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Cosmopolítica indígena e saberes ancestrais na América Latina: alternativas contra a
dossier eCOLOGIA E SOCIEDADE NA AMÉRICA LATINA COSMOPOLÍTICA INDÍGENA E SABERES ANCESTRAIS NA AMÉRICA LATINA: ALTERNATIVAS CONTRA A MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA
Senilde Guanaes - SESUNILA Doutora em Antropologia. É docente do ILAACH e do PPGICAL. Participou como professora do mini-curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.
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Entender as distintas concepções e relações entre os seres humanos e o que entendemos como “mundo natural” é fundamental para nos situarmos em relação às políticas e questões socioambientais contemporâneas, em especial para a compreensão da dimensão econômica e política da natureza. Sabemos que a ideia de natureza, paisagem e civilização depende muito das noções de cultura e natureza construídas ao longo da história, assim como as políticas ambientais. O presente texto traz um resumo dessas reflexões desde a perspectiva antropológica, apresentando uma visão crítica do capitalismo, que mercantiliza a natureza e a vida.
Os deslocamentos forçados, a expropriação territorial de comunidades rurais, tradicionais e indígenas e a produção da pobreza são exemplos de como o mercado lida com os grupos sociais que resistem e ou que estão excluídos desses processos. De acordo com Joán Martinez-Alier, no livro “O Ecologismo dos Pobres”, de 1992, a expansão do capitalismo nas sociedades globalizadas faz com que essas relações sejam sempre desiguais e conflituosas, devido à apropriação e exploração predatória da natureza, fazendo com que alguns grupos tenham maior disponibilidade e mais acesso, enquanto outros sofrem com os danos, a poluição e a escassez dos recursos naturais. São relações marcadas por disputas entre os grupos sociais que defendem diferentes lógicas em condições estruturais de profundas desigualdades econômicas, étnicoraciais e de gênero. Esse debate, a partir da Ecologia Política, teve origem nos trabalhos do antropólogo Eric Wolf, e outros autores e autoras das décadas de 1970 e 1980. A maioria dos estudiosos e estudiosas da área provém da antropologia, geografia, ciência política, e de outras ciências sociais, que buscavam entender as relações sociais, econômicas e políticas que determinavam o acesso, uso, apropriação e gestão dos recursos naturais sob o marco do capitalismo e da sociedade de classes, especialmente após o processo de globalização ou mundialização da lógica neoliberal, como denominam alguns autores e autoras.
Na perspectiva antropológica, a noção de natureza sempre variou de acordo com os contextos históricos e com as transformações da sociedade, trazendo desde visões monistas a dualistas, como a ideia de natureza em oposição à
civilização e à cultura, que prevalece na concepção moderna de civilização e de ciência. Contudo, a biodiversidade, o acesso a recursos genéticos e as mudanças climáticas elevaram as questões ambientais a uma escala mundial, transcendendo os contextos locais e colocando em diálogo distintas ideias e práticas relacionadas à natureza. A discussão sobre natureza e cultura, na qual a antropologia sempre esteve envolvida, pode contribuir para a compreensão das diversas noções de natureza coexistentes na sociedade, que ora entram em negociação, ora entram em conflito e disputas. O movimento ambientalista, em todo o mundo, tem criticado a estratégia global de crescimento econômico ilimitado e a racionalidade moderna, que subordina, conquista e domina a natureza. Por outro lado, nas últimas décadas a luta pela democratização do debate sobre a crise ambiental, o desenvolvimento, os direitos humanos e luta das mulheres tiveram grandes avanços. O movimento feminista demonstrou que as relações produzidas com base no gênero são resultado de processos sociais e não naturais e que as ciências reproduzem valores sexistas, racistas e classistas. Guillermo Foladori e Juan Taks, no artigo “Um Olhar Antropológico Sobre a Questão Ambiental”, de 2004, destacam duas vertentes para a compreensão da problemática ambiental contemporânea: a primeira é informativa, e nela seu papel é desmistificar os preconceitos sobre a relação das sociedades com seus ambientes naturais, tais como os mitos da existência de um vínculo harmonioso entre sociedade e natureza nos tempos pré-industriais, o da tecnologia moderna como causa última da crise ecológica, ou o do papel sacrossanto
da ciência como guia em direção à sustentabilidade. A segunda é metodológica, e concerne à questão de como abordar os problemas ambientais de modo a caminhar rumo a sociedades mais sustentáveis. Para os autores, podemos construir um olhar sobre a relação sociedade-natureza que não caia nem no romantismo ambientalista daqueles que veem em algumas sociedades pré-capitalistas um modelo de sustentabilidade ambiental, nem na apologia modernista do capitalismo, baseada na aplicação da ciência e da tecnologia hegemônicas, que se tornam ainda mais imperativas a partir dos anos 80 com a mudança climática, que rapidamente se transformou no denominador comum de toda a problemática ambiental, junto com o aquecimento global. Tudo passa a ser ligado ao clima e à mudança climática: a biodiversidade, as florestas, as atividades produtivas humanas, as doenças infecciosas, tudo é unificado em torno do clima e seus impactos e soluções estão concentrados em um grupo seleto de cientistas e seus sofisticados equipamentos. De acordo com a visão antropológica trazida pelos autores, a forma de conceber a natureza e os problemas que a natureza impõe não podem ser isolados dos agentes que criam essa consciência. Não se trata simplesmente da “sociedade”, mas de povos, grupos e contextos específicos. Perguntas como “O que é sujo ou limpo?”; “quando uma espécie ou recurso está em extinção?”, têm respostas dependentes de critérios relativos à cultura, que dependem de um sistema de valores. É preciso, em outras palavras, desconstruir a ideia de universalidade e da globalidade no debate das questões ambientais.
