transformação dos sentimentos para que uma nova construção mental seja feita, à luz da razão, elevando a consciência a uma nova percepção.

Em quatro anos aplicando o VIVE nessa ONG, foi notável a transformação das crianças e adolescentes assistidos, bem como toda a equipe técnica/pedagógica.

Tenho muita gratidão por Wanda Canto. Ela me capacitou e me orientou nos processos de capacitar. No entanto, o que de mais valioso retenho na memória é o que ela é. Ela conseguiu trazer à tona seus valores de forma que se tornou uma personificação deles. Seu exemplo foi minha educação em valores.

Hoje sigo com o VIVE, atuando como Voluntária no Grupo Gestor Brasil, num processo pessoal de vivência e aprendizado em valores. Sou muito grata pela oportunidade que tenho e de fato, 2006

foi um ano importante e significativo em minha vida, porque me apresentou aos valores e tenho a certeza de que são eles que nos levam de volta a nossa origem divina.

Referências

BARROS, P. S; NONATO JÚNIOR, R. Educação e valores humanos no Brasil: trajetórias, caminhos e registros do Programa Vivendo Valores na Educação. São Paulo: Brahma Kumaris Editora, 2009.

CANTO, W. Vivendo valores com atividades de arte-educação: relato de experiências no estado de São Paulo. In: BARROS, P. S; NONATO JÚNIOR, R. Educação e valores humanos no Brasil: trajetórias, caminhos e registros do Programa Vivendo Valores na Educação. São Paulo: Brahma Kumaris Editora, 2009.

TILLMAN, D. Atividades com valores para estudantes de 7 a 14 anos. São Paulo: Brahma Kumaris Editora, 2001.

TILLMAN, D. Atividades com valores para jovens. São Paulo: Confluência, 2003.

TILLMAN, D.; HSU, D. Atividades com valores para estudantes de 03 a 06 anos. São Paulo: Brahma Kumaris Editora, 2001.

TILLMAN, D.; COLOMINA, P. Q. Guia de capacitação do educador. São Paulo: Confluência, 2003

VALORES HUMANOS NA

PERSPECTIVA DE UMA CULTURA DE PAZ: O PAPEL DA ESCOLA FRENTE A

ESSE DESAFIO

Como se depreende, a paz não nasce por ela mesma. Ela ésemprefrutodevalores,comportamentoserelaçõesque são vividos previamente. O resultado feliz é, então, a paz, talvez, o bem mais ansiado e necessário da humanidade atual(BOFF,2006).

Introdução

As reflexões neste artigo enfatizam um tema relevante para os desafios que a escola tem no seu cotidiano, pois trabalhar com os valores humanos no ambiente escolar é de fundamental importância para influenciar relações saudáveis. Assim, a escola deve fortalecer uma ação pedagógica não somente como transmissora dos conteúdos programáticos, mas como incentivadora da adoção dos valores humanos como forma de enfrentar os conflitos no dia a dia, passando a vê-los como crescimento pessoal.

Não há como desenvolver uma cultura de paz sem o compromisso com o respeito à vida e da igualdade entre os seres humanos e sem reconhecer que o cuidado e a promoção da igualdade devem se dar por meio de um diálogo permanente em todos os ambientes a fim de que seja estabelecida essa cultura. A abordagem do Vivendo Valores na Educação ( VIVE ) viabiliza uma mudança no cenário escolar, pois constrói a cultura de paz. Os valores na escola estão, diretamente, relacionados às vivências de educadores e educandos, tornando evidente que princípios baseados na

paz apoiam a formação do caráter dos alunos.

Os valores humanos e a prática pedagógica em sala de aula: a importância da abordagem educacional do VIVE

Apoiado pela Unesco e coordenado pela Association for Living ValuesEducation(ALIVE) , Associação para o Vivendo Valores na Educação, instituição sem fins lucrativos e formada por educadores de todo mundo, o VIVE é patrocinado por uma variedade de organizações, instituições e indivíduos, sendo integrante do movimento global por uma cultura de paz da Década Internacional para uma Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo6 .

Tillman (2017), considerada a principal teórica da cultura de paz e valores humanos, traz como premissa essencial dessa temática a construção de um espaço com base em solidariedade, amor, paz, generosidade, humildade, união, honestidade, harmonia e cooperação, dentre outros. Assim, um bom convívio pode ser edificado na escola, considerando que educar para a cultura de paz só será possível se vivenciarmos [...] o diálogo, a convivência pacífica e cooperativa [...] (TILLMAN, 2017, p. 4). É indispensável e urgente que a educação assuma esse papel nessa ação formativa e emancipadora e

[...]queaescolavásetornandoemespaçoacolhedoremultiplicadordecertosgostosdemocráticoscomoodeouviros outros,nãoporpurofavor,maspordever,oderespeitá-los, odatolerância,odoacatamentoàsdecisõestomadaspela maioria e que não falte, contudo, o direito de quem diverge deexprimirsuacontrariedade(FREIRE,1995,p.91).

A participação na escola é de fundamental importância, principalmente no processo de formação de valores em que precisa ser cultivado o amplexo escola/vida, respeitando o educando como

6 Disponível em: http://www.livingvalues.net/countries/brazil.html.

sujeito de sua própria história.

O ambiente escolar deve ser acolhedor e propiciar reflexões constantes e condizentes com os valores humanos para que todos possam interagir de forma consciente e cidadã, pois, se todos adquirirem o hábito permanente do diálogo com o respeito às diferenças, reforçando comportamentos solidários, é possível estabelecer um ambiente de ‘paz’ que valoriza as expressões e os comportamentos positivos dos alunos.

De acordo com Martinelli (1996), a concepção de valores deve ser “fundamento moral e espiritual presente em todo ser humano”, em que não há como ter propósito na vida sem os valores registrados no íntimo do nosso ser. Essa concepção serve de guia para a abordagem educacional do VIVE ao desenvolver o conhecimento intuitivo espiritual, cultivando o homem psíquico e espiritual e, de tal modo, permitindo a transcendência da razão e da estruturação do caráter pelo desenvolvimento integral da personalidade.

Não é possível construir uma educação para a paz sem estudar e vivenciar os valores humanos. Assim, a educação para uma cultura de paz requer que os educadores desenvolvam as emoções, a sensibilidade e a espiritualidade dos educandos.

Incluirvaloreshumanosnoambienteescolar,principalmente na prática docente, é fundamental para uma melhor qualidade de vida nos relacionamentos humanos, pois, assim, poderemos avançar na disseminação de uma cultura de paz que precisa ser fortalecida enquanto uma política permanente nas instituições em geral e, particularmente, nas escolaspúblicas(MATOS;NASCIMENTO;NONATOJÚNIOR, 2008,p.35).

Freire (1995) ressalta as relações dialógicas entre gestores, educadores e alunos que favorecem uma educação voltada à vida.

Em outras palavras, a educação pela/para construção da cultura de paz.

Ainda para Freire (1997), uma escola fechada ao diálogo reflete uma estrutura desacreditada pelos que confiam ser através do amor que haverá o processo de transformação do aluno. Por isso, a paz “se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social” (FREIRE 1997, p. 46). Só será possível vivenciar essa atmosfera de amor, se a escola reconhecer, valorizar e fortalecer a participação do educando nessa construção.

Nesse aspecto, o papel dos professores é ter uma interlocução com a família e, principalmente, com o aluno para envolvê-los nas ações educativas que permitem o exercício da cidadania com respeito ao próximo e a si mesmo. Isso possibilita uma aprendizagem satisfatória e a construção de uma escola em que os valores humanos são vivenciados.

Duas preocupações devem ser determinantes nesse processo: a primeira diz respeito à participação e às relações de afetividade, envolvendo os discentes; e a segunda aborda o atual modelo de gestão, configurando-se como amparo de uma política educacional com foco na gestão democrática e na autonomia escolar.

1. A escola deve incentivar a participação do aluno, envolvendo-o na tomada de decisões, a partir de uma relação dialógica de escuta verdadeira e facilitação da expressão da sua fala.

2. A consolidação de uma cultura de paz baseada em valores humanos requer a abertura para ouvir o outro, deixá-lo participar para que se sinta corresponsável. Não se pode ficar omisso diante dos conflitos que surgirem, mas proporcionar meios para que a comunicação se estabeleça na busca da resolução dos conflitos.

As iniciativas para disseminar a cultura de paz precisam ser

fortalecidas através de uma política permanente nas escolas. Essa ação somente se completará com sujeitos transformadores, garantindo a prática democrática da escola, uma vez que não é possível conceber uma escola interativa sem que o trabalho coletivo seja fruto de um processo democrático com envolvimento de todos (CARNEIRO, 2005). Os valores humanos são indispensáveis para o convívio escolar e social e a integração dos indivíduos entre si.

A escola enquanto lócus de vivência dos valores humanos e cultura de paz

A formação do ser humano prescinde de apropriação de valores humanos que incluem a humanização e a libertação. Nesse caso, a escola precisa estabelecer o diálogo e a vivência harmoniosa, acolhendo os alunos, suas ideias e criatividade e impulsionando-os a participar, através de ações e programas educativos e sociais.

Segundo Milani, construir uma cultura de paz

[...]épromoverastransformaçõesnecessáriaseindispensáveisparaqueapazsejaoprincípiogovernantedetodasas relações humanas e sociais. São transformações que vão desdeadimensãodosvalores,atitudeseestilosdevidaaté aestruturaeconômicaejurídica,asrelaçõespolíticasinternacionaiseaparticipaçãocidadã[...](Milani,2003,p.31).

É relevante que a escola promova ações que possibilitem o livre acesso às atividades culturais para expressão de ideias, para que possam desfrutar de momentos saudáveis e “... que o educando aprenda a escrever a sua vida como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se” (FREIRE, 2005, p. 41).

É papel da escola propiciar atividades que despertem no aluno e em seus familiares vivências transformativas e positivas em suas

vidas. A escola deve ser um espaço voltado a favorecer, também, a humanização dos métodos de ensino, recorrendo a um currículo que apresente uma proposta inovadora, apresentando uma educação comprometida com a transformação de atitudes.

A escola, portanto, deve assumir a responsabilidade na formação de cidadãos críticos e, principalmente, éticos. Por isso, os valores humanos não podem ser suplantados e devem ser colocados como primordiais para que, quando os alunos em formação se tornarem adultos, sejam profissionais competentes e com comportamentos alicerçados na dignidade e honestidade, uma vez que o ensinamento desses valores refletirá na sua conduta, que está em processo de formação.

Como assinala Paulo Freire (2006, p. 395), “sem um mínimo de carinho e atenção, essa ação se torna totalmente inútil, desprazerosa e cria terríveis traumas em ambos os lados”. Dessa forma, o ideal é não somente a simples transferência dos conteúdos programáticos, mas, também, um convívio saudável no espaço.

Reitero a participação da escola como espaço para abertura desse processo, sendo relevante trabalhar as relações entre professor-aluno, aluno-professor, família-escola, escola-família em que todos se empenhem para o fortalecimento de atitudes saudáveis. Que essas ações não somente aconteçam no espaço da sala de aula, mas no intervalo, na secretaria ou direção e que a escola permita que o diálogo prevaleça para que o educando perceba que aquele espaço é seu e sinta prazer em permanecer nele.

Esse compromisso com o ambiente escolar no fortalecimento de uma cultura de paz deve ser constante, pois a disseminação dos valores humanos e o respeito à vida devem prevalecer. Para tanto, deve-se proporcionar, na escola e fora dela, ações que promovem a cultura de paz.

Considerações finais

O tema em questão revela um desafio diário vivenciado no ambiente escolar e faz-se necessária a participação de todos que fazem a comunidade escolar no enfrentamento dos problemas para criar um ambiente harmonioso no qual os conflitos sejam resolvidos num processo dialógico e dialético e com amor, humildade e diálogo enquanto fatores que possibilitam uma cultura de paz.

O envolvimento de todos os segmentos representativos da comunidade é parte fundamental nesse processo, uma vez que o ambiente escolar não deve ser um espaço com ações voltadas somente para o ensino-aprendizagem, mas, também, para a vivência em valores humanos e cultura de paz. Esse desafio só será vencido se houver um trabalho contínuo e coletivo de conscientização através dos valores humanos, como respeito e solidariedade, para que, assim, o aluno possa desenvolver-se em sua plenitude.

Cabe à escola assumir uma postura reflexiva que estimule os alunos a construírem conhecimentos como seres críticos, autônomos e com relacionamentos alicerçados na cultura de paz e nos valores humanos. Quando o aluno, realmente, produz o seu conhecimento com autenticidade, criticidade, criatividade, dinamismo e entusiasmo, ele passa a questionar, investigar, interpretar a informação e não apenas acatá-la como algo que deve armazenar em sua mente.

É relevante que a escola ofereça um ambiente acolhedor e amoroso para resolver os problemas que surgem no cotidiano escolar. Sabe-se que não é uma tarefa simples, mas, se houver a participação da comunidade escolar e a abordagem educacional do Vive, haverá uma verdadeira convivência harmoniosa no ambiente escolar.

Referências

BOFF, L. Bases para a Cultura de Paz. In: GUIMARÃES. Dulce (Org.). A paz como caminho. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2006.

CARNEIRO, M. J. M. C. O Conselho Escolar como espaço de participação: uma reflexão sobre a prática nas escolas públicas estaduais do município de Fortaleza. 2005. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, A. M. A. Educação para a paz segundo Paulo Freire. In: Revista Educação. Porto Alegre, ano XXIX, n. 2 (59), p. 387 - 393, maio-ago. 2006.

MATOS. K. S. L; NASCIMENTO, V. S.; NONATO JUNIOR, R (Orgs.). Cultura de paz: do conhecimento à sabedoria. Fortaleza: UFC, 2008.

MILANI, F. M.. Tá combinado! Construindo um pacto de convivência na escola. Salvador: Inpaz, 2003.

MARTINELLI, M. L.. Serviço social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez, 1999.

TILLMAN, D. Como criar filhos com amor e sabedoria: guia completo para disciplinar com paz e respeito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

A PEDAGOGIA DO SER: O DESVELAR

DE UM NOVO PARADIGMA

EDUCACIONAL TRANSDISCIPLINAR

Introdução

Vemos hoje as consequências de uma educação descomprometida com o humano e com o social que há muito se pratica nos ambientes educacionais. A causa dos conflitos que afligem a humanidade está na negação dos valores como suporte do desenvolvimento individual e coletivo. Por isso é tempo de ir às dimensões mais profundas do ser, da essência, dos seus valores mais sagrados que geram a harmonia, bem-estar e autorrealização.

O projeto pedagógico que deu origem à Pedagogia do Ser foi sistematizado no livro Pedagogia do Ser - educação dos sentimentos e valores humanos, lançado pela Editora Vozes em 2004, hoje na 6º edição.

A Pedagogia do Ser aponta que a inconsciência e o pensamento voltado para as relações do mundo exterior, separam cada vez mais o ser humano do seu próprio centro interior, e essa pedagogia leva-nos à paz, harmonia e à crença de que existe uma solução para os problemas coletivos que nos cercam, por meio do resgate dos valores sagrados que estão registrados na alma humana.

A análise da concepção da educação transdisciplinar e dos valores humanos é o objetivo do presente artigo, que tem como escopo o estudo dos fundamentos teóricos e práticos que possam nortear uma proposta pedagógica que possibilite transcender os aspectos

do pensar, sentir e agir.

Nesse contexto, “é necessário repensar o papel da educação, de modo que ela possa trazer uma contribuição ainda mais significativa. Não se trata de culpabilizar ou de responsabilizar apenas a escola. Por outro lado, sem ela, acreditamos que pouco se possa avançar” (KUMARIS, 2018, p. 20).

O compromisso da educação é com a formação humana, com o desenvolvimento da personalidade e com a aquisição do conhecimento, do saber e da socialização, preparando o ser para assumir a sua missão de vida com consciência.

Essa proposta caminha em direção à expansão da consciência a partir das ações do ser humano consigo mesmo, com o outro, com a sociedade e com o planeta. Desta forma, procuramos encontrar resposta para a seguinte questão: Quais as referências que embasam uma educação transdisciplinar, baseada nos valores humanos e em prol do desenvolvimento humano?

Esse artigo será subsidiado por autores que se aprofundaram na temática, entre os quais: Barreto (2005), Kumaris (2005, 2014, 2018), Sampaio (2010, 2011), Tillman (2005), Weil, D’Ambrosio e Crema (1993), Torre et. al (2008) e outros. Está estruturado em duas seções: na primeira, identificamos a importância da educação baseada nos valores humanos; na segunda, analisamos os estudos da prática transdisciplinar em prol do desenvolvimento dos valores humanos.

Esses estudos contribuem para desenvolver as visões de ser humano e de mundo que alimentam a alma do educador e do educando no caminho da transformação, e isso o torna relevante para solucionar as demandas contemporâneas.

A importância da educação baseada em valores humanos

A educação é o conhecimento da vida mais profunda e da realidade externa, é a compreensão da natureza humana, é a direção dada a cada ser em busca da harmonia e de sua realização. A maior dificuldade é romper os conceitos, ideias, crenças, pensamentos, atitudes e preconceitos arraigados que nos impedem de enxergar soluções ou recuar diante das mudanças.

O impulso evolutivo, num processo de crescimento e mudança, atua como uma força que alavanca em direção ao futuro, à descoberta das nossas potencialidades para realização daquilo que se almeja ser e fazer. Esse é o processo da expansão da consciência humana e social para superar os limites e obstáculos e alcançar as infinitas possibilidades de autorrealização. “Para tanto, precisamos desenvolver as nossas qualidades, através das relações que estabelecemos no dia a dia, seja com pessoas, com pensamentos e/ou sentimentos tais como: sentir, querer, pensar, reconhecer, ousar e raciocinar” (BARRETO, 2005, p. 57).

Os valores morais e espirituais fazem aflorar o conhecimento interior, despertam a alma e aperfeiçoam o caráter. Ciência e vivência espiritual não são incompatíveis. A ciência tem feito uma revisão conceitual da realidade e dado saltos quânticos para explicar os mistérios da consciência.

A maior necessidade e o problema mais urgente de todo indivíduo é adquirir uma compreensão integral da vida que o habilite a enfrentar suas contínuas e crescentes complexidades. Qualquer forma de educação que só atenda a uma parte e não à totalidade do ser humano conduz, inevitavelmente, a conflitos e sofrimentos cada vez maiores.

