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A Crise do capital e a superação da sustentabilidade
Cláudio Ribeiro - ADUFRJ Doutor em Urbanismo. Professor do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente e do curso de pós-graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ.
Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. — Ricardo Salles em reunião ministerial de 22/04/20
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As afirmações feitas pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Partido Novo) na cristalina reunião dos representantes das frações burguesas hegemônicas no executivo, foram divulgadas de forma ampla pela imprensa nacional. Cada governo serve ao seu patrão com as armas que têm. Já houve quem aproveitasse da onda de aprovação popular para democraticamente retirar direitos de trabalhadores e trabalhadoras, houve golpista que usou
e abusou da popularidade quase nula para propor as mais abjetas intervenções, já houve até intelectual que afirmou negar sua obra e aplicou os mais notáveis instrumentos de implementação de dependência através de privatização de estatais com dinheiro público. É fundamental destacar que todas estas criativas estratégias de ampliação do poder do capital sobre o trabalho foram realizadas em um período que, no Brasil, é identificado pelo importantíssimo marco da promulgação da Constituição Federal de 1988. De lá para cá, tantas PEC foram aprovadas que a Carta praticamente não pode ser mais reconhecida pela alcunha que tinha, a constituição cidadã. Este fenômeno – entendido como um pacto pós ditadura empresarial-militar – é percebido e combatido em diversas esferas, desde as forças organizadoras da classe que reivindicam o retorno da implantação nunca concretizada da Carta, até forças que seguem com um projeto classista que tenta construir uma agenda popular que ultrapasse os limites conciliatórios. O enfrentamento atual exige compreender que a fala de Salles carrega um sentido para além da tática eficiente na sua perversidade – como é, aliás, qualquer ação do capital; ela reúne e evidencia dois campos que costumam ser debatidos de maneira separada: as políticas de memória e as políticas ambientais. Dentre as diversas fronteiras comuns entre estes dois campos, destaco aqui o que mais interessa ao ataque ministerial: compõem lugares políticos de disputa aberta a respeito de bens não mercantilizáveis que interferem diretamente em setores estratégicos como a construção civil, junto ao turismo, e o agronegócio. A mercantilização
de direitos, transformando-os em serviços, é uma tática tradicional do (neo)liberalismo e uma das trincheiras mais evidentes podem ser percebidas em três campos onde ocorre uma luta tradicional: educação, saúde e previdência social. A privatização, e consequente financeirização destes direitos, têm sido pauta da arena da luta de classes em todo o mundo, e a resistência crescente se afirma de modo a defender sistemas públicos e universais de educação, aposentadoria e, sobretudo em tempos de pandemia, de saúde. Luta com vitórias e derrotas, em todo o mundo, como afirmou o chigado-boy-bythe-book Guedes em uma das mais duras frases mencionadas na “trosobada” reunião: “aprovamos a reforma da previdência o ano passado, enquanto os franceses fizeram passeatas contra a reforma da previdência”. Acontece que a resistência à área de atuação de Salles guarda algumas peculiaridades, na medida em que a luta por justiça ambiental e pelo direito à memória não possuem pautas consagradas, melhor definidas e unitárias dentro da esquerda. Aparentemente, a adesão a um ideário liberal praticamente tratado como senso comum em variados espectros políticos garante essa indefinição: a noção de sustentabilidade. Contudo, isso não é exclusividade do campo ambiental e da memória. A adesão mais recente, sobretudo da última década, de parte da esquerda pelo projeto liberal de educação que “democratiza o acesso” ao invés de universalizá-lo é uma tendência muito danosa. A adesão à sustentabilidade está arraigada ao campo da esquerda de forma ainda mais profunda, talvez porque a pauta ambiental torna-se, de fato, uma arena de lutas concretas no mesmo momento em que a globalização, a pós-modernidade e o fim
da história tomam conta do cenário político: o final dos anos 80. O conceito de sustentabilidade, derivado da ideia de desenvolvimento sustentável, surgiu em 1987, um ano antes da CF, a partir de um relatório encomendado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. O documento ganhou o sugestivo título de “Nosso Futuro Comum” e foi apelidado de Relatório Bruntland, em homenagem à primeira primeira ministra da norueguesa, do Partido dos Trabalhadores da Noruega, que presidiu a comissão. Tenho demonstrado que o conceito de sustentabilidade carrega uma faceta de fenômeno ideológico, uma força de poder simbólico capaz de transformar a poderosa tese liberal do “fim da história” em “mero” recorte de seu escopo de pensamento e ação. Dito de outro modo, não teria sido a tese de Fukuyama a metanarrativa predominante dos anos 90 capaz de mover corações e mentes, pelo contrário, a sustentabilidade é que teria assumido a hegemonia, sendo o fim da história apenas um caso particular. O relatório Bruntland consolidou a ideia de desenvolvimento voltado a garantir a manutenção das gerações futuras segundo as condições presentes. Aceitando que o futuro está ameaçado deveríamos, enquanto comunidade global, resolver o problema daqueles e daquelas que nos sucederão, garantindo sua sobrevivência em um mundo de recursos finitos. Ao assumir a finitude dos recursos naturais, deveríamos, então, ampliar o alcance sistêmico da economia como regulação da vida, estendendo-a definitivamente rumo à natureza para garantir a transmissão mais eficiente de seus usos para o futuro – sempre no singular, já que deverá ser comum.
