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Mudanças climáticas e conflitos ambientais
MUDANÇAS CLIMÁTICAS E CONFLITOS AMBIENTAIS: RUMO AO ECOFASCISMO OU À TRANSIÇÃO ECOSSOCIAL?
Céline Veríssimo - SESUNILA Doutora em Planejamento do Desenvolvimento. É docente do ILATTI. Coordenou e participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.
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As causas da devastação ambiental, esgotamento dos sistemas naturais, mudanças climáticas, aquecimento global, trabalho precário, pobreza, fome, migrações forçadas e conflitos armados não residem, como alguns neomalthusianos acreditam, no fato de o planeta ter demasiada gente concentrada no Sul nem nas capacidades limitadas da Terra. Pelo contrário, são as forças econômicas e políticas do capitalismo ultraliberal que produzem a desigual distribuição de recursos e o acesso limitado a direitos. Definitivamente, não se trata de uma questão de população, visto que se toda a gente organizasse o seu próprio trabalho e tivesse acesso à terra para cultivar a sua comida olhando pelo bem-estar uns dos outros e da natureza, estaria garantida a continuação segura de uma sociedade mais justa
e da regeneração da vida no planeta. Lamentavelmente, o discurso hegemônico do “desenvolvimento sustentável”, inerente ao sistema capitalista-colonial-patriarcal, serve à exploração de classes, sobretudo negros, indígenas e mulheres; cria as discrepâncias entre centro e periferia, campo e cidade, aumentando a alienação entre a natureza e a sociedade, e a sociedade em si mesma. A construção do habitat humano faz parte dos processos históricos da sociedade, como qualquer outro ser vivo, pois também somos parte da natureza. Desde as casaaldeia no Alto Xingu em Mato Grosso e do povo Yanomami na Amazônia, às de outros povos tradicionais da América Latina, e outras partes do mundo, a história antiga da humanidade e os povos mais resistentes de hoje, mostram que a sociedade e a economia têm estado fortemente ligados à natureza para benefício mútuo, das comunidades e da natureza. Estruturas sociais não-capitalistas fomentam o sentido de comunidade, vizinhança, ajuda mútua e reciprocidade, onde as decisões da comunidade são apresentadas, discutidas e resolvidas pela própria comunidade. Nesses contextos, e ainda hoje, predomina a passagem oral do conhecimento sobre cultura e educação, sobre relação da humanidade com a natureza, onde tudo se interconecta entre si. O comportamento inato e dialético entre os humanos e a natureza, que tem vindo a guiar sociedades não hierarquizadas e não-capitalistas ao longo da história, tem sido ameaçado e modificado por influência de processos de aprendizagem civilizatórios altamente hierarquizados e predatórios.
O colonialismo europeu iniciou um processo civilizatório caracterizado por invasão, exploração, violência e epistemicídio, que perdura replicado à escala mundial. As rotas de mercado do séc. XVII mostram a era colonial descrita na movimentação de bens e de pessoas de todas as partes do hemisfério Sul para as coroas de Portugal e Espanha na Península Ibérica e pouco depois, para as coroas de toda a Europa, marcada pelo extrativismo desenfreado para exportação, genocídio dos povos originários que se opunham, cristianização, escravatura e tráfico negreiro. Iniciou-se assim uma era de racismo, de capitalismo e de patriarcado judaico-cristão pela supremacia branca ocidental. A revolução industrial na Europa, a partir do séc. XVIII, consolidou a divisão da sociedade por classes sociais pela lógica do trabalho-capital, exploração da classe operária, onde negros/as e asiáticos/as ganhavam menos que os homens brancos, e mulheres e crianças recebiam os salários mais baixos e tinham jornadas mais longas. A desigualdade e a segregação social/racial/espacial causadas pela exclusão e marginalização resultam na pobreza, na violência e criminalidade, mas são contrapostas por insurgência popular, organização dos movimentos sociais e organizações sindicais pela luta de direitos. A continuidade hegemônica de dualismos “formal” e “informal”, “ricos” e “pobres”, “branco” e “negro”, “campo” e “cidade”, “homem” e “mulher”, entre outros, marca a diferença entre os poucos que detêm o poder, em detrimento da maioria governada num padrão civilizatório que se mantém atualmente. Nesta relação ‘centro-periferia’, a periferia é sempre profundamente marginalizada para que o centro consiga continuar a acumular riqueza.
