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Aportes críticos acerca da mineração extrativista em Minas Gerais e sua relação com a Universidade Pública
Kathiuça Bertollo - ADUFOP Rodrigo Nogueira - ADUFOP Doutora em Serviço Social; doutorando em Urbanismo. Docentes do Departamento de Serviço Social e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFOP, respectivamente.
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O Maior Trem do Mundo
O maior trem do mundo Leva minha terra Para a Alemanha Leva minha terra Para o Canadá Leva minha terra Para o Japão
O maior trem do mundo Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel Engatadas geminadas desembestadas Leva meu tempo, minha infância, minha vida Triturada em 163 vagões de minério e destruição O maior trem do mundo Transporta a coisa mínima do mundo Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo Vai serpenteando, vai sumindo E um dia, eu sei não voltará Pois nem terra nem coração existem mais.
— Carlos Drummond de Andrade
Minas Gerais, um território nas Américas, se torna conhecido mundialmente pelo seu passado rico em ouro e diamantes, que vivenciou fortemente as anti-humanas marcas da escravidão e devastação no período colonial. No tempo presente a região tem na extração de minério de ferro a perpetuação destas mesmas marcas em seu chão, suas gentes e sua história. Do Brasil colônia ao país que ocupa as primeiras posições dentre as economias mundiais, mesmo sob os auspícios do capitalismo dependente, são séculos que separam temporalmente uma condição da outra e que conformam este território, a geografia local, os modos de vida, os interesses e as relações que ali são construídas. Mariana e Brumadinho são municípios mineiros que carregam estas cicatrizes. Mariana é a “primeira capital, primeira vila, sede do primeiro bispado e primeira cidade a ser projetada em Minas Gerais. [...] A extração do minério de ferro é a principal atividade industrial do município, forte geradora de empregos e receita pública”. São cerca de 54
mil habitantes, com R$ 48 mil de PIB per capita em 2017 e um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0,742, em 2010. Por sua vez, Brumadinho “começa com a ocupação dos bandeirantes no fim do século XVII [...] A partir de 1917, com a inauguração da Estação Ferroviária, muitos trabalhadores vieram para o povoado. E em 17 de dezembro de 1938, Brumadinho recebeu o status de Município”. Com uma estimativa de aproximadamente 40 mil habitantes em 2019, a cidade apresentou em 2017 um PIB per capita foi de R$ 51mil e um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, em 2010, de 0,747. Lamentavelmente, estes municípios têm em comum, em suas histórias recentes, os rompimentos criminosos de barragens de rejeitos pertencente a grandes mineradoras, vinculadas a conglomerados internacionais e atuantes no estado. Os dias cinco de novembro de 2015 e vinte e cinco de janeiro de 2019 se inscrevem como duas dolorosas páginas da história local e mundial. Em Mariana, o rompimento/crime da barragem de Fundão, de propriedade das mineradoras Samarco Mineração, Vale e BHP Billiton, despejou 43,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia hidrográfica do rio Doce, deixando um lastro de vinte mortes entre moradores do distrito de Bento Rodrigues, que foi imediatamente atingido, e trabalhadores que estavam no canteiro de obras da barragem. A lama também destruiu e matou a fauna e a flora ao longo dos mais de 600 quilômetros de rios até chegar e adentrar o oceano no estado do Espírito Santo. Foram atingidos 36 municípios mineiros e 03 capixabas. Em Brumadinho, o rompimento/crime da barragem da