Terra, 2013 Regina Galindo
Ao invés de anunciar um sintoma da mudança social em curso, como fez o fim da história, a tese da sustentabilidade apresentou de maneira mais direta e pragmática o rumo a se tomar. Esta visão da história que impõe um futuro comum exige também um presente uno que só poderá existir, paradoxalmente, se não houver mais história. Consequentemente, sem memória. Não há lugar para o passado enquanto alimentador de transformações, ou seja, a sustentabilidade altera a forma da relação temporal da modernidade ocidental. Ao invés de aprendermos com o passado, devemos “ensinar” ao futuro, garantindo que o sustentável deve ser, de fato, o desenvolvimento, tido aqui como algo próximo daquilo que Walter Benjamin chama de progresso. Tudo que ocorre sob a égide do “futuro comum”, portanto, é justificado em nome da salvação de uma geração futura e em sacrifício de inúmeras gerações passadas. Para o sucesso deste futuro único é preciso apagar os passados incomuns, homogeneizando a história e a geografia. Assim, a sustentabilidade foi assumida, inclusive pela esquerda, praticamente como equivalente universal de qualquer debate político ambiental, e não como uma forma liberal, bem elaborada, de tratar deste debate. Esta (meta)naturalização do conceito ambiental impede a compreensão da existência da luta de classes, da luta por espaços mais justos, solidários e socialistas. Mas Salles, assim como Guedes, não se esqueceu da necessidade de evitar essa luta. Eles sabem que é preciso enfraquecer a classe trabalhadora para apresentar a agenda mercantil agressiva que lhes coube implementar. A permanência e reprodução da noção de sustentabilidade lhes são fortes aliadas.
No complexo campo ambiental, o debate a respeito do uso econômico em áreas a serem preservadas é contaminado pela sustentabilidade quando tratado pelo campo conservacionista, que impõe um futuro liberal a populações com um passado nada comum ao liberalismo. Ideias preservacionistas, que alimentam ações políticas contrárias à presença humana em áreas de floresta podem ser profundamente violentas com populações ancestrais muito menos predatórias à natureza. A contestação dessas políticas, ao tornarmo-nos reféns da sustentabilidade, abre a possibilidade de incorporar a finalidade liberal de exploração econômica do território. Dessa maneira, é exigido daquelas populações produtividades, métodos e tempos próprios do capitalismo, muitas vezes convertendo-as em parcerias de grandes empresas que mercantilizam o uso “sustentável” da exploração da força de trabalho barata. As comunidades perdem, assim, sua autonomia, seus saberes e a relação saudável com seu espaço ancestral de habitação. Consequentemente, é falsa a dicotomia entre a preservação total e a conservação sustentável, embora o debate geralmente seja limitado a esta esfera, como se o modo de produção e utilização do espaço “natural” não pudesse ser repensado. É preciso superar a sustentabilidade. O terreno da justiça/racismo ambiental tem dado rumos muito mais interessantes ao debate, incluindo a memória. É preciso incorporá-lo de forma mais aderente pelo campo da esquerda. Abrir disputas que reconheçam a diferença entre um passado de explorados, exploradas e de exploradores é tarefa teórica e política urgente, a qual exige a dissolução da hegemonia da sustentabilidade e de
seus derivados “biofísicos” como é o caso da “resiliência”. Por isso, o exercício da memória como direito deve caminhar junto com a luta ambiental, dissolvendo a noção de imposição de um único futuro. Todavia, a sustentabilidade também atua de maneira perversa na pauta da memória. Retomemos a influência do Programa Monumenta, organizado pelo BID, iniciado no período FHC e incorporado pelo IPHAN posteriormente. Sem contratação de profissionais pelo regime jurídico único, isto é, por meio de terceirizados/as sem memória institucional, e desenvolvendo planos de preservação de sítios históricos organizados por parcerias público privadas, o Monumenta introduz de maneira abrangente a noção de sustentabilidade financeira dos sítios tombados. A memória, de forma deliberada, tornou-se investimento, um negócio fomentado com verbas públicas para alavancar desde pequenas empresas caseiras até ações políticas que aprofundam e naturalizam a assimilação da ideia de patrimônio histórico à de turismo nos programas governamentais de várias prefeituras. O passado tornou-se consumo, abrindo tempo e espaço para a construção de um pasteurizado “futuro comum”. Não é surpresa que o IPHAN, no recente fim do Ministério da Cultura, tenha tornado-se tutelado pela pasta do Turismo.
