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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #6 EDIÇÃO ESPECIAL PRÉMIO DANIEL LOPES CARDOSO
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LABOR IMPROBUS OMNIA VINCIT 5
FICHA TÉCNICA 6
SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #6 – Edição Especial Prémio Daniel Lopes Cardoso Ficha Técnica Diretor Paulo Teixeira Editor Francisco Serra Loureiro Colaboraram nesta edição Célia Borges, Edgar Silva, Francisco Serra Loureiro Luís Neves Conselho Geral Tel. 213 849 200 | Fax. 213 534 870 | geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 | Fax. 222 054 140 | c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 | c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 | Fax. 213 534 834 | c.r.lisboa@osae.pt Design Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução ISSN 2182-9225 Depósito legal 358745/13 Registo na ERC com o n.º 126587 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 | Lisboa N.º de contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução www.osae.pt Os trabalhos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. ESTATUTO EDITORIAL disponível em http://osae.pt/pt/pag/OSAE/estatutos-editoriais/1/1/1/361
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ÍN DI CE 8
Nota introdutória ...................................................................................................................... 11 Fiança e Execução .................................................................................................................... 13 O Domínio do Setor Público sobre o Setor Privado na Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis .......................................................................................................................... 105 A Liberdade Religiosa do Trabalhador à Luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ..................................................................................................................................... 197 Responsabilidade no Crédito Hipotecário – O Princípio da Subsidiariedade ................ 275
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Nota introdutรณria
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Nota introdutória Na senda das publicações anteriores “Solicitadoria e Ação Executiva - Estudos", já na sua 6.ª edição ordinária, a presente coletânea assume uma natureza especial, porquanto é inteiramente dedicada à publicação dos trabalhos vencedores da última edição do Prémio Daniel Lopes Cardoso, que, para além de ser uma justa homenagem ao saudoso Colega, visa incentivar a criação de trabalhos literários, de carácter técnico- científico, ou que se debrucem sobre a história, a ética e a deontologia dos Solicitadores Portugueses. Os resultados finais do respetivo concurso foram divulgados no último Congresso da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), realizado em junho de 2017, na cidade de Viana do Castelo. A par dos prémios monetários, os candidatos vencedores foram brindados com a faculdade de verem publicados os seus trabalhos numa edição especial promovida pela OSAE. Atendendo aos propósitos traçados, designadamente no que concerne à divulgação de trabalhos de natureza técnico-científica, o IFBM - Instituto de Formação Botto Machado congratula-se pela qualidade e pertinência de todos os trabalhos submetidos a apreciação do júri, parabenizando em particular os candidatos vencedores, cujos trabalhos agora se publicam.
Paulo Teixeira 1º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
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Fiança e Execução Problemáticas Processuais Inerentes à Subsidiariedade da Garantia Pessoal
Célia Borges
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FIANÇA E EXECUÇÃO – PROBLEMÁTICAS PROCESSUAIS INERENTES À SUBSIDIARIEDADE DA GARANTIA PESSOAL
Célia Borges
Prémio Solicitador Daniel Lopes Cardoso - 3.ª Edição
março, 2017
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LISTA DE ABREVIATURAS Ac.
- Acórdão
al.
- alínea
als.
- alíneas
art.
- artigo
arts.
- artigos
CC
- Código Civil
CCom
- Código Comercial
Cfr.
- Conferir
cit.
- citada
CPC
- Código de Processo Civil em vigor, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho
CRP
- Constituição da República Portuguesa
CSC
- Código das Sociedades Comerciais
DL
- Decreto-Lei
ed.
- edição
LOSJ
- Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto
LULL
- Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças estabelecida pela Convenção Internacional assinada em Genebra, em 7 de junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de junho de 1934
NRAU
- Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, com a redação da Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro
n.º
- número
n.ºs
- números
ob.
- obra
p.
- página
pp.
- páginas
proc.
- processo
ss
- seguintes
STJ
- Supremo Tribunal de Justiça
TC
- Tribunal Constitucional
TRC
- Tribunal da Relação de Coimbra
TRE
- Tribunal da Relação de Évora
TRG
- Tribunal da Relação de Guimarães
TRL
- Tribunal da Relação de Lisboa
TRP
- Tribunal da Relação do Porto
v.g.
- verbi gratia
vol.
- volume
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INTRODUÇÃO Numa altura em que se vivem tempos de crise financeira e o sobreendividamento tem vindo a crescer, é cada vez mais frequente os devedores deixarem de ter capacidade para continuarem a cumprir com as suas obrigações. Assim, comummente, os credores exigem que o devedor garanta o cumprimento da obrigação através da prestação de uma garantia a seu favor, nomeadamente, a fiança. A fiança é uma garantia pessoal das obrigações, mediante a qual um terceiro assegura a realização de uma obrigação do devedor, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património por esse cumprimento, perante o credor. A constituição de uma fiança a favor do credor é uma forma de este se salvaguardar face a uma eventual impossibilidade de cumprimento da obrigação por parte do devedor. No entanto, pode suceder que o fiador também não cumpra a obrigação e, neste caso, o credor que possua um título executivo pode recorrer à ação executiva para exigir a realização coativa da prestação ao fiador e ao devedor. Tendo em conta que uma das principais características da fiança é a subsidiariedade e que esta característica se concretiza no benefício da excussão prévia importa saber as suas implicações na execução. O fiador é, assim, um devedor subsidiário e está, portanto, sujeito ao regime da penhorabilidade subsidiária. Contudo, o momento de alegabilidade do benefício da excussão prévia está dependente da forma de processo aplicável e da correspondente tramitação da ação executiva. Por seu turno, a forma de processo aplicável à execução está dependente dos sujeitos demandados e da circunstância de o fiador gozar ou não do benefício da excussão prévia. Além disso, no caso de existirem garantias reais sobre bens de terceiro, o fiador terá também direito à execução prévia dos bens sobre que recai a garantia. Neste sentido, o objetivo principal deste trabalho é saber as implicações que a subsidiariedade desta garantia tem na execução e analisar as problemáticas processuais que se verificam nesta matéria. O presente trabalho encontra-se dividido em dois capítulos. O primeiro capítulo contempla o enquadramento e o regime jurídico da fiança para conhecer o instituto, estando, portanto, divido em dois subcapítulos. Quanto ao primeiro subcapítulo, este versa sobre a noção e forma da fiança, as suas características e as suas modalidades. No entanto, no que concerne às modalidades, apenas analisaremos a subfiança e a retrofiança, uma vez que não se pretende fazer um estudo exaustivo de todas as modalidades desta garantia. O segundo subcapítulo é dedicado ao regime jurídico da fiança, atendendo às relações entre o credor e fiador, às relações entre devedor e fiador, às relações entre devedor e credor, à pluralidade de fiadores e, por último à extinção da fiança. No âmbito das relações entre credor e fiador analisaremos o benefício da excussão prévia, as
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situações em que este benefício é afastado e os meios de defesa oponíveis ao credor pelo fiador. Em seguida, o segundo capítulo respeita às problemáticas processuais inerentes à subsidiariedade da garantia pessoal. Este capítulo encontra-se também dividido em três subcapítulos, nomeadamente, no título executivo, na legitimidade das partes e na tramitação inicial da ação executiva, por serem as questões mais relevantes no estudo do tema. No que concerne ao primeiro subcapítulo, este versa sobre as espécies de títulos executivos. No âmbito das espécies de títulos executivos optamos por autonomizar os títulos executivos judiciais e parajudiciais e os títulos executivos extrajudiciais. Pretende-se saber quais são os títulos executivos que podem fundamentar uma ação executiva instaurada contra o fiador. Pretende-se também analisar a problemática existente na jurisprudência e na doutrina em torno do art. 14.º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), isto é, saber se o título executivo a que se refere este preceito abrange o fiador ou, se pelo contrário, abrange apenas o arrendatário. No
segundo
subcapítulo
analisaremos
a
legitimidade
das
partes,
mais
concretamente, o critério geral da legitimidade, a fiança e bens de terceiro vinculados à garantia do crédito e, por último, o litisconsórcio inicial e superveniente. No âmbito do litisconsórcio superveniente discute-se se poderá ser deduzido o incidente de intervenção principal provocada na ação executiva, pelo que pretendemos analisar a relevância prática que a dedução deste incidente terá para o fiador. Além disso, como se disse, pode suceder que existam garantias reais sobre bens de terceiro e neste caso pretendemos analisar as regras da legitimidade para a ação executiva. Por fim, o último subcapítulo é dedicado à tramitação inicial da ação executiva. Neste subcapítulo analisaremos as implicações sobre a forma do processo, a invocação do benefício da excussão prévia pelo devedor subsidiário e, por último, os meios de defesa do fiador executado.
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CAPÍTULO I – FIANÇA – ENQUADRAMENTO E REGIME JURÍDICO I – ENQUADRAMENTO A fiança é o exemplo paradigmático das garantias pessoais e é o instituto dessa natureza que se encontra regulado no Código Civil (CC), sendo, por isso, utilizado como referência para a construção do regime de outras garantias, como o aval ou a garantia autónoma1. É uma garantia pessoal típica, cujo regime está previsto nos arts. 627.º a 654.º do 2
CC . A fiança encontra antecedentes no Direito Romano, designadamente nos institutos da sponsio, da fidepromissio e da fideiussio. A sponsio resulta da ius civile, ao passo que, a fidepromissio e a fideiussio decorrem do ius gentium. A fideiussio emerge da sponsio e da fidepromissio e é a figura que mais se aproxima da fiança. Tal como o nome indica, a fideiussio era baseada na fides e expressa na fórmula “in fide tua esse iubes? Iubeo”, através da qual se fazia surgir a obrigação de o fiador assegurar o pagamento da obrigação principal, constituindo uma verborum obligatio. Essa obrigação do fiador tinha caráter acessório, visto que previa uma obrigação já existente, independentemente de qual a sua fonte ou de já estar ou não vencida3. O crescimento da fiança acentua-se particularmente nos períodos de incremento do tráfico jurídico, visto que a constituição de uma fiança confere aos credores uma maior segurança na satisfação do seu direito de crédito. Assim, na eventualidade de incumprimento da obrigação pelo devedor, o fiador responde pela obrigação garantida. No entanto, a fiança é uma figura delicada, na medida em que o fiador pode vir a cumprir débitos significativos, ainda que não tenha obtido qualquer vantagem com a constituição daquele crédito, sendo o reembolso contra o devedor frequentemente difícil4, uma vez que se o fiador, enquanto garante, é chamado a cumprir a obrigação, significa que o devedor deixou de ter capacidade económica para cumprir com as suas obrigações. Assim, se o devedor não consegue cumprir a sua obrigação perante o credor, dificilmente conseguirá cumprir essa mesma obrigação perante o fiador que, após proceder ao pagamento da dívida, fica sub-rogado nos direitos do credor perante o
1
Cfr. GONZÁLEZ, J. A. – Código Civil Anotado, vol. II, Lisboa: Quid Juris, 2012, p. 414 e GOMES, M. J. C.
– Estudos de Direito das Garantias, vol. I, Coimbra: Almedina, 2004, p. 8. 2
O art. 655.º, do CC, foi revogado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o NRAU (art. 2.º, n.º
1, do NRAU). 3
Cfr. LEITÃO, L. M. – Garantias das Obrigações, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 106.
4
Cfr. CORDEIRO, A. M. – Tratado de Direito Civil IX, Direitos das Obrigações, Cumprimento e não cumprimento,
transmissão, modificação e extinção, garantias, Coimbra: Almedina, 2014, p. 546.
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devedor5. Nada impede que o fiador demande o devedor, porém, corre o risco de incobrabilidade. Apesar das suas fraquezas, a fiança acarreta grandes vantagens para o comércio jurídico, nomeadamente no que diz respeito à concessão de crédito, visando reforçar a confiança do credor na efetiva satisfação do seu direito de crédito. Trata-se, assim, de um instituto que assume enorme relevância prática e é livremente acordado pelas partes. 1. NOÇÃO E FORMA Nos termos do disposto no art. 627.º, n.º 1, do CC, “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor”. A fiança é, portanto, uma garantia pessoal das obrigações, mediante a qual um terceiro assegura a realização de uma obrigação do devedor, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património por esse cumprimento perante o credor. Assim, o valor do património do fiador é, em regra, o valor garantido pela fiança6. No entanto, as partes podem convencionar limitar a responsabilidade do fiador apenas alguns dos seus bens (art. 602.º, do CC7), caso em que o valor da fiança será o valor total desses bens. Contudo, se a garantia incidir sobre todo o património do fiador, todas as oscilações que o venham a atingir refletem-se na fiança, uma vez que, tal como se disse, o valor da fiança corresponde ao valor do património do fiador. Apesar de a obrigação do fiador ser acessória da que recai sobre o devedor principal, o fiador é verdadeiro devedor do credor8, uma vez que a constituição de uma fiança a favor do credor, visa fundamentalmente protegê-lo, podendo mesmo a fiança ser prestada sem necessidade de consentimento do devedor e até mesmo contra a sua vontade9 (art. 628.º, n.º 2, do CC)10.
5
Sobre a sub-rogação nos direitos do credor, cfr., infra, capítulo I, II- regime jurídico, 2.
6
Cfr. LEITÃO, L. M. – Direito das Obrigações, vol. II, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 311.
7
O art. 602.º, do CC, refere-se à limitação convencional da responsabilidade do devedor a certos bens, sendo
aplicável quer ao devedor principal, quer ao fiador, enquanto devedor subsidiário do credor. 8
Neste sentido, ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. II, p. 479, MENEZES LEITÃO, Direito das
obrigações, vol. II, p. 311 e M. J. COSTA GOMES, Estudos de Direitos das Garantias, vol. I, p. 11. Em sentido oposto, GOMES DA SILVA,
Conceito e estrutura da obrigação, p. 66, considera que, apesar das garantias pessoais serem
obrigações impostas ou assumidas por terceiros, estes não podem ser considerados verdadeiros devedores. No entanto, ainda que o fiador seja um devedor subsidiário não deixa de ser um devedor do credor, pois, em caso de incumprimento da obrigação pelo devedor, terá que cumprir a obrigação. 9
Aliás, o art. 767.º, do CC, estabelece que a prestação tanto pode ser realizada pelo devedor, como por um
terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação. 10
Cfr. VARELA, J. M. A. – Das obrigações em geral, vol. II, 7.ª ed., 9.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2013, p.
479.
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Do exposto resulta que, quando alguém afiança o cumprimento de uma obrigação, há um alargamento quantitativo da massa de bens penhoráveis, na medida em que o credor passa a ter a possibilidade de executar, para além do património do devedor, o património do fiador enquanto devedor subsidiário11. Em princípio, a fiança abrange apenas uma ou algumas dívidas do devedor. Todavia, pode compreender todas as suas dívidas presentes ou futuras (art. 628.º, n.º 2, do CC), desde que, no caso destas últimas, estas possam ser determináveis. O negócio será nulo, por indeterminabilidade do seu objeto, caso não seja estabelecido qualquer critério para determinação das obrigações futuras a afiançar pelo fiador12 (art. 280.º, n.º 1, do CC)13. Além disso, a obrigação pode ser ainda condicional, constituindo-se, neste caso, na dependência de condição suspensiva ou resolutiva (art. 628.º, n.º 2, do CC). A fiança poderá ainda ser qualificada como onerosa ou gratuita, consoante o fiador seja ou não remunerado. Se o fiador for remunerado pela outra parte, isto é, pelo devedor ou pelo credor, a fiança é onerosa (como sucede na fiança bancária14). Caso não o seja, a fiança é gratuita15. Em regra, a fiança constitui um negócio gratuito. Tendo em conta o disposto no art. 457.º, do CC, e, apesar de a lei não o mencionar expressamente, o negócio que dá origem à fiança tem caráter bilateral e não unilateral, ou seja, a fiança resulta sempre de um contrato celebrado entre o fiador e o credor ou entre fiador e o devedor, sendo que, neste último caso, revestirá a natureza de um contrato a favor de terceiro (arts. 443.º e ss, do CC), não sendo necessária a 11
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P. – Direito das Garantias, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 85.
12
Vide o Ac. do TRL, de 6 de dezembro de 2005, segundo o qual, o fiador não pode, nem deve correr o risco
de se expor à ruína, por efeito da imprudência com que o credor consentiu na dívida principal e o devedor na multiplicação dos seus débitos, só porque o respetivo pagamento está garantido. Assim, a obrigação do fiador é determinável quando este, no momento da celebração do negócio, pode prefigurar o tipo, o montante e a medida da obrigação do devedor principal. Nesta linha, também o Ac. do TRL, de 17 de setembro de 2009, o qual refere que “não é nula por indeterminabilidade do seu objeto, se, quando foi emitida a declaração de fiança, estavam perfeitamente identificados nos termos do contrato que a mesma visava assegurar – partes contratantes, finalidade do crédito aprovado e montante máximo, o prazo do contrato, os encargos e a forma de pagamento” e o Ac. do TRC, de 9 de fevereiro de 2010, o qual estabelece que o art. 280.º, do CC, comina com nulidade o negócio jurídico indeterminável, mas não o negócio jurídico indeterminado, desde que seja determinável, nos termos do disposto no art. 400.º, do CC. 13
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 311-312.
14
A fiança bancária é prestada por uma instituição de crédito, resultando do cumprimento de um contrato
celebrado entre o banco e o devedor, seu cliente, no qual o banco se obriga, a título oneroso, à prestação da fiança perante o credor. Esta modalidade de fiança não dispõe de regime legal próprio, ainda que seja mencionada no art. 623.º, n.º 1, do CC. 15
Cfr. ALMEIDA, C. F. – Contratos III, Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco, 2.ª ed., Coimbra:
Almedina, 2013, p. 199.
20
intervenção do credor para o efeito. No entanto, nada impede que resulte de um contrato plurilateral celebrado entre as três partes, credor, devedor e fiador16. Na hipótese de a fiança ser constituída por um negócio unilateral, estaríamos perante uma oposição ao princípio da tipicidade dos negócios jurídicos unilaterais, uma vez que o art. 457.º, do CC, estabelece que “a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei”. Contudo, a fiança é sempre elemento de uma relação trilateral entre o fiador, o credor e o devedor, ainda que possa resultar de um contrato celebrado entre apenas duas partes, ou seja, entre o credor e o fiador ou entre este e o devedor. No que concerne à forma da fiança, o art. 628.º, n.º 1, do CC, consagra que “a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para obrigação principal”. Com efeito, a forma da declaração de prestação de fiança é a forma exigida para a obrigação principal (mera declaração oral, documento escrito simples ou autenticado ou documento autêntico), apesar de se exigir que a declaração do fiador seja expressa (art. 217.º, n.º 1, do CC). Contudo, esta forma é estabelecida somente para a declaração do fiador, uma vez que a lei não exige tal requisito quanto à declaração da outra parte no contrato de fiança, independentemente de ser o devedor ou
o
credor17,
estando,
portanto,
estas
declarações
sujeitas
ao
regime
da
consensualidade previsto no art. 219.º, do CC. Sempre que a obrigação principal não esteja sujeita a qualquer forma (v.g. o pagamento do preço da compra de uma joia), a fiança pode revestir a forma consensual, não tendo necessariamente de ser prestada por escrito. Contudo, no caso de se exigir para a constituição da obrigação principal forma superior à forma escrita, a fiança só será válida se observar a forma exigida para a obrigação principal (v.g. a obrigação do mutuário superior a 25.000,00 euros, em que se exige para a sua constituição a celebração de um documento autêntico ou de um documento particular autenticado – art. 1143.º, do CC). No entanto, para que o contrato de fiança seja título executivo é necessário que observe alguma das formas prescritas no n.º 1 do art. 703.º, do Código de Processo Civil
16
Neste sentido, na doutrina, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. II, p. 313, PESTANA DE
VASCONCELOS,
Direito das Garantias, p. 85, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, vol. II, pp. 486-487, M. J.
COSTA GOMES,
Estudos de Direito das Garantias, vol. I, p. 34 e ALBERTO GONZÁLEZ, Código Civil Anotado, vol. II,
p. 422. Na jurisprudência, o Ac. do STJ, de 26 de outubro de 2010 e o Ac. do TRP, de 13 abril de 2015. Em sentido oposto, na doutrina, VAZ SERRA, BMJ 71 (1957), p. 26 e CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, contratos de liberalidade, de cooperação e de risco, p. 196. Na jurisprudência, o Ac. do TRG, de 11 de maio de 2005. 17
Neste sentido, o Ac. do TRC, de 29 de setembro de 2009, no qual se menciona que na prestação de fiança
relativa a obrigação dependente de determinada forma, só a declaração do fiador tem de revestir essa mesma forma, sendo que a declaração do outro contraente (credor ou devedor) não necessita de ser escrita, nem sequer expressa, podendo ser tácita.