Mina Córrego do Feijão despejou cerca de treze milhões de metros cúbicos de rejeitos, tendo sido considerado o maior acidente de trabalho com perdas de vidas humanas do país. Foram causadas, imediatamente, cerca de 300 mortes de trabalhadores da mineradora que naquele momento cumpriam expediente e, também, de moradores e moradoras locais. As buscas por corpos continuam até os dias de hoje, fazendo com que as famílias vivenciem cotidianamente o luto, ainda na espera de que o corpo de seu ente querido/a seja encontrado. No que se refere aos danos ambientais, além de destruir fortemente o município de Brumadinho e o distrito de Córrego do Feijão, o rompimento/crime atingiu diretamente vários municípios ao longo da bacia do rio Paraopeba causando danos irreparáveis à fauna e flora. Em ambos os casos foram atingidas áreas urbanas, áreas rurais, comunidades quilombolas, ribeirinhas e populações indígenas. A destruição se manifestou e se manifesta em perdas materiais e imateriais. Por onde o lastro de rejeitos passou tudo foi modificado, agravado e arrasado, resultando num forte processo de desterritorialização dessas comunidades e perda forçada de suas referências culturais e religiosas. No período em que este texto é escrito, completamse 4,5 anos do rompimento/crime de Fundão, e 1,3 ano do rompimento/crime do Córrego do Feijão e permanece o cenário conformado pela dor, destruição e pelas árduas lutas no que se refere ao processo de indenização. Em Mariana, no contexto pós-rompimento/crime, as mineradoras responsáveis pelo rompimento/crime criaram a Fundação Renova, com a finalidade de implementar e gerir os programas
do processo de reparação. Com um expressivo montante de recursos financeiros e humanos, a Fundação é controlada majoritariamente por representantes dos interesses das mineradoras, apesar da aparência democrática e de contar com a participação dos atingidos e atingidas nas suas instâncias de gestão. Ocorre que, no cotidiano, os processos institucionais dificultam o atendimento das demandas legítimas e a própria organização das comunidades atingidas. Ademais, em âmbito municipal, as políticas sociais, especialmente a saúde, a assistência social, a habitação e a educação acabam sendo fortemente influenciadas pela Fundação, o que limita qualquer avanço pela perspectiva dos direitos sociais. Pelo contrário, o controle exercido pela Fundação impõe uma lógica de funcionamento fragmentada, despolitizada e sob a perspectiva das mineradoras – no limite, do capital. Ressalta-se que a interferência das mineradoras nos âmbitos de atuação e na própria conformação dos governos municipal, estadual e federal não é algo que passou a acontecer somente após o rompimento/crime. O financiamento de campanhas, tanto de cargos do executivo como do legislativo, é a estratégia historicamente utilizada para perpetuar e consolidar o poder das mineradoras nos territórios. Nessa mesma perspectiva, pode-se também perceber investidas das mineradoras sobre o poder judiciário, no sentido de tornar brandas ou de não punir quando constatadas irregularidades ambientais, laborais, entre outras. Vale mencionar que pós rompimento/crime o estranhamento, o estigma, as falsas acusações e a apartação entre a população local aumentaram expressivamente.
Assistiu-se à conformação de dois grandes grupos: de um lado, o comércio local que teve impacto financeiro negativo em seus negócios com a interrupção das atividades da mineradora e os trabalhadores e trabalhadoras que ficaram desempregados/as pedindo “Volta Samarco!”. De outro lado, as populações atingidas, que perderam tudo, pedindo “justiça e celeridade no processo de reparação/indenização”. Estas árduas condições configuram diretamente o contexto das lutas sociais e da resistência popular na região. Nessa direção, destacamos a relevância da organização coletiva através dos movimentos sociais e sindicatos, dentre os quais destacamos: o MAM, o MAB, o Sindicato Metabase Inconfidentes e a ADUFOP. Merece destacar que os três primeiros pautam e operam diretamente na questão da mineração, já a ADUFOP é por natureza um sindicato que atua na área da educação, que organiza e pauta sua luta entorno da categoria docente do ensino superior público. No entanto, esta entidade vem construído e consolidando um entendimento e posição de que é impossível construir as lutas e enfrentamentos na área da educação e em defesa da universidade pública e da categoria docente se não for considerado também o contexto local e regional em que a atuação acontece. Assim, o domínio que a mineração exerce sobre os âmbitos da educação, da formação profissional e da universidade pública é também um âmbito em que a entidade tem construído enfrentamentos com e a partir da comunidade acadêmica de modo articulado com demais entidades sindicais, movimentos sociais e com a comunidade local e regional.