Na construção da pedagogia do ser, experimentamos o programa do VIVE (Vivendo Valores na Educação), considerando os valores humanos a base da estrutura curricular, sendo o tema gerador de

todo o trabalho da unidade escolar. As atividades eram desenvolvidas com todos os membros da equipe escolar para que os valores experimentados pudessem envolver os alunos. A utilização da uma metodologia vivencial, que contemplasse as inteligências múltiplas e a arte, foi fundamental para o estímulo, motivação e o envolvimento de todos, gerando grandes mudanças no contexto escolar e familiar, tornando a escola referência para região de São Francisco do Conde, na Bahia.

O Programa de Educação em Valores Humanos contempla 12 aspectos da personalidade humana, essenciais para uma educação integral: cooperação, respeito, paz, amor, felicidade, responsabilidade, liberdade, honestidade, tolerância, humildade, unidade, simplicidade. “São valores fundamentais para o bem-estar da humanidade como um todo. Eles tocarão o cerne do indivíduo, inspirando mudanças positivas que possam contribuir para a transformação do mundo” (KUMARIS, 2005, p. 13). Referem-se ao âmago da natureza humana, quer seja das crianças, dos jovens e adultos que emergem sempre quando se propicia atmosfera para sua manifestação.

O livro Vivendo Nossos Valores (KUMARIS, 2014) oferece recursos práticos e contém três sessões principais: Explorando os nossos valores; Ferramentas para mudança e transformação; Workshops e atividades para mudanças coletivas. Outro instrumento que oferece suporte aos educadores é a coleção de livros Vivendo Valores na Educação (TILLMAN, 2001a; 2001b; 2005) que sugere informações e atividades criativas para as crianças, jovens, professores e pais.

Sampaio (2010, p. 104) relaciona alguns depoimentos dos alunos sobre as transformações ocorridas no trabalho com os valores humanos.

• Parar de brigar com meus irmãos.

• Mudei minha maneira de ser com as pessoas.

• Aprendi que não posso julgar antes de saber o porquê, a verdade.

• Pensar, antes de fazer qualquer coisa.

• Melhorou minha concentração.

• Modifiquei meu caráter, meu jeito rude e violento.

• Respeitar e saber o que é uma família.

• Ter respeito pelos outros e falar a verdade.

• Mudei o meu comportamento na escola, em casa e no ônibus.

• Parei de conversar nas aulas e incomodar os outros.

• Confiar mais nas pessoas e ter responsabilidade.

• Aprendi a ter responsabilidade comigo e com os outros.

• Aprendi a conversar com as pessoas e me abrir.

• Modifiquei minha violência e falta de respeito com os outros.

Transcender o modelo educacional vigente é o grande desafio do século XXI. As transformações que estamos vivendo são tão profundas e dizem respeito ao indivíduo, à sociedade, ao ecossistema planetário e à terra inteira como civilização. Sobretudo, no que diz respeito ao plano pessoal, estamos passando por mudanças nos valores, nas crenças, nas percepções e na forma de se relacionar consigo, com os outros e com o planeta

Os estudos da prática transdisciplinar em prol do desenvolvimento dos valores humanos

Notamos uma falta de fé nos sistemas educativos formais e sua crescente irrelevância nas preocupações políticas nacionais e nos meios de formação de opinião pública.

A educação deve superar a informação e a instrução. Ela vai mais além. Precisamos nos reconstruir como seres humanos em todos

os sentidos da vida, sobretudo nós, os educadores.

Identificamo-nos com nosso corpo, mente e personalidade, passamos a vida nos protegendo, defendendo, resistindo à consciência unitária e não percebemos que a fragmentação tem nos levado à fragilidade das relações e dos valores humanos, acentuando a crise familiar, educacional e social.

Segundo Weil, D’Ambrosio e Crema (1993, p. 15), “A educação disciplinar dos sistemas de ensino são produtos da fragmentação do conhecimento e da especialização progressiva do domínio da ciência”. Essa concepção pedagógica disciplinar é direcionada para a negação da subjetividade e da vida interior tanto do educador como do educando.

A educação transdisciplinar se constitui numa perspectiva integrativa da educação. Busca resgatar o significado essencial da palavra Educação e fazer emergir todo o potencial latente no ser humano que espera ser manifestado e expandido. O conhecimento e formação voltados para a ação construtiva que desperta para uma nova forma de viver vem se apresentando como um caminho para superação do ensino fragmentado.

É necessário, para realizar a educação transdisciplinar, o agir participativo e partilhado como resgate de uma educação mais sistêmica, contextualizada. Esse modelo transcende os aspectos epistemológicos e se fundamenta nos valores e atitudes humanas e integra professor e aluno na dimensão da aprendizagem dialógica e comunicativa. Assim ela amplia os limites da consciência dos seres para além das fronteiras. Esses limites antes só eram transpostos pela arte, místicos e religiosos.

Viver é um movimento de relação interior e exterior. É relacionar-se com aquilo que está ao nosso redor e dentro de nós. A vida está contida no movimento de relação e nós precisamos aprender como

nos mover através dela, mantendo nossa própria liberdade, iniciativa e equilíbrio. Estamos hoje nos dando conta de que, para alcançamos nossos propósitos, não precisamos perder nossos valores morais e éticos. Ao contrário, para sermos vitoriosos, devemos cultivar relações profundas de cooperação e solidariedade. Aprender a praticar empatia, colocar-se no lugar do outro, desenvolver a compaixão e os vínculos afetivos são os desafios do novo tempo rumo à transformação dos padrões do individualismo e competição.

A física quântica nos ensina que tudo que está em nossa volta é constituído de energia. Somos todos partes de um grande campo energético. A energia vibra com frequências diferentes, apresenta-se em diversas formas, desde as mais rarefeitas até as mais densas. O pensamento é uma forma de energia relativamente leve e delicada e pode se mover com rapidez e facilidade e gerar ondas vibracionais que influenciam pessoas e situações.

Por isso, nós somos construtores da nossa realidade. Somos o que pensamos. E para que as mudanças ocorram faz-se necessário descobrirmos as crenças que nos limitam, as atitudes básicas diante da vida e o que tem impedido o nosso próprio potencial de nos realizarmos plenamente. Assim que as atitudes tiverem sido detectadas, as crenças fortalecedoras surgem e um outro caminho se descortina, autorizando-nos a explorar um mundo de possibilidades que humaniza o ser humano e transforma as organizações.

O conhecimento transdisciplinar estabelece a correspondência e a integração entre os mundos interior e exterior do ser humano, superando a contradição, a dualidade e a exclusão. Torre, Pujol e Moraes afirmam:

[...]aotranscenderalógicabinária,aoresgatarapolaridade contrária do que é contraditório, ao valorizar a alteridade e orespeitoaopensamentodooutroqueédiferentedoseue

aoreconheceroutrasformasdeconhecimento,éaqueleque realmentedeveráfacilitarepromoverodesenvolvimentoda consciênciadahumanidadeeprepararacivilizaçãodareconexão,sugeridaporMorin.Certamenteseráessacivilização queaprenderáatrabalharmelhoraaprendizagemdoamor econstruirapaz(TORRE,PUJOLeMORAES,2008,p.85).

O investimento no desenvolvimento da educação transdisciplinar, conforme Random (2000), restitui o sujeito ao objeto, o ser humano à natureza, ligando-os tanto à unidade quanto à diversidade do todo, devolvendo ao ser e aos seus valores humanos e metafísicos o lugar dominante que lhe cabe. Esse investimento possibilitará a recondução da educação a seus reais objetivos, em que educador e educando possam conviver num espaço de diálogo e de aprendizagem significativas.

Considerações finais

Os estudos das neurociências sobre a mente humana tentam responder os questionamentos básicos sobre quem somos nós, por que estamos aqui, qual o propósito de nossa existência e para onde vamos, e a vivência dos valores nos capacita a encontrar algumas respostas para essas perguntas, pois dizem respeito à nossa natureza espiritual que tem como base os valores. Ao nos percebermos como herdeiros da essência divina, construímos um novo modelo de sociedade através da autopercepção e da reeducação do caráter.

Exige-se do educador não somente o conhecimento, a qualificação, mas também que proporcione uma educação que desenvolva no ser humano os valores e a sua consciência cidadã.

Considerando os grandes problemas que afligem a humanidade, descuidar da formação integral dos educadores e educandos se constitui em um descompromisso com a humanidade e com o planeta.

Os diferentes níveis educacionais, desde a educação básica até a educação superior, precisam trabalhar por essa sustentabilidade humana e planetária e repensar sua função social. Isso significa promover uma verdadeira revolução interna na forma de ser e de ver o mundo, ampliando a percepção de nossa interdependência e do compromisso com a realidade em que vivemos.

A educação, em todos os aspectos, familiar, escolar, social e espiritual é, portanto, a força que impulsiona o ser humano para a nova ordem social. Em meio ao caos e a todos os conflitos que retratam o fim de uma civilização, a educação está promovendo uma nova ordem civilizatória resultante da expansão da consciência humana.

O indivíduo precisa desenvolver a autoconsciência para que assuma o comando de sua própria vida e possa sair do estágio de consciência individualista e separatista para um estágio mais abrangente e integrativo.

A experiência aqui socializada confirmou a necessidade urgente de se romper com os limites impostos pela postura cientificista do mundo acadêmico, da educação conteudista, competitiva e fragmentada que tanto tem afastado educadores e educandos dos reais objetivos educacionais e embotado o fluir da mente criativa e da subjetividade.

Evidenciamos que o contexto educacional sofre a influência do paradigma cartesiano, como tão bem têm referenciado os pesquisadores desta temática. Essa influência tem levado o ser humano, a educação e a sociedade a se distanciarem cada vez mais dos aspectos essenciais da vida que trazem a plenitude bloqueada por um sistema excludente e desagregador da família e da sociedade.

As dificuldades e equívocos existentes no processo educativo impedem as ações transformadoras. Os educadores precisam

de mais clareza sobre sua missão e comprometimento com o contexto pessoal, social e profissional e competências pedagógicas, técnicas e humanas para atenderem as novas demandas da sociedade.

Referências

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TORRE, S; PUJOL, M. A; MORAES, M. C. Transdisciplinaridade e Ecoformação.

São Paulo: Triom, 2008.

TURISMO PELA PAZ: FORMAÇÃO

DE MULHERES E VALORES PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL

Sonhoquesesonhasóésóumsonhoquesonhasó,mas sonhoquesesonhajuntoérealidade.

RaulSeixas,compositorbrasileiro

Introdução

O artigo apresenta a trajetória de meninas e mulheres de territórios populares brasileiros que por meio do programa Turismo pela Paz se organizam coletivamente para trabalhar valores imprescindíveis na convivência comunitária como paz, solidariedade, amor e prosperidade, em prol da promoção do bem viver.

A proposta foi estruturada em 2017-2019, no mestrado em Turismo na Universidade de Brasília - UnB (SANTOS, 2019), e implementada a partir de 2019 adaptando aspectos gerais da abordagem do Vivendo Valores na Educação - VIVE (TILLMAN e COLOMINA, 2003) para a educação popular de adultos. A abordagem metodológica envolveu estudo e participação no cotidiano de mulheres, homens, jovens e instituições, sendo que o objetivo geral foi delinear as bases metodológicas do turismo pela paz a partir dos resultados e das experiências com os grupos focais. Os da primeira experiência, 2018-2019, foram formados em uma comunidade do Subúrbio Ferroviário de Salvador-BA na modalidade presencial. Na segunda experiência, 2020-2021, na modalidade híbrida, agregou dez comunidades vulneráveis de sete cidades brasileiras da

região Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste.

O artigo está dividido em contextualização do programa, apresentação de resultados e novas perspectivas da formação de valores para o trabalho comunitário. O estudo procurou refletir sobre que tipo de atividade turística pode criar oportunidades para as comunidades se inserirem nesse desenvolvimento de modo a favorecer o bem-estar subjetivo local. Os objetivos específicos visaram compreender e analisar a relação entre turismo, paz e bem-estar, como também fazer um levantamento das características gerais do Turismo pela Paz, abordado nas pesquisas e nas iniciativas internacionais, e investigar os elementos de sua base epistemológica nos grupos focais formados e refletir sobre a metodologia à luz dos resultados apresentados.

Valores em comunidade

As demandas socioambientais levam a humanidade a pensar sobre si mesma. A condição de vulnerabilidade e indeterminação das respostas no enfrentamento da atual transição paradigmática aponta a necessidade do retorno à essência dos valores norteadores da existência. Em outras palavras, a humanidade se encontra na passagem do “paradigma da ciência moderna” (...) por “um conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2002)7 que se manifesta a partir da mudança da consciência do indivíduo para o coletivo. Para isso, o Vivendo Valores na Educação instrumentaliza as pessoas para realizarem uma transformação significativa na sua forma de atuar no mundo (TILLMAN; COLOMINA, 2003; MEDEIROS; SILVA; OLIVEIRA, 2018).

Na escola é possível exercer mais controle em virtude de ser um ambiente com características específicas para o ensino-aprendizagem. Na comunidade, esse controle é possível em pequenos

7 Santos (2002) descreve a passagem entre paradigmas como semicega e semivisível, porque não é possível precisar as mudanças entre as diferentes formas de pensamento a não ser após algum tempo, por vezes, após séculos.

grupos organizados por interesse ou características comuns. Com isso, os grupos focais foram criados primeiramente diversificados e, ao longo de três anos, com meninas, mulheres e seus familiares mais próximos. O VIVE apresenta uma linha metodológica aplicável ao programa Turismo pela Paz no constructo epistemológico por se tratar da formação de indivíduos.

Para aplicação do VIVE e delineamento da epistemologia do Turismo pela Paz, a pesquisadora escolheu a metodologia da pesquisa qualitativa experimental, por perceber que o processo do estudo de campo em si deveria ter resultados práticos, com articulações e engajamento comunitário estabelecidos. Uma vez que esse trata do protagonismo das comunidades residentes, precisava ser dada voz a esses sujeitos para que atendesse os objetivos da pesquisa e para que fosse feito um estudo fidedigno e comprometido com a pacificação de áreas conflituosas não apenas na parte teórica, mas em campo, lembrando que este lugar é o espaço contínuo de atuação da pesquisadora.

Nesta pesquisa o levantamento foi efetuado por meio da interação entre os participantes. O papel do moderador é conduzir a interação ao nível mais privado possível de elucidação, de modo a diminuir os ruídos da socialização. Ainda, o objetivo é que coloquem seus pontos de vista procurando aproximar ao máximo a opinião dos outros. Pode-se utilizar a discussão como ferramenta, assim como outras técnicas (BARBOUR; MORGAN, 2017). O intuito principal do grupo focal não é chegar a um consenso e sim o de verificar como as ideias ganham formato ou são direcionadas a partir de uma moderação (HENNINK, 2007).

Todo programa se desenvolve como uma “experiência social” que está associada ao tratamento investigativo em ambientes diversificados para observação do tipo de comportamento e formas de resolução de situações (YIN, 2018). Por se tratar da aplicação de um método criado no esboço da pesquisa, era preciso promover

um ambiente onde fosse possível exercer um mínimo de controle dos eventos, para além do estudo descritivo, mas investigativo/ experimental e que tivesse uma interação com o objeto na direção de recriar elementos dessa realidade observada, o que se dá na aplicação de estratégias mais aprofundadas.

Engajamento comunitário e cultura do cuidado

Toda realização humana está pautada no sentido de comunidade enquanto grupo social de indivíduos que compartilham interesses e objetivos comuns, bem como o enfrentamento de problemas diversos em prol de equilibrar os quatro aspectos básicos da vida: o sociocultural, o ecológico, o político e o econômico (GASTAL, 2002). Para pessoas nascidas em territórios populares, denominação atribuída a comunidades vulneráveis urbanas ou rurais, o convívio e a partilha com pessoas que não da família consanguínea são naturais e constituem o legado e a cultura locais ao longo dos anos com base nos valores universais de respeito e dignidade (MEDEIROS; SILVA; OLIVEIRA, 2018).

Viver em comunidade se constitui no exercício orgânico da convivência entre as pessoas e a natureza, na hospitalidade, no diálogo e no uso consciente dos recursos naturais. O existir é individual e transcende a condição de estar no mundo para estar com ele. É no ato de discernir que o ser humano compreende a sua limitação e busca o sentido na comunhão com a fonte e com os outros seres. Essa existência, portanto, dialoga com outras existências. O diálogo firma o compromisso e integra todos no sentido de cuidar como princípio da preservação da vida (FREIRE, 1992).

Cada espaço da comunidade se torna um ambiente propício de ensino-aprendizagem a partir da oralidade e das atividades práticas do cotidiano. O sentimento, o afeto e o cuidado são “a experiência-base da vida humana” e o “ser humano é fundamentalmente um ser de cuidado mais que um ser de razão e de vontade”

(BOFF, 2009). Esses valores são norteadores na relação entre os sujeitos que organizam a vida nas práticas sociais da infância ao envelhecimento, no estudo e nas atividades para a subsistência e lazer que fazem parte do sistema natural humano.

A vida segue o movimento da existência, na autorregulação do universo, além dos elementos e seres vivos seguirem a dinâmica natural da sintropia para a entropia (BOFF, 2002)8. Sendo assim, a paz é o “equilíbrio do movimento”, a medida relativa na qual os seres humanos vivem harmoniosamente no mundo e com ele, cuidando para que os recursos disponíveis perdurem e se reproduzam sem perdas (BOFF, 2002). Enquanto não houver equilíbrio entre o subsistema econômico, social, cultural e natural/ ecológico, as condições de desigualdade e violência continuarão (KRIPPENDORF, 2019).

Para as comunidades vulneráveis, paz é sinônimo de autonomia, liberdade, harmonia na pluralidade e integração com a natureza. É garantida quando transcende a ideia de indivíduos, alcança o coletivo e promove a aproximação entre as pessoas e com o meio ambiente. A cultura da paz tem como objetivo trazer o equilíbrio à interação humana e cessar a violência ao cultivar o respeito, a aceitação da diversidade e a solidariedade (UNESCO, 2010).

As ações humanas acontecem no contexto do meio ambiente e das relações, definindo a natureza humana como integradora e instauradora do bem comum. A leitura de mundo está baseada nas experiências vivenciadas nas premissas da comunidade, humanidade e natureza. As ações individuais dos sujeitos, que integradas pela consciência de estar com o mundo e de transformá-lo, são refletidas no coletivo, na comunidade. O espírito de solidariedade e de humanidade atrai o olhar para o conjunto da obra, para a complexidade da vida.