21
(CPC). Assim, se a fiança revestir a forma consensual ou se constar apenas de um simples documento escrito, o credor não está munido de um título executivo, uma vez que não dispõe de um documento a que a lei reconhece força bastante para tal, não podendo recorrer de imediato à ação executiva em caso de incumprimento da obrigação. Neste caso, o credor pode recorrer à ação declarativa para obter uma sentença condenatória (art. 703.º, n.º 1, al. a), do CPC), como, poderá também recorrer ao procedimento de injunção, desde que se trate de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a 15.000,00 euros (art. 1.º, do diploma preambular, do DL 269/98, de 1 de setembro) ou, independentemente do valor, se se tratar de uma transação comercial. Diferentemente, se o contrato de fiança for celebrado por documento autêntico ou documento particular autenticado, o credor já possui um título executivo contra o fiador (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC). Ainda no que concerne à forma da fiança, refira-se que esta poderá ser prestada em documento autónomo, separado daquele em que consta a obrigação principal, uma vez que a lei não obriga que constem do mesmo documento18. Enquanto negócio jurídico, a constituição de uma fiança está sujeita a todos os requisitos dos negócios jurídicos (respeitantes à capacidade, à vontade das partes)19. 2. CARACTERÍSTICAS As principais características da fiança são a acessoriedade e a subsidiariedade. A acessoriedade é uma característica essencial da fiança, ao contrário da subsidiariedade que pode ser afastada20. A acessoriedade não pode ser afastada por vontade das partes, uma vez que faz parte da própria natureza da fiança. Assim, se não se verificar a acessoriedade da garantia em relação à dívida principal, não estamos perante uma fiança21. Como resulta do art. 627.º, n.º 2, do CC, “a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”, ou seja, a obrigação do fideiussor está dependente estrutural e funcionalmente da obrigação daquele, sendo determinada em termos genéticos, funcionais e extintivos por essa obrigação22. Trata-se, portanto, de uma característica que se manifesta nos diversos preceitos que disciplinam o seu regime, desde logo, na forma da declaração da prestação da fiança que obedece à forma exigida 18
Assim, o Ac. do TRL, de 2 de novembro de 2006.
19
Vide os arts. 66.º e ss e 217.º e ss, do CC.
20
“A fiança tem como características principais a acessoriedade e a subsidiariedade, sendo essencial apenas
aquela” (Ac. do TRE, de 13 de janeiro de 2011). Neste sentido, também o Ac. do TRP, de 21 de março de 2013. 21
Cfr. MARTINEZ, P. R. e FUZETA DA PONTE, P. – Garantias de cumprimento, 5.ª ed., Coimbra: Almedina,
2006, p. 88. 22
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 314.
22
para obrigação principal, ainda que a declaração do fiador tenha de ser expressa (art. 628.º, n.º 1, do CC). Outra manifestação desta característica é no âmbito da fiança, uma vez que a garantia não pode exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas (por exemplo, não pode estabelecer-se um prazo mais curto do que o da obrigação principal para o cumprimento da obrigação pelo fiador) conforme dispõe o n.º 1 do art. 631.º, do CC. Contudo, quando tal aconteça, procede-se à sua redução princípio da redução do negócio parcialmente nulo - não sendo a fiança nula (art. 631.º, n.º 2, do CC). É também manifestação da acessoriedade desta garantia, a circunstância de a sua natureza civil ou comercial estar dependente da natureza da obrigação principal23. A natureza civil ou comercial da obrigação permite-nos saber se o fiador goza ou não do benefício da excussão prévia, uma vez que tratando-se de uma fiança de obrigação mercantil, este benefício não existe, nos termos do disposto no art. 101.º, do Código Comercial (CCom)24. O facto de o fiador gozar ou não do benefício da excussão prévia terá implicações na tramitação inicial da ação executiva, desde logo, na forma do processo aplicável à execução25. Além disso, o facto de a fiança não ser válida se a obrigação principal não o for também, seja qual for a causa da sua invalidade (mera anulabilidade ou a nulidade) é igualmente manifestação desta característica (art. 632.º, n.º 1, do CC). No entanto, quando a causa da invalidade da obrigação principal seja a anulabilidade, a obrigação do fiador só deixa de existir se o facto constitutivo daquela obrigação for efetivamente anulado (cfr. arts. 287.º a 289.º do CC)26. Existe aqui uma relação de dependência unilateral entre o ato constitutivo da fiança e o da obrigação principal, por força do qual, o que suceder a este, à partida, reflete-se automaticamente sobre aquele27. Contudo, se obrigação principal for anulada por incapacidade ou por falta ou vício de vontade do devedor, a fiança mantém-se, se o fiador conhecia a causa da anulabilidade ao tempo em que a prestou (art. 632.º, n.º 2, do CC), isto porque a fiança prestada nestes moldes deve valer como garantia de que a obrigação principal não será anulada, respondendo o fiador pelo incumprimento da obrigação, caso tal venha acontecer. Um exemplo desta situação é a fiança prestada para garantir uma dívida contraída por um menor, sabendo o fiador que o devedor é menor. Nesta situação, a acessoriedade da fiança desaparece, uma vez que a obrigação principal foi anulada. No entanto, o fiador continua a poder invocar os 23
Cfr. CORDEIRO, A. M., ob. cit., p. 547.
24
Sobre a exclusão do benefício da excussão prévia, cfr., infra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.2.
25
Sobre a tramitação inicial da ação executiva, cfr., infra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação executiva.
26
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 314.
27
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., pp. 426-427.
23
meios de defesa que lhe são próprios e, ainda, os que o devedor teria se a obrigação não fosse invalidada (art. 637.º, do CC)28. Note-se que, o n.º 2 do art. 632.º, do CC, apenas se refere à situação de anulabilidade, pelo que, em caso de nulidade vigora o regime geral estabelecido no n.º 1 deste preceito. É ainda manifestação desta característica da fiança, a possibilidade concedida ao fiador de poder opor os meios de defesa próprios do devedor, salvo se forem incompatíveis com a sua obrigação (art. 637.º, n.º 1, do CC). Assim, o fiador pode invocar, por exemplo, a prescrição da obrigação principal (ainda que a obrigação do fiador não tenha prescrito), a nulidade desta (com ressalva do disposto no art. 632.º, do CC), a sua extinção, entre outros. No entanto, excetuam-se destes meios de defesa, os que sejam incompatíveis com a obrigação do fiador, o que significa que, tal como enunciado, o fiador não pode invocar, por exemplo, a anulabilidade resultante da falta de capacidade do devedor ou da falta ou vícios de vontade deste se conhecia a causa de anulabilidade, conforme dispõe o n.º 2 do art. 632.º, do CC29. Por último, é igualmente manifestação da acessoriedade da fiança, o facto de a extinção da obrigação principal desencadear a extinção da fiança (art. 651.º, do CC). Trata-se de uma consequência necessária da natureza acessória da garantia (art. 627.º, n.º 2, do CC)30. Efetivamente, se o fiador garante o cumprimento da obrigação principal e esta se extingue, a fiança deixa de ter objeto, pelo que a obrigação contraída pelo fiador perde, em princípio, a sua razão de ser. “Em princípio” porque o fiador garante implicitamente que, nos casos de anulação da obrigação principal consagrados no n.º 2 do art. 632.º, do CC, o devedor não fará uso do seu poder de anulação31. Assim, se o devedor cumpre a sua obrigação, a obrigação do fiador extingue-se porque nada mais há para garantir, uma vez que o direito de crédito do credor já se encontra satisfeito. No entanto, a fiança extingue-se também pela verificação de qualquer das causas extintivas das obrigações, por isso, é que se admite que o fiador possa opor ao credor, para além dos meios que lhe são próprios, os meios de defesa que competem ao devedor (art. 637.º, do CC). Assim, sendo declarado nulo ou anulado o ato extintivo da obrigação principal parece que devia renascer a fiança. Contudo, a esta regra a lei estabelece algumas exceções, de forma a proteger a boa-fé do fiador. Neste sentido, o art. 766.º, do CC, que se refere à extinção por cumprimento, estabelece que “se o cumprimento for 28
Cfr. GOMES, M. J. C., Estudos de Direito das Garantias, ob. cit., p. 22.
29
Sobre os meios de defesa oponíveis ao credor pelo fiador e sobre os meios de defesa do fiador executado,
cfr., infra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.3. e capítulo II – III tramitação inicial da ação executiva, 3, respetivamente. 30
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita) – Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª
ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 654-669. 31
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 507.
24
declarado nulo ou anulado por causa imputável ao credor, não renascem as garantias prestadas por terceiro, salvo se este conhecia o vício na data em que teve notícia do cumprimento da obrigação”. No mesmo sentido, vai também o art. 839.º, do CC, em relação à dação em pagamento, o art. 856.º, do CC, relativamente à compensação, o art. 860.º, n.º 2, do CC, quanto à novação, o art. 866.º, n.º 3, do CC, em relação à remissão e, por último, o art. 873.º, n.º 2, do CC, relativamente à confusão32 33. Após estas considerações sobre a acessoriedade, importa analisar outra das principais características da fiança, nomeadamente a subsidiariedade. Embora seja uma das principais características da fiança, a subsidiariedade não é uma característica essencial, uma vez que pode ser afastada por vontade das partes. No entanto, esta característica não pode entender-se isolada da anterior, uma vez que não haverá fiança se a obrigação for apenas subsidiária34. A subsidiariedade da fiança concretiza-se com o benefício da excussão prévia, isto é, consiste na faculdade de o fiador invocar este benefício, impossibilitando o credor de executar o seu património enquanto não se mostrem excutidos todos os bens do devedor. Assim, o credor só poderá atingir o património do fiador se após a excussão do património do devedor, os bens deste se revelarem insuficientes, não conseguindo o credor obter a satisfação integral do seu crédito (art. 638.º, do CC e art. 745.º, do CPC). Aliás, no caso de existirem garantias reais constituídas por terceiro anteriores ou contemporâneas à fiança, o fiador tem igualmente o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia, operando também, neste caso, a subsidiariedade da fiança (art. 639.º, do CC). Deste modo, o benefício da excussão prévia assume enorme relevância prática no processo executivo, uma vez que, tal como se disse, sendo instaurada uma ação executiva contra o fiador não poderão ser penhorados os seus bens, sem que antes se mostrem excutidos todos os bens do devedor. No entanto, o momento de alegabilidade do benefício da excussão prévia varia consoante a forma de processo aplicável à execução e correspondente tramitação que, por sua vez está dependente do fiador gozar ou não deste benefício e dos sujeitos demandados para a execução. O mesmo acontece se existir garantia real sobre bens de terceiro, pois o fiador poderá
32
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit.,
pp. 669-670. 33
Sobre a extinção da fiança, cfr., infra, capítulo I, II – regime jurídico, 5.
34
Cfr. COSTA, M. J. A. – Direito das Obrigações, 12.ª ed. revista e atualizada, Coimbra: Almedina, 2013, pp.
894-895.
25
também invocar a execução prévia do bem sobre que recai a garantia (art. 639.º, do CC)35. Trata-se de uma característica que, como se disse, não é essencial à fiança. Assim, é possível o fideiussor renunciar a ela, conforme dispõe a alínea a) do art. 640.º, do CC. Por sua vez, a alínea b) deste normativo, afasta igualmente esta característica, ao estabelecer que o fiador não pode invocar o benefício da excussão prévia, quando o devedor ou o dono dos bens onerados com a garantia não puder, em virtude de facto posterior à constituição da garantia, ser demandado no território continental ou das ilhas adjacentes. Por último, a subsidiariedade da fiança é igualmente excluída no caso de se tratar de uma obrigação comercial (art. 101.º, do CCom). 3. MODALIDADES A fiança apresenta diversas modalidades, nomeadamente, a subfiança, a retrofiança, a fiança geral, a fiança ao primeiro pedido, a fiança bancária e a fiança prestada por sociedades comerciais. No entanto, analisar-se-á com mais detalhe apenas a subfiança e a retrofiança, uma vez que não se pretende com este estudo fazer uma análise exaustiva de todas as modalidades da fiança. Pelo contrário, apenas se pretende saber as implicações que esta garantia poderá ter no processo executivo. Assim, só serão tecidas algumas considerações gerais acerca das restantes modalidades. A fiança geral, também denominada fiança omnibus, garante um conjunto indeterminado de obrigações, quer sejam presentes, quer sejam futuras. Deste modo, o que caracteriza esta fiança é o seu conteúdo genérico, uma vez que pode referir-se a obrigações já constituídas, bem como a obrigações futuras (art. 628.º, n.º 2, do CC). No entanto, no caso destas últimas, estas terão que ser determináveis, sob pena de o negócio ser nulo, por indeterminabilidade do seu objeto (art. 280.º, n.º 1, do CC). Por sua vez, na fiança ao primeiro pedido, o fiador tem de proceder ao pagamento logo que seja interpelado pelo credor. Todavia, a acessoriedade da fiança não desaparece, apenas fica suspensa, isto porque o fiador mantém igualmente o direito de invocar os meios de defesa que eram invocáveis pelo devedor, após proceder ao pagamento. Por seu turno, a fiança bancária, como o próprio nome indica, é prestada por uma instituição de crédito, resultando do cumprimento de um contrato celebrado entre o banco e o devedor, no qual o banco se obriga, a título oneroso, à prestação da fiança perante o credor. Apesar desta modalidade de fiança não dispor de um regime legal próprio, vem mencionada no art. 623.º, n.º 1, do CC.
35
Sobre o benefício da excussão prévia, cfr., infra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.1. e 1.2. Sobre as
implicações de forma do processo e a invocação do benefício da excussão prévia pelo devedor subsidiário, cfr., infra, capítulo II, III- tramitação inicial da ação executiva, 1 e 2.
26
Finalmente, a fiança prestada por sociedades comerciais está sujeita aos limites estabelecidos no n.º 3 do art. 6.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), para a prestação de garantias36. 3.1. SUBFIANÇA Nos termos do disposto no art. 630.º, do CC, o “subfiador é aquele que afiança o fiador perante o credor”. Neste sentido, sempre que alguém garante pessoalmente ao credor o cumprimento da obrigação do fiador presta uma subfiança, denominada abonação no Código de Seabra (art. 827.º, do antigo CC). A subfiança consiste na fiança de uma fiança, na medida em que a obrigação do subfiador está para a obrigação do fiador como a deste está para a obrigação principal. Com efeito, a subfiança apresenta as mesmas características que a fiança, e, portanto, encontra-se sujeita ao mesmo regime, com as necessárias adaptações. Sem prejuízo de alguma norma ou de as próprias partes estabelecerem coisa diversa37. Tal como o fiador, também o subfiador goza do benefício da excussão prévia, quer em relação ao fiador, quer em relação ao devedor (art. 643.º, do CC). Assim, o subfiador goza de um duplo benefício da excussão prévia, na medida em que, invocandoo, em primeiro lugar, o credor terá que executar o património do devedor e o património do fiador e só após a excussão de todos os bens destes dois patrimónios é que poderá executar o património do subfiador. É evidente que, para que tal aconteça, é necessário que o subfiador não tenha renunciado ao benefício da excussão prévia em relação ao devedor e ao fiador38 ou este não tenha sido afastado nos termos gerais (arts. 640.º e 641.º, do CC e art. 101.º, do CCom). Do exposto resulta que se for proposta uma ação executiva contra o subfiador e gozando este de um duplo benefício da excussão prévia, os seus bens só poderão ser penhorados, após a excussão do património do devedor, mas não só, também os bens do fiador terão que ser executados e mostrar-se insuficientes para a satisfação do direito de crédito do credor. Assim, só perante a insuficiência dos bens dos patrimónios do devedor e do fiador é que poder-se-á atingir os bens do subfiador. No entanto, este terá que alegar o benefício da excussão prévia quando for citado para ação executiva, sendo que o momento da citação do subfiador e, consequentemente, o momento de alegabilidade do benefício da excussão prévia está dependente da forma do processo aplicável e correspondente tramitação da ação executiva. Além disso, tendo em conta que se existir garantia real sobre bem de terceiro, o fiador tem direito à execução prévia do bem sobre que recai a garantia, o mesmo sucede com o subfiador que, sendo demandado para o
36
Cfr. ALMEIDA, C. F., ob. cit., pp. 199-202.
37
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., p. 906.
38
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., p. 439.
27
processo executivo, poderá invocar o benefício à excussão real (art. 639.º, do CC). Também neste caso, o momento de alegabilidade deste benefício está dependente da forma do processo aplicável à execução. Logo, podemos concluir que o subfiador é também um devedor subsidiário e, portanto, está sujeito ao regime da penhorabilidade subsidiária previsto no art. 745.º, do CPC. Naturalmente que para recorrer à ação executiva o credor tem que possuir um dos títulos executivos taxativamente enumerados no n.º 1 do art. 703.º, do CPC. No entanto, se não possuir um título executivo pode sempre recorrer à ação declarativa ou ao procedimento de injunção. Contudo, neste último caso terá que obedecer aos requisitos previstos no DL n.º 269/98, de 1 de setembro, nomeadamente tratar-se de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a 15.000,00 euros ou independentemente do valor se se tratar de uma transação comercial. Além disso, tendo em conta que acessoriedade é uma característica essencial da fiança e que a subfiança não é mais do que uma fiança de uma fiança, se o devedor cumprir a obrigação extingue-se a fiança e a subfiança (art. 651.º, do CC). Se for o fiador a cumprir, adquire o crédito por sub-rogação em relação ao devedor (art. 644.º, do CC) e extingue-se também a subfiança. Por sua vez, se o subfiador vier eventualmente a cumprir a obrigação adquire o crédito por sub-rogação, mas o crédito garantido com a fiança (art. 582.º, por força do disposto no art. 594.º, do CC)39. Note-se que, o crédito garantido com a fiança é o crédito do devedor. No caso de existir pluralidade de fiadores e se algum deles tiver subfiador, “este não responde, perante os outros fiadores, pela quota do seu afiançado que se mostre insolvente, salvo se o contrário resultar do ato da fiança” (art. 650.º, n.º 4, do CC), isto porque, o subfiador garante apenas o fiador em relação ao credor e não em relação aos outros fiadores40. 3.2. RETROFIANÇA Diferentemente do que sucede com a subfiança, a retrofiança não se encontra prevista na lei, podendo as partes recorrer a esta figura com base no princípio da autonomia privada, previsto no art. 405.º, do CC. Trata-se de uma fiança do crédito que o fiador que cumpre adquire por sub-rogação em relação ao devedor (arts. 644.º e 592.º, do CC)41. Sempre que o fiador cumpre e é prestada uma fiança nestes moldes, funciona a retrofiança que tem como finalidade garantir esse crédito eventual. Assim, se o fiador
39
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P., ob. cit., p. 99.
40
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., p. 907.
41
De forma também a garantir-se na eventualidade de vir a cumprir a obrigação, é comum o fiador constituir
uma hipoteca sobre os bens do devedor a seu favor.
28
vier a cumprir a obrigação, adquire um crédito em relação ao devedor que está garantido por uma fiança prestada pelo retrofiador. Com a constituição de uma retrofiança a seu favor, o fiador transfere o risco de incumprimento ou de insolvência do devedor para o terceiro. Deste modo, o fiador garante o credor e, caso venha a cumprir a obrigação, face ao incumprimento por parte do devedor, é garantido por um terceiro relativamente ao crédito que adquire. No fundo, a retrofiança é uma modalidade de contragarantia. Em tudo o resto, é aplicável à retrofiança o regime geral da fiança previsto nos arts. 627.º a 654.º do CC42. Daqui resulta que também o retrofiador goza do benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC), desde que a ele não tenha renunciado ou este não tenha sido afastado nos termos gerais (arts. 640.º e 641.º, do CC e art. 101.º, do CCom). Assim sendo, o retrofiador é um devedor subsidiário e, por isso, sujeito ao regime da penhorabilidade subsidiária previsto no art. 745.º, do CPC. No entanto, se o subfiador é chamado a cumprir a obrigação, significa que já houve o cumprimento da obrigação a que o devedor estava adstrito por parte do fiador, pelo que só atendendo ao caso em concreto poderemos ver a relevância prática da invocação do benefício da excussão prévia pelo retrofiador. Note-se que para se recorrer ao processo executivo é necessário possuir um título executivo contra o retrofiador (art. 703.º, n.º 1, do CPC). A particularidade desta figura é a circunstância de ser constituída sob a condição suspensiva de o fiador (eventualmente) se tornar credor43.
42
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P., ob. cit., p. 100.
43
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., p. 424.