Dando ênfase ao âmbito educacional, pode-se destacar que as Instituições de Ensino Superior – IES e as empresas públicas são, atualmente, o centro da produção científica nacional e com expressão internacional. Inclusive, a participação docente na produção científica foi fruto de lutas das décadas de 1970 e 1980, assegurada pela Constituição Federal de 1988. A defesa de uma universidade pública, autônoma e com liberdade de pesquisa obteve algumas conquistas desde então. Contudo, desde a década de 1990, com a criação das “fundações de apoio” (Lei 8.958/1994), e a partir de 2016, com o “Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação” (Lei 13.243/2016), o avanço conquistado vem sendo ameaçado. As fundações de “apoio”, criadas no governo de Itamar Franco, significaram uma primeira abertura do direcionamento dos interesses públicos para atender demandas do setor privado. O “Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação”, aprovado no governo golpista de Michel Temer, teve o objetivo de aumentar a produtividade das empresas e, consequentemente, a competitividade do país no mercado internacional, por meio do argumento de desburocratização no acesso a recursos públicos e de incentivar parcerias do setor público com a iniciativa privada. Desta forma, “Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação”, abre espaço para uma subordinação das pesquisas desenvolvidas nas universidades públicas – portanto, desenvolvidas por servidores e servidoras públicas –, aos interesses privados de empresas e não às demandas da sociedade brasileira. A chave do processo de subordinação dos interesses públicos aos privados está na alteração da Constituição, pela
Emenda Constitucional 85/2016, que introduz o conceito de “Inovação” ao de “Ciência e Tecnologia”, o que possibilitou o compartilhamento de recursos públicos – pessoal, estrutura física de laboratórios e recursos financeiros – com o setor privado. No que se refere ao trabalho docente, tal subterfúgio cria um incentivo ao “empreendedorismo” dentro das IES, possibilitando que docentes direcionem suas pesquisas às conveniências das empresas em troca de bolsas, equipamentos ou materiais. Assim, as medidas contidas no Marco Legal de Ciência, Tecnologia, e Inovação, através das fundações de apoio desviam as IES de sua função social para atender a interesses privados. Esse uso de verba pública para fins privados é exatamente o que tem acontecido nas cooperações entre empresas de Mineração e as universidades federais, como é o caso da parceria entre a Vale S/A e a Universidade Federal de Ouro Preto, contribuindo para o desenvolvimento do setor minerário nos últimos anos. Os rompimentos das barragens de Fundão e do Córrego do Feijão destruíram territórios, causaram a morte de pessoas, atingiram as formas de viver e de (re)existência de milhares de brasileiros e brasileiras. Constituindo-se como crimes socioambientais no cenário mundial, ambos episódios explicitam o poder destruidor dos modelos de desenvolvimento das mineradoras, e consequentemente, do risco do alinhamento das pesquisas nas IES direcionadas para o setor privado. Ironicamente, ao mesmo tempo em que servem a este tipo de desenvolvimento, as universidades também são chamadas para propor soluções de mitigação dos danos gerados pelas próprias empresas, como fica explícito nos editais de pesquisa
lançados pela UFOP e pela prefeitura de Mariana. Por meio das parcerias financeiras com estas empresas danosas, as IES tornam-se atores chaves na coalização de forças que visa o aumento do lucro, a impunidade aos danos e, consequentemente, a reprodução do modelo predatório de desenvolvimento no capitalismo dependente. No governo Bolsonaro, a ofensiva sobre a educação superior pública ganhou um novo formato: trata-se do programa Future-se, lançado em julho de 2019. O programa do Ministério da Educação propõe, de forma “inovadora”, destinar a responsabilidade de gerir a educação superior brasileira ao setor privado, através de entidades privadas denominadas Organizações Sociais - OS. A inovação do modelo de “privatizações” das IES se dá através da introdução de um órgão privado, as OS, para gerir as universidades públicas e direcioná-las para atender aos interesses do mercado. A proposta é passar para as OS a gestão da instituição e seu patrimônio, dos/as servidores/ as e docentes – e, finalmente, do ensino, da pesquisa e da extensão. Mesmo em meio aos contínuos ataques e desmontes, as IES ainda lutam por sua autonomia e pelo direcionamento de suas atividades para o desenvolvimento da sociedade, alinhadas com os legítimos interesses da classe trabalhadora, não do capital e seus expoentes, como é o caso das mineradoras. Nesse sentido, reivindica-se a articulação orgânica entre ensino, pesquisa e extensão, âmbitos que são os pilares da universidade pública. Mesmo em meio às fortes e constantes investidas que objetivam a privatização do direito à educação e o desmonte dos bens públicos, em um
movimento de resistência crítica e socialmente referenciada, a universidade pública segue buscando exercer sua função social. São inúmeros grupos de estudos e pesquisas, de ações extensionistas, de disciplinas que desenvolvem seus conteúdos em articulação com a comunidade local e regional e seus dilemas e potencialidades, com o intuito de produzir conhecimento para os enfrentamentos necessários à efetivação da educação superior pública enquanto uma ferramenta de transformação social. Feitas essas breves considerações apontamos para a urgência de se construir resistências orgânicas, sólidas, amplas ao contexto da mineração extrativista em Minas gerais, no país, na América Latina, e que vislumbrem uma outra forma de produção do conhecimento, de relação com a natureza, de relações laborais, de produção e apropriação da riqueza, de respeito à vida e de liberdade.
Queda Livre, 2019, de Nele Azevedo. Instalação efêmera com a lama tóxica dos crimes ambientais ocorridos em Brumadinho, Bento Rodrigues e Barão de Cocais em Minas Gerais. As figuras congeladas, suspensas por fios, derretem lentamente e desaparecem. O som do derretimento é amplificado por microfones.