8 De acordo com Boff (2002), sintropia e entropia são terminologias da lei da Termodinâmica que significam “ordem” e “desordem” respectivamente, medem o grau de organização e a desorganização de um sistema.

A comunidade autóctone anfitriã compartilha suas vivências, perspectivas e práticas incutidas em sua condição de seres integrados com o mundo e acolhe essas novas realidades trazidas por visitantes. Ambos influenciam uns aos outros e favorecem a ampliação da percepção da sua realidade. O seu empoderamento reconstrói o senso de humanidade e restaura a capacidade de ser feliz e de se integrar. Além disso, instaura uma consciência coletiva de cuidado das pessoas e do espaço onde habitam de modo a proporcionar lugares de lazer e de convivência.

O turismo pela paz é percebido como um conjunto de práticas e construído na relação entre comunidades residentes e flutuantes com o propósito de compartilhar conhecimentos e experiências, no qual o visitante é voluntário nas atividades desenvolvidas, oferecendo suas especialidades (MOUFAKKIR; KELLY, 2010). O status de voluntário qualifica o sujeito que se disponibiliza a essa prática a se integrar na comunidade de convivência temporária. Ele aprende com ela e passa as experiências de sua cultura, se humaniza e deixa de ser mero consumidor das atividades turísticas (AVENA, 2008).

A natureza da comunidade é definida por seus valores, pelos princípios da equidade, reciprocidade e confiança com base na convivência, no bem comum e na preservação da diversidade identitária. Essa tem relação com o pertencimento e a ancestralidade, sendo que a partir dos mesmos se constitui o seu patrimônio, “a diversidade cultural para a humanidade é tão essencial como a diversidade biológica é para os organismos vivos” (BARTHOLO et al, 2009).

A história e a cultura resultam de processos complexos de transcendência e diálogo entre os indivíduos e se constituem no seu legado para as gerações seguintes. “Pelo seu poder criador, o homem pode ser eminentemente interferidor” (FREIRE, 1992). Ele recria, discerne e se integra, além de estar com o mundo e não

apenas nele. Cabe aos animais se adaptarem. A virtude da integração é inerente à condição humana e quando não exercida, o homem se desumaniza.

Todos os seres humanos existem nesse planeta e compartilham dos benefícios que esse proporciona, isto é independente de conhecerem uns aos outros, faz parte do sentido de ser e importar-se com a existência da alteridade. As viagens são oportunidades de contemplação da beleza humana, de sua singularidade na diversidade, de sua capacidade de conviver pacificamente no devir dos acontecimentos do passado e presente no vislumbre de um futuro promissor.

O ser humano exercita a sua capacidade de amar e de ser pacífico diante dos outros seres e do planeta no sentido do cuidado por meio da vida em comunidade com a qual soluciona os problemas. Essa é a natureza da paz, ela capacita os sujeitos a atuarem com equidade e solidariedade. É o principal motivo pelo qual pessoas convivem juntas num mesmo espaço.

A casa dos valores e sustentabilidade comunitária

As atividades humanas quando tem por objetivo a qualidade de vida, a saúde e a subsistência do coletivo promovem esse estado de bem-estar (KRIPPENDORF, 2009), fortalecem as comunidades e dão a elas autonomia. Assim pode haver harmonia e promoção de direitos. A partir dessa visão, discorre-se sobre o turismo como um pêndulo que leva o indivíduo do polo do seu cotidiano, com suas esferas de existência, trabalho, moradia e lazer, para o polo do anticotidiano, no contexto das viagens, ocasionando mudanças no seu comportamento e na sua vida. Esse pêndulo sofre influência de quatro forças: o subsistema sociocultural, onde se concentra a escala de valores da sociedade, do ser e do ter; o ecológico, que envolve o meio ambiente e seus recursos; o econômico e sua estrutura; e o político, com o Estado e as políticas

(KRIPPENDORF, 2009).

Um exemplo que inspirou o programa Turismo pela Paz aconteceu em 1970 quando a comunidade católica europeia foi incentivada a viajar para territórios populares brasileiros a fim de realizar trocas de experiências com os moradores locais. Durante 40 anos, comunidades do Subúrbio Ferroviário de Salvador e favelas de São Paulo receberam pessoas voluntárias da França, Alemanha e Suíça, impactando significativamente na organização comunitária. Escolas e creches foram construídas e associações criadas para legitimar o movimento. São imprescindíveis ações sustentáveis como essa que incentivem a partilha entre indivíduos com diferentes conhecimentos em vista da preservação do bem comum e da restauração do equilíbrio inerente à condição de estar no mundo.

Oequilíbrioéajustamedidaentreomaiseomenos.Éo ótimorelativo.Apazcomoequilíbriodomovimentosomente surge quando há justa medida do movimento, nem excessivo,nemdeficiente,sejanaspessoas,nascomunidadese nassociedades.[...]Ajustamedidaconsistenacapacidade de se usar potencialidades naturais, sociais e pessoais de tal forma que elas durem o mais possível e possam, sem perda,reproduzir-se(BOFF,2002).

As atividades humanas quando têm por objetivo a qualidade de vida, a saúde e a subsistência do coletivo promovem esse estado de bem-estar (KRIPPENDORF, 2009). Contempla a condição humana de estar no/com o mundo, com hábitos de consumo e geração de energia menos impactantes ao meio ambiente, que inclua todos e não favoreça exclusivamente alguns, e garanta a equanimidade das divisas (FRANÇA FILHO, 2019). Apenas, ao fortalecer as comunidades e dar-lhes autonomia, pode haver harmonia e promoção de direitos.

O modelo metodológico do VIVE se divide em três partes que podem ser comparadas à estrutura de uma casa, denominada como Casa de Valores. Na base estão os valores, a visão ampliada do ser humano, nos aspectos físico, emocional, social e espiritual, a atitude de escuta empática e a estratégia de intervenções sistêmicas e sistemáticas. Nos alicerces estão os valores e atividades para os diferentes públicos envolvidos na educação de valores. No teto estão os resultados alcançados a partir da prática dos valores (MEDEIROS; SILVA; OLIVEIRA, 2018). A adequação desse modelo para a educação popular de adultos difere apenas no que tange a atividades mais fluídas no contexto dos territórios populares, pois não há o papel do educador, mas do mediador/consultor em situações de conflito e de levantamento de soluções para as demandas.

Os indivíduos, nesse modelo, são os protagonistas das ações e decisões tomadas no coletivo. Pode-se dizer de desenvolvimento local ou comunitário, e “o processo de satisfação de necessidades e de melhoria das condições de vida é a partir essencialmente das suas capacidades, assumindo a comunidade o protagonismo principal nesse processo e segundo uma perspectiva integrada dos problemas e das respostas” (FRANÇA FILHO, 2019).

Para isso, têm-se as premissas básicas: estudo das necessidades com participação das comunidades; respostas baseadas nos recursos e capacidades locais; e problemas e soluções integrados, conjugando os componentes às áreas de intervenção (FRANÇA FILHO, 2019). Não é possível gerar desenvolvimento sem incluir os sujeitos, e isso perpassa pelo constante diálogo em prol de conciliar interesses para além das diferenças culturais e religiosas, principal entrave na relação comunitária.

Os conflitos religiosos passaram a ser o foco principal da violência em territórios populares junto com o crime organizado. Para as populações mais antigas nos territórios, essa relação é mais branda,

pois se alicerçou no envolvimento social para a solução dos problemas comuns. Como nas décadas de 70 e 80, precisava-se engajar no movimento para garantir o acesso à água tratada, saneamento básico, energia elétrica e ensino. Com isso, as famílias mais antigas são a memória da comunidade, mostrando às novas gerações o que é mais importante considerar no devir das atividades cotidianas.

A cultura é a manifestação física do alinhavo social, ancestral, material e imaterial da família humana, fruto do relacionamento entre pessoas de idades, gêneros, credos, fazeres, interesses diversos. A cultura de paz torna as ações e tradições humanas um legado universal, para que cada sujeito, quando as gerações futuras o reconheçam, tenha consideração e desfrute do mesmo (MOUFAKKIR; KELLY, 2010). Nesse mundo de muitos conflitos a cultura de paz precisa ser aprendida, o que só é possível na convivência.

A convivência com pessoas diferentes de sua cultura identitária é desafiadora, pois exige paciência até que o diálogo possa acontecer. Começa com o estranhamento e o confronto interno entre as preconcepções ante a nova situação manifestada. Nesse momento o indivíduo encontra-se armado com suas ideias difusas. Ao mesmo tempo, ele tem curiosidade e parte em busca de conhecer mais sobre aquela realidade que se apresenta. E, por fim, acontece a entrega quando ele se rende para se integrar com o outro e com o mundo. Nesse contexto, as atividades de valores são desenvolvidas para trazer harmonia entre os diferentes sujeitos.

A interação entre indivíduos é uma estratégia importante de transformação social, formação cidadã e enfrentamento das diferenças e de aprendizado na diversidade, diante da crise que a sociedade brasileira enfrenta. As mudanças precisam ser pautadas nos valores humanos, de qualidade ambiental, bem-estar subjetivo e inclusão social.

O processo de desenvolvimento comunitário é multidimensional. Baseia-se na dimensão política, de participação cidadã e de equidade dos direitos; na econômica, de distribuição da renda, de qualificação profissional e para o empreendedorismo; no social, de fortalecimento das culturas, preservação da identidade e ancestralidade dos indivíduos e comunidades; no ambiental, para a garantia da manutenção da biodiversidade e do acesso por todos aos ambientes saudáveis e ao lazer. Ainda, a dimensão simbólica/ imaterial integra todas as dimensões anteriores no pertencimento, bem-estar, ancestralidade e na cidadania planetária (IRVING et al., 2015).

Nas pesquisas sobre o turismo pela paz é possível delinear um traçado mais claro da sua metodologia:

Descreve-se paz como a presença de condições estruturantesnasociedade,incluindointegração,justiça,harmonia, equidade,liberdade,completude,apromoçãodadignidade de cada pessoa e de todos os cidadãos. O sujeito pacífico não é passivo, pois sua condição envolve uma atitude de intervençãoparaatransformaçãodarealidadenocoletivo.A paznãosefazsozinha,mascomosoutrosecomomundo.

Só existem relacionamentos pacíficos quando os direitos humanossãorespeitados(MOUFAKKIR;KELLY,2010).

O turismo pela paz se preocupa com o bem-estar subjetivo de todas as pessoas, e a satisfação das comunidades residentes implicará na dos turistas, no acolhimento, na relação com o ambiente para a sua preservação e nas impressões sobre o lugar. Paz se assemelha a “cuidar do bem comum” (MOUFAKKIR; KELLY, 2010). De acordo com o significado pleno da expressão, o bem comum simboliza o equilíbrio sociocultural, econômico, natural e político do coletivo, cujos meios determinam que a sociedade se responsabilize por promover o bem comum para todos os cidadãos e por unir-se para mantê-lo.

A paz promove a segurança global (MOUFAKKIR; KELLY, 2010). Por segurança compreende a garantia de preservação da integridade humana e ambiental como um sistema total multidimensional. Opõe-se à ideia de militarismo e se aprofunda significativamente na preservação do direito de sobrevivência de todas as vidas humanas e ecológicas interconectadas.

As premissas da sustentabilidade orientadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (CNODS, 2017) também permeiam o Turismo pela paz ao tratar do tripé necessário para equalizar o social, o econômico e a biodiversidade (SACHS, 2004). A interconexão entre os três aspectos, economia, sociedade e ecologia cria a harmonia em todo o sistema do Turismo (MOUFAKKIR; KELLY, 2010). A ação de pacificação é implementada por todos os que se comprometem em ajudar a devolver o estado de equilíbrio.

O objetivo da pacificação é orientado para a integração de valores e ações de paz em todas as dimensões da vida humana.Oatodepacificaçãoevocaumsensodeatividade humanapositivaeengajadaemtrêsáreasdavida:afamília, a comunidade e as comunidades mais amplas de nação e mundo,eédirigidatantoparaoindivíduoquantoparaobem comum(MOUFAKKIR;KELLY,2010).

A metodologia do VIVE no programa Turismo pela Paz dá a oportunidade aos sujeitos de manifestarem a sua forma de ser e de viver para que a partir da experiência vivenciada, os fatos substituam os prejulgamentos e criem formas de gerar benefícios por meio de uma relação não violenta entre si e com o meio ambiente. O investimento na qualidade de vida local é imprescindível para que ambos tenham boas experiências no encontro. Ao trazer as populações autóctones para o cerne, é possível ver com mais clareza os benefícios que o turismo pode gerar dentro dessa perspectiva do acolhimento para o crescimento junto com o outro. As trocas entre pessoas privilegiam a resolução das questões locais. A paz

trabalha transversalmente para trazer o “equilíbrio ao movimento”.

O quadro a seguir representa o delineamento do Turismo pela Paz de acordo com as categorias de análise apresentadas.

Quadro 1 - Epistemologia do Turismo pela Paz

Turismo pela Paz

Rede Comunidades Pacíficas - Observatório para estudo permanente e controle das ações desenvolvidas nas comunidades.

Processos formativos na perspectiva do VIVE e da Pedagogia da Viagem, do Turismo e do Acolhimento pelas experiências de aprendizagem, de formação e de educação pelas viagens - EAFEV, de Avena (2008).

Rede de apoio ao Turismo pela Paz que mobilize as cidades na sustentação das comunidades.

Fonte: Elaborado pela autora.

O Turismo pela Paz é resultante do engajamento de pessoas, pesquisadores e instituições na causa da cidadania global. Envolve a compreensão crítica da situação do mundo e dos conflitos sociais e a solidariedade no “processo no qual a fraqueza dos oprimidos vai tomando força capaz de transformar a força dos opressores em fraqueza” (FREIRE, 2014). Constrói-se no coletivo e é formado por pessoas de diferentes idades e vivências do mesmo país e de outras culturas que congregam em um espaço a fim de desenvolver ações solidárias e de diminuição dos problemas vivenciados.

Considerações finais

O turismo é uma estratégia importante para a educação de valores. Por meio da interação entre os diferentes sujeitos das comunidades residentes e flutuantes é possível construir um diálogo que favorece a aprendizagem em prol do entendimento mútuo e do bem comum.

E, diante das novas percepções de mundo pós-moderno, o primeiro passo é fortalecer os princípios de solidariedade, prosperidade e amor, valores que permeiam as relações nos territórios populares tradicionais mais antigos.

A educação das comunidades precisa explorar todas as formas de aprender, formais e informais, para garantir que elas possam compreender e visualizar formas de inserção dos projetos de desenvolvimento local em contextos mais abrangentes, regionais e internacionais. O VIVE atende as bases do Turismo pela Paz enquanto formação para o entendimento mútuo e harmonização das situações de conflito.

A Pedagogia da Viagem, do Turismo e do Acolhimento - EAFEV, de Avena (2008) traz as concepções da formação e qualificação para o acolhimento, que é importante para a estruturação das comunidades de modo a permitir sua inserção nas atividades turísticas. Para interagir com visitantes é preciso saber como acolher de forma satisfatória e manter o relacionamento com as pessoas fora do contexto das comunidades. A Rede de Apoio ao Turismo pela Paz foi criada em 2021, após dois anos da implementação da metodologia, quando os materiais de divulgação foram consolidados e o programa ganhou repercussão em 10 comunidades de 7 cidades brasileiras.

No segundo ano da experiência o programa enfrentou o desafio da adaptação diante da situação de pandemia com tranquilidade, pois já estava funcionando na modalidade on-line. A formação passou a ser integral na plataforma YouTube, e o professor Avena disponibilizou cursos on-line abertos a partir do Instituto Federal da Bahia. Além disso, o programa conta com colaboradores voluntários no Brasil inteiro para o ensino continuado das meninas e mulheres atendidas. Elas ingressaram em Núcleos de Produção para facilitar o atendimento do serviço social e a formação presencial local.

A Rede Comunidades Pacíficas agrega os Núcleos de Produção

Turismo pela Paz, instituições e iniciativas das comunidades e tem como objetivos:

• Fomentar o diálogo para o alinhamento de ações integradas que atendam as demandas das comunidades.

• Articular moradores, instituições e o setor público e privado para o desenvolvimento de ações que promovam o bem-estar subjetivo das comunidades por meio de projetos.

• Assistência social que organiza o atendimento e a rede de assistência local.

• Comunicação que engaja as mulheres na aprendizagem das tecnologias para uso nos negócios sociais locais.

Os resultados principais trazidos nas experiências compartilhadas pelas participantes do programa foram o sentimento de pertencer, o sentido do engajamento comunitário e das relações identitárias atreladas à unidade na diversidade, à construção da autonomia e o espírito de liderança. É possível visualizar transformações profundas nos locais a partir do engajamento dessas mulheres e famílias. O grupo está a cada dia mais fortalecido e trabalhando em prol do entendimento mútuo e aproximação das comunidades. O clima de amizade entre as mais engajadas é perceptível, estimulando proximidade, reciprocidade e cumplicidade nas ações desenvolvidas.

Referências

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UNESCO. 2000-2010: cultura de paz: da reflexão à ação: balanço da Década Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo. Brasília: UNESCO, 2010.

YIN, R. K. Case study research and applications: design and methods. Sixth edition ed. Los Angeles: SAGE, 2018.

EDUCAÇÃO EM VALORES E CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ:

REVISÃO

TEÓRICA E RELATO DE EXPERIÊNCIA

NO ENSINO SUPERIOR

Patrícia Costa da Silva

A sociedade e os meios de comunicação vêm destacando a urgência e a necessidade de profissionais que sejam mais humanizados, empáticos, com autocontrole, compromisso, pensamento crítico, éticos dentre outras competências. No entanto, como esperar isso como resultado dos cursos de formação e graduação se as grades curriculares são voltadas quase que estritamente à aquisição de conteúdo?

Nesse sentido, o desafio que se apresenta tanto à escola quanto ao ensino superior diz respeito a proporcionar uma educação que seja integral. As instituições educativas possuem o papel de democratização do conhecimento e, cada vez mais, de apoiarem na formação socioemocional de seus acadêmicos. Saúde, Zarcos e Raposo (2019) trazem que diversos autores propõem a inclusão explícita de competências socioemocionais no sistema educativo.