29
II – REGIME JURÍDICO 1. RELAÇÕES ENTRE CREDOR E FIADOR 1.1. BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA O direito que melhor caracteriza o reforço da garantia patrimonial trazido pela fiança é o que confere ao credor o poder de exigir a realização da prestação devida caso o devedor não cumpra a sua obrigação. Assim, face ao incumprimento do devedor, o fiador não irá responder apenas pela prestação inicial, mas também pelas consequências legais e contratuais do não cumprimento, incluindo a mora do devedor (art. 634.º, do CC)44 45. Daqui resulta que o credor pode exercer perante o fiador os mesmos direitos que tem perante o devedor, quer estes digam respeito à ação de cumprimento, quer respeitem à indemnização por incumprimento, mora ou cumprimento defeituoso46. Deste modo, o fiador assegura ao credor que ele obterá o resultado do cumprimento da obrigação principal (exceto se a fiança tiver sido contraída em condições menos onerosas - art. 631.º, n.º 1, do CC), não sendo necessário que seja interpelado ou que se tenha constituído em mora, bastando apenas a interpelação do devedor (art. 805.º, do CC). Por seu turno, o direito concedido ao fiador que mais se destaca é o benefício da excussão prévia. Nos termos do disposto no art. 638.º, n.º 1, do CC, “ao fiador é lícito recusar o cumprimento, enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito”. Significa que, o fiador pode opor-se à penhora dos seus bens, enquanto não se mostrem excutidos todos os bens do devedor. O benefício da excussão prévia visa fundamentalmente evitar a agressão judicial dos bens do fiador, uma vez que a sua invocação obsta à penhora dos seus bens, sem que antes e insatisfatoriamente hajam sido excutidos todos os bens do devedor. Todavia, nada impede que na ação declarativa de condenação destinada a obter o reconhecimento da existência e da violação do direito do crédito, o credor demande simultaneamente o devedor e o fiador ou apenas o fiador, consoante o que melhor satisfaz os seus interesses, isto é, contra quem pretenda obter título executivo. Assim, ainda que o fiador goze do benefício da excussão prévia, nada impede que seja demandado sozinho, pois este benefício incide sobre a execução e não sobre a demanda. Se o credor optar por demandar apenas o fiador, este tem sempre a possibilidade de chamar o devedor à demanda para com ele se defender ou ser conjuntamente condenado (art. 641.º, n.º 1, do CC), mesmo que não goze do referido benefício. Este chamamento ocorre através da 44
Vide o Ac. do TRP, de 2 de julho de 2013.
45
No que diz respeito às obrigações a prazo, a perda do benefício do prazo pelo devedor (arts. 780.º e ss, do
CC) não é extensiva ao fiador (art. 782.º, do CC). Trata-se de um desvio à regra estabelecida no art. 634.º, do CC. 46
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 316.
30
dedução do incidente de intervenção principal provocada passiva (arts. 316.º e ss, do CPC)47. Independentemente de gozar ou não do benefício da excussão prévia, o chamamento do devedor à demanda tem interesse para o fiador, na medida em que obtém contra ele um título executivo que lhe possibilitará, sem nova ação, exercer os seus direitos caso venha a cumprir a obrigação. Assim como, não lhe é indiferente a defesa que o devedor possa apresentar, podendo esta fundamentar-se em factos que desconheça. De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 641.º, do CC, a relação processual pode influenciar na sorte da relação substantiva, isto porque se o fiador for demandado sozinho e não chamar o devedor à demanda, apesar de gozar do benefício da excussão prévia, presume-se que a ele renunciou, salvo se apresentar declaração expressa em sentido contrário nos próprios autos. Ainda no que concerne à extensão do benefício da excussão prévia, pode acontecer que executados todos os bens do devedor, o crédito garantido com a fiança continue por satisfazer, no todo ou em parte, mas por culpa do credor, sendo que, nesse caso, continua a ser lícita a recusa de cumprimento por parte do fiador (art. 638.º, n.º 2, do CC). Esta situação verifica-se, por exemplo, se o devedor à data do vencimento tinha bens suficientes para cumprir a obrigação e o credor não exigiu o seu cumprimento. Outro caso em que se poderá verificar esta situação é no processo executivo, nomeadamente, se o fiador indicar bens do devedor principal que hajam sido posteriormente adquiridos ou que não fossem conhecidos (art. 745.º, n.º 4, do CPC). Neste caso, o agente de execução deve proceder à penhora dos bens indicados. Mas, se não o fizer e os bens desaparecerem, o fiador poderá invocar a não satisfação do crédito por culpa do exequente, ao qual será dado conhecimento da indicação de bens realizada pelo fiador48. Nestes casos, o crédito não foi satisfeito, mas por culpa do credor/exequente. Pode também suceder que, ao lado da fiança, tenham sido constituídas outras garantias reais para assegurarem o cumprimento da obrigação principal. É, aliás, comum um determinado crédito estar assegurado com múltiplas garantias, visto que o património do devedor está sujeito a constantes alterações. Além disso, é frequente haver mais do que um credor do mesmo devedor, pelo que os credores acabam por ter dúvidas quanto à suficiência da garantia patrimonial oferecida. Assim, é fundamental saber qual é a escala de prioridades existentes entre as diversas garantias.
47
Tem-se discutido na doutrina e na jurisprudência se a dedução deste incidente pode ter lugar na ação
executiva. A este propósito, cfr., infra, capítulo II, II – legitimidade das partes, 3. 48
Cfr. FREITAS, J. L. - A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed., Coimbra: Coimbra
Editora, 2014, pp. 262-263.
31
Existindo concorrência entre a fiança e as garantias reais (como o penhor, a hipoteca ou a consignação de rendimentos) constituídas por terceiro, torna-se necessário saber se as garantias reais são contemporâneas, anteriores ou posteriores à fiança (art. 639.º, do CC). Se as garantias reais prestadas por terceiro forem contemporâneas ou anteriores à fiança, a lei concede ao fiador a possibilidade de exigir a execução prévia dos bens sobre os quais recaem as garantias reais (art. 639.º, n.º 1, do CC). Nesta situação, presume-se que o garante ao prestar a fiança, responsabilizando-se pelo cumprimento da obrigação principal, teve em conta o valor das garantias reais existentes. Assim, em princípio, só responderá pelo saldo negativo de tais garantias. No entanto, nada impede que o fiador se obrigue em primeiro lugar, ainda que as garantias reais prestadas para tutelar o crédito sejam anteriores ou contemporâneas à fiança, uma vez que esta disposição não tem caráter imperativo. Pelo contrário, no caso de as garantias reais serem posteriores à fiança, a lei já não reconhece este benefício ao fiador, pois no momento em que prestou a sua garantia, o fiador não podia ter em conta as garantias reais futuras. No entanto, se os bens onerados pelas garantias reais, garantirem ao mesmo tempo outros créditos do mesmo credor, também não se concede ao fiador a possibilidade de invocar o benefício da excussão prévia em relação à dívida afiançada, se esses bens não chegarem para satisfizer todos os créditos (art. 639.º, n.º 2, do CC), uma vez que não seria razoável o fiador poder exonerar-se por completo da responsabilidade por esta dívida, em prejuízo injusto do credor. O autor da garantia real que tenha sido executado não fica sub-rogado nos direitos do credor contra o fiador (art. 639.º, n.º 3, do CC). Efetivamente, o fiador quando se responsabiliza pelo cumprimento da obrigação principal está a contar com o valor das garantias reais anteriores ou contemporâneas à fiança que asseguram igualmente a realização da prestação. Assim, não pode o autor da garantia real depois ressarcir-se à custa do fiador49, uma vez que, se tal solução fosse possível, estar-se-ia a negar o benefício da excussão prévia ao fiador. Não faria sentido o fiador ter direito à excussão prévia dos bens sobre que recai a garantia real (art. 639.º, n.º 1, do CC) e depois o autor da garantia real que cumpriu exigir-lhe o cumprimento da obrigação. Com esta solução, a lei limitou-se a estabelecer que, entre o autor da garantia real e o fiador a hierarquia se resolve a favor deste último50.
49
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 487-492 e VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a
colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit., pp. 656-658. 50
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., p. 436.
32
A existência de garantias reais sobre bens de terceiro tem implicações na ação executiva, em sede de legitimidade51. Mas não só, pois como veremos o fiador também pode invocar o benefício à excussão real de forma a evitar a penhora dos seus bens52. Além disso, também a existência de garantias reais sobre os bens do próprio fiador tem implicações no processo executivo, uma vez que a penhora terá que se iniciar por esses bens, só podendo recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução. 1.2. EXCLUSÃO DO BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA O benefício da excussão prévia tem como finalidade salvaguardar os interesses do fiador, mas não corresponde a nenhum interesse de ordem pública, podendo ser afastado pelas partes, uma vez que não é estabelecido em termos imperativos53. O seu afastamento pode ocorrer no momento da constituição da fiança ou posteriormente. Contudo, se não tiver sido afastado, o fiador pode também simplesmente não o invocar (cfr. art. 641.º, n.º 2, do CC)54. A subsidiariedade, apesar de ser um elemento normal da fiança, não é essencial, visto que em certos casos o fiador não goza do benefício da excussão da prévia. Assim, o fiador não goza do referido benefício quando a ele renúncia55, o que acontece quando se assume como principal pagador (art. 640.º, al. a), do CC). Neste caso, o fiador equiparase a um verdadeiro devedor solidário, só que, como não o é realmente, se cumprir a obrigação pode exigir do afiançado a totalidade do que pagou (art. 644.º, do CC). Além disso, diferentemente do que sucede na solidariedade passiva, a fiança não é válida se não o for a obrigação principal (art. 632.º, do CC) e o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a sua obrigação (art. 637.º, do CC). A solidariedade é, portanto, imperfeita, na medida em que só se revela após o incumprimento da obrigação por parte do devedor. Note-se que, apesar da obrigação do fiador deixar de ser subsidiária em relação ao credor, não deixa de ser acessória à do devedor principal56. O benefício da excussão prévia é também afastado quando o fiador é demandado sozinho para a ação declarativa e não chama o devedor à demanda (art. 641.º, n.º 2, do
51
Sobre esta matéria, cfr., infra, capítulo II, II – legitimidades das partes, 2.
52
Sobre a invocação do benefício da excussão prévia pelo devedor subsidiário e sobre os meios de defesa do
fiador executado, cfr., infra, capítulo II, III- tramitação inicial da ação executiva, 2 e 3. 53
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 492.
54
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., p. 434.
55
Esta renúncia pode ser efetuada expressa ou tacitamente, nos termos gerais (art. 217.º, do CC). Vide o Ac.
do TRL, de 27 de novembro de 2008 e o Ac. do TRC, de 20 de abril de 2010. 56
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., p. 896.
33
CC). Neste caso, é a própria lei que presume que o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia. Outra causa de exclusão do benefício da excussão prévia é a prevista na alínea b) do art. 640.º, do CC, isto é, se o devedor ou o dono dos bens onerados com garantia real não puder, em virtude de facto posterior à constituição da fiança, ser demandado ou executado no território continental ou das ilhas adjacentes. Efetivamente, se o credor não pode demandar o devedor ou o autor da garantia real no Continente ou nas Regiões Autónomas é natural que possa agredir imediatamente os bens do fiador perante este impedimento, uma vez que também ele se responsabilizou pelo cumprimento da obrigação. Contudo, se este impedimento já existia no momento da constituição da fiança, não se justifica impor ao fiador a perda do benefício da excussão prévia, visto que o credor já naquela altura devia contar com esta impossibilidade, daí que se exija que a impossibilidade resulte de facto posterior à constituição da fiança. Esta causa de exclusão do benefício da excussão prévia não assenta diretamente na vontade do fiador, contrariamente ao que sucede quando o fiador a ele renúncia (art. 640.º, al. a), do CC) ou quando é demandado sozinho e não chama o devedor à demanda (art. 641.º, n.º 2, do CC)57. Outra situação em que o benefício da excussão prévia não existe é no caso de fiança de obrigações mercantis, dado que o art. 101.º, do CCom estabelece que “todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado”. Este afastamento do benefício da excussão prévia resulta das características e exigências especiais desta atividade económica, consistindo, assim, num regime mais benéfico para o credor de obrigação mercantil, na medida em que se estabelece uma solidariedade imprópria entre fiador e devedor58. 1.3. MEIOS DE DEFESA OPONÍVEIS AO CREDOR PELO FIADOR No âmbito das relações entre credor e fiador, importa analisar os meios de defesa que este último pode opor ao primeiro, uma vez que se o credor instaurar uma ação executiva contra o fiador, este terá que se defender em sede de embargos de executado. No entanto, como veremos, o regime de fundamentos está dependente da natureza do título executivo59. Tendo em conta a estrutura e a função da fiança é possível distinguir dois tipos de meios de defesa. Assim, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 637.º, do CC, o fiador,
57
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 492-493.
58
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., pp. 896-897 e LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 317.
59
Sobre os meios de defesa do fiador executado, cfr., infra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação
executiva, 3.
34
além dos meios de defesa que lhe são próprios, tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a sua obrigação. Os meios de defesa próprios do fiador referem-se ao negócio da fiança e às relações entre fiador e credor. No que diz respeito ao negócio constitutivo da fiança, este pode padecer de qualquer dos vícios próprios dos contratos (como a incapacidade das partes, a falta de forma, a simulação, o erro, o dolo, a coação, entre outros)60. No que concerne às relações entre fiador e credor, são também meios de defesa próprios do fiador: o caso julgado entre credor e o fiador (art. 635.º, do CC), a prescrição da sua obrigação (art. 636.º, do CC), o benefício da excussão prévia (arts. 638.º a 641.º do CC), a compensação (art. 642.º, n.º 1, do CC), o benefício da libertação (art. 648.º, do CC), o vencimento da obrigação principal (art. 652.º, do CC) e a libertação por impossibilidade de sub-rogação (art. 653.º, do CC). Neste sentido, o art. 637.º, n.º 1, do CC, quando alude aos meios de defesa próprios do fiador está a referir-se a todo este conjunto de fundamentos de defesa diretamente ligados ao negócio da fiança ou à relação proveniente61. O art. 637.º, n.º 1, do CC, concede também ao fiador a possibilidade de opor ao credor os meios de defesa respeitantes à obrigação principal, fundados não na relação entre credor e fiador, mas sim entre devedor e credor (v. g., a prescrição da obrigação principal, a nulidade desta, porém, neste caso, com ressalva do disposto no art. 632.º, do CC, a sua extinção). Efetivamente, se o fiador, através da garantia pessoal que presta, responde pela obrigação que recai sobre o devedor, é evidente que aproveitam ao fiador, em princípio, todos os meios de defesa oponíveis por aquele ao credor. Assim, se a obrigação principal é nula ou vem a ser anulada por ser nulo ou anulável o negócio jurídico donde proveio a obrigação, ou se a obrigação se extingue, porque prescreveu ou porque foi cumprida, dado que houve dação em cumprimento, todas estas objeções ou exceções aproveitam, à partida, o fiador62. Além disso, enquanto o devedor pode anular a obrigação principal, o fiador pode também recusar licitamente o cumprimento da obrigação (art. 642.º, n.º 2, do CC), uma vez que não faria sentido que o fiador cumprisse a obrigação hoje e no dia seguinte o devedor impugnasse o negócio donde proveio a obrigação63. Se o devedor tiver condições para deduzir compensação contra o credor, mas ainda não fez, é igualmente lícito ao fiador recusar o cumprimento (art. 642.º, n.º 1, do CC). Contudo, o fiador não pode 60
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 493.
61
Cfr. Idem, ibidem, p. 494.
62
Cfr. Idem, ibidem.
63
Apenas quando o direito de impugnação tem caráter pessoal é que esta disposição tem interesse (como, por
exemplo, quando se funda na coação ou no erro), pois caso contrário, pode ser invocado pelo fiador, nos termos do disposto no art. 637.º, do CC.
35
substituir-se, nem se sub-rogar ao devedor no exercício deste direito, visto que se pretende respeitar a liberdade de ação dos interessados. Assim, a posição do fiador é salvaguardada ao lhe ser atribuída a possibilidade de recusar licitamente o cumprimento64. No entanto, o fiador não pode invocar os meios de defesa do devedor que sejam incompatíveis com a sua obrigação (art. 637.º, n.º 1, in fine, do CC). A solução inversa representaria um venire contra factum proprium65, isto porque se o fiador garante o cumprimento da obrigação, não pode agora invocar meios de defesa do devedor que não são compatíveis com a posição que assumiu anteriormente perante o credor. Vejamos, por exemplo, a situação do art. 632.º, n.º 2, do CC. Se o fiador, no momento em que presta a fiança, tem conhecimento da causa da anulabilidade, não pode agora vir invocála. Neste caso, a própria lei impõe ao fiador que honre a responsabilidade que assumiu, com pleno conhecimento de causa, sendo realmente incompatível com oposição ao credor da anulação da obrigação promovida pelo devedor. Por seu turno, tendo em conta o princípio da boa-fé em que assenta todo o regime das obrigações, o n.º 2 do art. 637.º, do CC, estabelece que “a renúncia do devedor a qualquer meio de defesa não produz efeito em relação ao fiador”. Relativamente ao caso julgado e à prescrição, atendendo à importância prática que assumem, necessitam de um regime especial66. Assim, no que concerne à eficácia do caso julgado determina o art. 635.º, n.º 1, do CC, que “o caso julgado entre credor e devedor não é oponível ao fiador”, uma vez que o garante não teve oportunidade de se defender na ação contra a pretensão do credor. Esta solução é semelhante à da solidariedade, isto é, à consagrada para o caso julgado entre credor e um dos devedores solidários (art. 522.º, do CC) e para o caso julgado entre um dos credores solidários e o devedor (art. 531.º, do CC). No entanto, apesar do caso julgado não ser oponível ao fiador, este pode aproveitar-se dele, a não ser que diga respeito a circunstâncias pessoais do devedor que não excluam a sua responsabilidade (art. 635.º, n.º 1, in fine, do CC). Um exemplo desta última situação é se a obrigação principal é assumida por um incapaz e o fiador se responsabilizou nos termos do disposto no art. 632.º, n.º 2, do CC. Neste caso, se o incapaz invocou a sua incapacidade para anular a dívida, o fiador não pode valer-se do caso julgado. Por sua vez, o devedor pode também valer-se do caso julgado entre credor e fiador, desde que respeite à obrigação principal, sendo que no caso de ser desfavorável também não o prejudica, por razões análogas às enunciadas (art. 635.º, n.º 2, do CC).
64
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 494.
65
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 315.
66
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 495.
36
No que diz respeito à prescrição, a sua interrupção em relação a uma das obrigações não afeta a outra obrigação, o que significa que a interrupção da prescrição em relação ao devedor, não produz efeitos contra o fiador, nem a interrupção relativa a este tem eficácia contra aquele (art. 636.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC). Daqui resulta que se estabelece uma relativa independência entre as duas obrigações. Todavia, se o credor der conhecimento ao fiador de que a prescrição foi interrompida em relação ao devedor, a prescrição interrompe-se igualmente contra o fiador (art. 636.º, n.º 1, in fine, do CC). Neste caso, a interrupção em relação ao fiador conta-se desde a data da comunicação. Pelo contrário, a interrupção da prescrição em relação ao fiador, sem que tenha sido interrompida contra o devedor, não tem, em princípio, interesse prático para este último, isto porque extinta a obrigação do devedor pelo decurso do prazo não interrompido extingue-se igualmente a obrigação do fiador, enquanto obrigação acessória da obrigação principal (art. 651.º, do CC). Relativamente à suspensão da prescrição opta-se, tal como na interrupção, pela independência das obrigações. Assim, a suspensão da prescrição em relação ao devedor não produz efeitos relativamente ao fiador e vice-versa (art. 636.º, n.º 2, do CC). O mesmo critério se utiliza para a renúncia à prescrição, sendo que a renúncia por parte de um dos obrigados não produz efeitos relativamente ao outro (art. 636.º, n.º 3, do CC). Pode suceder que o fiador pague a dívida, renunciando à prescrição. Neste caso, o garante não fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor que haja invocado em seu proveito a exceção da prescrição, ficando a existir apenas uma verdadeira obrigação natural67. Nos termos do disposto no art. 402.º, do CC, a obrigação é natural “quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”. Efetivamente, o fiador podia invocar a prescrição da dívida, evitando o cumprimento da obrigação, mas não o fez. Assim, o devedor não tem que ser obrigado a cumprir uma obrigação, se a mesma havia prescrito. No entanto, tendo em conta que a dívida foi contraída em seu benefício, deverá este proceder ao cumprimento da obrigação, neste caso, ao fiador, por uma questão de justiça. Trata-se, como o referido preceito indica, de um dever de ordem moral68.
67
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit.,
pp. 653-654 e VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 496-497. 68
Vide o Ac. do TRP, de 11 de abril de 2005, segundo o qual, a prescrição torna uma obrigação civil, numa
obrigação natural.