Cartaz da Oficina conduzida por Denilson Baniwa, Ocupeacidade e Parquinho Gráfico
O controle do habitat humano por forças de poder impulsionadas pela dominação capitalista-colonialpatriarcal, resultou na acentuada desigualdade social, crescente sofrimento humano e crise ecológica de hoje. Mais recentemente, a exaltação da tecnologia inteligente recorre cada vez mais a matérias-primas de recursos distantes e de forças de trabalho subalternizadas onde se praticam modernas formas de escravatura, no Sul Global. A forma tripla de dominação impõe-se como um modelo cultural cujas concepções estéticas, formas de habitar e trabalho hierárquico são formas de vida universalista, em que aqueles/as que forem diferentes são excluídos/as e passam a ser considerados/as sub-pessoas, os outros e outras, em detrimento de valores culturais locais, desconsiderando quaisquer pré-existências. Rapidamente, o modelo civilizatório eurocêntrico do extrativismo, da industrialização e da urbanização propagouse globalmente, levando à massiva privatização da terra, à expulsão de indígenas e camponeses dos seus territórios ancestrais, migrações forçadas e destruição da natureza. No atual momento de agudização do sistema capitalistacolonial-patriarcal, o papel da educação provavelmente nunca foi tão intelectualmente desafiante, socialmente vital e ecologicamente urgente como agora. A mercantilização da natureza, do conhecimento e das pessoas para produção e acumulação de capital implica o empobrecimento crescente de pessoas com trabalho escravo e trabalho precário, e a degradação e o esgotamento da vida na Terra.
O grande problema perante o qual nos deparamos, é que a atual disjunção entre a sociedade humana e a natureza foi causada pelas três grandes formas de dominação: o capitalismo, a modernidade-colonialidade ocidental e o hetero-patriarcado. Evidências atuais na relação entre a sociedade e a natureza, apontam que provavelmente a proporção privilegiada da população humana já esgotou a capacidade de auto-regeneração da Terra. Os consumidorespoluidores são os EUA, a Europa, o Japão e uma elite na China, em detrimento da maioria da população mundial que vive em países do Sul Global, consumindo e gastando incomparavelmente menos. O Norte depende de energia e matérias-primas vindas de ecossistemas que ficam nos países do Sul, destruindo a natureza e empobrecendo as populações nessas regiões. O ritmo moderno do crescimento econômico neoliberal tem sido acompanhado de violências e conflitos, provocando o aumento da desigualdade, como por exemplo as zonas de sacrifício que se geram onde comunidades tradicionais e originárias em situação de vulnerabilidade, são as mais atingidas por riscos sócio-ambientais, causados por indústria e/ou grandes empreendimentos. A busca extrativista na América Latina, África e Ásia para consumo nos países ricos, reproduzem padrões colonialistas em pleno séc. XXI, provocando sérios conflitos, desastres e crimes socioambientais. O Brasil é dos países mais violentos contra ambientalistas e lideranças indígenas protetoras da floresta, mais fustigado por desastres sócio-ambientais, recorrendo a políticas públicas que ignoram os direitos dos indígenas e os direitos ambientais, privilegiando ruralistas, madeireiras,
mineradoras, hidroelétricas e armamentistas. Alguns exemplos disso são a tragédia da construção da Usina de Belo Monte no Pará para mineração; o rompimento da barragem do Fundão afetando povos originários e tradicionais e toda a Bacia do Rio Doce em dois estados - Minas Gerais e Espírito Santo; e mais recentemente, outro trágico rompimento de barragem em Brumadinho, Minas Gerais; o flagelo dos incêndios na Amazônia, Mato Grosso do Sul e Paraguai; e o vazamento de petróleo nas praias do Nordeste. O acesso desigual ao bem comum, é causado por forças políticas e econômicas regidas pelo mercado para o desenvolvimento capitalista. O capitalismo precisa que outros sejam empobrecidos e excluídos, para poder subsistir. Essa