Em se tratando do ensino superior, e ao utilizar-se a perspectiva dos quatro pilares da educação, percebe-se um foco na análise e reprodução do conhecimento científico (saber conhecer e saber fazer), e que os demais pilares não são igualmente considerados: saber conviver e saber ser. Soma-se a isso a organização das grades curriculares em disciplinas ou módulos o que tende a gerar uma perspectiva descontextualizada da realidade. Por fim, a relação professor-aluno é predominantemente de transmissão dos saberes do docente em detrimento de metodologias mais

interativas (SAÚDE; ZARCOS; RAPOSO, 2019).

Atuando há 14 anos como docente em cursos de graduação e pós-graduação busquei me capacitar para utilizar ferramentas que me instrumentalizassem para estimular uma formação integral junto aos estudantes. Encontrei no programa VIVE (Vivendo Valores na Educação) uma riqueza de embasamento teórico, a força de uma rede internacional de educadores comprometidos com o desenvolvimento de valores em si mesmos e em seus aprendizes e ferramentas práticas para uso no cotidiano da sala de aula. Um pouco depois conheci os Círculos de Construção de Paz, tendo a oportunidade de aprender pessoalmente com Kay Pranis, a organizadora desse corpo de conhecimento. Nisso aprendi especialmente a potência de uma metodologia estruturada, simples, profunda e capaz de fomentar a conexão entre os estudantes, algo tão valioso em tempos de isolamento e individualismo.

Assim, neste texto meus objetivos serão os de revisar o embasamento do Vivendo Valores na Educação - VIVE e dos Círculos de Construção de Paz, demonstrar as congruências e diferenças entre ambos; e apresentar o passo a passo do funcionamento dos círculos. A meta maior é que esse texto possa ser útil e enriquecer a prática de outros educadores, assim como a minha vem sendo beneficiada tanto com o VIVE quanto com as práticas circulares. Não apresentarei ferramentas práticas do VIVE por se tratar de um livro sobre o programa e com outros capítulos que complementarão neste sentido.

O VIVE e a atmosfera baseada em valores

Iniciando pelo programa VIVE, tem-se como um dos seus princípios fundamentais a criação de uma atmosfera baseada em valores humanos. A ideia é a de que os estudantes aprendem e se desenvolvem melhor em um ambiente onde se sintam compreendidos,

respeitados, valorizados e seguros (TILLMAN; COLOMINA, 2004). Importante agregar a isso que os professores são o centro do programa e que seu bem-estar é essencial para que a atmosfera de valores aconteça. Assim, é dado destaque ao autocuidado desses, de modo que consigam oferecer um serviço qualificado. Portanto atividades com valores ocorram igualmente com os educadores (SILVA, 2018).

Tais ideias estão em sintonia com Tillman e Colomina (2004) quando destacam os valores pessoais do educador como peças-chave do seu modelo teórico do VIVE. Não apenas os alunos, mas igualmente os professores se percebem com mais habilidades para lidar com o estresse ocupacional quando conectados aos seus valores pessoais.

As condições para criar uma atmosfera baseada em valores estão ilustradas na Figura 1 e explicadas a seguir. Naturalmente que uma atmosfera saudável é construída em relação com um contexto específico, e respeitando o estilo pessoal do educador e da turma, mas o programa traz algumas indicações no sentido de facilitar a reflexão e implementação por parte dos educadores (TILLMAN; COLOMINA, 2004).

Fonte: Adaptado de Tillman e Colomina (2004)

a) Reconhecimento, incentivo e criação de comportamentos positivos - é relevante compreender que ao experienciar algo positivo como consequência de um comportamento, a frequência desse comportamento aumenta. Nesse sentido, é fundamental encontrar os comportamentos dos estudantes que desejamos reforçar. Com base neles, o educador conduzirá elogios que sejam verdadeiros, específicos, genuínos e que citem as qualidades que percebe nos estudantes (TILLMAN; COLOMINA, 2004).

b) Questões abertas e aceitação - as questões em aberto significam que os estudantes devem ser incentivados a pensar sobre valores e a explorarem suas emoções. Por exemplo, através de uma metodologia de discussão ativa em sala de aula, poderão explorar diferentes perspectivas sobre o tema, aplicar conceitos e aprenderem uns com os outros. Ao educador cabe não apenas possibilitar as discussões como aceitar as respostas dos estudantes como válidas. Quando o educador adota essa postura, acolhendo os pensamentos e sentimentos dos estudantes, cria-se uma abertura na relação

Figura 1 - Condições para uma Atmosfera baseada em valores

professor-estudante facilitando que esse último assuma caminhos mais saudáveis (TILLMAN; COLOMINA, 2004).

c) Escuta ativa - A escuta é uma ferramenta eficiente na construção de um ambiente de aprendizado saudável. Ela inclui: ouvir genuinamente, refletir parte das emoções e conteúdos trazidos. Devolver os sentimentos do estudante (tendo o cuidado de não impor), o permite aceitar e apropriar-se das suas emoções (TILLMAN; COLOMINA, 2004). Um cuidado aos docentes é o de perceberem quando têm, de fato, esse tempo de escuta e mesmo disposição emocional; e caso não o possuam é importante comunicar ao estudante procurando encaminhá-lo ou agendar um novo horário. Para isso é preciso perceber, aceitar e reparar as próprias emoções sem se sentir culpado ou envergonhado. Aqui, também é importante que exista solidariedade na relação entre os educadores e um acolhimento da instituição para com os profissionais. Para além do ambiente de trabalho, é essencial que os educadores tenham tempo de viver as demais dimensões de suas vidas de modo valoroso (CHANTRY, 2002; SILVA, 2018).

Figura 2 - O educador e a escuta ativa
Fonte: A autora

d) Disciplina baseada em valores - um aspecto preventivo importante é um ambiente de aprendizado colaborativo. O primeiro passo para isso é o estabelecimento das regras de convívio em conjunto (TILLMAN; COLOMINA, 2004). Particularmente, costumo conduzir uma atividade denominada “Contrato de relacionamento”, onde cada estudante é convidado a responder à pergunta: “o que preciso para aprender bem com essa turma?”. Eles devem falar e, após, escrevem no quadro suas respostas, e a cada nova proposição o educador verifica com os demais da turma se estaria bem para todos conviverem com a proposta trazida pelo colega. Assim, essa lista se torna o contrato de relacionamento da turma, que deve ser assinado por todos, inclusive o professor. Todos recebem uma cópia do contrato do relacionamento, o qual pode ser retomado se em algum momento o grupo tiver dificuldades.

e) Resolução de conflitos - os conflitos são parte da vida, e no ensino superior os conflitos também estão presentes. Na minha experiência, muitos estudantes os experimentam quando realizam atividades avaliativas em grupo. Nesse caso, pode ser bastante útil se o professor ou algum setor da instituição oferecer treinamento de habilidades interpessoais. Além disso, Tillman e Colomina (2004) destacam que há diferentes metodologias para a resolução de conflito e que elas iniciarão com uma disposição a ouvir e a trabalhar para encontrar uma solução.

Círculos de construção de paz

Os círculos são um processo de comunicação estruturado e simples que visa apoiar os participantes a se conectarem entre si. A prática continuada dos círculos é útil no sentido de contribuir para ambientes em que os membros se sintam conectados, se respeitem mutuamente, nutram boas relações e se ofereçam suporte. “Ele foi elaborado para criar um espaço seguro, a fim de que todas as vozes sejam ouvidas e para encorajar cada participante a caminhar em direção ao seu melhor como ser humano”

(BOYES-WATSON; PRANIS, 2015, p. 3).

A prática circular se origina dos ensinamentos indígenas dos Estados Unidos que costumavam sentar-se em roda para conversar e resolver suas questões. De fato, trata-se de um modo bem antigo, mas que vem sendo retomado nas comunidades atuais. Os índios norte-americanos usavam um bastão de fala que passava de mão em mão, dando a seu detentor o momento de falar e aos demais o de escuta. Com isso, propiciavam conceitos bem atuais como inclusão e democracia. Uma das ideias essenciais dos círculos reside em nos aproximarmos através de ouvir e contar nossas histórias.

Os pressupostos teóricos que embasam o trabalho estão apresentados de modo resumido a seguir, conforme Boyes-Watson e Pranis (2015). Destaca-se desde já que mesmo que alguns sejam diferentes dos apresentados pelo VIVE, é possível perceber a alta congruência entre ambos.

a) Enfoque holístico para com as crianças e adolescentes - destaca a relevância dos aprendizados social e emocional. Contribuições da Psicologia Positiva são incorporadas, indicando que aspectos como persistência, coragem, foco, otimismo e curiosidade têm relevância maior para bons resultados tanto acadêmicos como na transição para as responsabilidades da vida adulta.

b) Importância dos relacionamentos no desenvolvimento e aprendizagem - a teoria do apego de Bowlby e Ainsworth, pesquisas de neurociências e uma série de outros achados da Psicologia e da Sociologia postulam que a qualidade do vínculo é um dos segredos para o aprendizado saudável.

c) Enfoque holístico para com a escola - a construção de uma comunidade escolar ou de aprendizagem com a qual o estudante se sente pertencente. Um clima positivo na instituição de aprendizagem diz do respeito entre as pessoas que ali frequentam e favorece

a conexão entre elas.

d) Disciplina positiva - esse item é citado também de modo idêntico como uma das bases do programa VIVE. Apenas com a diferença de que nos círculos o enfoque é dado às práticas restaurativas e à justiça restaurativa como formas de lidar com os conflitos. Assim, são utilizados processos estruturados e o olhar está em atender as necessidades dos que foram lesados.

e) Ambiente de aprendizagem com sensibilidade ao trauma - neste ponto aproveita-se do conhecimento de que as vivências adversas dos estudantes têm impacto no processo de aprender. Muitos estudantes vieram de histórias difíceis e faz-se especialmente importante que recebam orientação, segurança e apoio. Um ambiente atento ao trauma é aquele que valoriza e cuida de seus estudantes, que propõe intervenções positivas e que estimule relacionamentos confiáveis e saudáveis de modo repetido. Por relacionamentos positivos compreende-se aqueles em que o estudante é reconhecido, valorizado, ouvido e respeitado.

f) Prática da atenção plena (mindfulness) - Na estrutura do próprio processo circular encontramos a atenção plena. Isso porque durante uma prática circular a proposta é que os participantes desacelerem e permaneçam presentes consigo próprios e com os outros.

Utilizar tais práticas de modo sistemático possibilitam a melhora da qualidade da atenção em seus estudantes.

Tendo compreendido os pressupostos teóricos que embasam os círculos de construção de paz, é fácil entender que eles desenvolvem respeito, igualdade, empatia, solução de problemas, responsabilidade, autocontrole, autoconsciência e liderança compartilhada (BOYES-WATSON; PRANIS, 2015). Todas essas também são focos do programa VIVE, portanto encontramos mais esse aspecto similar.

A seguir, apresentam-se os elementos necessários para os círculos, ressalta-se que cada um deles é fundamental porque

estruturam as interações entre as pessoas. Há o estímulo para que os participantes sejam verdadeiros (no sentido de trazerem a “sua” verdade) para os demais com respeito e igualdade, e que busquem compreender a si mesmos e aos outros de modo profundo enquanto as trocas ocorrem.

Quadro 1 - Elementos do Círculo de construção de paz.

ELEMENTO

Participantes sentados em círculo

Peça de centro

EXPLICAÇÃO

Esse arranjo permite que todos se vejam, enfatizando igualdade e conexão.

Objeto da palavra

Os facilitadores costumam utilizar uma peça de centro que funciona como uma referência de descanso do olhar. Em geral se utilizam tapetes redondos onde se pode colocar flores ou símbolos conectados com valores ou com o tema a ser trabalhado no grupo.

É o objeto que regula o diálogo entre os participantes, pois ele passa de mão em mão, chegando a todos do círculo. Ele permite a plena expressão. Ao recebê-lo a pessoa pode escolher falar ou usar seu poder pessoal para indicar aos demais que não deseja falar. Cada um só pode falar quando estiver segurando o objeto, o qual sempre segue a ordem do círculo, ele não “pula” de um lado para o outro.

Facilitador (es)

Apoia o grupo na criação e manutenção de um espaço seguro para a fala honesta e um ambiente de respeito. Naturalmente não há como controlar o grupo, mas pode engajar os participantes para que se co-responsabilizem pelo cuidado e bem-estar de cada membro.

Fonte: Adaptado de Boyes-Watson; Pranis (2015); Pranis (2010).

Os círculos de paz seguem um modelo estruturado de funcionamento. Cada uma das suas etapas possui uma série de opções de atividades, sugestões de textos para leituras e indicações de formatos diversos para que sejam utilizadas. Tais indicações foram compiladas ao longo da prática de anos por facilitadores de círculos e são encontradas nas obras sobre práticas circulares como as de Boyes-Watson; Pranis (2015; 2016). A estruturação dos círculos de construção de paz (de caráter não conflitivo) inclui os seguintes:

Etapa 0 - Momento mindfulness

Pode ter duração breve, mas que ajude os participantes a se conectarem com a atividade. Sua realização ocorre através de respiração consciente, escaneamento corporal ou outros exercícios.

Etapa 1 - Cerimônia de abertura

O círculo prevê cerimônias tanto para abertura quanto para seu fechamento, delimitando-o como um espaço sagrado. Podem ser utilizadas pequenas leituras, músicas, alguma atividade que movimente o corpo. Elas são previamente organizadas de acordo com os objetivos do encontro.

Etapa 2 - Check in

Passando o objeto da palavra, pode-se solicitar que façam uma breve

apresentação (caso não se conheçam), ou ainda sugerir que respondam “como estão se sentindo hoje?”, ou ainda: “há alguma coisa que você sente hoje e que é importante que saibamos?”

Etapa 3 - Construção de valores

Neste momento os participantes identificam e registram valores que pensam ser importantes para aquele círculo. Com a passagem do objeto da palavra, cada um fala ao grupo o seu valor e, após, pode escrevê-lo em um papel e colocá-lo no objeto de centro. Neste momento é que se estabelecem as bases do diálogo. “Pensando em convivência, quais são as coisas importantes para você?

Etapa 4 - Construção de diretrizes

As diretrizes descrevem comportamentos que os participantes concordam em apresentar para que o ambiente seja seguro para todos. A ideia é a construção coletiva e o consenso, mas alguns tópicos podem ser sugeridos pelo facilitador, caso não emerjam do grupo: respeitar o objeto da palavra, falar na primeira pessoa, evitar julgamento e garantir a confidencialidade.

Etapa 5 - Contação de histórias ou perguntas norteadoras

Momento central dos círculos pois é onde ocorrem as contações de histórias. As perguntas são planejadas previamente pelos facilitadores, que levam em conta as características e momento do grupo. Elas nunca convidam ao ataque e sempre incitam respostas com o pronome “eu”. Alguns exemplos: “conte sobre uma pessoa que foi ou é um mestre em sua vida”, “compartilhe uma lembrança feliz da sua infância”, “traga uma história engraçada de seu trabalho”, “como seu melhor amigo descreveria você”. Por ser o momento mais profundo do grupo, a pergunta é planejada pelo facilitador conforme as necessidades do grupo. As obras de Boyes-Watson; Pranis (2015; 2016) trazem muitas sugestões gerais e algumas específicas por tema (situações de celebração, bullying, luto etc).

Etapa 6 - Check out

Para fechar o círculo o objeto da palavra passa de mão em mão esta última vez, em que se pede aos presentes que partilhem seus pensamentos sobre a participação neste círculo.

Etapa 7 - Cerimônia de encerramento

Demarca o encerramento do círculo. Pode-se trazer uma leitura com uma mensagem de esperança, uma dança em que todos participem, um momento de expressão cultural.

Integrando modelos e considerações finais

Em uma das formações sobre círculos que fiz com a professora Kay Pranis, recordo que ela trouxe que atualmente há um movimento na sociedade no qual muitos e diferentes caminhos levam a resultados semelhantes visando uma maior conexão entre as pessoas. Ao ouvi-la e por já participar do Programa VIVE há anos quando a conheci, ocorreu-me que essa soma entre ambas propostas poderia me agregar ferramentas como educadora do ensino superior.

Os pressupostos e teorias que embasam os programas não são idênticos, mas dialogam com facilidade. O cuidado e respeito tanto com os professores /facilitadores como com os estudantes são como “marcas registradas” de ambos. Na prática, utilizando as atividades do VIVE no ensino superior e agregando as práticas circulares, percebo que há ganhos evidentes tanto para mim como aos estudantes.

As atividades do VIVE estimulam valores através atividades reflexivas, exploração de valores no mundo real, promovendo discussões e exploração de ideias, expressão criativa e transferência do aprendido para o cotidiano. Além de atividades individuais e coletivas para o desenvolvimento de habilidades emocionais, sociais e de comunicação; aspectos tão importantes aos acadêmicos e

para sua futura vida como profissionais (TILLMAN, 2021).

O uso dos círculos de construção de paz no contexto do ensino superior igualmente gera uma série de resultados positivos. Em minha experiência, são momentos em que os estudantes se conectam uns com os outros de modo mais profundo, se abrem para se conhecerem mutuamente, ouvirem-se e se aproximarem dos colegas. Alguns chegam a relatar que mudaram sua forma de perceber a turma, passando a ter menos julgamento. Percebo ainda que muitos ficam felizes por poderem compartilhar um pouco de seus valores e histórias com os colegas, o que apenas com o uso de abordagens mais conteudistas de ensino não ocorreria. O enfoque em criar um ambiente seguro para todos é algo que os marca também e, após a prática do círculo, isso fica facilitado, como se todos se tornassem mais atentos para o quanto é importante cuidar de todos na sala de aula.

Desejo ter inspirado alguns educadores do ensino superior a conhecerem os fundamentos e ferramentas dos modelos do VIVE e dos Círculos de construção de paz, e que as utilizem como forma de apoiar os estudantes universitários em sua formação integral. Como citado, os ganhos para todos os envolvidos são significativos.

Referências

BOYES-WATSON, Carolyn; PRANIS, Kay. Círculos em Movimento: construindo uma comunidade escolar restaurativa. AJURIS / Terre des hommes, 2015.

BOYES-WATSON, Carolyn; PRANIS, Kay. Guia de Práticas Circulares no Coração da Esperança: o uso de Círculos de Construção de Paz para desenvolver a inteligência emocional, promover a cura e construir relacionamentos saudáveis. Terre des hommes, 2016.