37
2. RELAÇÕES ENTRE DEVEDOR E FIADOR No âmbito das relações entre devedor e fiador destacam-se dois direitos do garante: a sub-rogação nos direitos do credor (art. 644.º, do CC) e o direito à liberação ou prestação de caução (art. 648.º, do CC). No que concerne à sub-rogação nos direitos do credor, estabelece o art. 644.º, do CC, que o fiador que paga a dívida ao credor fica sub-rogado nos seus direitos. Assim, ocorre uma verdadeira transmissão do crédito do credor para o garante, não adquirindo este último um direito de regresso69. A diferença reside no facto de não se transferir para o fiador o direito à prestação inicial, mas todos os direitos e garantias do direito encabeçado no credor70. Aliás, refere o art. 593.º, n.º 1, do CC, que o sub-rogado (fiador) adquire todos os poderes que competiam ao credor (desde o capital, os juros, as despesas, as penas convencionais, as garantias)71. Contudo, para que esta transmissão opere é necessário que o fiador prove que efetuou o pagamento da dívida afiançada72. Esta sub-rogação do fiador nos direitos do credor é uma hipótese de sub-rogação legal, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 592.º, do CC, o qual refere que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito”. Efetivamente, o fiador garante a satisfação do direito de crédito, pelo que, cumprindo a obrigação, assiste-lhe o direito de ficar sub-rogado nos direitos do credor, não só por força do disposto no art. 644.º, do CC, mas também do preceito enunciado. Com efeito, se o art. 644.º, do CC, não acautelasse esta situação, a igual conclusão se chegaria em face do disposto, em termos genéricos, no n.º 1 do art. 592.º, do CC73. Por sua vez, o devedor poderá invocar contra o fiador que cumpriu a obrigação, todas as exceções que lhe seria lícito invocar contra o credor. Assim, nada obsta a que o devedor oponha a exceção de prescrição ao fiador que pagou (art. 637.º, do CC). No entanto, não poderá opor ao fiador, como credor sub-rogado, os meios de defesa de que não deu injustificadamente conhecimento a este último, mas que devia ter dado, no momento em que consentiu no cumprimento ou quando foi avisado de que este ia cumprir (art. 647.º, do CC). Esta solução tem como finalidade evitar que o fiador seja
69
Assim, o cumprimento da obrigação pelo fiador não é equiparado ao cumprimento pelo devedor solidário.
70
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 497-498.
71
Neste sentido, o Ac. do TRP, de 5 de junho de 2014, o Ac. do TRP, de 3 de março de 2009 e o Ac. do
TRL, de 26 de março de 2009. 72
Cfr. MARTINEZ, P. R. e FUZETA DA PONTE, P., ob. cit., p. 92.
73
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 497.
38
surpreendido com a invocação pelo devedor de exceções com que não contava quando decidiu cumprir74. Além disso, no âmbito das relações entre devedor e fiador, a lei impõe, por razões de tutela de boa-fé, deveres acessórios de conduta a ambos os obrigados, cuja finalidade é evitar que o cumprimento de um acabe por lesar o outro. Assim, nos termos do disposto no art. 645.º, n.º 1, do CC, “o fiador que cumprir a obrigação deve avisar do cumprimento o devedor, sob pena de perder o seu direito contra este no caso de o devedor, por erro, efetuar de novo a prestação”. Daqui resulta que o pagamento efetuado pelo devedor ao credor aparente é válido e que a sub-rogação do fiador nos direitos do credor só ocorre se o fiador der conhecimento ao devedor de que cumpriu a obrigação, pois, caso não o faça, não beneficiará dos seus efeitos75. Neste último caso, é ao fiador que cabe exigir do credor a restituição do que lhe entregou, como se de prestação indevida se tratasse (art. 645.º, n.º 2, do CC)76. No entanto, não estamos perante um pagamento por erro se o devedor tinha conhecimento do pagamento da dívida quando a cumpriu ao credor. Neste caso, é ao devedor que cabe exigir a repetição do indevido, não podendo recusar a prestação exigida pelo fiador, enquanto credor subrogado, ainda que não tenha sido avisado por este último77. Não existindo erro por parte do devedor, o fiador “adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam” (arts. 593.º, n.º 1 e 644.º, do CC). Por seu turno, o art. 646.º, do CC, estabelece que “o devedor que cumprir a obrigação deve avisar o fiador, sob pena de responder pelo prejuízo que causar se culposamente não o fizer”. Assim, o devedor deve dar conhecimento ao fiador que cumpriu a sua obrigação, em especial, quando este não goze do benefício da excussão prévia. Neste caso, o fiador que pagar o indevido tem direito à sua repetição. No entanto, se o credor não restituir ao fiador o pagamento indevido, tem este o direito de ressarcir-se à custa do devedor (art. 646.º, do CC). Daqui resulta que as consequências da não realização do aviso pelo devedor ao fiador, não podem ser as mesmas, dado que o devedor é que constituiu aquela obrigação, incidindo sobre ele a obrigação de prestar,
74
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 317.
75
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., p. 441.
76
Vide o Ac. do TRL, de 25 de fevereiro de 2010, o qual refere que o fiador que pagou e não avisou em
momento oportuno a massa falida da devedora principal de que pagara a quantia em dívida, realizados os pagamentos devidos em função do rateio, perdeu os seus direitos em relação à massa falida, pelo que tem o direito de pedir ao credor que reclamou na insolvência a totalidade do crédito, a devolução do que duplamente recebeu. Todavia, o credor não tem de devolver à massa falida o que recebeu em excesso, nem o tribunal da insolvência lho pode impor, mas tem de pagar ao fiador o que duplamente recebeu. 77
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., p. 500.
39
daí que a falta de aviso resulte no dever de indemnizar pelo prejuízo que causar ao fiador, pressupondo-se que o devedor atuou negligentemente78. No âmbito das relações entre devedor e fiador cumpre também destacar o direito à liberação da garantia ou à prestação de caução. Trata-se de um direito que visa essencialmente proteger o fiador e encontra-se regulado no art. 648.º, do CC. Assim, o fiador tem direito a exigir a sua liberação ao afiançado ou a requerer a prestação de caução de forma a garantir o seu eventual direito contra este, quando: o credor obtiver contra ele sentença exequível (art. 648.º, al. a), do CC); os riscos da fiança se agravarem sensivelmente (art. 648.º, al. b), do CC); o devedor, após assunção da dívida, se houver colocado em condições de não poder ser demandado no território continental ou das ilhas adjacentes (arts. 648.º, al. c) e 640.º, al. b), do CC); o devedor se tiver comprometido a desonerar o fiador dentro de certo prazo ou verificado certo evento e já tiver decorrido o prazo ou se tiver verificado o evento previsto (art. 648.º, al. d), do CC)79; e, se houverem decorrido cinco anos, não tendo a obrigação principal um termo, ou se, tendo-o, houver prorrogação legal imposta a qualquer umas das partes (art. 648.º, al. e), do CC). Na situação prevista na alínea b) é o fiador que tem de estar atento à situação do devedor, no qual depositou a sua confiança, uma vez que o legislador, ao tratar das relações entre fiador e credor, nunca pôs a cargo deste o dever de o informar do agravamento do risco do fiador80. Por sua vez, no caso da alínea c), o exercício da subrogação pelo fiador contra o devedor torna-se mais difícil, daí que a lei lhe conceda esta possibilidade. Por último, na alínea e), o termo pode ser incerto, não sendo necessário que esse termo tenha um prazo com data certa. Neste caso, pretende-se evitar que a fiança tenha uma duração indeterminada ou para além de um prazo razoável, tendo em conta que a sua constituição acarreta riscos para o património do garante81. Este direito do fiador à liberação ou à prestação de caução só existe contra o devedor, o que significa que depende sempre de acordo do credor. Neste sentido, vai também o Ac. do TRL, de 5 de maio de 2011, o qual refere que este direito funciona como uma forma de repor o equilíbrio de uma relação jurídica que se modificou em prejuízo do fiador, sendo exercido no confronto entre este e o devedor e não no âmbito das relações do fiador com o credor, perante quem ele continua a responder. Aliás, o fiador não pode recusar ao credor a satisfação da garantia prestada, alegando, por exemplo, o agravamento dos riscos da fiança. Assim, estas faculdades não prejudicam em 78
Cfr. GONZÁLEZ, J. A., ob. cit., pp. 441-442.
79
O prazo e o evento a que se refere esta alínea não diz respeito ao negócio da fiança em si, visto que, nesse
caso, ela caducaria automaticamente de acordo com as regras gerais. Assim, surge somente como pressuposto de uma obrigação do devedor exonerar o fiador. Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 318. 80
Vide o Ac. do STJ, de 5 de março de 2002 e o Ac. do TRE, de 11 de dezembro de 2003.
81
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 499-503.
40
nada o direito do credor82. Por seu turno, se o credor não prestar o seu consentimento, resta ao devedor cumprir a obrigação, se esta já se mostrar vencida ou se o prazo for estipulado a seu favor. Não se verificando nenhuma destas situações, o garante terá que exigir que o devedor preste caução83. A prestação de caução pode ocorrer por qualquer uma das formas previstas no art. 623.º, do CC. Nos casos em que a fiança tenha sido constituída por acordo entre o credor e o fiador, cuja finalidade é beneficiar o primeiro, este direito à liberação ou à prestação de caução em relação ao devedor não existe, uma vez que tudo se passa nas relações entre o credor e o garante. Todavia, se o devedor autorizar a constituição da fiança (como se sabe, a fiança pode ser prestada sem o conhecimento ou mesmo contra a vontade do devedor – art. 628.º, n.º 2, do CC) já será de aplicar o regime estabelecido no art. 648.º, do CC, ainda que a sua constituição resulte de acordo apenas entre o fiador e o credor84. 3. RELAÇÕES ENTRE DEVEDOR E CREDOR Nos termos do disposto no art. 633.º, n.º 1, do CC, sempre que algum devedor esteja obrigado a prestar uma fiança, o credor não é obrigado a aceitar como fiador quem não tiver capacidade para se obrigar ou não tiver bens suficientes para garantir a obrigação. Assim, só têm capacidade para afiançar aqueles que se podem obrigar. Daqui resulta que, por exemplo, os menores, em princípio, não podem afiançar, salvo se tiverem bens para dispor livremente, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 127.º, do CC. O menor pode sujeitar esses bens à garantia da fiança, uma vez que os pode validamente obrigar por meio de negócio jurídico85. Efetivamente, ao credor não lhe interessa que seja constituída uma fiança que, por falta de capacidade do fiador, seja inválida, bem como também não é do seu interesse que este não tenha meios suficientes para garantir a obrigação, uma vez que se perderia a função de garantia da fiança86. No entanto, na eventualidade de haver uma diminuição do património do fiador de modo a que haja risco de insolvência, a lei concede ao credor a possibilidade de exigir o reforço da garantia (art. 633.º, n.º 2, do CC), podendo-o fazer judicial ou extrajudicialmente87. Se o devedor não reforçar a garantia ou não oferecer outra garantia idónea (arts. 623.º e 624.º, do CC) dentro do prazo que lhe for fixado pelo tribunal, o credor pode exigir o imediato cumprimento da obrigação (art. 633.º, n.º 3, do CC). Daqui resulta que o risco de diminuição da garantia, 82
Vide o Ac. do STJ, de 5 de março de 2002 e o Ac. do TRG, de 18 de janeiro de 2006.
83
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit., p.
664. 84
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P., ob. cit., pp. 93-94.
85
Cfr. NETO, A. – Código Civil Anotado, Lisboa: Ediforum, 2013, p. 700.
86
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P., ob. cit., p. 94.
87
Cfr. ROCHA, A. S. – O essencial sobre o arrendamento urbano, Porto: Vida Económica, 2014, p. 76.
41
isto é, do património do fiador, enquanto reforço quantitativo, corre por conta do devedor que terá que reforçar a garantia ou substituí-la por outra idónea. No entanto, se a diminuição da garantia for imputável ao devedor, é aplicável o regime geral consagrado no art. 780.º, do CC, do qual resulta que o credor tem a possibilidade de optar entre a substituição ou reforço da garantia e o cumprimento imediato da obrigação88. Com o novo CPC, verifica-se o desaparecimento do processo especial de reforço e substituição das garantias especiais das obrigações que se encontrava previsto nos arts. 991.º e ss, do anterior CPC. O anterior art. 997.º, do CPC, entretanto revogado, estabelecia que era aplicável ao reforço e substituição da fiança o disposto para o processo especial de reforço e substituição de garantias especiais das obrigações, sendo o devedor citado para oferecer novo fiador ou outra garantia idónea. 4. PLURALIDADE DE FIADORES A fiança pode ser singular ou plural, consoante seja prestada por um só fiador ou por uma pluralidade de fiadores89. A questão da pluralidade de fiadores encontra-se regulada nos arts. 649.º e 650.º, do CC. Pode suceder que o devedor tenha sido afiançado por mais do que uma pessoa pela mesma dívida, pelo que é necessário saber como responde cada um deles perante o credor e como se processam as relações entre eles depois de algum dos fiadores ter procedido ao pagamento da dívida. Com efeito, cumpre distinguir se os fiadores prestaram a fiança isoladamente, cada um por si, ou se, pelo contrário, intervieram conjuntamente, no mesmo título ou em atos diferentes, mas relacionados uns com os outros90. Se os fiadores se tiverem obrigado isoladamente, responderá cada um deles pela satisfação integral do crédito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras das obrigações solidárias. Contudo, este regime não é aplicável se os fiadores tiverem convencionado o benefício da divisão (art. 649.º, n.º 1, do CC). Neste último caso, apesar dos fiadores atuarem isoladamente, qualquer um deles pode recusar-se a cumprir a sua obrigação para além da parte que lhe compete. Se nada for estipulado, pode qualquer um dos confiadores ser chamado a responder pela satisfação integral da obrigação91. Pelo contrário, se os fiadores tiverem prestado a fiança conjuntamente92, ainda que em momentos diferentes, é lícito a qualquer um deles invocar o benefício da divisão, 88
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P., ob. cit., pp. 94-95.
89
Cfr. ALMEIDA, C. F., ob. cit., p. 199.
90
Cfr. VARELA, J. M. A., Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 503-504.
91
Cfr. Idem, ibidem, p. 504.
92
A expressão “conjuntamente” a que alude o n.º 2 do art. 649.º, do CC refere-se às condições em que os
obrigados o aceitaram ser, constituindo uma das modalidades das obrigações plurais. As obrigações plurais compreendem as obrigações conjuntas e as obrigações solidárias, sendo que, nas primeiras, cada um dos
42
uma vez que se presume que cada um deles só se quis responsabilizar por parte dívida93, sendo tal divisão proporcional ao seu número (art. 649.º, n.º 2, do CC). No entanto, se o confiador podia opor ao credor o benefício da divisão, mas não o fez, não pode depois exigir do credor a repetição do que pagou para além da sua quota. Além disso, no caso de algum dos confiadores se encontrar insolvente ou não poder ser demandado ou executado no Continente ou nas Regiões Autónomas (art. 640.º, al. b), do CC), respondem os restantes confiadores proporcionalmente pela sua quota (art. 649.º, n.ºs 2 e 3, do CC)94. Se cada um dos fiadores for responsável pelo cumprimento integral da obrigação e um deles proceder ao seu cumprimento fica investido nos direitos do credor contra o devedor por via de sub-rogação (art. 644.º, do CC), mas não só. Tem igualmente direito de regresso sobre os outros fiadores, de harmonia com as regras das obrigações solidárias (arts. 650.º, n.º 1 e 524.º, do CC). No entanto, o fiador que cumpre a obrigação não pode exercer estes dois direitos simultaneamente. Deste modo, se optar pela sub-rogação e conseguir receber do devedor o que pagou, não pode exigir nada dos restantes fiadores, alegando o direito de regresso. Pelo contrário, se optar por exercer o direito de regresso sobre os outros fiadores em primeiro lugar, só pode invocar a sub-rogação nos direitos do credor relativamente à parte do crédito sobre a qual não tenha exercido o direito de regresso95 96. Se gozarem do benefício da divisão, é lícito a qualquer um dos fiadores recusar-se a cumprir uma parte superior à sua quota. Contudo, nada obsta a que o fiador que tenha sido judicialmente demandado proceda ao cumprimento integral da obrigação ou a uma parte superior à sua quota, gozando, igualmente do direito de sub-rogação sobre o credor (art. 644.º, do CC) e do direito de regresso sobre os outros fiadores, pela parte que lhe compete, ainda que o devedor não esteja insolvente (art. 650.º, n.º 2, do CC).
sujeitos responde apenas por parte do débito, ao passo que, nas segundas, o credor pode exigir a prestação integral de qualquer dos devedores. O benefício da divisão não tem de ser convencionado, pelo que, se os fiadores prestarem a fiança conjuntamente, designadamente ao mesmo tempo, qualquer um deles pode invocar o benefício da divisão, uma vez que se presume que se quiseram responsabilizar proporcionalmente ao seu número. Contudo, nada impede que os diversos confiadores possam convencionar entre si o regime da solidariedade, uma vez que o benefício da divisão não é imposto por razões de interesse e ordem pública (Cfr. o Ac. do TRL, de 4 de dezembro de 2006). 93
Qualquer confiador demandado pode deduzir incidente de intervenção principal provocada (arts. 316.º e
317.º, do CPC). 94
Cfr. VASCONCELOS, L. M. P., ob. cit., pp. 95-96.
95
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 320-321.
96
Vide o Ac. do STJ, de 30 de outubro de 2002, o Ac. do STJ, de 24 de março de 2011 e o Ac. do TRL, de 23
de novembro de 2006.
43
Diferentemente, se o fiador não tiver sido demandado judicialmente e proceder ao pagamento da totalidade da dívida, só terá direito de regresso sobre os outros fiadores após a excussão prévia do património do devedor (art. 650.º, n.º 3, do CC). Constata-se que a própria lei concede aos outros fiadores um benefício da excussão face a exigência do regresso pelo fiador que cumpriu a obrigação97. O facto de os fiadores não gozarem do benefício da excussão prévia em nada interfere com o benefício da divisão, visto que, em nenhum dos casos, o art. 649.º, do CC, faz depender um benefício do outro. Recorrendo o credor à ação executiva para demandar algum dos fiadores ou a todos eles, é lícito a qualquer um deles invocar o benefício da excussão prévia, desde que a ele não tenham renunciado ou este não tenha sido afastado nos termos gerais (arts. 640.º e 641.º, do CC e art. 101.º, do CCom), sendo-lhes aplicável o regime da penhorabilidade subsidiária previsto no art. 745.º, do CPC. 5. EXTINÇÃO DA FIANÇA Para além das causas que, em geral, produzem a extinção das obrigações98 e das situações a que se refere o art. 648.º, do CC, em que é possível a liberação do fiador ou a prestação de caução pelo afiançado, a fiança apresenta causas extintivas próprias99. Assim, por força do princípio da acessoriedade “a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança” (art. 651.º, do CC). Daqui resulta que o fiador apenas garante que aquela obrigação será cumprida, pelo que, a partir do momento em que a obrigação principal se extingue, o mesmo destino tem a sua obrigação, uma vez que com a extinção da obrigação principal, a obrigação acessória do fiador deixa de ter objeto100. No entanto, para além desta causa específica, a extinção da fiança pode resultar de certas causas referentes ao credor, designadamente, por caducidade do ato constitutivo (art. 652.º, do CC) ou liberação por impossibilidade de sub-rogação (art. 653.º, do CC). Assim, tratando-se de uma obrigação a prazo e mostrando-se esta vencida, o fiador que goze do benefício da excussão prévia pode exigir que o credor proceda contra o devedor dentro dos dois meses seguintes, a contar do seu vencimento, sob pena
97
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 321. A fiança pode extinguir-se por qualquer causa geral que produz a extinção das obrigações,
98
independentemente da subsistência ou não da obrigação principal, sendo muito frequente esta extinguir-se por caducidade, devido ao decurso do tempo. Além disso, a fiança pode, por exemplo, prescrever sem que a obrigação principal tenha prescrito, uma vez que a suspensão e a interrupção da prescrição da obrigação principal não produzem efeitos em relação ao fiador (art. 636.º, do CC). 99
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., p. 903.
100
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 321.