Na cosmopolítica indígena, a Pacha Mama ou Madre Tierra, por exemplo, implica numa relação simbiótica com o ecossistema. O conceito se origina das cosmovisões andinas e tem sido utilizado por ambientalistas e organizações campesinas em toda a América Latina, tendo sido consagrado pela nova Constituição do Equador e da Bolívia. O conceito Pacha Mama, além de fundamentar o biocentrismo, tem enorme potencial político porque permite integrar a visão de culturas subordinadas e silenciadas por anos e abre perspectivas alternativas ao antropocentrismo europeu, que concebe a natureza apenas como objeto de valor, agudizado sob o capitalismo. O biocentrismo, presente na cosmovisão indígena, tenta combater a ideia de uma natureza externa aos seres humanos. Este é o caso das antigas crenças dos Guarani, povo que acredita que seu conceito sobre simesmo (como pessoa) está intimamente ligado ao ambiente (habitat) em que vivem. Ou seja, sem um habitat natural não pode existir a pessoa: sem “teko-ha” não pode haver um “teko”. O “teko-ha” é, além disso, um espaço comunal com água, árvores e outros recursos que permitem o sustento da vida como um todo, incluindo o mundo da cultura, como as normas morais (o ethos) expresso no “teko ñemboro’y” ou na noção de uma boa vida, expresso no “teko bratu” ou “teko porã”. Os povos Guarani já formaram uma das maiores extensões territoriais alcançadas pelos falantes de uma só língua pré-colombiana na América. O chamado território Guarani compreende atualmente quatro países: Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai, ainda que uma pequena parcela
transite em outros países, como o Uruguai. São cerca de cem mil pessoas distribuídas em aproximadamente quinhentas aldeias e/ou comunidades, incluindo os habitantes do litoral sudeste do Brasil, da região do Chaco no Paraguai, do noroeste da Argentina e do leste da Bolívia, os Guarani constituem uma das maiores populações indígenas da América do Sul. Além de um território extenso, os Guarani acreditam também nas afinidades culturais, linguísticas e cosmológicas que podem conferir o sentido de “nação” ao seu povo, fortalecendo os processos de retomada do território ancestral e das práticas ambientais que são fundamentais para a manutenção e preservação desses territórios. A ideia de uma “nação Guarani” é hoje uma das estratégias de preservação do seu território ancestral, porque reforça suas origens comuns, as relações de parentesco e consanguinidade, os rituais e crenças, e as redes sociais e políticas. Entretanto, o território Guarani só pode ser compreendido a partir da trajetória de deslocamentos forçados impostos aos povos indígenas de modo geral, mas principalmente àqueles situados em regiões de fronteira, como os Avá Guarani na tríplice fronteira sul, por exemplo. Esses deslocamentos foram provocados por projetos conservacionistas, empreendimentos econômicos e de expansão territorial, e por regimes ditatoriais que expropriaram populações tradicionais, indígenas e rurais das suas terras originárias. O pesquisador Bartomeu Melià, que convive com os Guarani desde 1969, os define como “grandes caminhadores”. Segundo Melià, o caminhar é provavelmente um hábito “que rememora a migração” e faz parte da vida espiritual dos
Guarani. Se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiowá, o ‘mborahéi puku’, o ‘canto longo’, é uma marcha durante treze ou mais céus para assim entrar na casa do “Nosso Avô” no final da vida. Na mitologia Guarani, a terra sem males (Yvy marã e’ỹ, em tupi yby marã e’yma) faz referência ao mito de uma terra onde não haveria fome, guerras ou doenças. De acordo com Melià, esta seria “a terra da liberdade de todos os homens”, cujo caminho “era um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão”. Essa terra era para onde os falecidos iam, e os tupis acreditavam poder encontrá-los. O mito foi um dos principais instrumentos de resistência utilizados pelo povo guarani contra o domínio dos espanhóis e portugueses. Os movimentos pela busca da “terra sem males” eram articulados pelos pajés. Em 1549, sofrendo com a colonização portuguesa, 15 mil índios e índias partiram do litoral rumo aos Andes, buscando a “terra sem males”. Apenas trezentos chegaram a Chachalpoyas, no Peru, onde, ao invés de bonança, teriam sido capturados e presos. A história dos Guarani representa a história de todos os povos originários na América Latina, que expulsos das suas terras durante séculos de invasão, esbulho, exploração e apropriação dos recursos naturais e dos seus conhecimentos, tentam retomá-las a partir de litígios acirrados, violentos e desiguais. Especialmente na América Latina, a disputa pelas terras e os bens naturais, convertidos em recursos e em mercadorias pela lógica capitalocêntrica, é também pelo controle do conhecimento, da etnobiodiversidade e dos saberes e práticas dominados pelos povos indígenas. Nesse
sentido, a cosmopolítica indígena e os saberes ancestrais, por um lado desafiam os poderes hegemônicos e os seus saberes eurocentrados, e por outro, abrem perspectivas de um mundo “pluriverso”, conceito tomado de Arturo Escobar, que em seu artigo “Territórios de diferença: a ontologia política dos ‘direitos ao território’”, defende a existência de outros mundos ou “ontologias relacionais” perante a crise social, territorial e ecológica promovidas pelo capitalismo.
Sem título (habitar a paisagem), 2014 Cleiri Cardoso