CHANTRY, Nadine. Como Escutar na Relação de Ajuda: manual para educadores que trabalham com crianças em situação difícil. Rede da Criança:

Maputo, Moçambique, 2002.

PRANIS, Kay. Processos circulares de construção de paz. São Paulo: Palas Athena, 2010.

SAÚDE, Sandra; ZARCOS, Ana Paula; RAPOSO, Albertina. Descobrir as emoções para potenciar as aptidões: uma aplicação no ensino superior. IV Encontro Internacional de Formação na Docência (INCTE): Livro de atas. Portugal, Bragança, 2019. Disponível em http://hdl.handle.net/10198/15084

SILVA, Patrícia Costa da. Conduzindo o trabalho com valores junto aos educadores: aspectos teóricos e práticos. In MEDEIROS, Marcia; SILVA, Patrícia Costa da; OLIVEIRA, Anna Maria (orgs.) Guia Prático para Aplicação de Valores Humanos na Educação - Programa Vive Rudá: reconectando com nossa essência. São Paulo: Brahma Kumaris, 2018.

TILLMAN, Diane; COLOMINA, Pilar Quera. Guia de Capacitação do Educador. São Paulo: Confluência, 2004.

TILLMAN, Diane. Values-based atmosphere. IN: ASSOCIATION FOR LIVING VALUES EDUCATION. Values-Based Atmosphere: a collection of articles from around the world. Genebra, Suíça, 2021.

RESILIÊNCIA HUMANA NA PANDEMIA

DE COVID-19: UM ENFRENTAMENTO A PARTIR DE VALORES HUMANOS

Horocidio Marques

Introdução

O conceito de resiliência é bem caracterizado na citação de um artigo escrito por Juliana Mendanha Brandão et al que diz:

Observamos que a ideia que uma das concepções que a psicologia tem da resiliência - de modo geral, a capacidade para se recuperar de abalos sofridos ou de se abalar e voltaraoqueseeraantesdoabalo-temmaisavercomo conceitofísicodaelasticidadedoquepropriamentederesiliência.Issoporqueaelasticidadeseriaacaracterísticados materiaisdesedeformaremevoltaremàsuaformaoriginal, apósofimdacausadadeformação.Paraquesedeformem sem se romper, é necessária a resiliência que implica na absorçãodaenergiadoimpacto(2011,p.264).

Importante citar que em outras concepções, resiliência tem uma conotação de “elasticidade”, talvez movida pela ideia do fenômeno da neuroplasticidade cerebral em que novos circuitos neuronais seriam desenvolvidos a partir do enfrentamento da doença e haveria um consequente fortalecimento. Há também a concepção desenvolvida no Brasil de que “resiliência” é um conceito que a psicologia “pediu emprestado” da física cuja definição é que um metal, ao ser aquecido, elastece-se e, após a ação do aquecimento, volta ao seu estado normal anterior.

A psicologia ousa ampliar esta versão propondo que, no caso do ser humano, este, após voltar à sua condição anterior ao sofrimento não somente retorna ao seu estado normal, mas volta fortalecido, melhor do que era antes. Se isso é verdade podemos, talvez, dizer que os sofrimentos causados pela pandemia da Covid-19 podem deixar um saldo positivo na condição de higidez de saúde psíquica e fisiológica dos afetados, direta ou indiretamente, por ela.

O objetivo deste artigo é tentar estabelecer uma relação entre o acometimento da Covid-19 e os possíveis processos de resiliência nas pessoas que se envolveram, quer direta, quer indiretamente, pois sabe-se que a pandemia afetou a vida de tal maneira que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, 1/3 da população mundial foi afetada e para cada caso de acometimento da doença outras 5 pessoas foram afetadas. Parece-nos que é de interesse social que se estude o saldo “positivo” deste trágico acontecimento no sentido do como a humanidade pode disto se aproveitar para capitalizar prevenções tanto no sentido médico farmacológico, quanto no sentido psico-neuro-imunológico.

Contexto social em que ocorre a pandemia da Covid-19

A humanidade já vem vivendo um status que o autor e futurista californiano Jamais Cascio define como “Mundo Bani” e a Era do Caos. Neste último aspecto podemos incluir a instalação de um estado de hiper alerta que tende a ficar crônico uma vez que a incidência de situações de vulnerabilidade continuada, advinda dos mais diferentes setores que afetam a funcionalidade psicossocial das comunidades, vem aumentando consideravelmente por conta de desastres de todas as espécies ao redor do mundo. Por conta disto o escritor israelense Yuval Harari prenuncia em seus escritos que três grandes perigos rondam a humanidade em níveis globais: aquecimento global, inteligência artificial e guerra nuclear. Para o autor da denominação de Mundo BANI, sigla das palavras

em inglês - (B)rittle (frágil), (A)nxious (ansioso), (N)on linear (Não linear) e (I)ncomprehensible (incompreensível), é composto pelas seguintes características:

• Brittle (Frágil): sem raízes sólidas, tudo pode mudar rapidamente. Um vírus pode se espalhar pelo mundo (com as facilidades da globalização e interconexão), um concorrente pode mudar a lógica do mercado, novos gadgets movidos a inteligência artificial podem influenciar as relações trabalhistas, e por aí vai. Então, empregos não são sinônimos de segurança, posições não garantem estabilidade e mudanças repentinas na carreira são normais. E isso é óbvio. Assim, precisamos aprender a trabalhar com a instabilidade sempre por perto.

• Anxious (Ansioso): toda essa fragilidade gera medo, que resulta em ansiedade (uma das doenças mais comuns do nosso tempo). Parece que vivemos no limite, em que as decisões precisam ser tomadas rapidamente, que os segundos perdidos nos deixam para trás. Isso nos causa um senso de urgência.

• Nonlinear (Não-linear): o distanciamento social do último ano nos deixou com a sensação de estar em um mundo com eventos desconectados e desproporcionais. Isso muda completamente o sistema de causa e efeito a que estávamos habituados, já que a aceleração dos acontecimentos significa que os altos e baixos não são proporcionais e nada é certo. Assim, planos a longo prazo, por exemplo, podem não ser os mais indicados para o Mundo BANI e devem ser adaptáveis às circunstâncias.

• Incomprehensible (Incompreensível): a incompreensibilidade é o estágio final da nossa sobrecarga de informações. Temos muitos dados, mas a lógica parece não fazer mais sentido. Buscamos mais informações para ter mais controle, mas esse exagero pode ser apenas uma farsa em vez de uma solução. Nossa capacidade cognitiva de processar não mudou e o excesso de dados pode nos deixar sem respostas. Cada vez parece que entendemos menos, mesmo com o aumento do número de informações (IEEP, 2021).

Acrescenta-se a tudo isso o item “incerteza”, que dantes pertencente ao escopo de uma outra sigla de cenário “VUCA” (Volatile, Uncertain, Complex, Ambiguous), mais especificamente no quesito “Uncertain” (Incerto), que com certeza afeta a saúde mental uma vez que no âmbito da insegurança pode provocar ansiedade e males dela decorrentes. Silvia Bentolia, Phd e Professora da UCES - Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales - Buenos Aires, Argentina propõe uma reflexão neste sentido quando apresenta em um dos seus conteúdos de aula o seguinte enunciado:

Uma pessoa que se encontre em um ambiente onde sua conduta“usual”jánãoconduzaoresultadoquecostumava serprevisívelnemtemumefeitode“controle”nesseambiente,elevaoníveldeansiedade:agudo,constanteoucrônico. Estareaçãohumanaafetaasfunçõesinternasquecontrolamaconduta[psico-fisiologicamente](Informaçãoverbal, BENTOLILA,2022).

Decorrências psicossociais da pandemia de Covid-19

A literatura tem registrado vários itens que dão conta de consequências (diretas e indiretas) da pandemia de Covid-19. Listamos a seguir alguns destes registros para ilustrar a nossa defesa da necessidade de mais estudos dos efeitos tanto nocivos quanto potenciais criadores de resiliência biossocial.

Síndrome da Cabana

Vivendo na era da comunicação acelerada pela tecnologia da informação tem propiciado um mundo cada vez mais conectado em real time que por sua vez impulsiona conhecimentos e produções de gadgets tecnológicos através dos quais as pessoas possam desfrutar, em suas próprias casas inteligentes, de serviços e produtos customizados. De um lado a necessidade de isolamento social e de outro a oferta da possibilidade de uma vida cada vez enclausurada cerceando as interações sociais presenciais tão

indispensáveis à saúde mental. Como se não bastasse é também advento a possibilidade do home office que, se por um lado facilita a maximização do tempo, diminui os gastos e a poluição causada pela locomoção motorizada por combustíveis fósseis, mas por outro faz com que as pessoas misturem de forma desordenada o sagrado tempo do abastecimento social na família. Daniel Augusto Mota, do Blue Management Institute nos diz:

São diversos os desdobramentos desta busca pelo equilíbrio entre a vida doméstica conectada e a vida social em trânsito.Políticasdeflexibilidadenoscontratosdetrabalho, mobilidadeurbana,serviçosemnúcleosurbanos,modode vida familiar, tendências imobiliárias. Além disso, diante de eventotãotrágico,valorespessoaiseprioridadesfamiliares estão sendo revisitados. É muito provável que mudanças comportamentaissejamaceleradasapóstamanhadestruiçãodevaloredevidas(MOTTA,2021).

Estas condições acimas descritas, à exemplo do que aconteceu no pós-guerra da II guerra mundial, a Síndrome da Cabana, ou cabin fever, (que pode ser descrita como uma consequência de quando experimentamos o confinamento ou isolamento por longos períodos de tempo a exemplo do que aconteceu no início dos anos 1900 na América do Norte quando os trabalhadores ficavam confinados em suas cabanas durante longos invernos) volta a acontecer com novas nuances caracterizadas pelos já descritos incrementos da vida hodierna. Apesar de não ser considerada um distúrbio psicológico, a síndrome da cabana representa uma evidência factual que tem sido vivenciada por muitas pessoas.

Sentimentodedesamparo

Segundo Daniel Augusto Motta, “A solidão atinge um a cada três adultos no planeta. O isolamento social provocado pela Covid-19 causou um aumento ainda mais dramático do sentimento de solidão na população mundial” (2021). Esta estatística nos faz refletir

sobre o sentimento de desamparo que as pessoas podem estar nutrindo, uma vez que o medo do contato físico como: apertos de mão, abraços e afagos entre as pessoas, mormente nas populações latino-americanas onde o calor humano é muitas vezes traduzido em forma de contato físico, pode ter levado muita gente a se sentir desamparado, ou com o sentimento de estar só, sem poder contar com os outros. Talvez, o sentimento de desconfiança nas relações interpessoais tenha também sido aumentado uma vez que, por não se ter certeza do estado de saúde do outro, acaba-se evitando a proximidade que - numa primeira instancia é apenas física, mas nada impede que esta se expanda para outras dimensões de desconfiança na integridade socioemocional dos outros.

Economistas são unânimes em afirmar o aumento do empobrecimento das populações, pois o elevado endividamento público ainda terá efeitos relevantes por muito tempo, incluindo as próximas gerações. Isto será ampliado pelo desemprego, falências empresariais, aumento de juros, inflação e reduções de investimentos. O poder aquisitivo das populações deve desencadear o sentimento de desamparo pois as condições materiais de sobrevivência dependem sobremaneira de condições financeiras.

DepressãoeAnsiedade

Tem sido notável o aumento de pessoas com ansiedade e depressão. Consultórios de psicoterapeutas, psicanalistas e psiquiatras tem registrado um considerável aumento de clientela, e a indústria farmacêutica também notícia aumento de venda dos medicamentos voltados para a cura, ou pelo menos o alívio de doenças mentais. Segunda a CNN Brasil houve um aumento de 17% na venda de fármacos voltados para a cura ou alívio da ansiedade e depressão (AMÉRICO, 2021). E segundo a revista Acervo+ o uso de medicamentos antidepressivos aumentou em 15,8%, sendo que, desses, 7,2% alegaram que iniciaram a ingestão durante a pandemia (DIAS, 2021). E de acordo com dados da Associação

Brasileira de Psiquiatria calcula-se que demanda aumentou 82% em consultórios particulares de todo o país. Número de atendimentos nos 95 endereços dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de São Paulo passou de 24 mil em setembro de 2019 para 52 mil em outubro de 2020 (BIAZZI, 2021).

A pandemia, indubitavelmente aumentou essa estatística que, catapultada pela hiperconectividade, propiciou uma incrível velocidade de transmissão e recepção de notícias sobre o mundo e, em especial, no caso da pandemia, trouxe não somente informações e orientações importantes no sentido de prevenção do mal, mas, infelizmente, também tem sido veículo de divulgação das especulações informais das fake news. A vida “instagramável”, não somente afaga os egos das pessoas que, neste caso, preferem divulgar a aparência em detrimento da essência, mas também termina sendo um mecanismo de defesa para as pessoas oprimidas pela pressão do medo de contraírem a doença, pelas perdas de entes queridos. Instalou-se um estado de hiper vigilância sobre sinais externos de sucesso e felicidade que podem motivar alguns, mas com certeza também tem o poder de trazer um sentimento de frustração e de fracasso em muitos. Neste particular as novas gerações são as mais vulneráveis aos sintomas de insanidade mental, uma vez que ainda tem sua competência cognitiva em desenvolvimento.

Esta verdadeira chaga contemporânea vem só reforçar a necessidade de que a humanidade se volte com mais afinco ao conhecimento e à prática de valores humanos, uma vez que estes não somente fortalecem a alma humana, mas, e sobretudo, consolidam laços afetivos capazes de amparar solidariamente a convivência entre as pessoas. Isto, a meu ver, deveria ser item prioritário na família, nas escolas e nas organizações corporativas. Destaco a família e a escola por ser nestas que acontecem, por excelência, os processos de autoconhecimento e autodesenvolvimento do ser humano.

Qualquer agrupamento de pessoas onde se ensina e se alimenta valores humanos como a cooperação, a liberdade, a felicidade, a honestidade, a humildade, o amor, a paz, o respeito, a responsabilidade, a simplicidade, a tolerância, a unidade, a paz, dentre outros, terá não somente mais possibilidade de vencer, mas de sair fortalecido física e espiritualmente de enfrentamentos como este.

Como educador posso atestar os benefícios de um programa de valores humanos, uma vez que na escola onde trabalho aplica-se curricularmente a abordagem do Vivendo Valores na EducaçãoVIVE, coordenado internacionalmente pela Association for Living Values International - ALIVE e no Brasil pela Organização Brahma Kumaris - uma rede de mais de 8.500 centros de meditação Raja Yoga estabelecidos em 110 países e que ensina e difunde o amor, a autocompaixão e a harmonia entre o ser e o universo. A aplicação do programa VIVE na escola Centro de Educação Internacional (CEI-COC), em São Luis-MA, tem contribuído, em especial, para com a harmonia e cooperação entre os alunos, professores e comunidade escolar - incluindo aqui os pais, uma vez que se observa que quanto mais sistêmica é a difusão de práticas humanitárias mais se multiplicam seus resultados.

Resiliência na Pandemia: Uma perspectiva positiva É alentador registrar que tudo na vida tem dois lados. O sofrimento, os dados negativos e os desafios que foram e estão sendo enfrentados no combate desta pandemia histórica acionaram esforços de toda espécie para não somente resolver as situações, mas para nos deixar mais fortes do que éramos antes.

Como foi dito anteriormente, criar resiliência nos corpos, nas mentes e nas ciências, oferece a sensação de que tem havido um considerável desenvolvimento em alguns aspectos da vida humana. Ainda é cedo para se fazer uma contabilidade neste sentido, mas já se pode afirmar pelo menos alguns avanços:

• Descobertas e invenções nas ciências da saúde, como a própria vacina.

• A possibilidade de se trabalhar e/ou estudar em sistemas híbridos.

• A valorização dos cuidados com a saúde, em especial nas áreas que cobrem a saúde mental.

• Significativos incrementos nos sistemas de TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação).

• Tecnologias disruptivas que propiciam oportunidades de criação para soluções inovadoras em saúde mental com alto grau de escalabilidade.

• A valorização dos contatos sociais presenciais.

• A intensificação das agendas voltadas para as relações ecológicas entre o humano e os reinos circundantes, uma vez que ao que consta o coronavírus teria sido originado da má gestão desta relação.

Considerações finais

Sabe-se que não foi e nem será a última vez que a humanidade atravessa catástrofes deste tipo, a exemplo do que aconteceu com a gripe espanhola, que foi uma pandemia que aconteceu entre 1918 e 1919, atingindo todos os continentes e deixando um saldo de, no mínimo, 50 milhões de mortos; a peste negra que foi uma pandemia que se estendeu de 1347 a 1353 e causou a morte de 50 milhões de pessoas na Europa, e outras tragédias que acompanham a história deste planeta desde sempre, indubitavelmente a humanidade tem atravessado uma dolorida chaga de dimensão planetária com a ocorrência desta pandemia da Covid19. Se isto não foi suficiente para acordar as mentes e os corações da humanidade com relação ao seu amadurecimento em defesa da vida, há de se esperar infelizmente, outras ocorrências futuras do mesmo modo que, igualmente, a nossa resiliência - pelo menos - não nos deixe cometer erros já cometidos.

Referências

AMÉRICO, T. Venda de antidepressivos cresce 17% durante pandemia no Brasil. CNN Brasil, São Paulo, 23 fev. 2021. Saúde. Disponível em: http://bit. ly/42pQgna. Acesso em: 21 mar. 2023.

BENTOLILA, S. Proteção da saúde mental e atenção psicossocial: uma estratégia imprescindível para a redução do risco de desastres. Aula ministrada no Doutorado em Psicologia da UCES, janeiro 2022.

BIAZZI, R. Procura por atendimento psicológico e psiquiátrico nos serviços da Prefeitura de SP mais do que dobra durante a pandemia. Portal G1, São Paulo, 17 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/02/17/procura-por-atendimento-psicologico-e-psiquiatrico-nos-servicos-da-prefeitura-de-sp-mais-que-dobra-durante-a-pandemia. ghtml. Acesso em: 20 mar. 2023.

BRANDÃO, J. M. et al, A construção do conceito de resiliência em psicologia: discutindo as origens. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 21 n. 49, p. 263-271, mai/ago. 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-863X2011000200014.