44
de a fiança caducar101. Contudo, este prazo não termina sem decorrer um mês sobre a notificação realizada ao credor (art. 652.º, n.º 1, do CC)102. O mesmo sucede no caso de o vencimento da obrigação principal depender da interpelação do devedor pelo credor e o fiador já tenha assumido a fiança há mais de um ano (art. 652.º, n.º 2, do CC). Contudo, também neste caso, se exige que o fiador goze do benefício da excussão prévia (arts. 638.º a 641.º do CC). Com esta norma, pretende-se evitar que, tendo o fiador a possibilidade de obter a excussão do património do devedor, venha a sofrer as consequências de uma futura insolvência do devedor ou de um agravamento dela, por inércia ou vontade do credor103. Os fiadores, ainda que solidários, ficarão igualmente exonerados se não puderem ficar sub-rogados nos direitos do credor104 por facto (positivo ou negativo) que lhe seja imputável (art. 653.º, do CC)105. No entanto, sendo possível uma sub-rogação parcial dos fiadores, a sua obrigação reduz-se a tais limites. Assim, com a criação desta solução deseja-se também evitar que o fiador, enquanto garante, venha a ser prejudicado no exercício dos seus direitos, devido à conduta (ativa ou omissiva) do credor, tornando-se esta incompatível com a manutenção da fiança106. A lei teve também o cuidado de acautelar alguns aspetos relativos à extinção da fiança prestada para garantia de obrigações futuras (arts. 628.º, n.º 2 e 654.º, do CC). Esta fiança assume um enorme relevo prático (por exemplo, é muito utilizada nos contratos de locação), tendo em conta que o futuro credor, muitas vezes, só concede o 101
Daqui resulta que, se o fiador não gozar do benefício da excussão prévia, não pode recorrer à faculdade
prevista no art. 652.º, do CC, uma vez que este preceito é inaplicável ao contrato de fiança, no qual o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia. Vide o Ac. do STJ, de 31 de março de 2009. 102
O prazo de vencimento da obrigação principal relevante é o resultante da obrigação ou da lei e não o que
resulta de qualquer moratória concedida pelo credor ao devedor, sem o consentimento do fideiussor (Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit., p. 670). 103
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 321-322.
104
Quer sejam direitos anteriores à fiança, contemporâneos ou até mesmo posteriores (Cfr. o Ac. do TRC, de
28 de fevereiro de 1989). 105
V. g. o cancelamento do registo da hipoteca pelo credor trata-se de uma renúncia à mesma, constituindo
uma das formas da sua extinção, pelo que, esta extinção resultante de facto positivo praticado pelo credor, torna impossível a sub-rogação nesse direito pelos fiadores, ficando estes desonerados da obrigação que assumiram com a fiança (Cfr. o Ac. do TRP, de 16 de junho de 2011). Outros factos positivos praticados pelo credor seriam, por exemplo, a renúncia a um privilégio e a remissão da garantia de um dos confiadores. Outra situação em que ocorre a liberação por impossibilidade de sub-rogação é, nomeadamente, quando o credor não reclame o respetivo crédito no processo de insolvência do devedor (Cfr. o Ac. do TRL, de 4 de fevereiro de 2010). Ou, por exemplo, a falta de invocação da preferência no concurso de credores. Estes dois últimos casos constituem factos negativos. 106
Cfr. LEITÃO, L. M., Direito das Obrigações, ob. cit., p. 322.
45
crédito ao afiançado por saber que pode contar com esta garantia107. No entanto, a sua validade está dependente da fixação clara do critério ou critérios para a sua determinação, sob pena de ser nula (art. 280.º, n.º 1, do CC)108. Neste caso, o fiador corre um duplo risco especial, na medida em que o montante da obrigação prevista pode aumentar e a situação patrimonial do devedor pode agravar-se entre o momento em que fiador presta a fiança e a efetiva constituição da obrigação109. A obrigação do fiador, enquanto obrigação acessória, só surge se a obrigação garantida vier também a surgir, o que significa que a eficácia da fiança para garantia de dívida futura está dependente do surgimento ou não da dívida. No entanto, o fiador não pode revogar com inteira liberdade a sua obrigação de garantia. Assim, a lei apenas lhe atribui a possibilidade de o fazer enquanto a obrigação não se mostre constituída e se a situação patrimonial do devedor se agravar de tal forma que ponha em risco os seus direitos eventuais contra este (art. 654.º, do CC)110. Todavia, é ao fiador que cabe provar a verificação deste pressuposto111. Para além disso, é possível o fiador liberar-se da garantia se já tiverem decorrido cinco anos após a prestação da fiança, sem prejuízo de as partes poderem convencionar outro prazo (art. 654.º, do CC). Neste caso, o decurso do prazo não determina a caducidade da fiança, pelo que o fiador tem que enviar uma declaração (receptícia) ao credor comunicando a sua intenção.
107
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., pp. 904-905.
108
Vide o Ac. do STJ, de 23 de janeiro de 2001, segundo o qual: “É nula, por indeterminabilidade do seu
objeto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidade provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”. 109
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit.,
p. 672. 110
Cfr. COSTA, M. J. A., ob. cit., pp. 905-906.
111
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit.,
p. 672.
46
CAPÍTULO II – PROBLEMÁTICAS PROCESSUAIS INERENTES À SUBSIDIARIEDADE DA GARANTIA PESSOAL I – TÍTULO EXECUTIVO 1. ESPÉCIES DE TÍTULOS EXECUTIVOS O título executivo é o pressuposto de qualquer ação executiva, nos termos do disposto no art. 10.º, n.º 5, do CPC. Trata-se de um documento necessário para a instauração de uma ação executiva (nulla executio sine titulo) e, portanto, é condição necessária da realização coativa da obrigação devida. É também através do título executivo que se determinam os fins e os limites da execução (art. 10.º, n.º 5, do CPC). Assim, no que diz respeito ao fim da ação executiva, este determina-se pelo conteúdo da obrigação exequenda (“dare” ou “facere”), podendo consistir no pagamento de uma quantia, na entrega de uma coisa ou na prestação de um facto, quer seja positivo, quer seja negativo (art. 10.º, n.º 6, do CPC). Já quanto aos limites da ação executiva, estes dizem respeito às partes e ao objeto da execução ou pretensão consagrada no título executivo. Os limites subjetivos definem a legitimidade na execução. Pretende-se traduzir, através da legitimidade processual, a relação da parte com o objeto do processo executivo. Assim, a legitimidade para a execução determina-se, em regra, em função do próprio título executivo (arts. 53.º, n.º 1 e 54.º, do CPC). Aos títulos executivos é aplicável a regra da tipicidade, o que significa que só podem servir de fundamento à execução os títulos executivos que são apontados como tal pela lei (nullus titulus sine lege – art. 703.º, n.º 1, do CPC). Neste sentido, as espécies de títulos executivos obedecem ao numerus clausus, sem possibilidade de quaisquer exceções criadas pela vontade das partes. Assim, esta regra impede que as partes convencionem a atribuição de exequibilidade a documentos a que a lei não confere força executiva, nem permite que seja retirada essa força executiva a documentos que a lei classifica como títulos executivos112. Trata-se, portanto, de um elenco taxativo, não se admitindo o seu alargamento por interpretação extensiva, nem por analogia113. Do exposto resulta que as espécies de títulos executivos são as que constam no n.º 1 do art. 703.º, do CPC: as sentenças condenatórias (art. 703.º, n.º 1, al. a), do CPC), os documentos autênticos e os documentos particulares autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC), os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos (art. 703.º, n.º 1, al. c), do CPC) e os documentos a
112
Cfr. CARVALHO, J. H. D. – Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa, Lisboa: Quid Juris, 2014, pp.
145-154. 113
Cfr. PINTO, R. – Manual de Execução e Despejo, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 150.
47
que, por disposição especial, seja atribuída força executiva (art. 703.º, n.º 1, al. d), do CPC). 1.1. TÍTULOS EXECUTIVOS JUDICIAIS E PARAJUDICIAIS Os títulos executivos podem ser classificados atendendo a mais do que um critério. Assim, tendo a sentença como referência, podem ser classificados em títulos judiciais, judiciais impróprios ou parajudiciais e extrajudiciais114. Daqui resulta que o título executivo judicial corresponde às sentenças condenatórias, previstas na alínea a) do n.º 1 do art. 703.º, do CPC. Deve entender-se como sentença condenatória, qualquer decisão judicial proferida no decurso da tramitação de um processo, mesmo que contendo apenas um segmento de condenação, podendo esta advir de processos tramitados pelo tribunal cível, laboral, criminal e julgados de paz ou resultar de decisão arbitral115. Neste sentido, o credor que não esteja munido de um título executivo, isto é, de um documento a que a lei reconheça força bastante para tal, pode sempre propor uma ação declarativa de condenação contra o fiador ou contra este e o devedor principal, conforme o que melhor satisfaz os seus interesses, isto é, contra quem pretenda obter título executivo. Assim, o credor recorre ao processo declarativo para obter o reconhecimento da existência e da violação do seu direito de crédito e, consequentemente, a condenação do réu ou dos réus no pedido, consoante tenha demandado o fiador sozinho ou em conjunto com o devedor principal116. Do exposto resulta que, sendo o fiador e/ou devedor principal condenado no pedido, a decisão judicial condenatória resultante daquela ação declarativa constitui título executivo ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art. 703.º, do CPC. Assim, se o credor pretender exercer o seu direito reconhecido, por procedência da sua pretensão na ação declarativa prévia, pode instaurar uma ação executiva contra o fiador, contra o devedor principal ou contra ambos, com vista à realização coativa da obrigação que lhe é devida (art. 10.º, n.º 4, do CPC). Note-se que, se o fiador for demandado sozinho na ação declarativa e independentemente de gozar ou não do benefício da excussão prévia (arts. 638.º a 641.º do CC), deve chamar o devedor principal à demanda, de forma a obter contra este um título executivo que lhe possibilitará, sem nova ação, exercer os seus direitos contra este, na eventualidade de vir a cumprir a obrigação. Além disso, é também possível a formação de um título executivo contra um fiador, em sede de oposição à execução. Trata-se de um título executivo impróprio ou
114
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 152.
115
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S. – A Ação Executiva Anotada e Comentada, Coimbra: Almedina, 2015, p.
138. 116
Cfr. VALLES, E. – Prática Processual Civil com o Novo CPC, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 277.
48
parajudicial, uma vez que é formado num processo, mas não resulta de uma decisão judicial. Ora, vejamos: Sendo o executado citado, este pode pagar ou deduzir oposição à execução, através de embargos de executado, no prazo de 20 dias a contar da sua citação (art. 728.º, n.º 1, do CPC). No entanto, o recebimento dos embargos não suspende o prosseguimento da execução (art. 733.º, n.º 1, a contrario, do CPC). Sucede que, se o embargante pretender que a execução fique suspensa, terá, para o efeito, que prestar uma caução (art. 733.º, n.º 1, al. a), do CPC). A esta caução é aplicável o disposto no art. 650.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, com as necessárias adaptações, por força do disposto no n.º 6 do art. 733.º, do CPC. Este n.º 6 do art. 733.º, do CPC, é, aliás, um preceito novo, introduzido pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e, vem disciplinar a prestação de garantia pessoal por terceiro. Esta garantia pessoal pode ser uma fiança prestada por um terceiro (art. 650.º, n.º 3, do CPC). Aliás, nada impede que, se o próprio executado for um fiador, preste outra fiança. No entanto, pode também prestar outra garantia pessoal, designadamente, uma garantia bancária ou um seguro-caução (art. 650.º, n.º 3, do CPC). Tendo sido prestada a fiança como caução, esta mantém-se até ao trânsito em julgado, nos termos do disposto no art. 650.º, n.º 3, do CPC. Se os embargos tiverem sido julgados improcedentes e o devedor principal (o executado) não cumprir voluntariamente a obrigação, é o fiador notificado para entregar o montante garantido. Se o fiador não o fizer, o exequente pode fazer seguir a execução contra ele, constituindo título executivo a notificação realizada para o efeito (arts. 650.º, n.ºs 3 e 4 e 777.º, n.º 3, do CPC). Contudo, para incluir o fiador e o devedor principal na ação executiva terá que apresentar um novo requerimento executivo117. 1.2. TÍTULOS EXECUTIVOS EXTRAJUDICIAIS Diferentemente
dos
títulos
executivos
judiciais,
os
títulos
executivos
extrajudiciais dispensam um prévio processo judicial ou contraditório118. São títulos executivos extrajudiciais os previstos na alínea b) do n.º 1 do art. 703.º, do CPC119, visto que não se produzem em juízo. Além disso, estes títulos executivos são também negociais porque resultam de um negócio jurídico celebrado extrajudicialmente. Nesta alínea inserem-se o contrato de fiança e o acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda, no qual se convencione a prestação de uma fiança (art. 703.º, n.º 1, al. b), 117
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 272.
118
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 153.
119
Não só os títulos executivos previstos nesta alínea são títulos executivos extrajudiciais. No entanto, tendo
em conta o objeto do nosso estudo, abordaremos apenas o contrato de fiança, o acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda com a inclusão de uma fiança e o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida.
49
do CPC). Como veremos, é também possível a formação de um título executivo extrajudicial contra o fiador no âmbito da celebração de um acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda (arts. 806.º, n.º 1 e 807.º, n.º 2, do CPC). Outra questão que também se coloca no âmbito dos títulos executivos extrajudiciais é a de saber se o título executivo previsto no art. 14.º-A, do NRAU, conjugado com o art. 703.º, n.º 1, alínea d), do CPC, abrange o fiador do arrendatário, isto é, se pode servir de base a uma execução instaurada contra este. No art. 703.º, n.º 1, alínea d), do CPC, consagra-se que são também títulos executivos “os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”. Tratam-se de títulos executivos que se encontram previstos em normas avulsas, situadas no próprio CPC ou em legislação especial, de que é exemplo o art. 14.º-A, do NRAU, onde se insere o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida. Trata-se de um título executivo que é constituído por um particular, fora de um processo. A) DOCUMENTOS AUTÊNTICOS E DOCUMENTOS PARTICULARES AUTENTICADOS Nos termos do disposto no art. 703.º, n.º 1, alínea b), do CPC, constituem títulos executivos os documentos autênticos120 ou autenticados121 por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação. Daqui resulta que a obrigação tanto pode ser de pagamento de quantia certa, como de entrega de coisa certa ou de prestação de um facto (positivo ou negativo). No entanto, para que o título executivo seja exequível é também necessário que este se encontre revestido das formalidades exigidas pela lei substantiva, o que significa que, se o credor não apresentar o documento de acordo com a forma exigida pela lei, o seu direito não é digno de tutela executiva e o negócio não é por consequência válido (art. 220.º, do CC)122. Neste sentido, relativamente à forma da fiança123, determina o art. 628.º, n.º 1, do CC, que “a vontade de prestar fiança deve ser a expressamente declarada pela forma exigida para obrigação principal”, quer seja a mera declaração oral, um documento escrito simples ou autenticado ou um documento autêntico, ainda que se exija que a declaração do fiador seja expressa (art. 217.º, n.º 1, do CC). Contudo, tendo em conta que vale para os títulos executivos a regra da tipicidade, a forma da 120
São documentos autênticos apenas os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades
públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública (art. 363.º, n.º 2, do CC). 121
Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante
notário, nos termos prescritos nas leis notariais (art. 363.º, n.º 3, do CC). 122
Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., p. 148.
123
Sobre a forma da fiança, cfr., supra, capítulo I, I- enquadramento, 1.
50
declaração de fiança terá que observar o disposto no art. 703.º, n.º 1, alínea b), do CPC. Daqui resulta que o contrato de fiança terá que ser realizado por documento autêntico ou por documento particular autenticado. Vejamos, por exemplo, um contrato de mútuo, em que a obrigação do mutuário é de valor superior a 25.000,00 euros. Este contrato só é válido se for celebrado por documento autêntico ou documento particular autenticado (art. 1143.º, do CC). Neste caso, se for prestada uma fiança para garantir a obrigação do mutuário e, tendo em conta que esta observa a forma da obrigação principal, nomeadamente, a do contrato de mútuo, o credor possui um título executivo, nos termos do disposto no art. 703.º, n.º 1, alínea b), do CPC. Diferentemente, se o contrato de mútuo for de valor superior a 2.500,00 euros mas inferior a 25.000,00 euros, basta um documento assinado pelo mutuário, pelo que, neste caso, se for prestada uma fiança e tendo em conta que esta obedece à forma da obrigação principal (art. 628.º, n.º 1, do CC), o credor não possui um título executivo. Do exposto resulta que o credor só pode recorrer diretamente à ação executiva se o contrato de fiança for celebrado por documento autêntico ou documento particular autenticado (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC)124. B) ACORDO DE PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES DA DÍVIDA EXEQUENDA COM A INCLUSÃO DE UMA GARANTIA No âmbito da celebração de um acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda é também possível a formação de um título executivo contra o fiador. Pode suceder que o exequente e o executado consigam alcançar um acordo no pagamento fracionado da dívida exequenda (art. 806.º, n.º 1, do CPC), no qual convencionem a prestação de garantias adicionais (art. 807.º, n.º 2, do CPC), sendo comum, nesta situação, a intervenção de um terceiro que declara assumir a dívida como fiador125. Neste caso, tendo sido celebrado o acordo de pagamento em prestações com a inclusão de uma fiança, o agente de execução terá que informar o exequente que só pode ser movida execução contra o fiador, se o acordo for celebrado por documento autêntico ou documento particular autenticado. Assim, perante o incumprimento do acordo de pagamento em prestações pelo executado (devedor principal), o exequente requer a renovação da execução (art. 808.º, n.º 1, do CPC), apresentando um novo requerimento 124
Apesar dos documentos particulares deixarem de ser título executivo com a entrada em vigor da Lei n.º
41/2013, de 26 de junho, os contratos de fiança, anteriores a 1 de setembro de 2013, celebrados por documento particular constituem título executivo, uma vez que o Ac. do TC, n.º 408/2015, de 23 de setembro de 2015, declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que aplica o art. 703.º, do CPC, aos documentos particulares emitidos em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, exequíveis por força do disposto no art. 46.º, n.º 1, alínea c), do anterior CPC, por violação do princípio da proteção da confiança consagrado no art. 2.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP). 125
Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., pp. 155-175.
51
executivo, no qual inclui o fiador, para que este possa ser devidamente citado para a execução. Apesar de o fiador fazer parte do acordo prestacional deverá ser citado, uma vez que não foi chamado a juízo anteriormente para defender a sua posição na execução. Daqui resulta que a renovação da execução em relação ao garante não terá lugar se o acordo prestacional for formalizado em mero documento particular, visto que, nesse caso, o exequente não possui um título executivo que possa servir de base à propositura da execução contra o fiador (art. 703.º, n.º 1, do CPC). Todavia, o exequente pode sempre propor uma ação declarativa ou recorrer ao procedimento de injunção de forma a obter um título executivo contra o fiador (art. 703.º, n.º 1, als. a) e d), do CPC)126
127
.
C) CONTRATO DE ARRENDAMENTO ACOMPANHADO DO COMPROVATIVO DA COMUNICAÇÃO AO ARRENDATÁRIO DO MONTANTE EM DÍVIDA Nos contratos de arrendamento é muito frequente os senhorios exigirem a constituição de uma fiança para garantir o pagamento das rendas (art. 1038.º, al. a), do CC). Aliás, os senhorios têm vindo a optar por inserir nos contratos uma cláusula de exclusão do benefício da excussão prévia, uma vez que o afastamento deste benefício confere ao senhorio a possibilidade de executar os bens do fiador, sem que antes se mostrem excutidos todos os bens do arrendatário. No entanto, se nada for convencionado e se o benefício da excussão prévia não for afastado nos termos gerais (arts. 640.º e 641.º, do CC), o fiador apenas responderá pela dívida após serem esgotados os bens do arrendatário, como decorre do regime da fiança. Contudo, o problema coloca-se no âmbito da aplicação do art. 14.º-A, do NRAU, já que se tem vindo a discutir, na jurisprudência e na doutrina, se o título executivo previsto no art. 14.º-A, do NRAU, conjugado com o art. 703.º, n.º 1, alínea d), do CPC, abrange o fiador do arrendatário, isto é, se pode servir de base a uma execução instaurada contra este, ou se, pelo contrário, abrange apenas o arrendatário. Esta questão assume enorme relevância prática, uma vez que o que está em causa é saber se o senhorio detém um título executivo contra o fiador que lhe possibilita recorrer, desde logo, à ação executiva para lhe exigir o pagamento das rendas, encargos ou despesas que se encontram em dívida. Deste modo, se se entender que o senhorio possui um título executivo contra o arrendatário e contra o fiador poderá demandar o fiador na execução. Pelo contrário, se se entender que este título executivo não abrange o fiador, o senhorio terá que obter um título executivo pela via declarativa ou injuntiva para poder recorrer à ação executiva. Assim, tendo em conta o relevo prático que esta questão assume, em primeiro lugar, analisaremos a formação do título executivo propriamente dito e, após algumas considerações gerais sobre esta matéria, analisaremos a problemática da constituição do título executivo contra o fiador do arrendatário. 126
Ressalva-se o que já foi dito na nota 124.
127
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., pp. 497-498.