O capital sabe a importância de embaralhar e enfraquecer a luta pela memória e pelo meio ambiente. Sempre esteve em seu projeto, como imposição de continuidade existencial do capital, a ampliação qualitativa de mercadorias. Tornar o meio ambiente e a memória expressões da hegemonia do valor de troca não são sua meta final,
mas representam um passo fundamental para enfraquecer as fronteiras de resistência de sua ampliação concreta, territorial e ideológica. Bens ambientais e de memória não carregam, obrigatoriamente, valor de troca. Seu valor de uso, muitas vezes não podem ser mercantilizados sem que haja perda de seu sentido. A memória e a natureza têm aspectos cuja fruição ganha finalidade plena apenas quando está fora da esfera de circulação, em um tempo que escapa à captura da reprodução capitalista. Isso as tornam ameaças profundas à necessidade de aumento do fluxo e rotação do capital, fictício ou não. A luta em defesa da memória e a natureza, portanto, ganha contorno mais dramático em tempos de pandemia quando a crise do capital se torna mais profunda. As frações dominantes travarão uma batalha inevitavelmente fratricida para garantir o acúmulo e a reprodução de seu modo de existência. Salles compunha, naquela reunião, um lugar estratégico e apresentou suas artimanhas de modo objetivo para orgulho de seus chefes. Afinal, como conseguir ampliar um mercado que “não é legalização de jogos, não é bingo, não é caça-niquel, não é ... são resorts integrados”, como foi reivindicado pelo ministro do Turismo, se o campo ambiental e da memória não dialogarem com a sustentabilidade? Não por coincidência, foi o ministro do turismo a indicar a atual – e contestada – presidenta do IPHAN, uma turismóloga para gerir a memória. Lembremos da exposição de motivos da MP 759 – tornada a Lei 13.465/17, a qual reivindicava a exploração de faixas litorâneas por setores internacionais do turismo. O setor hoteleiro é um dos que apresenta maior
crise na atualidade e apostará em expansões agressivas que implicarão em desmatamentos, expulsão de populações tradicionais, demolições e conversão de sítios históricos em publicidade turística. Da mesma maneira, outro “pacto com o diabo” serão queimadas ainda mais extensivas para garantir a competitividade do agronegócio que, aliás, a partir da supramencionada lei, ganha contornos mais complexos ao se articular com a ampliação da fronteira de urbanização da Amazônia Legal. O ministro sabe que simplificar normas será mais eficiente, mesmo porque a batalha se dará no campo do judiciário, e, nesta arena, ele não precisará sequer alterar a noção de sustentabilidade para atingir seus fins. A simplificação de normas pode ser realizada dentro de uma conceituação mais pura do sentido de sustentabilidade, vindo a ser, inclusive, apoiado por muitos setores que dominam a agenda verde. A esquerda precisa compreender que a luta pela sustentabilidade não carrega a radicalidade suficiente para enfrentar esta conjuntura. É necessário retomar o pensamento radical socialista para questões ambientais, culturais e urbanas, ou permaneceremos, no máximo, apenas como colaboradores jurídicos capazes de aplainar e melhorar o desenvolvimentismo predatório até que ele consiga se apresentar como sustentável. Da mesma forma que o fascismo deve ser chamado e enfrentado como tal, o capitalismo também deve ser percebido em sua forma plena, pois seus apelidos nunca serviram para a classe trabalhadora.
Maria Magdalena Campos-Pons De las dos aguas, 2007