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geopolítica do alimento e a pedagogia do coronavírus
dossier eCOLOGIA E SOCIEDADE NA AMÉRICA LATINA GEOPOLÍTICA DO ALIMENTO E A PEDAGOGIA DO CORONAVÍRUS:
QUEM ACESSA UM PÉ DE MANGA OU TEM UMA HORTA É REI Leo Name - SESUNILA Doutor em Geografia. Professor do ILATTI.
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Escrevo esse texto em 6 de junho de 2020, quando a COVID-19, uma pandemia mundial sem precedentes na história da humanidade, já matou mais de 35 mil pessoas no Brasil e quase 400 mil em todo o mundo – segundo dados muitíssimo contaminados por subnotificação. Peço licença a esses e essas que perderam suas vidas para evocar duas narrativas sobre alimento, que indiretamente delas e deles se acabará por também falar.
#1 Certa vez, assisti a Shark Tank, um show de horrores televisivo em que empreendedores e empreendedoras apresentam suas ideias a potenciais investidores e investidoras a fim de obter financiamento. Um rapaz pedia dinheiro para incrementar sua produção artesanal de uma pizza, com base numa antiga receita secreta da vovó. Um dos “tubarões” condicionou sua “ajuda” à mudança para ingredientes que possibilitassem o armazenamento de um sem-número de unidades congeladas da iguaria. Não importava que fossem perdidos qualidade e sabor, adicionados conservantes que comprometessem a saúde ou que se anulasse a dimensão afetiva do segredo de família. O investidor ensinou: “o motivo para que produzamos em massa é porque é assim que ganhamos mais dinheiro”.
#2 Semana passada li um artigo ainda inédito do Gabriel Cunha, um colega sindicalizado e professor de arquitetura no CAU UNILA, no qual ele relatava duas de suas experiências de assessoria técnica. Numa delas, junto a um acampamento de reforma agrária, ele verificou que em cinquenta metros quadrados que restavam livres de lotes muito pequenos os assentados e assentadas produziam hortaliças suficientes para a alimentação de mais de uma família. No entanto, numa ocupação urbana, com lotes três vezes maiores, pouquíssimos moradores e moradoras produziam alimentos nos espaços livres de edificação: não o faziam simplesmente porque não detinham o conhecimento necessário para fazê-lo.
Volto à COVID-19. Suspeita-se que o novo coronavírus tenha sido transmitido, no final de 2019, por um pangolim. Trata-se de uma espécie de tatu – Manis javanica –, em vias de extinção em muito devido a ser apreciada como alimento na China, sendo por isso seu consumo punido com prisão. O animal teria cumprido o papel de hospedeiro intermediário entre um humano que mesmo assim o devorou e um morcego que originalmente albergou o vírus e o transmitiu ao raríssimo tatu – conforme hipótese apontada por Els Lagrou, professor de antropologia da UFRJ. No Brasil, a doença chegou em 26 de fevereiro de 2020. Depois de mais de três meses de uma necropolítica com desestímulo ao isolamento social, com ajuda financeira a bancos e sem garantia de salários aos trabalhadores e trabalhadoras – além da dificuldade de acesso das parcelas mais pobres da população a um auxílio emergencial de seiscentos reais, fraudado pelos estratos mais ricos –, a fome já é uma realidade em muitas comunidades pobres do país, por exemplo nas favelas de grandes cidades. O que o programa de tevê e a experiência do Gabriel têm a ver com isso? Nada mais involuntariamente pedagógico do que a frase do investidor-tubarão no Shark Tank: se o ato de comer está inserido na lógica capitalista de produção de mercadorias, variadas vezes ingeriremos alimentos pobres em nutrientes e, pior ainda, nocivos à saúde. O capitalismo desenha a insegurança alimentar e nutricional em escala mundial. Em nome da quantidade e da rentabilidade, monoculturas promovem a biopirataria, a apropriação de saberes autóctones e muitos danos à biodiversidade, conforme demonstram autoras e autores há décadas. Além disso, a
experiência de meu amigo Gabriel com pessoas que tinham o espaço para plantar, mas não sabiam como fazê-lo, nos reporta às questões de soberania alimentar: somos cada vez mais dependentes desses alimentos massivamente produzidos e de qualidade duvidosa, com aditivos, conservantes e agrotóxicos, porque crescentemente diferentes grupos perderam contato com os saberes alimentares concomitantemente à diminuição das alternativas de consumo – e isso, evidentemente, é ainda mais dramático para as pessoas de menor renda. Carlitos apertando parafusos em Tempos Modernos, alienado do saber-fazer da totalidade do produto que depois pagará para adquirir, não deve ser restringido ao mundo da fábrica ou à produção de objetos. Em uma entrevista que Gabriel e eu fizemos com o arquiteto cubano Yasser Farrés Delgado, ainda inédita, ele comenta o avanço do capitalismo na produção de certa ideologia territorial de sobrevalorização do que é entendido como urbano e cosmopolita: isso presta enorme auxílio à indústria de alimentos e ao agronegócio, na medida em que plantar, semear e colher deixam de ser atividades triviais para se tornarem saberes progressivamente perdidos – e em muito porque sua lógica produtiva é tachada como ligada ao atraso de um mundo rural que deve se manter a serviço do mundo urbano. Finalmente, cozinhar com uma ampla variedade de alimentos que se tem certeza da procedência e da qualidade atualmente parece ter se tornado uma atividade gourmet ao estilo Master Chef – mais um reality show, aliás, que é involuntariamente pedagógico ao expor perversidades capitalistas –, o que obviamente envolve gastos impossíveis para a esmagadora maioria das pessoas.