pressão que resulta na crescente degradação ambiental, ocorre por falta de vontade e inércia política, incapacidade das instituições governamentais, e, sobretudo, pelo modelo de desenvolvimento predatório e excludente para servir a economia de mercado, mercantilizando a vida e incapacitando assim a pluriculturalidade no mundo. O discurso bélico e sanitário no contexto da pandemia COVID19, tem sido uma estratégia convenientemente despolitizada para que o sistema ultra-liberal em momento algum seja posto em causa, centralizando as atenções para o regresso à “normalidade”, priorizando a economia em vez das pessoas. A ânsia desesperada de “salvar a economia e os empregos” vai desafiar os limites de atuação do capital financeiro e os limites biofísicos da Terra com um ainda maior extrativismo e trabalho ainda mais precário, para permitir retomar e crescer ainda mais. Por isso, queremos tudo menos
Oventic, 1999 Beatriz Aurora
“normalidade”! A fase pós-COVID19 será necessariamente acompanhada de picos intermitentes, deste ou de outros vírus, causando muitas fatalidades nas periferias do sistema, como que uma espécie de extermínio dos mais vulneráveis. A expansão do teletrabalho e ensino à distância aumentarão a precarização do trabalho e da educação, e vão fragmentar mais ainda as classes sociais, com conseqüências desastrosas. A recente queda do valor do petróleo é mais um sinal que o sistema em que vivemos, cuja economia é altamente dependente dos combustíveis fósseis, está evidentemente em crise. Nesse momento de grandes incertezas, o pós-COVID19 poderá causar uma agudização das atuais crises, com mais repressão, violência e controle de uma classe dominante sobre a grande maioria trabalhadora. No calor da recessão econômica global, podemos vir a deparar-nos com um ainda maior avanço da direita, numa sociedade assustada e desorientada que se apoia no discurso nacionalista de lideranças “salvadoras da pátria”, que inevitavelmente caminham na direção de um fascismo social. Perante uma eco-ansiedade cada vez mais consciente da escassez geral dos sistemas naturais e desesperada em proteger o planeta, para controlar os escassos bens naturais e frear novos surtos pandêmicos, poderão emergir formas radicalmente repressivas de proteção ambiental e higienização violenta contra os setores populares, na forma de um fascismo ecológico ou eco-fascismo. Por outro lado, a pandemia também tem sido vista como uma janela de oportunidade para cuidar do planeta e transformar a sociedade. Estamos num
momento estratégico de descoberta de formas populares de construção de uma sociedade ecossocial, mais solidária e empática, sem classes sociais oprimidas pela burguesia, na qual a humanidade se entende como integrante da natureza. No passado, momentos de adversidade foram acompanhados pela busca por autonomia coletiva (na alimentação, na energia, na habitação, no cuidado). A pandemia, despoletou simultaneamente a necessidade de autonomia e um retorno à terra, visível, por exemplo, no aumento de hortas urbanas individuais e comunitárias, e ocupação ou negociação de terras para produção alimentar. Um outro aspecto muito importante é o fortalecimento do vínculo entre as pessoas, o sentido comunitário, a ajuda mútua e solidária – despontaram redes auto-organizadas de distribuição de alimentos comprados diretamente dos produtores, redes de assistência a idosos/ as, redes de apoio a moradores/as de rua, restaurantes comunitários, entre muitas outras, maioritariamente lideradas por mulheres. O caminho para uma transição ecossocial depende do fortalecimento e expansão dos movimentos populares, lideranças comunitárias, lideranças dos povos tradicionais e sindicatos laborais, aqueles que, organizados e articulados entre si, emergem das bases com um posicionamento mais firme anti-capitalismo, anti-racismo e anti-hetero-patriarcado-branco-cristão, porque entendem que, para ficar tudo bem, é preciso termos esperança para lutarmos unidas e unidos por um mundo melhor.