52
O NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, com a redação da Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro, manteve no art. 14.º-A128, o título executivo para cobrança de rendas, encargos ou despesas, sendo o mesmo composto pelo contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida. Este título executivo é um título executivo complexo, uma vez que é constituído por dois elementos corpóreos, nomeadamente, o contrato de arrendamento escrito e o documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida. Atualmente, o contrato de arrendamento tem que observar a forma escrita (art. 1069.º, do CC), sob pena de ser nulo (art. 220.º, do CC), ou seja, terá que ser realizado por documento particular, mas nada impede que conste de documento autêntico ou documento particular autenticado (arts. 363.º e 364.º, n.º 1, do CC)129
130
. Daqui resulta,
quanto ao primeiro elemento, que se o contrato de arrendamento não for celebrado por escrito, o senhorio não pode obter um título executivo para a cobrança de rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário (art. 14.º-A, do NRAU), nem pode recorrer ao procedimento especial de despejo, nos termos do disposto no art. 15.º, n.ºs 2 e 4, do NRAU. Relativamente à exigência do segundo elemento, isto é, do documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida importa saber qual a sua finalidade, quem tem legitimidade para a fazer e a quem deve ser dirigida, bem como a forma a que deve obedecer e o conteúdo que a mesma deve conter. Assim, a exigência deste segundo elemento tem como finalidade “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto ao montante peticionado, tendo em conta a tendencial vocação duradoura do contrato”131. Daqui resulta que, no que diz respeito à
128
Na versão inicial da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, este título executivo encontrava-se regulado no art.
15.º, n.º 2, do NRAU. 129
Assim, o recibo de renda ou a cópia do mesmo não integra o conceito de contrato de arrendamento. Vide
o Ac. do TRG, de 6 de novembro de 2008. 130
Cfr. MORAIS, F. G. – Falta de pagamento da renda no arrendamento urbano, Coimbra: Almedina, 2010, p. 73.
131
Neste sentido, o Ac. do TRL, de 12 de dezembro de 2008. Vide também o Ac. do TRP, de 6 de julho de
2010, o qual estabelece que será no confronto do conteúdo dos dois documentos mencionados que se há-de alcançar a resposta sobre o que pode ser exigido (objeto da execução ou quantia exequenda) e de quem pode ser exigido (sujeitos do lado passivo da execução ou executados). Sendo importante realçar que o fundamento substantivo da ação executiva é a obrigação exequenda, a qual tem de constar do título executivo. Além disso, é o título executivo que delimita objetiva e subjetivamente o âmbito da execução.
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legitimidade ativa, a realização da comunicação compete ao senhorio (exequente)132, e, no caso de serem vários os senhorios, esta deve ser subscrita por todos ou por quem a todos represente (art. 11.º, n.º 1, do NRAU). Por sua vez, estabelece o art. 11.º, n.º 3, do NRAU, que a comunicação deve ser dirigida ao arrendatário, porém, havendo pluralidade de arrendatários, esta é enviada ao arrendatário que figurar em primeiro lugar no contrato, salvo indicação em contrário. Por seu turno, quanto à forma da comunicação, não se exige que revista as formalidades mais solenes previstas no n.º 7 do art. 9.º, do NRAU, uma vez que esta comunicação destina-se à cobrança das rendas, encargos ou despesas em dívida e tais formalidades apenas se aplicam em caso de comunicação relativa à cessação do contrato de arrendamento por resolução (arts. 1084.º, n.º 2 e 1083.º, n.ºs 3 e 4, do CC). Assim, também não se exige que invoque a obrigação incumprida como determina o n.º 2 do art. 1084.º, do CC, visto que, tal como enunciado, não estamos perante uma comunicação relativa à cessação do contrato de arrendamento por resolução (art. 1083.º, n.ºs 3 e 4, do CC). Do exposto resulta que, se o senhorio pretender formar título executivo aplicar-se-á o regime previsto no art. 9.º, n.º 1, do NRAU, ou seja, a comunicação terá que ser realizada por carta registada com aviso de receção133. Apesar de não se exigir que a comunicação observe o disposto no art. 9.º, n.º 7, do NRAU, nada impede que se recorra a qualquer uma das vias previstas neste preceito, uma vez que pode ser utilizada uma forma superior à exigida134. Por último, relativamente ao conteúdo, a comunicação deverá conter o montante da dívida, bem como os meses a que respeitam as rendas, os encargos ou as despesas em dívida. Além disso, deve ainda constar o contrato de arrendamento incumprido, as partes contratantes e a data em que ocorreu a mora no pagamento de tais rendas, encargos ou despesas135. 132
Vide o Ac. do TRP, de 6 de julho de 2010, o qual refere que tem legitimidade como exequente quem
detém a posição de locador no momento da propositura da execução, ainda que tenha ocorrido durante a vigência do contrato de arrendamento a celebração de contrato de compra e venda e o adquirente não conste como locatário naquele primeiro contrato. 133
Neste sentido, o Ac. do TRP, de 21 de maio de 2012, segundo o qual, o formalismo da carta registada com
aviso de receção é suficiente para cumprir o comando legal. Também LAURINDA GEMAS, JOÃO CALDEIRA JORGE, ALBERTINA PEDROSO,
e MARIA OLINDA GARCIA referem que esta comunicação não está sujeita às
formalidades mais exigentes previstas no n.º 7 do art. 9.º, do NRAU, pois essas só valem para efeitos de resolução do contrato, sendo que na falta de qualquer disposição específica para esse efeito, terá que se concluir pela aplicabilidade da regra do n.º 1 do art. 9.º, do NRAU, isto é, a comunicação terá que ser realizada através de carta registada com aviso de receção. Cfr. GEMAS, L., PEDROSO, A., JORGE, J. C. – Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª ed., Lisboa: Quid Juris, 2009, p. 70 e GARCIA, M. O. - “Resolução do contrato de arrendamento urbano por falta de pagamento de rendas – vias processuais”, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, 2008, p. 73. 134
Assim, o Ac. do TRL, de 21 de abril de 2009.
135
Cfr. MORAIS, F. G., Falta de pagamento da renda no arrendamento urbano, ob. cit., pp. 75-76.
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Deste modo, concluímos que para existir título executivo que possibilite, ao senhorio, recorrer à ação executiva para pagamento de quantia certa, o contrato de arrendamento tem que estar reduzido a escrito e a comunicação terá que obedecer às formalidades enunciadas. Analisados os elementos que constituem o título executivo, importa analisar a problemática da constituição do título executivo contra o fiador do arrendatário. Tal como mencionado, discute-se na doutrina e na jurisprudência se este título executivo pode fundamentar a propositura de uma ação executiva contra o fiador do arrendatário. Assim, se por um lado, temos autores e jurisprudência que tem vindo a defender a admissibilidade da constituição de título executivo sem que o fiador seja sequer notificado, por outro lado, temos também a jurisprudência e a doutrina que entendem que o título executivo abrange o fiador, mas desde que este seja notificado do montante em dívida. Em sentido completamente oposto, temos a doutrina e jurisprudência que tem defendido que este título executivo não abrange o fiador. A doutrina dominante defende a admissibilidade de constituição de título executivo contra o fiador, ainda que, conforme enunciado, seja discutido se para existir título executivo contra o garante é necessário o comprovativo da comunicação ao próprio ou se basta a comunicação ao arrendatário. Cumpre, então, analisar os argumentos de cada posição, pelo que começaremos pelos argumentos dos que defendem a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador, sem que este seja notificado da dívida, em seguida analisaremos os argumentos da posição que defende a admissibilidade do título executivo contra o fiador, desde que este seja notificado, e, por último, os argumentos da posição dos que defendem a inadmissibilidade de formação de título executivo contra o fiador. Após a exposição de todos os argumentos utilizados por cada uma das posições, tomaremos posição sobre esta matéria. No âmbito da posição dos que defendem a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador, alguma jurisprudência e doutrina têm entendido que o título executivo previsto no art. 14.º-A, do NRAU, abrange o fiador do arrendatário, sem que este seja notificado da dívida, devendo apenas ser notificado o arrendatário, uma vez que este preceito exige que apenas o arrendatário seja notificado. Deste modo, argumentam que a regra não limita textualmente o caráter executivo do contrato de arrendamento à pessoa do arrendatário, visto que, na norma não se refere que o título executivo compreende apenas o arrendatário. Além disso, defendem ainda que a única justificação para a exigência da prévia comunicação ao arrendatário é a de obrigar o exequente a proceder à liquidação prévia das rendas, encargos ou despesas em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza relativamente ao montante da dívida exequenda, concluindo que a mesma exigência não se justifica já quanto ao fiador, dado que este pode não existir e, no caso de existir, garante a satisfação da obrigação principal,
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independentemente de ser ou não interpelado, tal como resulta do disposto nos arts. 627.º a 634.º do CC. Assim, defendem que basta o devedor principal ser interpelado. Outros argumentos que são apontados pelos que defendem esta posição são: a desnecessidade de multiplicação de ações judiciais; a conformidade com sistema de agilização visado pela reforma do arrendamento; e, ainda, a circunstância de não fazer sentido que se deixe de fora do campo normativo a parte mais importante, nomeadamente, aquela que, em princípio, tem um maior património, sendo essa a razão primordial do contrato de arrendamento136. Neste sentido vão os autores MENEZES LEITÃO e DELGADO DE CARVALHO.
Entende MENEZES LEITÃO que, tal como o arrendatário, o fiador é
igualmente parte no contrato de arrendamento, na medida em que o garante assume uma obrigação idêntica à do arrendatário em relação ao pagamento da renda e cobre as consequências da mora deste, independentemente de interpelação (art. 634.º, do CC). Afirma ainda o referido autor que para a formação do título executivo, a lei não exige que a comunicação seja também realizada ao fiador, pelo que, o senhorio não estará impedido de propor a ação executiva contra ambos137. Por seu turno, DELGADO DE CARVALHO acompanha a solução perfilhada pelo Ac. do TRL, de 17 de junho de 2010, segundo o qual, a exigência do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida não tem como finalidade demonstrar a constituição da dívida exequenda, uma vez que esta emerge do próprio contrato de arrendamento, e não limita à pessoa do arrendatário o caráter executivo deste contrato, pelo que, as rendas em dívida podem ser exigidas coercivamente de quaisquer devedores ou de todos em conjunto, incluindo, por isso, os fiadores. Acrescenta este autor que a doutrina deste aresto é a que se mostra compatível com o regime da fiança, isto porque o fiador não tem que ser interpelado para incorrer em mora. Aliás, o fiador pode ser chamado a cumprir antes mesmo do devedor principal, tendo em conta que a característica da subsidiariedade da fiança não é essencial (arts. 640.º e 641.º, do CC). Além disso, o que realmente distingue a fiança das outras figuras é a característica da acessoriedade, da qual derivam várias consequências, nomeadamente, a de que a obrigação do fiador tem o mesmo conteúdo da obrigação do devedor principal (art. 634.º, do CC). Assim, o art. 634.º, do CC, consagra que a obrigação se tem por não cumprida e vence juros moratórios contra o garante, sem que este tenha de ser interpelado em relação às prestações vencidas, bastando que o devedor principal esteja constituído em mora (art. 805.º, do CC). Defende ainda que a comunicação ao arrendatário do montante em dívida não 136
Neste sentido, o Ac. do TRL, de 12 de dezembro de 2008, o Ac. do TRC, de 21 de abril de 2009, o Ac. do
TRP, de 12 de maio de 2009, o Ac. do TRP, de 23 de junho de 2009, o Ac. do TRP, de 6 de outubro de 2009, o Ac. do TRP, de 4 de maio de 2010, o Ac. do TRP, de 16 de maio de 2011, o Ac. do TRP, de 18 de outubro de 2011, o Ac. do TRP, de 21 de março de 2013 e o Ac. do TRL, de 22 de outubro de 2015. 137
Cfr. LEITÃO, L. M. – Arrendamento Urbano, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 234.
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desempenha uma função constitutiva da obrigação exequenda, considerando que só é documento constitutivo o contrato de arrendamento, e deste deriva não só a dívida exequenda, mas também a constituição da obrigação do fiador. Aliás, o documento comprovativo da comunicação ao arrendatário também não é um requisito de exigibilidade da obrigação, na medida em que a obrigação de pagamento da renda é uma obrigação impura, uma vez que o seu vencimento atua de pleno direito (art. 805.º, n.º 2, al. a), do CC), sendo este comprovativo exigido apenas para permitir que o arrendatário exerça de forma eficaz o direito de oposição e possa pagar138. Por outro lado, existem autores e jurisprudência que defendem a necessidade de notificação do fiador do arrendatário para que se possa formar título executivo extrajudicial também contra este. Assim, referem que, tendo em conta o regime geral, efetivamente, o fiador de obrigações pecuniárias responde pelo atraso do devedor principal, bem como, pelos danos moratórios devidos, sem necessidade de interpelação (art. 634.º, do CC), bastando que o devedor principal se tenha constituído em mora. No entanto, apesar de a lei não exigir que o fiador seja interpelado, defendem que esta lógica cede agora perante a possibilidade de formação de título executivo extrajudicial contra este, uma vez que terá que se lhe assegurar um grau de proteção adequado139. Também neste sentido, LAURINDA GEMAS, ALBERTINA PEDROSO e JOÃO CALDEIRA JORGE referem que, apesar do art. 14.º-A, do NRAU, só se referir à comunicação ao arrendatário, deve entender-se, por maioria de razão, que a execução poderá ser igualmente instaurada contra o fiador, desde que o senhorio proceda à necessária comunicação140. Por seu turno, e também neste sentido VIRGÍNIO RIBEIRO e SÉRGIO REBELO entendem que no caso de existirem fiadores, estes também poderão ser demandados, desde que tenham sido notificados pelo senhorio do montante em dívida141. Em sentido oposto, temos a jurisprudência e os autores que defendem que o art. 14.º-A, do NRAU, não pode ser aplicável ao fiador, uma vez que aquele normativo referese expressa e exclusivamente ao arrendatário. Assim, defendem que não faz qualquer sentido, quer pela posição de garantes dos fiadores em relação ao arrendatário devedor (ainda que solidariamente responsáveis com ele), quer pela natureza, características e regime jurídico da fiança, permitir por mera notificação extrajudicial dos fiadores, a 138
Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., pp. 263-264.
139
Neste sentido, o Ac. do TRP, de 21 de maio de 2012 e o Ac. do STJ, de 26 de novembro de 2014. Este
último refere que a comunicação deve igualmente ser feita aos fiadores, por identidade de razões e enquanto condição de exequibilidade do título, ainda que o art. 15.º, n.º 2, do NRAU (atual, art. 14.º-A, do NRAU) só faça referência à comunicação ao arrendatário. Cfr. MORAIS, F. G., Falta de pagamento da renda no arrendamento urbano, ob. cit., pp. 77-78. 140
Cfr. GEMAS, L., PEDROSO, A., JORGE, J. C., ob. cit., p. 70.
141
Cfr. RIBEIRO, V. C., REBELO, S., ob. cit., pp. 146-147.
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formação de título executivo contra os mesmos (arts. 627.º, n.º 2, 632.º e 637.º, do CC). Além disso, referem que a extensão do regime ao fideiussor não é compatível com a sua função de garante, bem como, com o próprio regime da fiança constituída, sendo que, embora o contrato de arrendamento seja assinado pelo fiador, não se mostra, em relação a ele, como título executivo bastante, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 14.º-A, do NRAU142
143
. Também neste sentido, vão os autores GRAVATO MORAIS e RUI PINTO.
Assim, admite GRAVATO MORAIS que o art. 14.º-A, do NRAU, não revela uma orientação clara em nenhum dos sentidos, uma vez que, qualquer das vias assinaladas é defensável, atendendo à indefinição dos termos utilizados naquele normativo. Contudo, tendo em conta que não se faz qualquer menção, ainda que indireta, ao fiador, entende este autor que textualmente, há uma tendência ténue no sentido de que aquela norma não lhe é aplicável, pelo que, o legislador apenas terá pensado na pessoa do arrendatário. Defende ainda que a não multiplicação de ações judiciais não pode ser feita apenas à custa do fiador. Entende também que o argumento de que o sistema de agilização levado a cabo pela reforma, onde se enquadraria a extensão do regime ao garante, é pouco convincente, visto que o objetivo não foi claramente conseguido a vários níveis. Sublinha que a fiança é um negócio jurídico que envolve um elevado risco para o fideiussor, muito maior até do que o contrato de arrendamento para o próprio arrendatário, uma vez que, por exemplo, o inquilino pode pôr termo ao contrato a todo o tempo e, pelo contrário, o fiador não pode extinguir a fiança nas mesmas circunstâncias. Com efeito, a vinculação do fiador fica inteiramente dependente da vontade, bem como do cumprimento da obrigação pelo arrendatário, pelo que, a esta debilidade do fideiussor não deve corresponder um regime ainda mais agravado do ponto de vista processual. Aliás, pode até suceder que o fiador não tenha conhecimento da situação, uma vez que se tem vindo a defender que não é exigível que lhe seja realizada qualquer comunicação ou interpelação, podendo até já ter decorrido um largo período de tempo desde a constituição em mora do devedor principal até à instauração da ação executiva propriamente dita. Assim, segundo GRAVATO MORAIS estes são os argumentos determinantes
142
Assim, o Ac. do TRL, de 8 de novembro de 2007 e o Ac. do TRP, de 24 de abril de 2014. No entanto, este
último aresto entende que, no caso de se entender que aquele preceito permite a formação de título executivo contra o fiador do arrendatário, dever-se-á exigir, por imposição das regras de boa-fé e por maioria de razão, que o contrato de arrendamento seja acompanhado do comprovativo da comunicação ao garante do montante das rendas em dívida, em termos semelhantes ao que aquele normativo exige em relação ao arrendatário. No mesmo sentido, o Ac. do TRL, de 31 de março de 2009 e o Ac. do TRG, de 25 de maio de 2013, os quais defendem que a notificação extrajudicial nos termos do disposto no art. 1084.º, n.º 2, do CC e no art. 14.º-A, do NRAU, não produz quaisquer efeitos em relação ao fiador. 143
Cfr. MORAIS, F. G. - “Título executivo para a acção de pagamento da renda, Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto de 12.5.2009”, Cadernos de Direito Privado, n.º 27, 2009, p. 66.
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e de maior peso no sentido de impedir a aplicação desta norma ao fiador. Contudo, a entender-se que este título executivo abrange o fiador, sustenta o mesmo autor que o garante deve ser pelo menos interpelado, tendo em conta a proteção mínima que se lhe deve atribuir. Além disso, caso se admita o recurso à ação executiva no caso de o senhorio exigir a renda, acrescida da indemnização de 50%, a situação é verdadeiramente má para o fiador, visto que o decurso de um largo período de tempo após a mora do arrendatário oneraria aquele de uma forma despropositada e injusta. Ademais, tendo em conta as circunstâncias do processo executivo, o fiador fica numa posição mais debilitada do que a que estaria perante uma ação declarativa, podendo o senhorio sempre recorrer a esta via144. Por seu turno, RUI PINTO refere que o entendimento de que o fiador pode ser notificado e contra ele formado título executivo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 14.º-A, do NRAU, “tem contra si a natureza restritiva das normas que prevêem categorias de títulos executivos, limitadora de uma interpretação não literal, mas a favor a vantagem de evitar uma ação de condenação”. Sustenta que, “na verdade, não se compreenderia que essas normas conduzam o senhorio a usar o título contra o inquilino, sob pena de condenação em custas, mas não autorizassem a execução conjunta ou singular do fiador”. Já, no que concerne ao entendimento de que é possível a constituição de título executivo contra o fiador, sem que este seja sequer notificado, defende que não é possível que a execução seja dirigida contra quem não conste do título executivo, por força do disposto no art. 10.º, n.º 5 e no art. 54.º, ambos do CPC. Aliás, para efeitos do disposto no art. 745.º, do CPC, o fiador é executado no pressuposto de que consta no título executivo, ou seja, condenado em sentença judicial ou constante de contrato. Além disso, sublinha que o título executivo a que se refere o art. 14.º-A, do NRAU, é de natureza complexa, integrado por dois elementos corpóreos e não só pelo contrato de arrendamento. Outro argumento invocado por este autor é o facto de a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, não alterar a expressão “comunicação ao arrendatário” demonstra uma vontade legislativa no sentido do art. 14.º-A, do NRAU, não abranger outrem, designadamente o fiador, no âmbito subjetivo do título executivo. Assim, segundo RUI PINTO, devemos entender que “arrendatário” não inclui a pessoa que garante as dívidas do inquilino. Além do mais, precisamente, o art. 7.º, do DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro, refere que “o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas em atraso só pode ser deduzido contra os arrendatários”, o que valerá como argumento sistemático, ainda que em sede de procedimento especial de despejo. Com efeito, RUI PINTO
defende que a obtenção de título executivo contra o fiador passará pela sua
condenação judicial145. 144
Cfr. MORAIS, F. G., “Título executivo para a acção de pagamento da renda, Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto de 12.5.2009”, ob. cit., pp. 67-68. 145
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 1164-1165.
