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A colonialidade tecnológica e socioambiental

A COLONIALIDADE TECNOLÓGICA E SOCIOAMBIENTAL: DOS MODOS DE MORAR HEGEMÔNICOS À FALÁCIA DA SUSTENTABILIDADE NA AMÉRICA LATINA

Gabriel Cunha - SESUNILA Doutor em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo. Docente do ILATTI.

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Nos últimos anos, por conta da minha atuação em arquitetura e urbanismo, tenho estudado os processos tecnológicos envolvidos na construção civil, e, como não poderia deixar de ser, os impactos socioambientais que eles geram. Em particular, na UNILA, e o seu viés latino-americanista obriga a observar como historicamente evoluíram as técnicas construtivas nos diversos povos deste continente, antes e depois da chegada dos Europeus. Culturas inteiras e, ao lado delas, os saberes construtivos dos povos que aqui estavam foram eliminados ou parcialmente absorvidos. Arquiteturas organicamente vinculadas ao meio ambiente, às diferentes geografias,

cederam espaço às formas de construir e às arquiteturas que chegaram pelo Atlântico, muitas vezes inapropriadas às condições locais. Para citar um exemplo bem conhecido: as técnicas antissísmicas dos Incas em contraste com as formas de construir dos Espanhóis, que tiveram que reerguer, eventualmente, seus edifícios após cada grande terremoto, enquanto os remanescentes Incas – os quais muitas vezes serviam de fundação ou base para as edificações espanholas - permaneciam de pé. Para além das técnicas construtivas, há também diferenças na apropriação do território. O mundo urbano europeu se sobrepôs a outros modos de ocupar o território, como as aldeias ou as cidades indígenas, muito distintas tanto na forma e estrutura, quanto na dinâmica de vida, nas sociabilidades, na distribuição dos bens e da riqueza, na conexão entre os povos. Os impactos socioambientais como hoje o entendemos, têm suas origens nas Américas no momento da chegada dos europeus, ainda que incomparáveis com a aceleração promovida pelas primeira e segunda revoluções industriais. Pelo menos quatro séculos e meio se passaram sem que o ocidente se desse conta que suas ações engendravam uma interação negativa do ponto de vista socioambiental, até que a partir de meados do século XX aparecesse o ativismo ambiental, as preocupações ecológicas, e mais recentemente, a ideia de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável - termos esvaziados e a serviço do capital. A modernidade/colonialidade é, portanto, uma forma específica e determinada de interação ser humano-meio ambiente. Ou seja, é um fenômeno socioambiental que traz

um modo particular de apropriação territorial (colonialidade territorial) e de viabilização do espaço edificado (colonialidade tecnológica). A colonialidade territorial pode ser definida como o conjunto de padrões de poder que na práxis territorial serve para estabelecer hegemonicamente uma concepção de território sobre outras que resultam “inferiorizadas”. Os autores Yasser Farres Delgado, cubano, e Alberto Mataran Ruiz, espanhol, no artigo “Hacia una teoria urbana transmoderna y decolonial”, apontaram três dimensões principais da colonialidade territorial: (1) colonialidade do saber territorial, (2) colonialidade do poder territorial e a (3) colonialidade do ser territorial. A colonialidade do ser territorial tem como ponto crítico a ideia da hegemonia do “ser-urbano”, do padrão de vida urbano. Em outras palavras, na modernidade/colonialidade, “viver” é sinônimo de “viver na cidade”, e estabelece uma hegemonia deste “ser-urbano” sobre o resto das formas de existência humana não-urbanas (“ser não-urbano”), consolidada por meio de mecanismos de organização da sociedade mundial que abrangem desde o comércio de imóveis, as bolhas imobiliárias, a desigualdade social e um modo característico de interação entre os mundo rural e urbano, entre as atividades produtivas agrícolas sobre as não agrícolas. E, de fato, na quase totalidade dos países latino-americanos já se verifica altos índices de urbanização, acima de 70% da população. No entanto, há inúmeras localidades e municípios rurais, não sendo nada desprezíveis as 285 milhões de pessoas que vivem em pequenas cidades. No Brasil, mais de 33 milhões de pessoas vivem em cidades com menos de cinco mil habitantes. Mesmo assim, o universo

rural e das pequenas e médias cidades não recebem a devida atenção dos debates científicos. Na colonialidade do saber territorial, a hegemonia se coloca desde a concepção dos modos de habitar o território, a cidade e a arquitetura, geralmente com a exportação dos padrões ocidentais de vida urbana. Neste sentido, verifica-se a supervalorização do ensino urbano-arquitetônico nas universidades, com suas noções supostamente universais, de território, cidade e arquitetura em relação ao tradicional, vernáculo ou popular, invalidando-os como resposta válida aos problemas atuais. Por sua vez, a colonialidade do poder territorial é o âmbito da intersubjetividade na qual determinado grupo de agentes define o que é territorialmente correto, e consequentemente, sustentam o poder de enunciação e de decisão. A colonialidade do poder territorial se exerce tanto nos cenários territoriais globais - cujos agentes com poder de enunciação são transnacionais como os monopólios da exploração dos recursos naturais ou da construção, algumas fundações, organismos internacionais entre outros - como nos locais como os governos locais e outros atores com poder de decisão, ainda que cada vez mais sob influência dos agentes transnacionais, por não existir desconexão entre uma escala e outra. Analogamente, no que venho designando por “colonialidade tecnológica”, que incide nos saberes construtivos, as técnicas “convencionais” brancas representam um padrão evolutivo superior para o qual todas as outras técnicas construtivas representam “atraso”. As técnicas convencionais brancas são apartadas

O campo de soja, 2017 Miriam Rudolph

das técnicas dos povos não-brancos por uma linha abissal inconciliável. Acresce-se a isso, a “cooptação cognitiva” promovida pelo ideário do desenvolvimento sustentável, que tem substituído o determinismo tecnológico anterior do nacional-desenvolvimentismo.