DIAS, I. C. et al . Os impactos da pandemia de COVID-19 na saúde mental da população. Revista Eletrônica Acervo Científico, v. 30, p. 1-7, jul. 2021. DOI: https://doi.org/10.25248/REAC.e8218.2021.

IEPE - Instituto de Educação por Experiência e Prática. Mundo BANI: o que é e como pode impactar a sua rotina? Disponível em: https://www.ieepeducacao. com.br/mundo-bani/. Acesso em: 20 mar. 2023.

MOTTA, D. A. Expectativas & devaneios pós-pandemia. Blue Management Institute. 10. Junho de 2021. Disponível em: https://bit.ly/402VX92. Acesso em: 20 de mar. 2023.

CONSIDERAÇÕES SOBRE INCLUSÃO E CONVIVÊNCIA COM O DIFERENTE

A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA SISTÊMICA

Marcelo Campos

Durante no ano de 2021, tive a oportunidade de atuar durante alguns meses como professor temporário de História numa escola municipal de Vinhedo-SP para classes do 6º e 7º anos. Os alunos eram moradores, em sua maioria, do bairro Capela, um dos bairros mais pobres da cidade. Isso já seria desafiador em condições normais. No segundo ano da pandemia de Covid-19, então, foi especialmente complicado. Os alunos praticamente não tiveram aulas em 2020, ficaram isolados em casa e passaram por um processo de aprovação automática. Assim, meus alunos do 6º ano eram, na verdade, egressos do 4º ano que haviam automaticamente sido aprovados no 5º ano. E meus alunos do 7º ano haviam de fato estudado até o 5º ano.

O afastamento do ambiente escolar havia quebrado o ritmo de estudos e a interação com os conteúdos didáticos. Eles estavam, na melhor das hipóteses, “enferrujados”. Como se isso não bastasse, muitos deles viveram intensos dramas pessoais e familiares durante esse período: alguns poucos contraíram a doença. Muitos deles conviveram com a Covid-19 dentro de suas casas com parentes que enfrentaram diferentes níveis de contaminação e adoecimento. Vários deles passaram por internação hospitalar, e alguns parentes faleceram. Algumas histórias eram dramáticas: um dos alunos assistiu ao esfacelamento do núcleo familiar, pois seu pai e sua mãe faleceram, e ele passou a viver com outros parentes.

Houve ainda outra dimensão importante de problemas: muitas famílias foram submetidas a um stress incapacitante. A necessidade de isolamento complicou sobremaneira o convívio em diversos lares e muitas pessoas perderam o emprego em virtude do desaquecimento da economia. Tudo isso aumentou o número de separações e a violência doméstica, impactando os alunos. Numa das classes havia, ainda, dois irmãos venezuelanos cuja família decidiu emigrar para o Brasil em meio à intensa crise humanitária que assolou aquele país.

Quando assumi, em abril, a rede municipal estava operando remotamente sem atendimento presencial: os familiares dos estudantes retiravam, semanalmente, uma cartilha fotocopiada com as tarefas das diferentes disciplinas. Os alunos respondiam às questões e o material era devolvido na escola na semana seguinte. Alguns docentes disponibilizaram seu telefone e Whatsapp para tirar dúvidas dos alunos. Ainda assim, o contato era difícil, e uma quantidade expressiva de alunos não respondia aos questionários ou então os enviava preenchidos de qualquer jeito.

Nas semanas seguintes, os professores passaram a oferecer aulas on-line numa plataforma contratada pela rede. Houve um pequeno progresso que atingiu desigualmente os alunos: nem todos tinham as condições necessárias para acompanhar as aulas on-line (computador ou celular, sinal de internet). Na sequência, houve um primeiro formato de atendimento presencial facultativo: as classes foram divididas em três turmas que se alternavam semanalmente para assistir às aulas na escola. Como cerca de metade das famílias optou por manter seus filhos em casa, foi um momento em que raramente havia mais de quatro alunos na classe. Em vários momentos, ofereci aulas particulares para um único aluno.

Finalmente, numa iniciativa que foi então muito criticada, a administração municipal rapidamente elevou o número de alunos que

podiam participar das aulas presenciais com a meta de retomar a integralidade das classes até outubro.

Todo esse processo de retomada das aulas em classes presenciais foi bastante turbulento: os alunos estavam, num primeiro momento, bastante incomodados com as restrições e o esvaziamento das classes. Estavam retornando com a expectativa de retomar o convívio com os colegas e ficaram bastante frustrados no formato inicial de retorno, pois havia poucos alunos na classe e de forma muito inconstante (uma semana na escola, duas semanas em casa). Havia um segundo problema: o stress acumulado num longo período de isolamento. Os alunos voltaram à escola com uma enorme carência por interação e manifestação. Estavam ansiosos por narrar o que havia acontecido e receber atenção. Toda essa energia represada se convertia, então, em sons e agitação.

Por seu lado, os professores também retornaram à escola profundamente estressados. Muitos também viveram dramas familiares com a Covid-19. A maioria estava insegura e incomodada com o retorno presencial. Os encontros de horas de trabalho pedagógico coletivo praticamente se converteram em sessões de terapia em grupo. Numa sessão, um dos profissionais chorou amargamente ao relatar que morava sozinho, estava estressado com o isolamento e temia morrer.

Assim, muitos docentes não estavam em condições de dar conta da carência por acolhimento que os alunos demandavam. O uso de máscaras e face shield e as janelas e portas abertas durante a aula criavam um ambiente de ruído e de imensa dificuldade de comunicação. Era difícil ouvir os alunos. Era necessário falar mais alto que o normal para ser minimamente entendido. Isso pode parecer irrelevante, mas passar quatro horas ministrando aulas nessas condições é esgotante e incapacitador.

Nestas condições, não fazia muito sentido investir numa estratégia

exclusivamente conteudista. Não havia um cenário favorável para compensar os atrasos, nem mesmo para dar conta de cumprir o planejamento estabelecido. Eu optei então por fazer uma experiência de dedicar algumas aulas para uma “roda de diálogo”. Abri um espaço para reunir os alunos numa roda e conversarmos um pouco sobre as dificuldades deles. Como mencionei, estava lidando com estudantes do 6º e 7º anos, uma faixa etária entre 12 e 15 anos. As rodas tiveram efeitos muito distintos. Algumas turmas receberam muito bem a experiência e logo pediram novos encontros. Algumas turmas revelaram uma enorme timidez e dificuldade de interação. Não houve tempo para lidar com tudo que surgiu. Acabei centrando minha atenção num elemento que esteve presente, em diferentes níveis, em todas turmas: a sensação de exclusão. De maneira geral, a questão dizia respeito às próprias classes: neste novo cenário de volta gradual às aulas, muitas vezes afastados dos amigos regulares, de sua “turma”, alguns alunos se sentiram excluídos em algum grau, experimentando diferentes graus de dificuldade para interagir com as outras pessoas da classe. Essas crianças, já fragilizadas pelos conflitos familiares, pelo ambiente de restrições à mobilidade e, agora, pelas enormes restrições do ambiente escolar, responderam ao novo cenário com duas estratégias básicas: isolamento e violência.

Nas “rodas”, os alunos foram incentivados a falar sobre suas dificuldades. Bastaram alguns poucos relatos para que diversos alunos se identificassem, comentando que também se sentiam assim. Dessa forma, foi possível humanizar os sentimentos. Houve crianças que se confessaram mais aliviadas por ver que os outros membros da classe passavam por dificuldades semelhantes. Uma situação, numa classe do 6º ano, foi bastante emblemática: quando posicionamos as cadeiras em forma de roda para a dinâmica, uma aluna preferiu sentar-se no fundo da classe. Havia ficado insegura com a proposta de uma conversa sobre as dificuldades de cada um. Comentei que ela poderia ficar onde estava,

se assim desejasse, mas que sua presença seria importante para o sucesso do diálogo, ainda que fosse apenas para ouvir os colegas. Então duas alunas pediram permissão para conversar com ela. Foram até onde estava sentada e a trouxeram de mãos dadas. Criou-se imediatamente um clima de empatia e pertencimento.

Numa classe do 7º ano, havia uma questão mais pontual: duas alunas discutiam furiosamente com uma dupla de alunos. Na classe “cheia”, eles nunca tinham contato, mas agora, no rodízio de turmas imposto pelas restrições, eles compunham mais da metade da turma em sala. Formada a roda, foi difícil negociar um espaço para se ouvirem mutuamente. Os dois lados trocavam todo tipo de acusação, e a situação parecia insolúvel. Eu pedi então que cada um falasse um pouco de suas dificuldades em casa. Uma das garotas relatou um cenário familiar difícil, com o pai desempregado, e um dos alunos “encrenqueiro” descreveu o cenário violento da rua onde morava. Seu irmão mais velho integrava uma gangue que se envolvia constantemente em brigas. Isso tinha um lado vantajoso, em que algumas pessoas o temiam por causa do irmão, mas também tinha seus problemas: pessoas que haviam sido agredidas pelo seu irmão se vingaram batendo nele. Esses alunos, apesar de integrarem a mesma classe, não tinham praticamente contato anterior à retomada das aulas presenciais. Ao saberem um pouco mais sobre o outro, naturalmente se tornaram mais empáticos. Num encontro posterior comentaram que “ainda se desentendiam”, mas agora também conseguiam conversar e até ficavam juntos no intervalo do recreio.

Compartilhei esta experiência como introdução a uma reflexão sobre as dinâmicas psíquicas e sociais que conduzem à exclusão do outro, seja dentro da família, seja nos ambientes sociais em que vivemos. O que faz com que, em algum momento, a convivência com o outro se torne intolerável para nós?

A mecânica da exclusão

Numa perspectiva sistêmica, entendemos que a qualidade das relações é construída a partir de três princípios básicos: o pertencimento, a hierarquia (ordem) e a dinâmica de trocas.

Sentimos essas três necessidades com a premência de impulsosoureaçõesinstintivas.Elasnossubjugamaforças quenosdesafiam,exigemobediência,coagemecontrolam. Elaslimitamasnossasescolhasenosimpingem,queiramos ou não, objetivos que entram em conflito com os nossos desejoseprazerespessoais(HELLINGER,2008,p.18).

O primeiro deles, a sensação de pertencimento, é o mais visceral: somos seres sociais. Nossa própria sobrevivência depende do ato de estar inserido num grupo. A inserção social, mais do que um atributo cultural, é um imperativo instintivo. Necessitamos do grupo para nos sentirmos seguros e satisfazer nossas necessidades básicas. Nossa própria personalidade é construída na interação com o outro. As necessidades de crescimento e felicidade individual não podem ser supridas sem primeiro satisfazermos a necessidade mais básica da conexão humana.

Sem laços de amor e carinho com os outros, não conseguimos alcançar o nosso pleno potencial como seres humanos. Segundo o psicanalista Heinz Kohut, o “ato de pertencer” é uma das principais necessidades do self. Ele define o ato de pertencer como a sensação de ser um “humano entre seres humanos”, o que nos faz sentir uma conexão com outras pessoas. Segundo ele, a falta de pertencimento é uma das principais causas dos problemas de saúde mental (NEFF, 2017, p. 5).

Os grupos sociais impõem regras a seus integrantes. Valoriza-se, de forma especial, a obediência e a fidelidade aos valores defendidos pelo grupo. Isso é facilmente perceptível numa empresa ou numa instituição religiosa, mas também é uma dinâmica presente

em nosso grupo mais fundamental, a família. A comunidade familiar se estrutura a partir de laços de sangue. A habitação comum e os laços afetivos conduzem a uma “comunidade de pensamento e ideais” (TONNIES, 1995, p. 239; WEBER 1973, p. 140).

Desde a concepção, passamos a interagir com os valores e regras que estruturam o grupo familiar. A aceitação desses valores e sua observância em nossa vida diária condicionam, em grande medida, o nível de pertencimento que o indivíduo experimenta em relação ao grupo. Assim, de forma inconsciente, a introjeção dos valores do grupo faz com que o indivíduo experimente, em sua consciência pessoal, uma sensação de leveza (inocência, boa consciência) toda vez que vive conforme estas regras e uma sensação de culpa (má consciência) sempre que as desrespeita de alguma forma.

Isso ameaça ou prejudica os relacionamentos, e a pessoa sente-se culpada, mas quando beneficia o grupo, sente-se livredeculpaouinocente.Chamamosdeconsciênciapessoal nossa experiência de culpa ou inocência, isto é, o que beneficia ou prejudica relacionamentos. Portanto, os sentimentosdeculpaeinocênciasão,basicamente,fenômenos sociais que nem sempre nos impelem para valores morais superiores.Aocontrário,ligando-nosfirmementeaosgrupos necessáriosànossasobrevivência,ossentimentosdeculpa e inocência muitas vezes nos cegam para o bem e o mal (HELLINGER,2008,p.18).

O psiquiatra Böszörményi-Nagy chama nossa fidelidade inconsciente aos valores familiares de “lealdade invisível”. A lealdade pode ser determinada em termos morais e psicológicos. É estabelecida entre os membros de uma família, que ficam conectados às solicitações também inconscientes de seus antepassados,

conduzindo-os a uma fidelidade que muitas vezes vai contra seus desejos. É constituída com base na formação de mitos e segredos e é transmitida de uma geração para outra. E a não observância das obrigações geradas por esse laço cria sentimentos de culpa (NAGY, SPARK, 1983).

Uma forma recorrente de manifestar lealdade aos valores familiares é através de dinâmicas de exclusão. O ato de afastar ou excluir tudo aquilo que é diferente ou contrário a esses valores (ou traços identitários, como opção sexual ou grupo étnico) reflete, em princípio, o desejo de proteger o grupo na medida que o diferente e/ ou contrário é interpretado como uma ameaça. Assim, toda vez que o indivíduo exclui uma “ameaça”, alguém que tenha um comportamento diferente ou contrário aos seus valores familiares, ele experimenta a sensação de que seu direito de pertencer ao grupo ficou reforçado. Com esse incentivo inconsciente, a pessoa tende a repetir esse comportamento. Essa dinâmica tende a se reproduzir em outros grupos sociais: instituições religiosas, partidos políticos e até agremiações esportivas: “Tudo o que abala as tradições é sentido como ameaça, tanto pela consciência individual quanto pela consciência do grupo, se é que podemos diferenciar as duas” (HELLINGER, 2007, p. 11).

De maneira geral, o mecanismo de exclusão é acionado quando o indivíduo, muitas vezes de forma inconsciente, sente seu direito de pertencimento de alguma forma ameaçado. Essa dinâmica inconsciente é tão poderosa que tende a se sobrepor a considerações racionais e até mesmo aos desejos pessoais do indivíduo. Num extremo, a sensação de culpa originada pela sensação de infidelidade ao grupo familiar pode desencadear um processo de autopunição, incluindo sua somatização na forma de problemas de saúde física ou mental. E, naturalmente, condiciona a própria capacidade de leitura e interpretação do mundo que cerca o indivíduo.

Aconsciênciaquedefendeanossavinculaçãonãosesobrepõeàsfalsascrençasesuperstiçõesdosgruposaquepertencemos, guiando-nos rumo a uma verdade superior. Ao contrário,favoreceeconservaessascrenças,tornandodifícilparanósperceber,conhecererecordaroqueelaproíbe.

O vínculo e a pertinência, tão necessários à nossa sobrevivência e bem-estar, preceituam também o que devemos perceber,crereconhecer(HELLINGER2008,p.19).

Conhecer essas dinâmicas sistêmicas inconscientes e transgeracionais nos ajuda a compreender as razões sociais dos processos de exclusão em nossa sociedade. De maneira geral, o que se observa é uma tendência bem-intencionada de impor uma racionalidade da inclusão, seguida da demonização do excluído e de sua punição exemplar, que são exatamente as estratégias utilizadas por quem exclui. No afã de condenar a exclusão, reproduzimos sua forma de agir. Essa postura vingadora de proteger a vítima e perseguir o perpetrador é apenas o outro extremo da mesma dinâmica. Toda forma de não aceitação, toda indignação com a injustiça, por mais bem-intencionada que seja, segue funcionando como motor da exclusão.

(Quandoestouindignado)Eumecolocoacimadecriminoso e de vítima, eu me sinto mais do que Deus. Eu quero o maiorcastigoparaocriminoso,eeusintoquesousuperior àvítima,equeeuvouimpedirtudoqueeupuder,atéaaproximação entre vítima e criminoso. Quer dizer que quando meindignosouumnovocriminoso(CHAMPETIER,2021).

Apenas a aceitação do outro tal como é, com suas limitações, suas diferenças e seu potencial, pode de fato criar e fortalecer uma convivência inclusiva. Nesse processo de olhar empaticamente para o outro, sem julgamento, damo-nos conta de que temos um olhar exagerado para nossa própria dor, e que normalmente ignoramos a dor do outro. Muitas vezes essa dor é semelhante à nossa.

Esse olhar mais inclusivo permite compreender que o diferente, este outro tão temido, está na verdadeira e sistemicamente a serviço do crescimento do sistema familiar ou do sistema social a qual estamos vinculados. Nossa convivência social é profundamente dinâmica, e o sistema precisa regularmente se ajustar às novas condições externas para seguir existindo com sucesso. É uma espécie de homeostase sistêmica que leva o sistema a se adaptar para recuperar o equilíbrio. Assim, muitas vezes os membros “difíceis” do sistema, as “ovelhas negras” do grupo, estão de fato presentes para introduzir mudanças nos valores e regras vigentes, para permitir a evolução do grupo.

As chamadas “ovelhas negras” da família são, na verdade, caçadores natos de caminhos de libertação para a árvore genealógica.Osmembrosdeumaárvorequenãoseadaptam às normas ou tradições do sistema familiar, aqueles que desde pequenos procuravam constantemente revolucionarascrenças,indonacontramãodoscaminhosmarcados pelas tradições familiares, aqueles criticados, julgados e mesmo rejeitados, esses, geralmente são os chamados a libertar a árvore de histórias repetitivas que frustram gerações inteiras. (...) Graças a estes membros, as nossas árvores renovam as suas raízes. Sua rebeldia é terra fértil, sua loucura é água que nutre, sua teimosia é novo ar, sua paixãoéfogoquevoltaaacenderocoraçãodosancestrais (HELLINGERs/d).