Mas eu ainda não relacionei tudo isso ao coronavírus... É importante lembrar que a indústria de alimentos e o agronegócio destroem centenas de hectares de florestas que deixam de abrigar animais silvestres que podem portar muitos vírus ainda desconhecidos e que passam a ter mais possibilidades de contato com humanos. Acrescentese a essa receita indigesta o confinamento de frangos e porcos, por exemplo, em condições sanitárias que ajudam a disseminação de vírus entre esses animais. Há muito tempo o biólogo Rob Wallace já vem alertando que essa forma de criação pecuária, além da extrema crueldade animal, aumenta as chances de transmissão de novos vírus aos humanos – sendo mais suscetíveis a isso os trabalhadores e as trabalhadoras rurais. Não esqueçamos da gripe suína, da gripe aviária, da vaca louca... Em 2016, escrevi sobre o que chamei de “paisagismo comestível”, isto é, o uso de plantas alimentícias na atividade projetiva do paisagismo. Nesse texto também mencionei a importância dessa alternativa de acesso a alimentos nos países da América Latina, que somam ao problema da pobreza, inerente à exploração capitalista, os eventos naturais extremos: terremotos, tempestades que provocam inundações e deslizamentos de terra ou erupções vulcânicas podem vir a isolar comunidades ou populações inteiras, por grandes períodos. Em meio a uma pandemia de vírus mortal, tive mais a perceber sobre o paisagismo comestível que eu mesmo propus, já que o coronavírus tem isolado e matado mais que terremotos. O isolamento social, aliás, é mais perverso para as pessoas mais pobres e vulneráveis. Seja porque as obriga
a trabalhar com risco de contaminação; seja porque, sem que sejam dadas condições, as condena a ficarem isoladas em casas no mais das vezes inadequadas para a convivência de uma ou mais famílias por longos períodos, sob ameaça de perderem o emprego e, consequentemente, a renda. A pandemia ampliou as possibilidades de passar fome daquelas e daqueles que já eram antes suscetíveis a isso. Sendo assim, que refaçamos o ditado popular: em terra de coronavírus, isolamento e necropolítica, quem acessa um pé de manga ou tem uma horta é rei. Volto às narrativas que abriram esse texto para contar que, no referido episódio de Shark Tank, o rapaz da pizza artesanal não aceitou a proposta do tubarão. Voltou para casa sem um centavo de investimento, mas provavelmente tendo a certeza da manutenção da qualidade do que produzia, eventualmente comia e dava a muitos e muitas para comer. Em relação à experiência de meu amigo Gabriel, quando a pandemia passar, se passar, perguntarei a ele sobre o quanto auxiliaram e ainda podem vir a auxiliar as hortas do grupo campesino assentado que conheceu, e se fizeram falta às moradoras e aos moradores da ocupação urbana que, como muitos e muitas de nós, não sabiam produzir seu próprio alimento. A pedagogia da pandemia mostra claramente a importância da soberania alimentar, pois nunca antes foi tão fácil perceber a desigualdade social por meio do alimento. Afinal, se por um lado para alguns e algumas o isolamento tem podido propiciar tempo para cozinhar sem pressa, por exemplo fazendo seu próprio pão e exibindo seu momento a la Paola Carosella no Instagram; por outro, temos podido ver
também que falta faz o saber-produzir seu próprio alimento ou ter o tempo para isso num contexto no qual conseguir receber um auxílio emergencial parece mais uma prova do líder no Big Brother Brasil ou, mais ainda, uma armadilha mortal elucubrada por Jigsaw. Sou professor e arquiteto. E vejo muitos de meus e minhas colegas se envolverem em discussões legítimas sobre o direito à moradia para as pessoas mais pobres, mas que muitas vezes ocorrem de forma monotemática. Tanto quanto assim o fazem conjunto significativo de economistas, cientistas sociais, partidos e governos que se mantêm preocupados com as desigualdades sociais unicamente focados ao acesso ao emprego ou à renda. O coronavírus nos alerta, afinal, sobre o quanto é crucial debater a superação do capitalismo tendo em conta que as dimensões ambientais são tão estruturantes quanto as econômicas. O quanto, também, a discussão sobre o meio ambiente precisa albergar um debate sobre a geopolítica do alimento, que envolva a soberania alimentar como horizonte fundamental. E o quanto, ainda, superar o capitalismo exige superar a transformação do alimento que nos mantém vivos em uma mercadoria de rentabilidade a todo custo. Não pretendo aqui, nesse pequeno espaço, propor soluções, apenas apontar para a necessidade de abordagens mais multitemáticas e sistêmicas, já que são inúmeras as desigualdades, também sistêmicas. Sendo assim, a gente não quer só comida, diversão e arte mas, além de emprego e moradia, a gente quer também comida, diversão e arte – e não esqueçamos que trabalhadoras e trabalhadores da
cultura, inclusive, são parte do contingente desassistido do agora. Está difícil sonhar no Brasil de 2020. Desejo, contudo, que esse momento nos faça vir a pensar e propor políticas e estratégias de acesso à renda e moradias cujos desenhos também possibilitem a produção individual ou conjunta de alimentos, tomando em conta o resgate de saberes relacionados à lida com a terra e o preparo de refeições, para que todas e todos possam compartilhar um pé de manga ou uma horta. E que isso instigue a pensar, no caso dos cursos de arquitetura e urbanismo, do ensino de projeto às lutas nos mutirões autogestionados. Talvez seja o caso de repensarmos, ainda, os significados de revolução em sintonia com a natureza... Sem que um morcego, um tatu, uma galinha, um porco ou uma vaca, devido à exploração a que são submetidos, resolvam nos ensinar mais alguma coisa. Que as mortas, os mortos e nós, ainda vivos e vivas, possamos ter paz. E que vivamos para poder sonhar futuros.
Colector azteca de ervas, 1569 Códice Florentino