O esquema, sugerido por mim, ajuda a compreender que as técnicas sustentáveis de construção ou até mesmo a “bioconstrução”, usualmente vistas como a salvação ambiental e tecnológica do futuro, são, de fato, versões suavizadas da modernidade/colonialidade tecnológica. Dito de outro modo, tais técnicas são soluções aceitas e não invisibilizadas pela modernidade, podendo constituírem-se como uma nova fronteira a ser explorada pelo capital. Não à toa que muitas destas propostas “sustentáveis” tem como seus adeptos e praticantes mais comuns as classes médias que, “cansadas” do padrão de vida urbano estressante, decidem viver em ecovilas e condomínios do tipo, próximos das grandes cidades, com casas feitas de madeira, terra crua, cisternas, banheiros

secos e todas as benesses sustentáveis. Nada tem a ver, portanto, com a tentativa de promoção de uma ecologia de saberes que torne visível e enfrente a linha abissal racista implementada pela modernidade. Frequentemente, o grosso do trabalho de construção destas casas ecológicas mencionadas, fica a cargo de pedreiros, em sua maioria não-brancos, num esquema de organização e exploração de trabalho similar ao utilizado na maior parte dos canteiros de obra. O pressuposto destas experiências sustentáveis não é obrigatoriamente o resgate e o empoderamento de saberes ancestrais, populares, racialmente determinados e invisibilizados. Não se voltam contra o epistemicídio promovido pela modernidade. Tratase apenas de uma modernização “verde” que não enfrenta nem problematiza de fato, a colonialidade tecnológica e a territorial. A ideia de futuro sustentável, outrossim, esconde um silenciamento histórico de saberes construtivos do passado, de perda de identidades. Um futuro que faz tábula rasa do passado. Por isso proponho que a valorização de técnicas “alternativas” vai muito além da proposta no desenvolvimento sustentável. É preciso dar centralidade para outras formas de construir, outros saberes técnicos para a construção de novas espacialidades, novos territórios, especialmente num horizonte de superação radical do capitalismo. Permitir-se utilizar materiais de construção naturais encontrados no próprio local ou região onde habitam as comunidades, ou produzidos por eles, ao invés de simplesmente comprar os industrializados, por exemplo, não é apenas um dos caminhos possíveis, mas necessários neste processo de revisão cognitiva, de decolonização tecnológica.

A ideia de democratização territorial e tecnológica, implica, nos países dependentes e mais particularmente na América Latina, no enfrentamento da colonialidade do poder tecnológico. Isto é, na diminuição das desigualdades tecnológicas, sobretudo no tocante ao poder decisório sobre a produção tecnológica, hoje também concentrado em grandes corporações e programado para atender interesses empresariais, seguindo uma racionalidade própria submetida ao capital. No caso latino-americano, tratam-se de grandes empresas de construção, do mercado imobiliário, dos monopólios de jazidas minerais para produção dos insumos da construção, que encontram respaldo nas formas de financiamento público, que entre outros aspectos, determina quais tecnologias construtivas são passíveis de receber tais recursos e quais ficam de fora. O uso de outras técnicas construtivas pode promover um descolamento deste circuito específico do capital. Se a colonialidade de poder tecnológico implica em formas próprias de divisão, organização e exploração do trabalho, geralmente marcada pelo racismo estrutural de tais sociedades, é a estes aspectos que necessitamos nos insurgir. Finalmente, a colonialidade do ser tecnológico atrela-se à hegemonia do ser-urbano e ajuda a determinar os modos de construir que serão hegemônicos, que respondem de forma bastante articulada com a dinâmica da vida urbana: o ser-urbano demanda habitar um espaço construído com modernas técnicas e materiais de construção, não apenas porque estas possuem preferência e hegemonizam as redes de transporte, a lógica de extração, manufaturamento e industrialização dos materiais e técnicas construtivas, mas

também porque refletem um padrão “avançado” de vida, que tem como missão superar o “atraso” da vida tradicional, ancestral, do passado rural, que remeta às civilizações originárias. O “papel em branco” dos modos de existir é realizado pela adoção do estilo clean e refinado de ambientação que os materiais de acabamento comercializados são capazes de produzir, contrapondo-se ao rústico, ao “grosseiro”, ao “inapropriado” ambiente sem acabamentos, ou de acabamentos simples da vida “tradicional”. Sob esta perspectiva, uma casa urbana tem que necessariamente ser diferente e “superior” a uma oca indígena, ou a uma palafita amazônica, seja porque a estrutura da vida urbana assim o exige, seja porque estes modos de morar são considerados como “males” a serem evitados. Piscinas, academias, internet, lâmpadas LED, Smarts TVs, são itens indispensáveis que complementam a vida moderna cobiçada por nós, de preferência em condomínios horizontais ou verticais fechados. Todos estes itens e uma série de outros que desejamos demandam um padrão de construção, uma escolha tecnológica intrínseca, que normalmente naturalizamos. Concluo dizendo que na perspectiva de combate aos impactos socioambientais da sociedade, espero ter mostrado que é necessário levar em conta as colonialidades tecnológica e socioambiental que se fazem presentes no cotidiano. Penso que ao levarmos isso em conta, criamos uma alternativa válida aos países dependentes em contraponto aos modos de morar hegemônicos do sistema capitalista e à superficialidade da proposta “alternativa” do desenvolvimento sustentável que permanece operando dentro deste mesmo sistema de exploração.

Monumento mínimo, 2005 Nele Azevedo

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