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Após a análise de todas as posições existentes no nosso ordenamento jurídico sobre esta matéria, importa tecermos algumas considerações. Assim, a verdade é que o art. 14.º-A, do NRAU, não explica contra quem se forma o título executivo. Apesar de se referir aos documentos que se devem reunir para em conjunto formarem o título executivo, não menciona as pessoas que ficam abrangidas pela força executiva desses documentos, pelo que, no caso de haver vários intervenientes no contrato de arrendamento, designadamente, o arrendatário e o fiador, não é claro se todos eles devem considerar-se abrangidos pelo título executivo ou apenas o arrendatário, uma vez que é este o devedor principal. De tudo o que foi exposto sobre esta matéria resulta que diversa jurisprudência se inclina para considerar que existe igualmente título executivo contra o fiador. Assim, um dos argumentos utilizados pelos que defendem que o título executivo abrange o fiador, sem que esteja sequer notificado do montante em dívida é o de que o garante não tem que ser interpelado, uma vez que a sua obrigação cobre as consequências legais da mora do devedor (art. 634.º, do CC), bastando a interpelação deste último. No entanto, ainda que a obrigação do fiador não dependa de interpelação, a relação jurídica que se estabelece em virtude da fiança entre o credor e o fiador não deixa de estar subordinada às regras da boa-fé (art. 334.º, do CC). Aliás, há que ter em atenção que o fiador é um mero garante, pelo que não beneficia da contraprestação da obrigação garantida. Além disso, em regra, está em más condições de acompanhar o decorrer da relação que é fonte dessa obrigação e as respetivas vicissitudes, apresentando-se a fiança como um negócio de risco, visto que o fideiussor não controla o cumprimento da obrigação e responde pelas consequências da atuação do devedor principal. Daqui resulta que, tendo em conta que a relação entre o credor e o fiador tem natureza contratual, deve entender-se que as regras de boa-fé impõem que o credor informe o fiador da situação que o irá fazer ter de responder pela obrigação. Assim, ainda que o credor beneficie da garantia, não pode pretender exercer o seu direito ignorando os interesses do fiador, o qual, apesar de responder perante este numa situação de incumprimento, tem todo o interesse em saber prontamente desta situação para tentar pôr-lhe termo. Aliás, é do seu interesse impedir o agravamento da prestação, pelo que, o credor deve, efetivamente, informar o garante, uma vez que os interesses do fiador em nada prejudicam os seus, pelo contrário, são inteiramente compatíveis com eles e podem mesmo contribuir para a satisfação do seu crédito. Outro argumento utilizado pelos que defendem a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador, sem que este seja notificado é o de que a exigência da comunicação ao arrendatário do montante em dívida tem como finalidade obrigar o exequente a proceder à liquidação prévia das rendas, encargos ou despesas em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza relativamente ao montante da dívida exequenda. No entanto, o arrendatário sabe o que está em dívida, como sabe também o dia em que
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devia ter realizado o pagamento em falta, pelo que, não necessita que lhe façam qualquer liquidação da dívida. O mesmo não se pode dizer do fiador que não controla o cumprimento da obrigação. Na verdade, a comunicação tem como finalidade dar ao arrendatário mais uma oportunidade para pagar e evitar a execução, regularizando a situação contratual. Assim sendo, não há razão para excluir o fiador. Aliás, ainda que este tenha renunciado ao benefício da excussão prévia (arts. 640.º e 641.º, do CC), não deixa de ser um mero garante da obrigação. Além disso, também não nos podemos esquecer que da análise do regime da fiança resulta todo um conjunto de normas que tem subjacente a ideia de que o fiador não pode ser colocado em condições mais gravosas do que o devedor principal (cfr. arts. 631.º, 635.º, 636.º, 637.º e 642.º, do CC), devendo entender-se que, o NRAU não iria introduzir um tratamento mais desfavorável do fiador, sem introduzir alterações naquele regime jurídico. Assim, do exposto podemos concluir que não se deve admitir a constituição de um título executivo contra o fiador sem que este seja sequer notificado do montante em dívida, uma vez que se lhe deve dar a mesma oportunidade que se dá ao arrendatário, isto é, a oportunidade de regularizar a situação contratual, evitando a execução. Relativamente à posição que defende a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador, desde que este seja notificado, como se disse, as partes nem por acordo podem criar títulos executivos para poder abranger qualquer outro responsável pelo pagamento da renda para além do arrendatário, uma vez que o elenco dos títulos executivos é taxativo. Aliás, tendo em conta que esta é uma situação de título executivo prevista especificamente na lei (art. 703.º, n.º 1, al. d), do CPC e art. 14.º-A, do NRAU), o art. 14.º-A, do NRAU, devia referir-se expressamente ao fiador, o que não se verifica. Daqui resulta que, também neste caso não podemos admitir a constituição de um título executivo contra o fiador, pois a lei apenas estabelece que a comunicação terá que ser feita ao arrendatário e não ao fiador. Assim, tratando-se de um título executivo de natureza complexa e tendo em conta que o garante não consta de um dos documentos,
nomeadamente
do
documento
comprovativo
da
comunicação
ao
arrendatário do montante em dívida, verificamos que não existe título executivo contra ele. Por seu turno, o art. 7.º, do DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro, admite que possam ser executadas outras pessoas, para além do arrendatário, designadamente o cônjuge do arrendatário, ainda que não seja parte no contrato de arrendamento. Aliás, este preceito estabelece expressamente que “o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas em atraso só pode ser deduzido contra os arrendatários”, excluindo, portanto, o fiador do arrendatário. Assim, não é possível recorrer ao Balcão Nacional do Arrendamento para deduzir um pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas contra o fiador do
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arrendatário. Deste modo, se o legislador quisesse que o título executivo previsto no art. 14.º-A, do NRAU, abrangesse o fiador do arrendatário, referia-o expressamente, uma vez que no art. 7.º, do DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro, claramente se refere ao cônjuge do arrendatário, ainda que não seja parte no contrato de arrendamento. Além do mais, também não podemos ignorar que a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, teve o cuidado de retirar este normativo do lugar secundário de último número do art. 15.º, do NRAU, atribuindo-lhe a dignidade de constituir sozinho um preceito autónomo. No entanto, era já conhecida a polémica jurisprudencial e doutrinal que este preceito vinha suscitando, pelo que, o facto de as melhorias inseridas no seu texto não terem compreendido, como era possível que tivesse sucedido, a tomada de posição expressa sobre a divergência de posições e se ter antes optado pela manutenção da menção expressa e exclusiva ao arrendatário e não, por exemplo, a sua substituição pela referência a “devedor” ou a “obrigado”, revela que, para o legislador este preceito legal abrange unicamente a formação do título executivo contra o arrendatário146. Assim, tendo em conta todas as razões enunciadas entendemos que o art. 14.º-A, do NRAU, não prevê a formação de título executivo contra o fiador do arrendatário. Independentemente da divergência jurisprudencial e doutrinal, o senhorio poderá sempre recorrer à ação declarativa ou ao procedimento de injunção para obter título executivo contra o fiador do arrendatário. No entanto, só é possível recorrer ao procedimento de injunção no caso de se tratar de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor até 15.000,00 euros, nos termos do disposto no art. 1.º, do diploma preambular, do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, ou independentemente do valor se se tratar de uma transação comercial. Efetivamente, existe aqui uma relação contratual, ou seja, o contrato de arrendamento, pelo que o valor das rendas, encargos ou despesas em dívida terá que ser até 15.000,00 euros. Além disso, no caso de inexistir título executivo, porque não existem os documentos a que se refere o art. 14.º-A, do NRAU, por exemplo, o contrato de arrendamento não foi reduzido a escrito (art. 1069.º, do CC), o senhorio terá que recorrer necessariamente à ação declarativa de condenação, uma vez que este é o mecanismo tradicional para obter o pagamento de obrigações pecuniárias, podendo esta ação ser proposta contra o fiador e contra o arrendatário nos termos gerais (art. 641.º, do CC). Mas, pode optar por instaurar uma ação de despejo (art. 14.º, do NRAU), na qual, para além da resolução do contrato de arrendamento, exige o pagamento das rendas em atraso. Esta ação pode ser proposta contra o arrendatário e contra o fiador. Contudo, nada impede que o arrendatário ou o fiador procedam ao cumprimento voluntário.
146
Vide o Ac. do TRP, de 24 de abril de 2014.
62
Efetivamente, o fiador pode oferecer o pagamento, visto que garante pessoalmente a dívida de rendas. Nestes casos, o senhorio tem direito a uma indemnização correspondente a metade do valor das rendas em mora, pelo que, quer seja o arrendatário, quer seja o fiador devem proceder ao pagamento dessa quantia (art. 1041.º, do CC)147. No entanto, o senhorio pode também simplesmente pôr fim ao contrato de arrendamento ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 1083.º, do CC. O senhorio tem ainda ao seu dispor o chamado procedimento especial despejo, no qual cumula o pedido de despejo com o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário (art. 15.º, n.º 5, do NRAU148). Contudo, se optar por este procedimento, o senhorio não pode demandar o fiador, uma vez que este só pode ser deduzido contra os arrendatários. No caso de o arrendamento ter por objeto casa de morada de família pode e deve também ser deduzido contra os cônjuges (art. 7.º, do DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro).
147
Cfr. MORAIS, F. G., Falta de pagamento da renda no arrendamento urbano, ob. cit., pp. 82-83.
148
O pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas pode ser feito em sede de procedimento especial
de despejo, não tendo o senhorio obrigatoriamente de o fazer, pelo que o senhorio pode sempre recorrer à ação executiva para pagamento de quantia certa (arts. 15.º, n.º 5 e 14.º-A, do NRAU). Todavia, se o pretender fazer terá que ter comunicado o montante em dívida ao arrendatário (art. 15.º, n.º 5, do NRAU).
63
II – LEGITIMIDADE DAS PARTES 1. CRITÉRIO GERAL Nos termos do disposto no art. 817.º, do CC, “não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo”. Daqui resulta que este preceito, além de definir o direito à execução coativa da prestação, estabelece quem tem legitimidade processual ativa e passiva na ação executiva. Os princípios de repartição da legitimidade têm expressão processual em critérios de aferição de legitimidade singular, nomeadamente, nos arts. 53.º a 55.º do CPC. Estabelece o art. 53.º, do CPC, que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”149. Do exposto resulta que, se recorre à literalidade do título executivo para aferir a legitimidade das partes, quer este seja uma sentença, um contrato, um título de crédito ou qualquer outro (designadamente, o contrato de arrendamento acompanhado do comprativo da comunicação feita ao arrendatário do montante em dívida – art. 14.º-A, do NRAU), fazendo-se um confronto entre este e as partes (art. 53.º, do CPC)150. No entanto, esta regra consente um desvio em relação à legitimidade passiva, designadamente no caso de execução provida de garantia real, bem como exceções por alargamento a terceiros abrangidos pela eficácia do caso julgado. No que concerne ao devedor, este poderá ser singular, plural, em conjunção ou em solidariedade, como poderá ser um devedor subsidiário, como é o caso do fiador. Nesta situação, em execução movida contra o fiador, enquanto devedor subsidiário, o título executivo será, em princípio, o contrato de fiança (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC)151. No âmbito de uma ação executiva, o funcionamento da responsabilidade subsidiária não interfere apenas com o leque de bens penhoráveis, mas também com os sujeitos que devem assumir o estatuto de executado. Assim sendo, temos sujeitos
149
No fundo, os critérios de atribuição de legitimidade executiva não são mais do que uma adaptação do
disposto no art. 30.º, do CPC, referente à ação declarativa, pelo facto da ação executiva ter subjacente um título executivo (art. 10.º, n.º 5, do CPC). Contudo, após a formação do título executivo podem ocorrer modificações, pelo que, a suficiência formal do título como constitutivo do poder de realização coativa da prestação não pode considerar-se completa. Devendo também atender-se aos próprios termos dos títulos negociais. Assim, o crédito poderá ser subjetivamente diverso ou mais extenso do que se afigura no título executivo. Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 298. 150
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 282-283.
151
Cfr. Idem, ibidem, p. 284.
64
diferentes a responder pela mesma dívida, embora o façam em condições distintas, uma vez que um dos responsáveis assume o estatuto de devedor principal e o outro a posição de devedor subsidiário, pelo que, gozando do benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC), só responde pelo cumprimento da dívida após estarem esgotados os bens daquele152. No entanto, nada impede que o fiador se assuma como devedor principal e solidário (arts. 638.º e 640.º, al. a), do CC) da integralidade da dívida (art. 634.º, do CC), nomeadamente, no caso da fiança mercantil (art. 101.º, do CCom) ou por exclusão do benefício da excussão prévia (arts. 640.º e 641.º, n.º 2, do CC). 2. FIANÇA E BENS DE TERCEIRO VINCULADOS À GARANTIA DO CRÉDITO O art. 818.º, do CC, consagra a possibilidade de o direito à execução poder incidir sobre bens de terceiro, desde que estejam vinculados à garantia do crédito ou quando sejam objeto de ato praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado. Assim, o crédito do credor exequente pode estar garantido com outra garantia real sobre bens de terceiro à dívida, o qual não irá ser devedor principal, originário153, mas tal como o fiador será garante do cumprimento da obrigação (arts. 639.º e 818.º, 1.ª parte, do CC e art. 735.º, n.º 2, do CPC). Esta possibilidade está prevista no art. 639.º, do CC, no qual se consagra que, existindo garantia real sobre bens de terceiro anterior ou contemporânea à fiança, o fiador pode invocar o benefício da excussão real, sendo que, neste caso, serão excutidos, em primeiro lugar, os bens de terceiro sobre que incida a garantia real. Note-se que, este terceiro não é o titular da obrigação exequenda, sendo responsável apenas pelo facto de ter um bem onerado em favor de dívida alheia. A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro encontra-se sujeita às regras de legitimidade passiva previstas no art. 54.º, n.ºs 2 e 3, do CPC154. O credor exequente tem a possibilidade de fazer valer a garantia real que incide sobre os bens de terceiro, mas pode optar por não o fazer. Assim, se o exequente não pretender acionar a garantia real, propõe a ação executiva contra o devedor principal, contra o fiador ou contra ambos (arts. 53.º, 54.º, n.º 1 e 55.º, do CPC), consoante contra quem possua título executivo, uma vez que estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário, resultando da vontade do exequente. No entanto, optando por demandar o fiador corre o risco de este invocar o benefício à excussão real, em sede de embargos de executado ou em oposição à penhora (art. 784.º, n.º 1, al. b), do CPC), 152
Cfr. CAPELO, M. J. - “Pressupostos Processuais Gerais Na Acção Executiva”, Themis – Revista da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano IV, n.º 7, 2003, p. 94. 153
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 291.
154
O terceiro garante pode ser quem prestou a garantia inicialmente, bem como, quem tenha, posteriormente
adquirido a coisa onerada, sendo que, no caso de o título executivo ser uma sentença, deverá também o terceiro garante ser condenado.
65
consoante a forma do processo aplicável, tendo em conta os sujeitos demandados e o título executivo que serviu de base à execução155. Pelo contrário, se o credor exequente pretende fazer valer a garantia real tem que propor a execução contra o proprietário do bem, uma vez que não é possível a penhora de bens pertencentes a pessoa que não tenha posição de executado (art. 735.º, n.º 2, do CPC). Neste caso, o exequente terá que escolher quem quer demandar, ou seja, se quer demandar o devedor principal, o fiador ou o terceiro, consoante o que melhor satisfaz os seus interesses e contra quem tenha título executivo. Esta legitimidade opcional encontra fundamento no art. 735.º, n.º 2, do CPC, ao estabelecer que, nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele156. Do exposto resulta que o credor exequente poderá demandar apenas o terceiro, sem sequer acionar o devedor principal ou o fiador (art. 54.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC), pelo que, a dívida poder-se-á extinguir sem que, nem o devedor principal, nem o fiador sejam demandados no processo executivo, isto porque estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário157. No caso de se reconhecer a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, o exequente pode requerer, no mesmo processo, que a execução prossiga contra o devedor que será demandado para completa satisfação do crédito exequendo (art. 54.º, n.º 3, do CPC). No entanto, deve aqui entender-se que o termo devedor abrange não só o devedor principal, mas também o fiador, enquanto devedor subsidiário, ainda que se mostre pertinente demandar apenas o devedor principal no caso de o fiador gozar do benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC), uma vez que, em princípio, o fiador irá invocar este benefício quando for citado para o processo executivo (arts. 745.º, n.º 1 e 728.º, n.º 1, do CPC) pelo que, primeiro terão que ser excutidos todos os bens do devedor principal. O momento da citação do fiador varia consoante a forma do processo aplicável à execução, sendo que, no caso de se ter consumado a penhora, por aplicação da forma sumária ao processo executivo, o fiador só irá invocar este benefício em sede de oposição à penhora, nos termos do disposto no art. 784.º, n.º 1, alínea b), do CPC158. Neste caso, verifica-se uma situação de intervenção principal provocada, constituindo um 155
A este propósito, cfr., infra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação executiva, 2 e 3.
156
Vide o Ac. do STJ, de 14 de novembro de 2013, no qual se estabelece que não se pode penhorar bem de
terceiro, onerado com garantia real para satisfação do crédito exequendo, sem que aquele seja parte na ação executiva, ainda que tenha adquirido o bem já com a execução instaurada. 157
Nada impede que, devedor principal pague voluntariamente, sendo, aliás, o que deve fazer (art. 846.º, n.º 1,
do CPC). Note-se que, se trata de uma norma de legitimação passiva do terceiro e não de uma previsão legal de litisconsórcio necessário deste terceiro com os devedores. 158
Sobre as implicações de forma do processo e sobre a invocação do benefício da excussão prévia pelo
devedor subsidiário, cfr., infra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação executiva, 1 e 2.
66
litisconsórcio superveniente voluntário, apesar da posição dos executados ser distinta, visto que o devedor principal tem o dever de cumprir e o fiador (garante pessoal) e o terceiro (garante real) são apenas garantes daquela dívida que respondem perante o incumprimento da obrigação pelo primeiro. No entanto, o cumprimento da obrigação exequenda acarreta extinção da obrigação para todos os executados. Nada impede que o exequente demande o terceiro garante, o fiador e o devedor principal em litisconsórcio voluntário (art. 54.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC)159. O que não é possível é o exequente demandar apenas um dos devedores (principal ou subsidiário), executando ao mesmo tempo a garantia, uma vez que, tal como se disse, se o credor pretender fazer valer a garantia terá que propor a ação executiva também contra o proprietário do bem. Este ato tem como consequência a ilegalidade subjetiva da penhora. Esta ilegalidade pode ser impugnada mediante embargos de terceiro ou ação de reivindicação160. Note-se que o art. 54.º, n.º 2, do CPC, atribui legitimidade ao terceiro, mas não afasta a legitimidade do devedor, quer seja devedor a título principal, quer seja subsidiário. Situação diversa é a da execução por dívida provida de garantia real sobre bens do próprio devedor, quer seja o devedor principal, quer seja o fiador, enquanto devedor subsidiário. Nessa hipótese, o devedor principal ou o fiador têm direito a que a penhora se inicie pelos bens sobre que incida a garantia real, só podendo recair sobre outros bens no caso de se mostrar a insuficiência daqueles para conseguir o fim da execução (art. 697.º, do CC e art. 752.º, n.º 1, do CPC). Neste caso, estamos perante uma situação de subsidiariedade objetiva, nos termos do disposto no art. 784.º, n.º 1, alínea b), do CPC161. 3. LITISCONSÓRCIO INICIAL E SUPERVENIENTE No
âmbito
da
ação
executiva
é
possível
verificarem-se
situações
de
162
litisconsórcio
. Assim, pode suceder que os direitos a uma prestação estejam em
contitularidade, do lado ativo ou do lado passivo, uma vez que estes direitos integram, 159
Neste sentido, o Ac. do STJ, de 28 de janeiro de 2015.
160
Vide o Ac. do STJ, de 14 de setembro de 2004.
161
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 293-294.
162
Note-se que se aplica ao litisconsórcio na ação executiva os mesmos conceitos e regime que na ação
declarativa. Neste sentido, quer vários autores formulem contra um só réu um pedido único (litisconsórcio ativo), quer um autor formule contra vários réus um pedido único (litisconsórcio passivo), quer um pedido único seja formulado por vários autores contra vários réus (litisconsórcio ativo e passivo) são-lhe aplicáveis as mesmas disposições aplicáveis à ação declarativa. Ainda que, conste do mesmo título executivo uma pluralidade de devedores ou um terceiro com património sujeito à execução para além do devedor, tal circunstância não implica que seja necessário a demanda de todos os obrigados ou sujeitos à ação executiva. Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pp. 157-158.