A primeira movimentação do grupo, no entanto, instintivamente será resistir. Toda pressão para mudar é sentida, inicialmente, como ameaça à existência do grupo, e então vigorosamente combatida. Imaginemos, por exemplo, uma família ou grupo social, onde todos os integrantes professam a mesma religião. Essa uniformidade é, num primeiro momento, confortável e fator de equilíbrio social, além de principal elemento de identidade social. Então, num dado momento, alguém do grupo se converte a outra

fé ou então se apaixona e deseja se casar com um praticante de outro credo, estranho em alguma medida aos valores e crenças do grupo. Essa pobre pessoa, muito provavelmente, logo vai sentir a ira divina de sua família ou grupo. Será taxada de herege, traidora dos valores familiares e muito provavelmente será obrigada a se afastar.

Se a crise inicial for superada, a convivência com o “herege” vai ensinar essa família ou grupo a ser mais tolerante em questões religiosas. Isso representa, de fato, uma evolução dos valores vigentes, um aperfeiçoamento. Livres do “monopólio religioso” então vigente, outros integrantes do grupo poderão procurar livremente outras respostas para sua busca espiritual.

No entanto, o processo todo implica um esforço de adaptação e mudança para aceitar e conviver com novos paradigmas, e isso é visto, normalmente, como um risco de perda de identidade, de “deixar de ser o que sou”.

Bert Hellinger relata um trabalho de constelação sistêmica realizado durante um encontro entre palestinos e israelenses. O tema, promovido por duas organizações, Dan Bar-On, israelense, e Sami Adwan, árabe, era justamente o de encontrar formas de promover o diálogo entre os dois grupos historicamente antagônicos.

A constelação sistêmica é uma técnica terapêutica, normalmente feita em grupo, centrada não em falar sobre um tema, como acontece nas abordagens dialógicas, mas em realizar a sua representação lúdica e projecional para ser “visto e sentido”. Isso é feito posicionando-se pessoas como representantes de um tema, valor ou de outra pessoa num espaço dado. Alguns palestinos foram convidados a representarem israelenses. O mesmo foi feito com alguns israelenses. Enquanto “representantes”, os dois grupos

imediatamente ficaram antagônicos e começaram a se olhar com desconfiança. Hellinger então pediu que uma nova pessoa ficasse deitada no chão, representando um morto, uma vítima de violência. O grupo de representantes palestinos imediatamente assumiu que se tratasse de um palestino, e se ajoelharam e começaram a chorar. Os israelenses, por sua vez, entenderam que a vítima era um judeu, e também começaram a chorar por ela. Depois de algum tempo, os dois grupos se deram conta que compartilhavam a mesma dor. Então finalmente conseguiram olhar de forma mais amorosa uns para os outros.

Esse seria o movimento final da reconciliação: ambos os ladoscontemplamosofrimentodaspessoasdeambosos lados.Elesfazemolutoemcomum.Emseguida,olhampara a frente e consideram o que podem fazer no futuro, juntos eembenefíciomútuosemolharparatrás,semfazernovas exigências.Nessabasepodemempreenderalgoquefavoreçaambososlados.Issoeupudeexperimentartambémem outroscontextos:sóexistereconciliaçãoquandoambosos ladoschoramemcomumpeloquefoiperdido(HELLINGER, 2007,p.76).

Nas “rodas de conversa”, sempre que o ambiente permitiu, realizei com os alunos duas dinâmicas muito simples e eficientes: cada participante é orientado para olhar na direção do colega sentado a seu lado e dizer: “Eu vejo você. Você também faz parte deste grupo”. Quando algo difícil era compartilhado, os participantes diziam “agora eu vejo a sua dor”. São duas dinâmicas que oferecem a experiência de pertencimento e acolhimento, necessidades afetivas básicas de todos nós, e base de um relacionamento saudável: “Por uma atmosfera de valores, entendemos relacionamentos éticos permeando toda a comunidade escolar em suas múltiplas relações” (NONATO JR., 2009, p. 51).

Considerações finais

O exercício de aceitar o outro tal como ele é e sem julgamentos é a mola transformadora que permite criar um ambiente saudável e pacífico de convivência social. Todo esforço de impor valores e de forçar que as pessoas se adéquem gera tensão, manipulação e conflito. A construção de regras comuns e uniformes deve ocorrer num ambiente democrático em que o outro possa ser ouvido e ter suas especificidades respeitadas.

Devemos ter a consciência da necessidade sistêmica da presença do “outro”. Diante do diferente, somos desafiados a questionar nossas certezas e nossa concepção natural de que “apenas este caminho é o certo, apenas este grupo é bom”. Esse questionamento abre espaço para aprendizado e crescimento pessoal e do grupo. Todos aqueles que se insurgem contra as regras estabelecidas e que num primeiro momento são violentamente reprimidos, na verdade ajudam a aperfeiçoar as regras que governam um grupo social.

O aluno “difícil”, que tumultua a programação tão meticulosa que o professor elaborou para uma aula, muitas vezes nos ajuda a questionar o real valor de uma lógica exclusivamente baseada em “rendimento de entrega de conteúdo” e a pensar numa dinâmica que acolha melhor as necessidades reais de aprendizado dos alunos (e, na verdade, do próprio professor) para lidarem com os desafios que a vida lhes oferece. Quando compreendemos isso podemos olhar para ele e dizer: “eu agradeço por você estar presente. Se não fosse por você, eu não teria aprendido isso”.

Esse olhar carinhoso no sentido de estimular, valorizar e praticar a inclusão está perfeitamente alinhado, creio eu, com a proposta de aprendizado baseado em valores preconizada pelo Vivendo Valores na Educação - VIVE.

Dentro da comunidade de aprendizagem baseada em

valores,relacionamentospositivossedesenvolvemapartir do cuidado que todos os envolvidos têm uns pelos outros” (VIVE, 2022) e com o princípio da pedagogia freiriana de que“orespeitoàautonomiaeàdignidadedecadauméum imperativoéticoenãoumfavorquepodemosounãoconcederunsaosoutros”(NONATOJR.,2009,p.42).

Referências

CHAMPETIER, Brigitte. La indignação é útil? La indignação é adulta? Blog, 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/ photo/?fbid=422262389285806&set=a.213381896840524.

HELLINGER, Bert. A Simetria Oculta do Amor. São Paulo: Cultrix, 2008.

HELLINGER, Bert. Conflito e Paz: Uma Resposta. São Paulo: Cultrix, 2007.

HELLINGER, Bert. As chamadas ovelhas negras. S/d. Disponível em: https:// www.pensador.com/frase/MjUxODc4NA/.

NAGY, I. B. SPARK, G. M. Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1983.

NEFF, Kristin. Autocompaixão: Pare de se torturar e deixe a insegurança pra trás. Teresópolis: Lucida Letra, 2017.

NONATO JÚNIOR, R. Caminhos Filosóficos da Educação Contemporânea: os paradigmas atuais e as práticas escolares com valores. In: BARROS, P. S; NONATO JÚNIOR, R. (Orgs.). Educação e valores humanos no Brasil: trajetórias, caminhos e registros do Programa Vivendo Valores na Educação. São Paulo: Ed. Brahma Kumaris, 2009.

TÖNNIES, F. Comunidade e sociedade: textos selecionados. In: MIRANDA, O. (Org.). Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo: Editora da USP, 1995. p. 231-342.

VIVE. Visão geral e princípios. Disponível em: <https://vivendovalores.org.br/ institucional/visao-e-principios/>. Acesso em: 20 set. 2022.

WEBER, M. Comunidade e sociedade como estruturas de socialização. In: FERNANDES, F. (Org.). Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1973, p. 140-143.

A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E

EDUCAÇÃO EM TEMAS SENSÍVEIS: A NECESSIDADE DE UMA ATMOSFERA DE VALORES EM SALA DE AULA

Paulo Sergio Barros

Bruno Falcão Batista

O ensino-aprendizagem levado a cabo durante a pandemia causada pela covid-19, sobretudo durante os anos de 2020 e 2021, gerou incontestáveis influências na nossa sociabilidade (confinamento e distanciamento social), nosso trabalho (remoto, domiciliar), assim como em outros aspectos do nosso cotidiano, como incertezas, medos, solidão e outras emoções que emergiam com outros significados, intensidades e dúvidas a respeito do porvir não só relacionado à educação, mas à condição humana.

A pandemia foi uma experiência inédita para nós que vivemos no século XXI. O filósofo e historiador francês Edgar Morin destacou em algumas obras (2001, 2011) que as pandemias/epidemias, assim como as armas nucleares, a degradação da biosfera, os efeitos do capitalismo desenfreado, os fanatismos ameaçadores, as ditaduras implacáveis e possíveis novos totalitarismos e as guerras de extermínio são ameaças reais à existência da espécie humana.

A realidade pandêmica tomou-nos de surpresa, “impondo-nos” uma quarentena com isolamento social e os consequentes reflexos nos campos da economia, da educação, do entretenimento, das emoções, do psíquico etc. Como se não nos bastasse a gravidade da pandemia, fomos envolvidos por uma onda de notícias e informações falsas e negacionistas e negligência do poder

público paralelamente ao aumento da contaminação e de óbitos, afetando pessoas conhecidas, colegas de trabalho, estudantes e familiares.

A quarentena, o isolamento social, o medo e todos as emoções inexoráveis ao contexto pandêmico provocaram, subitamente, mudanças de hábitos na proteção e assepsia do corpo, objetos, alimentação, contato com pessoas, uma nova relação com o espaço e relacionamentos domésticos e a “descoberta” e incremento do uso de ambientes virtuais para o trabalho, a comunicação, entretenimento etc.

No âmbito educacional, involuntariamente, adotamos uma realidade de educação remota de emergência e o uso de diferentes tecnologias que, embora já existissem no âmbito da educação a distância, passaram a ser, para muitos de nós, uma novidade com a qual não tivemos outra opção senão a de usá-la de imediato, aprendendo a manejá-la com tutoriais e a ajuda de colegas e estudantes mais alinhados à tecnológica.

A partir do nosso conhecimento da realidade da política pública educacional brasileira, bem como da nossa experiência com docência e gestão escolar, a imersão sem preparo na educação virtual excluiu mais que incluiu brasileiros e brasileiras dos processos de ensino-aprendizagem durante esse período. Em um país desigual como o Brasil, a baixa cobertura e acesso à internet, somado aos altos custos dos materiais tecnológicos necessários, construíram um déficit que ainda não sabemos mensurar sua real dimensão.

Visto da perspectiva docente, adotamos, subitamente, um modelo de educação virtual sem estarmos preparados pedagógica e tecnologicamente para tal. Escolas e professores realizaram experimentos que dificilmente seriam aceitos em tempos não pandêmicos. Tivemos que fazer de nossas casas salas de aula e,

ademais de desenvolver habilidades tecnológicas e metodológicas, precisamos aprender mais a lidar com as nossas emoções e as dos estudantes no seio de uma realidade educacional que nos demandava paciência, respeito, tolerância, compreensão e flexibilidade em salas virtuais pouco frequentadas, (por diferentes motivos), quase sempre silenciosas e com presentes identificados apenas pelo registro dos nomes e imagens (fotos e, em grande parte, figuras sem relação nenhuma com a identidade física dos estudantes).

Para os estudantes, a suspensão das aulas presenciais afetou sensivelmente a qualidade do ensino-aprendizagem. Para alguns significou, literalmente, interromper o estudo, pois não participaram das aulas remotas, tampouco procuraram alternativas oferecidas por algumas escolas como oferecer atividades impressas para os excluídos digitais.

Este texto trata de experiências vivenciadas pelos autores (em escolas públicas do Ceará) com educação remota durante o ano de 2020 e 2021, com estudantes do Ensino Fundamental e Médio. Embora cada escola apresente uma realidade peculiar, cremos que a narrativa descreve, de certa forma, a realidade experienciada em muitas escolas por muitos professores, gestores e estudantes brasileiros, sobretudo em escolas públicas, as mais vulneráveis aos impactos causados pela pandemia.

Educação e exclusão no contexto pandêmico

Conforme o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2020b), a pandemia não é cega e teve alvos “privilegiados”. A quarentena foi discriminatória e mais difícil para uns grupos sociais que para outros (SANTOS, 2020a). Com efeito, dentre esses grupos discriminados e vulneráveis estava parte considerável dos estudantes da escola pública, em grande medida filhos de assalariados, desempregados ou subempregados, severamente afetados

pelos impactos que a pandemia causou na economia brasileira.

A qualidade do ensino-aprendizagem foi sensivelmente afetada. Para alguns estudantes significou, literalmente, interromper o estudo, pois não participaram das aulas remotas, tampouco procuraram alternativas oferecidas por algumas escolas (atividades impressas, por exemplo) para os que não tinham acesso à tecnologia necessária para as aulas. A exclusão digital apresentava-se como uma das facetas da desigualdade e injustiça social, a mais severa “comorbidade” no contexto pandêmico. A educação remota de emergência contribuiu para explicitar ainda mais esse panorama de exclusão e injustiças.

Do ponto de vista da sociabilidade, a pandemia também provocou na escola um choque nas formas de convivência como jamais visto. Algo muito particular entre os estudantes, como o toque nas formas de cumprimento, o compartilhar das emoções, palavras, copos, aparelhos de celular, por exemplo, deixou de existir no cotidiano de aprendizagem virtual. De fato, a comunicação virtual, ainda que apreciada pelas juventudes, não preencheu o vazio deixado pela atmosfera escolar criada nas suas sociabilidades cotidianas presenciais, mais efetivas e propulsoras de maior autoconhecimento, autoestima e aprendizagem.

Muitos estudantes viram-se confinados, distantes e circunscritos em ambientes domésticos, geralmente espaços restritos e divididos com familiares, dentre eles irmãos, também estudantes. O espaço limitado e inadequado e a falta de tecnologia necessária para que a aprendizagem se desenvolvesse de forma coerente explicitaram uma realidade excludente e propícia para aflorar toda sorte de emoções. O relato de um estudante de 16 anos, do segundo ano do Ensino Médio é ilustrativo: “A pandemia me arrasou, me deixou sem vontade de fazer nada: estudar, amar, me cuidar, às vezes até de viver”. O testemunho de outra estudante, de 17 anos, do terceiro ano do Ensino Médio, destaca que “ [...] a situação

econômica, o desemprego e o aumento das mortes influenciaram muitas pessoas, causando medo, ansiedade e cansaço mental”.

Através da comunicação rotineira nas aulas virtuais, assim como pelas eventuais reuniões entre professores e gestão escolar, obtínhamos informações sobre os ausentes. Sabíamos que muitos não estavam emocionalmente bem por razões como a ausência da escola, a exclusão digital, o desestímulo, casos de ansiedade e depressão, contaminação com a covid-19, luto na família, a necessidade de ter que procurar algum trabalho provisório para ajudar a família ou a mudança de cidade ou estado à procura de melhores condições de vida.

Temas sensíveis e educação em valores

A pandemia deve ser analisada como um momento histórico e social carregado de emoções, politicamente sensível e intelectualmente complexo. Gil e Camargo (2018) corroboram com essa interpretação ao refletir sobre o ensino de História e temas sensíveis. Temas como pandemia da covid-19, racismo, homofobia e outras violações dos direitos humanos estão presentes nos meios de comunicação e são objeto de controvérsia, são delicados e muitas vezes colocam o próprio professor em situações embaraçosas em relação aos conhecimentos, à metodologia e à interpretação ou em função das reações dos estudantes.

Visto por esse prisma, a educação em tempos de pandemia desencadeou uma gama de emoções que exigiu de nós, educadores, uma série de habilidades para lidar com uma realidade pedagógica, tecnológica e emocional inédita. O ensino-aprendizagem requeria de nós, a partir da história presente, educar para humanizar, aprender a conviver, a dialogar, a compreender a alteridade em seus processos culturais e emocionais (BARROS; DA COSTA, 2021).

Entendemos que a escola deve ser um lócus de debate sobre

esses temas, ainda que sejam permeados por traumas, injustiças, preconceitos e sofrimentos. O papel da educação é a compreensão dos processos históricos que tornaram possíveis conflitos, incertezas, injustiças e, a partir disso, permitir a reflexão sobre o cotidiano de forma problematizadora, convertendo-o em cognoscível e pertinente. Isso nos remete ao que propôs Delors (1996) para a educação para o século XXI. Ela deve tratar de ensinar a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Em um contexto sensível, os dois últimos são proeminentes, visto que dialogam em maior dimensão com a educação em valores humanos e para a construção de habilidades intrapessoais e interpessoais para o enfrentamento de momentos sensíveis.

Nossa formação acadêmica para a docência não nos preparou para lidar com as emoções subjacentes a temáticas sensíveis, tampouco para abordá-las a partir de um enfoque humano. No que tange à realidade pandêmica que vivemos, muitos educadores não se sentiram seguros ou estimulados a tratá-la como uma questão sensível e objeto de reflexão em sala de aula. A escola, conforme asseveram Barros e Da Costa (2021, p. 233), “não foi chamada a discutir, refletir e ouvir sobre os medos, os traumas, as injustiças, os preconceitos e os sofrimentos que subjazem as histórias imediatas no seio de tal realidade”.

Sobre o papel da escola no contexto pandêmico, Barros e Da Costa (2021) destacam alguns pontos para a nossa reflexão.

1. O ensino-aprendizagem deve considerar temáticas sensíveis como a pandemia, um evento que traspassava o social, o cultural, o histórico, o psicológico, o emocional etc. Portanto, é essencial a leitura, o debate, o intercâmbio de ideias e experiências, de forma que o tema fosse compreendido e abordado de maneira que encontrássemos estratégias adequadas para considerar as emoções que emergiam em seu contexto.

2. A educação em temas sensíveis faz parte da formação para

uma cidadania politicamente crítica, humanizada e planetária e envolve aspectos como questões sanitárias, justiça social, direitos humanos, assim como a empatia, a solidariedade, o respeito e a generosidade nos relacionamentos em uma perspectiva intercultural.

3. O ensino-aprendizagem durante a pandemia se centrou nos conteúdos curriculares tradicionais, correndo contra o “tempo perdido” para que os estudantes não fossem prejudicados cognitivamente e nas avaliações externas (SPAECE, SAEB, ENEM, vestibular). Dessa forma, descuidando-se ou mesmo negligenciando o mundo dos afetos e das emoções.

4. As transformações na circulação dos afetos no espaço educacional (controlados, mas também livres na esfera presencial) passaram a demandar preparo de professores e estudantes para a superação de seus limites e novas configurações em salas de aula virtuais. Esse novo formato de ensino-aprendizagem também deveria ter oferecido uma atmosfera de segurança e afeto na qual os sentimentos tivessem o poder de despertar a aprendizagem autônoma dos estudantes.

Esses afetos são denominados por Tillman e Colomina (2003) e Medeiros et al. (2018) de valores humanos. Incluem-se no conceito de competências socioemocionais, conforme a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2017). Entendemos que são seminais para a formação humana dos estudantes e constituem o que o Vivendo Valores na Educação - VIVE propõe como atmosfera de valores. De acordo com o VIVE, uma educação centrada nos valores humanos passa pela praticidade e pelo dinamismo na vida escolar e cotidiana dentro e fora da escola de forma que os estudantes possam fazer escolhas sociais e pessoais positivas e desenvolvam comportamentos e traços de personalidade baseados em valores que os transformem em cidadãos comprometidos com seus valores pessoais e com uma cultura de paz. A reflexão e a prática de valores humanos no currículo, assim como em outras

instâncias do fazer educação, cria uma atmosfera para que os estudantes desenvolvam habilidades conectadas a seu crescimento cognitivo, emocional e espiritual para que sejam capazes de comprometer-se a levar esses valores em suas vidas.

Uma atmosfera de valores é um ambiente afetivo, respeitoso e positivo na qual um indivíduo pode desenvolver-se e aprender. Um lócus onde os estudantes se sentem amados, respeitados, escutados, valorizados e seguros e desenvolvem habilidades pessoais, sociais e emocionais. Tal atmosfera incentiva os estudantes a refletir sobre os fatos sociais, o meio ambiente, as implicações práticas dos valores nos relacionamentos e entender que por trás das injustiças, das desigualdades sociais, dos conflitos, dos preconceitos e da devastação ambiental está a ausência dos valores humanos. No âmbito escolar essa atmosfera afeta todos os sujeitos envolvidos com afetos, emoções e valores que criam possibilidades para uma educação humanizadora e libertadora.

Contudo o grande desafio para os professores foi a realidade das salas virtuais nas quais se manifestavam distintas emoções como apatia, medo, solidão, incerteza etc. Provavelmente as mesmas emoções vividas pelos docentes. É possível que todos nós, professores e estudantes, quiséssemos, em muitos momentos, ser escutados, respeitados, compreendidos e acolhidos. Nesse sentido, a educação em valores não se apresentava como uma opção, mas como uma necessidade primordial para que os indivíduos se sentissem compreendidos, aceitos e em segurança nos percursos de ensino-aprendizagem. Se em contextos “normais” de educação, os valores humanos, as emoções e os afetos são relevantes para a aprendizagem, o desenvolvimento e os relacionamentos, em tempos sensíveis como os que vivemos, eram mais necessários.

Atmosfera de valores em espaços virtuais de aprendizagem

A escola como instituição social proporciona diferentes formas

de sociabilidade que envolvem conflitos, em suas várias facetas, e relações que expressam alegria, aprendizado, cooperação, afetividade etc. Essa realidade, conforme o direcionamento pedagógico que se dê a ela, torna-se experiências de ensino-aprendizagem holísticas que contribuem para um convívio compreensivo e intercultural com as diferenças.

Os comportamentos dos estudantes em ambientes convencionais e virtuais de aprendizagem são distintos. Os barulhos incômodos das salas de aula físicas foram, em grande medida, substituídos por ausências e silêncios incômodos nas salas virtuais. Nestas não enfrentamos as mesmas tensões emocionais dos conflitos cotidianos de uma escola de crianças e adolescentes, o que não quer dizer que elas inexistiram. De fato, expressaram-se através de preocupações, incertezas, cobranças, críticas etc. Concomitantemente, percebemos o incremento da solidariedade, da compreensão, da flexibilidade e do respeito com a situação do outro. Para Santos (2020b) e Morin (2021), a pandemia fomentou a comunhão, fortalecendo a nossa condição de ser social, humano. Não obstante as dificuldades nas interações pedagógicas, essa energia de comunhão, de solidariedade e de empatia foi essencial para criar uma atmosfera de valores nos espaços virtuais de aprendizagem.

Ressaltemos que isso passa, necessariamente, pelo interesse do educador e pelo projeto pedagógico da escola. A educação no contexto da pandemia demandou de cada instituição uma leitura adequada das emoções vividas por estudantes e professores no fazer educação. Maturana (2001) nos sugere que se a educação não se torna uma ação no espaço de vida cotidiano do estudante, a mesma não serve ao estudante. Podemos estender a reflexão do autor à realidade docente. Se não refletirmos sobre a história vivida com toda a sua complexidade, passaremos por um momento singular de nossas vidas e da humanidade sem aprendermos e compreendermos a dimensão do acontecido, das mudanças ocorridas e das necessárias novas formas de convivência interpessoal

na ação de ensino-aprendizagem. Assim a educação terá perdido parte de sua relevância por não ter sido pertinente ao momento histórico e às demandas da humanidade e por ter perdido a oportunidade de renovar-se e encontrar novas sendas para superar os parâmetros educacionais pautados na competitividade e na fomentação de injustiças e desigualdades típicas do modelo socioeconômico neoliberal.

Objetivando criar e manter uma atmosfera de valores no ambiente virtual de ensino-aprendizagem propúnhamos curtos diálogos, leitura de poemas, escutar uma canção ou um exercício de visualização criativa almejando a concentração, a observação e a compreensão de pensamentos e emoções. Era uma oportunidade para abrir espaços para sabermos sobre o bem-estar dos estudantes, de novidades, de experiências entusiasmantes, dos processos de realização das atividades pedagógicas e sobre as dúvidas e dificuldades inerentes à aprendizagem. Contudo, embora os estudantes apreciassem esses momentos, os poucos que compartilhavam tratavam da pandemia e de toda sorte de emoções relacionadas a ela: medo, insegurança, incerteza, apatia etc.

Para gestores escolares da educação pública, a imersão na educação virtual mostrou-se um tanto desafiadora. O trabalho pedagógico ficou voltado para organizar os conteúdos em plataformas virtuais, garantir o acesso dos estudantes assim como a realização das atividades. Nesse sentido, a educação em valores humanos ficou em um segundo plano, como se não fosse igualmente primordial naquele contexto sensível. O retorno gradativo ainda contou com a realização, ao final do ano, das avaliações externas, para mensurar o processo de aprendizagem dos estudantes, assim como, para o caso dos estudantes do Ensino Médio, ENEM e vestibular.

É provável que tenhamos passado por essa onda pandêmica sem considerarmos a devida aceitação e respeito aos estudantes.

Dentre os diferentes fatores que contribuíram para isso estavam os silêncios, as ausências, a pouca interação. Durante dois anos letivos, víamos poucos rostos de estudantes. As poucas vezes que procurávamos ouvir seus sentimentos, ideias, perspectivas sobre a realidade presente e o porvir, uma percentagem mínima se expressava, e o silêncio se manifestava como resposta para a maioria. Muitas vezes tínhamos dúvidas se de fato tínhamos 30, 40 ou 50 estudantes participando da aula. As insistências tinham, frequentemente, respostas como: “Estou lhe entendendo professor”. “Ficou tudo claro”. “Não tenho opinião”. “Não quero falar”. Ou manifestações no “bate-papo”: “Estou sem fone”. “Meu celular não tem câmera” etc.

No final do ano letivo de 2020, para estudantes do Ensino Médio, uma aula foi dedicada à expressão artística (música, desenho, poesia etc.) e ao relato de suas experiências pessoais de forma verbal ou escrita. As narrativas que se manifestaram através dos poemas, desenhos, textos e falas compartilhados giravam em torno das mesmas questões: a pandemia e seus desdobramentos sociais, econômicos, sanitários e emocionais. Apropriamonos de opiniões escritas de alguns estudantes, compartilhadas no espaço de bate-papo da sala de aula virtual ou por WhatsApp.

O primeiro texto que citamos é um extrato de um relato de três páginas feito por um estudante de 17 anos. Sua narrativa permeia os sentimentos e experiências de outros discentes expressas através de falas, pequenos textos, atividades escolares e criações artísticas. Malgrado a inteligência, a responsabilidade e a dedicação desse estudante, o mesmo destaca como foi afetado pela pandemia e as consequências sociais e emocionais que a ela subjaziam. Ele destaca, contudo, críticas às aulas, sobretudo ao modelo de educação que não sofreu mudanças, ainda que a realidade demandasse.

Acobrançaporresultadoscontinuava,osmaisinteligentes tomaram a rápida e brilhante decisão de entregá-los, prezando pelo máximo de qualidade nos estudos e mantendo asaúdepsicológicaeemocionalemdia.Erammuitasatividades por dia, ressaltando a desconsideração do contexto socialqueimpactavadiretamentenossoaprendizado.Com atividadespendentesdeassimilação,adoteiumapráticade aprendizadoautodidataeprecária.Essafoiamelhordecisão queeutomeinaminhavida.Nãoobstanteoutroscolegas[...] continuassem a tentar manter a excelência nos resultados, amaiorianãoaguentouatéomêsdejulho[...].Algunsabandonaram,deumavez,todasasobrigaçõescomaescola[...]. Oníveldeengajamentodemeuscolegaseraextremamente baixo.Quandoobservávamosoambientedepresentes,era incrível. Víamos um rosto que era sempre o mesmo, a do professor,cujavergonhaestampadanorostoeraperceptível até aos olhos desatentos.

A vivência de outro estudante, de 18 anos, ressalta, essencialmente, o impacto emocional sofrido por ele durante o primeiro ano de pandemia:

Minhaexperiênciacomesseanofoiumamontanha-russa. Havia momentos em que estava tudo bem, eu estava feliz. Mas tinha momentos que eu não conseguia nem sequer sorrir devido a tudo que eu pensava e as várias paranoias que“gritavam”emmeusouvidos.Estásendoumanolouco, me aproximei mais de amigos, criei laços fantásticos, me descobri mais e tentei novas coisas como afazeres domésticosemeditar[...].Comrelaçãoàsatividades,porumtempo eutinhaforçasparafazer,masacadabimestreeuprocrastinavamaisemais,atéquechegouummomentoqueeunão sentiamaisvontadedefazernada[...].Euesperopoderme encaixardenovocomessabagunçaqueaminhavidaficou equenopróximoanoeupossavertodososmeusamigos

eprofessores.Enfim,tenhosaudadedocolégio.

Outro estudante, 16 anos, vê-se como um privilegiado por não ter passado por nenhuma “tragédia física” ocasionada pela pandemia: morte, desemprego e fome na família. Ele assinala, contudo, que passou

Pormomentosdesofrimentocausadopelaansiedadediagnosticada por médicos e psicólogos [...]. Não tenho crises com frequência. Quando estou com essas crises consigo pararemeacalmar,consigorelaxar[...].Masnoanode2020 descobri coisas memoráveis sobre o meu tesão e o meu repúdio.Quandoagenteficamuitotemposóeisoladodescobrecoisasdagentemesmo.Gostodaescolaeagorasei que lá é um ótimo lugar, e acho que o grande motivo de querercursarumalicenciaturaéomedodesairdelá[...].Eu penseitambémnascertezaseincertezasdaminhasexualidadeecrençareligiosa.

Um último relato, de uma estudante de 16 anos, destaca algo que pode ter sido a sua experiência. Certamente foi a realidade de vários estudantes:

Na pandemia houve muita desigualdade social. As famílias muitopobresnãotinhaminternet,nemcelular.Algumasnão tinhamnemcomida.Emfamíliasgrandes,osmaiorestiveram quecuidardemenores.Algumaspessoastiveramproblemas desaúdemental(depressãoeansiedade)efísica.

As narrativas discentes ressaltam as várias dimensões observadas no ensino- aprendizagem que, se não eram novas, acentuaram-se em tempos de pandemia: as emoções tensas que vieram à tona, os impactos socioeconômicos em suas famílias, as mudanças nas formas de sociabilidade, as contaminações e mortes de parentes, as críticas ao modelo de aulas remotas, a exclusão

digital e as dificuldades de aprendizado. Destacaram também descobertas, certezas, determinação, resiliência e a solidariedade e a compreensão com colegas, familiares e professores.

Cremos que a opinião discente é tão eloquente quanto a docente ou mesmo da macroestrutura educacional para compreendermos e tomarmos decisões no que concerne à educação no porvir ainda pleno de incertezas.

Qual o aprendizado para o porvir?

O retorno às aulas presenciais ocorreu de forma processual e gradativa, em um formato híbrido (presencial/remota) e em modelos de rodízio. Os sistemas educacionais brasileiros tentaram mitigar os impactos negativos da educação a distância caracterizada por uma realidade social excludente e do ensino-aprendizagem comprometido devido aos dois anos de ensino remoto e à ausência total da escola.

Os estudantes, sobretudo os moradores das periferias, que possuíam na escola um ambiente de aprendizagem e reprodução de valores, encontraram-se em ambientes domésticos onde muitas vezes a experiência de valores humanos era pouco presente devido à situação de vulnerabilidade social, conduzindo-os a uma realidade de escassez de recursos que dificultava a realização de atividades escolares.

Como já o dissemos, o retorno à escola, após um hiato temporal, dificultou o processo de aprendizagem e, consequentemente, a prática dos valores vivenciados e reproduzidos na escola. E o que aconteceu no retorno à escola?

Como citado anteriormente, a ferramenta norteadora elaborada pela Base Nacional Comum Curricular - BNCC, as habilidades socioemocionais, ficaram em segundo plano, pois a aprendizagem cognitiva foi colocada em primeiro lugar. Todo o contexto de

perdas relacionadas ao isolamento, dificuldades de aprendizagem, ausência da escola, as emoções vividas e trazidas à escola, foi quase totalmente ignorado. Procurou-se superar as defasagens de forma que a pedagogia cognitiva era o que importava, negligenciando toda condição vivenciada durante a pandemia.

Ouvíamos de gestores: “A ideia é superar e fazer com que os meninos assimilem o conteúdo. A ordem era aprender a ler e consolidar as 4 operações”. Em reuniões com gestores escolares e educacionais a tónica era: “Deixar para trás a pandemia e superar a todo custo os traumas vividos”. Para os estudantes do Ensino Médio, haveria uma avalanche de provas para avaliá-los e prepará-los para os exames externos.

Mesmo vindo de uma realidade de profunda sensibilidade e de recuperação de emoções provocadas pelo medo, isolamento, exclusão e de uma ressocialização à atmosfera escolar, existia uma necessidade urgente de superação, pois avaliações como SPAECE, SAEB e ENEM iriam acontecer em breve e a quantificação da aprendizagem dos estudantes era o que mais importava.

Percebemos a ausência quase total de ações pedagógicas fundamentadas em valores humanos para que os estudantes, ao retornarem à escola, sentissem-se, de uma forma mais compreensiva, acolhidos, respeitados, escutados, valorizados e seguros. A “pedagogia bancária”, alertada por Paulo Freire, foi o tom nos espaços escolares para que o tempo pedagógico perdido fosse recuperado.

Face a essas percepções, a longa jornada educacional em tempos de pandemia nos proporcionou algumas reflexões e aprendizados que desejamos sejam úteis para o presente e o futuro.

• Em situações sensíveis como uma pandemia, precisamos aprender mais a lidar com as emoções que emergem no contexto de

ensino-aprendizagem e afetam docentes e discentes.

• Precisamos compreender a pandemia como um evento histórico inédito e carregado de emoções de incertezas e medos que precisaram ser tratados pedagogicamente e relacionados às experiências de vida de estudantes e docentes, ao currículo e ao dia a dia de modo que possamos pensar sobre nossas vidas e mudá-las, respeitando mais a nós mesmos e aos outros. Ao contrário, a educação terá perdido a oportunidade de renovar-se, de ressignificar-se para tornar-se pertinente às demandas da humanidade.

• A educação em valores humanos deve estar no cerne do currículo não como uma opção ou em momentos delicados, mas como uma necessidade e deve ser dinâmica e cotidiana na vida escolar, de forma que os estudantes possam ser inspirados a fazer escolhas sociais e pessoais positivas e desenvolvam uma prática cidadã terrena tecida pelo diálogo intercultural e uma consciência ecológica e espiritual.

• Parece-nos ser urgente a ressignificação da educação pela macroestrutura educacional de forma a adentrar, com mais afinco, em uma perspectiva holística, distanciando-se da competitividade e de outros valores excludentes propagados pelo neoliberalismo.

• A escola e os docentes devem proporcionar mais abertura para as narrativas discentes. Os incômodos silêncios e ausências nas salas virtuais iam além da exclusão digital. Eram eloquentes e queriam nos dizer algo sobre as atitudes dos sujeitos e das instituições envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

• A pandemia fez emergir entre docentes e estudantes, de maneira mais poderosa, a solidariedade, a compreensão, o respeito e a empatia, contribuindo para que a dignidade humana florescesse com mais esperança e apreço.

Referências

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TILLMAN, D., & COLOMINA, P. Q. LVEP Educator Training Guide. Publisher, Sterling, 2003.

O Vivendo Valores na Educação - VIVE é uma abordagem educacional dedicada a educar corações e mentes de crianças e jovens.

Inicialmente desenvolvido por vinte educadores, representando os cinco continentes, em 1996 se reuniram com o Grupo de Educação do UNICEF e a Brahma Kumaris, na sede do UNICEF em Nova York, para discutirem as necessidades dos estudantes em todo o mundo, como também as dos educadores na integração de valores na educação, a fim de preparar melhor os estudantes para a aprendizagem ao longo da vida.

Portanto, é um empreendimento global que fornece uma abordagem e ferramentas para ajudar os estudantes a se conectarem com seus próprios valores e a vivê-los.

Propõe uma série de atividades com valores, destacando a paz, o respeito, o amor, a cooperação, a felicidade, a honestidade, a humildade, a responsabilidade, a simplicidade, a tolerância, a liberdade e a união.

O VIVE desenvolveu uma abordagem holística, multicultural e de educação para a paz que, respeitando cada pessoa e cada cultura, garante que seu material didático tenha uma variedade de atividades com valores, representando a diversidade cultural da humanidade.

Este livro nos apresenta algumas pesquisas e práticas educacionais sobre valores humanos no ambiente escolar e acadêmico. Os textos que compõem a obra são resultados de atividades pedagógicas, de formação de educadores e de investigações recentes sobre educação em valores humanos, tendo o VIVE como referência.

www.brahmakumaris.org.br www.editorabk.org.br

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