67
com frequência, relações jurídicas complexas, surgindo, designadamente, sujeitos que dão garantias. Estas garantias podem ser pessoais como o caso do fideiussor e do avalista ou garantias reais (como a hipoteca, o penhor). Não obstante, também em sede de legitimidade plural se apela à literalidade do título executivo, pelo que é igualmente necessário que o título confira legitimidade a todos os sujeitos envolvidos163. O litisconsórcio pode ser inicial ou superveniente, consoante se verifique no início do processo com a propositura da execução ou em momento posterior, nomeadamente, no decurso do processo. Assim, sendo movida ação executiva contra o devedor principal e contra o fiador, o credor tem a possibilidade de escolher quem quer demandar consoante o que seja melhor para a defesa dos seus interesses164. Apesar de tanto o devedor principal como o fiador terem legitimidade para ser partes na execução (art. 53.º, n.º 1, do CPC), o credor pode optar entre demandar um deles ou ambos, visto que a eventual alegação do benefício da excussão prévia não diz respeito à legitimidade. No caso de optar por demandar ambos os devedores (principal e subsidiário) verificar-se-á uma situação de litisconsórcio inicial voluntário. Aliás, no caso de o fiador não gozar do benefício da excussão prévia (arts. 640.º e 641.º, do CC e art. 101.º, do CCom) também não se impõe que estejam como partes na execução ambos os devedores, podendo o cumprimento ser realizado pelo fiador, uma vez que este não pode exigir que primeiro sejam executados os bens do devedor principal. Por sua vez, a figura do litisconsórcio sucessivo ou superveniente verifica-se quando, devido à dedução de um incidente de intervenção de terceiro, este fica a ocupar na ação, ao lado da parte primitiva, a posição do exequente ou do executado. Daqui resulta que a intervenção de terceiros tem como objetivo a constituição como parte de pessoas entre as quais a instância inicialmente não se constituiu165
166
. No entanto, a
admissibilidade destes incidentes na ação executiva tem vindo a ser discutida, sendo que o novo CPC vem restringir o seu âmbito de aplicação, reforçando os poderes do juiz para a rejeição de intervenções injustificadas ou dilatórias. Assim, predomina a regra da
163
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 301.
164
Neste sentido, o Ac. do TRC, de 21 de março de 2013 e o Ac. do TRL, de 9 de maio de 2013.
165
Cfr. FREITAS, J. L. e ALEXANDRE, I. - Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra
Editora, 2014, p. 576. 166
Trata-se de uma exceção ao princípio da estabilidade da instância previsto no art. 260.º, do CPC, segundo o
qual, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação previstas na lei (cfr. ainda arts. 564.º, al. b) e 262.º, al. b), do CPC). Atualmente, o nosso regime apenas prevê três incidentes da instância típicos, designadamente, a intervenção principal espontânea e provocada, a intervenção acessória provocada e do Ministério Público, a oposição espontânea, a provocada e a referente aos embargos de terceiro.
68
estabilidade subjetiva e objetiva da instância e a exceção de intervenção de terceiros167. Contudo, a serem admitidos os incidentes de intervenção de terceiros, estes só podem ter lugar na execução movida contra pessoa que tenha legitimidade para a mesma, uma vez que a dedução deste incidente não tem como finalidade a formação de um título executivo a favor ou contra terceiro (art. 10.º, n.ºs 4 e 5, do CPC). A questão da dedução de incidentes de intervenção de terceiros na ação executiva coloca-se, essencialmente, no âmbito do litisconsórcio voluntário, mais propriamente, no âmbito da intervenção principal provocada, uma vez que não há dúvidas de que na situação prevista no art. 261.º, do CPC, designadamente, quando o exequente necessite de chamar a intervir determinada pessoa para assegurar a legitimidade de uma parte, se impõe a admissibilidade deste incidente de intervenção. Além disso, é também consensual que se admite a intervenção de terceiros para ocuparem a posição de exequente ou de executado nos casos tipificados na lei, por exemplo, quando o exequente demande apenas o proprietário dos bens onerados com garantia real e os bens deste que garantem o cumprimento da obrigação se mostrem insuficientes, tem aquele a possibilidade de demandar o devedor168 (art. 54.º, n.º 2, do CPC)169; na execução movida contra o devedor principal singularmente, cujos bens se revelem insuficientes, pode o exequente demandar o devedor subsidiário (art. 745.º, n.º 3, do CPC)170 e na execução movida apenas contra o devedor subsidiário, que invoque o
167
Cfr. COSTA, S. – Os Incidentes da Instância, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 71.
168
Note-se que o termo devedor abrange igualmente o fiador. Neste caso, o fiador não poderá invocar o
benefício à excussão real (art. 639.º, do CC), podendo apenas alegar o benefício da excussão prévia, se a subsidiariedade da garantia não tiver sido afastada e se os bens de devedor principal não se mostrarem excutidos. 169
Neste sentido, o Ac. do STJ, de 28 de janeiro de 2015, o qual refere que o art. 54.º, n.ºs 2 e 3, do CPC,
permite ao exequente que queira fazer valer a garantia real, quando os bens dados em garantia pertençam a terceiro, optar entre propor desde logo a execução contra o terceiro e o devedor, numa situação de litisconsórcio voluntário, ou ser mais expectante intentando a execução apenas contra o terceiro, para, mais tarde se os bens se revelarem insuficientes, chamar o devedor para alcançar a completa satisfação do crédito exequendo. No entanto, não tendo o exequente demandado inicialmente os garantes, pode ainda fazê-lo na pendência da execução primitivamente instaurada apenas contra os executados outorgantes do contrato de mútuo garantido por hipoteca, através do incidente de intervenção principal provocada, para que o bem hipotecado, propriedade daqueles terceiros cujo direito de propriedade foi adquirido posteriormente à data da constituição da hipoteca mas antes da dedução da ação executiva, possa responder pela dívida provida de garantia real. No mesmo sentido, o Ac. do TRG, de 12 de novembro de 2013 e o Ac. do TRL, de 25 de outubro de 2012. 170
Assim, o Ac. do TRL, de 9 de maio de 2013, no qual se admitiu que a execução prosseguisse contra a
fiadora e principal pagadora da dívida da executada para com a exequente, não demandada inicialmente, dando lugar a um litisconsórcio sucessivo com intervenção provocada pelo exequente, invocando-se o
69
benefício da excussão prévia, o exequente pode demandar igualmente o devedor principal (art. 745.º, n.º 2, do CPC)171. É certo que, fora dos casos enunciados, a doutrina divide-se entre os autores que admitem a aplicabilidade dos arts. 311.º e ss, do CPC, à ação executiva (com mais ou menos restrições) e, pelo contrário, a doutrina que só admite a intervenção de terceiros em casos pontuais, determinados fora dos parâmetros gerais. Contudo, do exposto podemos concluir que o incidente de intervenção principal é admissível na modalidade de intervenção passiva provocada pelo exequente, tendo esta modalidade subjacente o princípio da economia processual172, pelo que colocamos a seguinte questão: será que este incidente de intervenção passiva provocada poderá ser deduzido pelo executado, isto é, pelo próprio fiador ou pelo devedor principal? Sabemos que o fiador e o devedor principal são litisconsortes voluntários, como sabemos que este incidente poderá ser deduzido pelo exequente nos casos referidos, mas será que a dedução deste incidente por parte do fiador terá alguma relevância prática? Outra questão que colocamos é a de que, tendo em conta que TEIXEIRA DE SOUSA admite a intervenção principal provocada para fazer intervir um litisconsorte voluntário, nomeadamente, a intervenção de um condevedor solidário do executado, será que no caso de pluralidade de fiadores ou quando o fiador não goza do benefício da excussão prévia poderá, segundo este entendimento, deduzir este incidente? Ora, começaremos primeiro por analisar esta última questão. Vejamos: TEIXEIRA DE SOUSA
elabora uma posição aberta de admissibilidade de intervenção
principal provocada na ação executiva. Com efeito, admite a intervenção principal provocada para sanar a preterição de litisconsórcio necessário (art. 261.º, n.º 1, do CPC) e para fazer intervir um litisconsorte voluntário, isto é, permite que o executado provoque a intervenção de um seu condevedor solidário, no prazo de oposição à execução. Defende que, “não é exigível que este devedor tenha de suportar sozinho o cumprimento da totalidade da prestação”. No entanto, excetua a intervenção provocada subsidiária do art. 316.º, n.º 2, do CPC, porque entende que é certa a titularidade da obrigação de prestar. Além disso, no caso de o fiador constar no título executivo simultaneamente com o devedor principal, refere o mesmo autor que não pode este requerer a intervenção principal do devedor, uma vez que não tem interesse processual, devendo, portanto, invocar o benefício da excussão prévia (art. 745.º, n.º 1, do CPC). O mesmo se aplica ao devedor principal, ou seja, também não pode provocar a intervenção
princípio da economia processual. No mesmo sentido, o Ac. do TRC, de 1 de junho de 2010, no qual também se admitiu a intervenção de um fiador. 171
Vide o Ac. do TRC, de 28 de maio de 2013, o qual também admite a intervenção de terceiros nos casos
tipificados na lei. 172
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pp. 160-162.
70
do fiador, enquanto não se mostrarem excutidos todos os seus bens173. Tendo em conta o entendimento de TEIXEIRA DE SOUSA, importa tecermos algumas considerações acerca desta matéria. Efetivamente, o fiador que goze do benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC) é um devedor subsidiário e não solidário, pelo que, apesar de ser um litisconsorte voluntário, não pode provocar a intervenção do devedor principal na execução, por não se tratar de um condevedor solidário e por falta de interesse processual, uma vez que pode sempre invocar o benefício da excussão prévia de forma a evitar que sejam apreendidos os seus bens sem que se mostrem excutidos todos os bens do devedor principal (art. 745.º, n.º 1, do CPC). No entanto, pode suceder que o fiador não goze deste benefício (arts. 640.º e 641.º, n.º 2, do CC e art. 101.º, do CCom), assumindo-se como principal pagador, sendo, portanto, afastada a subsidiariedade da fiança. Não obstante, esta é uma solidariedade imperfeita, uma vez que se o fiador cumprir a obrigação, assiste-lhe o direito à sub-rogação nos direitos do credor (art. 644.º, do CC). Além disso, pode também suceder que o devedor tenha sido afiançado por mais do que uma pessoa pela mesma dívida. Ora, se os fiadores se tiverem obrigado isoladamente, responderá cada um deles pela satisfação integral do crédito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras das obrigações solidárias (art. 649.º, n.º 1, do CC). Se cada um dos fiadores for responsável pelo cumprimento integral da obrigação e um deles proceder ao seu cumprimento fica investido nos direitos do credor contra o devedor por via de sub-rogação (art. 644.º, do CC), bem como, tem igualmente direito de regresso sobre os outros fiadores, de harmonia com as regras das obrigações solidárias (arts. 650.º, n.º 1 e 524.º, do CC). Parece-nos que, segundo o entendimento de TEIXEIRA DE SOUSA, podemos concluir que os fiadores, nestes casos, tratando-se de devedores solidários, ainda que, conforme se disse, se trate de uma solidariedade imperfeita, têm direito a deduzir o incidente de intervenção principal provocada. No entanto, vejamos: A intervenção principal provocada tem como finalidade a tutela de um interesse do réu na ação declarativa de condenação, nomeadamente, o réu pretende não ser o único condenado e proporcionar a formação de título executivo também contra o chamado. Neste sentido, na ação executiva, o fiador executado não carece deste interesse, uma vez que já existe um título executivo em que este assume a posição de devedor subsidiário. Além disso, se o fiador não gozar do benefício da excussão prévia, também não pode procurar evitar a penhora dos seus bens, através da indicação à penhora de bens do devedor principal (art. 745.º, n.º 4, do CPC). Daqui resulta que a imposição ao credor da intervenção no processo do devedor principal deixou de ter subjacente a satisfação de um interesse atendível do fiador executado, ainda que aquele se mostre também obrigado no título executivo ao seu lado (art. 316.º, n.º 3, al. a), do
173
Cfr. SOUSA, M. T. – Acção Executiva Singular, Lisboa: Lex, 1998, pp. 152-153.
71
CPC). Efetivamente, constando o fiador do título executivo é parte legítima (art. 53.º, do CPC) e é responsável pela dívida, uma vez que ao prestar a fiança sabia certamente que em caso de incumprimento por parte do devedor principal teria que responder perante o credor, podendo ser demandado numa ação executiva. Por seu turno, se o fiador gozar do benefício da excussão prévia, também não necessita de deduzir este incidente basta apenas invocar este benefício para que a penhora dos seus bens seja evitada (art. 745.º, n.º 1, do CPC). Além disso, tem ainda a faculdade de indicar para penhora novos bens do devedor principal, após a excussão dos bens que lhe eram conhecidos (art. 745.º, n.º 4, do CPC), mas, neste caso, o exequente terá que ter demandado, inicial ou sucessivamente, o devedor principal, pois, se não o fizer, não poderão ser penhorados bens do fiador que invoque o benefício da excussão prévia. Do exposto podemos concluir que o fiador não tem interesse em requerer a intervenção do devedor principal, goze ou não do benefício da excussão prévia. Como o devedor principal também não tem interesse em requerer a intervenção do fiador, uma vez que o fiador é um mero garante da dívida e, pelo contrário, o devedor principal é que tem a obrigação de cumprir. Aliás, se o fiador gozar do benefício da excussão prévia, só se poderão penhorar os seus bens, quando se mostrem excutidos todos os bens do devedor principal. Daí que, o devedor principal não tenha interesse em deduzir este incidente. Em sentido oposto a TEIXEIRA DE SOUSA, LEBRE DE FREITAS constrói uma posição restritiva em relação às intervenções de terceiros no processo executivo, aludindo à circunstância de as normas reguladoras dos vários tipos de incidentes de intervenção de terceiros terem sido pensadas em função da ação declarativa, exceto as da assistência. Defende que, fora dos casos previstos na lei e independentemente de se tratar do lado ativo ou passivo, a intervenção de terceiros só pode ocorrer quando o credor o queira, exceto para a coligação. Assim, entende que a intervenção principal provocada pelo executado não é admitida174. No mesmo sentido vai também RUI PINTO. Entende este autor que as intervenções de terceiros dos arts. 311.º e ss, do CPC, se apresentam como um “regime unitário tipicamente declarativo, na relação dos seus atos com o procedimento da ação pendente e, bem assim, na sua função – extensão do âmbito subjetivo inicial tanto do contraditório como da sentença final. As previsões respetivas postulam, na sua articulação com o procedimento pendente, uma discussão declarativa que, em absoluto está ausente do procedimento executivo: articulados (arts. 312.º e 313.º, n.º 1, do CPC), despacho saneador (art. 314.º, n.º 1, do CPC), audiência de discussão e julgamento, nomeadamente”. Neste sentido, defende que “os incidentes gerais de intervenção de terceiros são na sua concreta expressão incidentes declarativos”. Além disso, entende
174
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pp. 160-162.
72
que a ação executiva não serve para convencer outrem do direito de alguma das partes, este já se encontra reconhecido. Aliás, no título executivo já se encontra pré-definido o âmbito subjetivo da ação executiva175, sendo que serão demandados os sujeitos que estejam legitimados, atendendo aos critérios estabelecidos nos arts. 53.º e ss, do CPC, e ao que consta no título executivo e não como resultado do próprio incidente de intervenção. Assim, entende que “os regimes de intervenção de terceiros serão outros, eventualmente com a mesma designação doutrinal, mas não estes”, sendo que “a regra vigente da execução é a da inadmissibilidade de intervenções atípicas de terceiros, seja a que título for”176
177
.
Na jurisprudência mais recente tem sido igualmente recusada a intervenção principal provocada regulada nos arts. 316.º e ss, do CPC178. Neste sentido, o Ac. do TRL, de 21 de abril de 2009, estabelece que a executada através da dedução do incidente de intervenção principal provocada, nos termos do disposto nos arts. 325.º e ss, do CPC (atualmente, arts. 316.º e ss, do CPC), não pode colocar os chamados na posição de executados, uma vez que é ao exequente que cabe decidir contra quem, das pessoas que no título executivo têm a posição de devedor, pretende instaurar a ação executiva. Contudo, esta é uma questão que não é unânime na jurisprudência, uma vez que em sentido inverso vai o Ac. do TRP, de 23 de abril de 2001, o qual refere que, apesar de ser sabido que os incidentes de terceiros foram estruturados em função da ação declarativa, só nela se podendo realizar, a intervenção principal já é defensável no processo executivo em relação a pessoas com legitimidade para esta ação179. No entanto, tendo em conta o que foi dito a este propósito e que o objeto do nosso estudo é a fiança e a execução, concluímos que o fiador, no âmbito da ação executiva, não terá interesse processual em deduzir o incidente de intervenção principal provocada para chamar o devedor à demanda. Concluímos também que a dedução deste incidente na ação executiva deve ser admitida para ocuparem a posição de exequente ou de executado nos casos tipificados na lei e para sanar a preterição de litisconsórcio necessário (art. 261.º, do CPC). Nos restantes casos, não será de admitir a dedução dos incidentes de intervenção de terceiros na ação executiva, uma vez que estes incidentes estão vocacionados e estruturados em função da ação declarativa. A ser admitida a 175
Vide o Ac. do TRL, de 11 de outubro de 2001.
176
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 311-312.
177
Também no sentido de inadmissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiros na ação executiva,
SALVADOR DA COSTA. 178
Cfr. COSTA, S., ob. cit., pp. 71-72.
Nesse sentido, o Ac. do TRP, de 10 de abril de 2000, o Ac. do TRP, de 6 de julho de 2001, o Ac. do TRL,
de 27 de outubro de 2009, o Ac. do TRL, de 17 de fevereiro de 2011 e o Ac. do TRC, de 4 de junho de 2013. 179
Vide o Ac. do TRC, de 4 de maio de 2004, o Ac. do TRP, de 28 de abril de 2008, o Ac. do TRP, de 19 de
novembro de 2009 e o Ac. do TRP, de 18 de março de 2014.
73
intervenção de terceiro na execução, este terá um prazo próprio para deduzir oposição à execução, 20 dias a contar da sua citação para a intervenção. Consiste numa oposição superveniente, não pela matéria, mas pelos sujeitos (art. 728.º, n.º 2, do CPC).
74
III – TRAMITAÇÃO INICIAL DA AÇÃO EXECUTIVA 1. IMPLICAÇÕES NA FORMA DO PROCESSO A espécie de título executivo em que se fundamenta a execução releva para determinar a forma de processo executivo aplicável, podendo mesmo afirmar-se que este é o primeiro critério a ter em linha de conta (art. 550.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC) 180. Mas não só, também diversos outros fatores (v.g., a existência de hipoteca ou penhor garantindo a obrigação exequenda, o valor da dívida ou a natureza dos bens a penhorar) são, neste âmbito, relevantes181. No tipo de execução ora em causa, para se aferir a forma de processo aplicável terá que se atender ao título executivo em que se fundamenta a execução (art. 703.º, n.º 1, als. a) a d), do CPC e art. 14.º-A, do NRAU), aos sujeitos demandados, isto é, se a execução é movida apenas contra o fiador ou se contra este em conjunto com devedor principal, bem como se o fiador renunciou ou não ao benefício da excussão prévia (arts. 638.º a 641.º do CC). Além disso, também não nos podemos esquecer da possibilidade de o exequente requerer a dispensa de citação prévia do fiador, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 727.º, do CPC (dispensa judicial de citação prévia). Nos termos do disposto no art. 546.º, do CPC, as ações executivas continuam a seguir a forma de processo comum ou de processo especial, sendo o processo especial aplicável apenas aos casos expressamente designados na lei (v.g., a execução especial por alimentos prevista nos arts. 933.º a 937.º do CPC). Assim, são especiais apenas e só os processos que a lei designa como tal. Por sua vez, o processo comum aplica-se a todos os casos a que não corresponda um processo especial, ou seja, é definido a contrario sensu. Com efeito, pode-se dizer que os processos especiais são processos exceção e o processo comum é o processo regra. No que concerne às formas de processo comum, o CPC põe fim à forma única do processo executivo nas execuções para pagamento de quantia certa. Assim, de acordo com os critérios resultantes da conjugação dos n.ºs 2 e 3 do art. 550.º, do CPC, a execução poderá ser ordinária ou sumária (art. 550.º, n.º 1, do CPC). A forma de processo comum ordinário é a forma de processo regra e encontra-se regulada nos arts. 724.º e ss, do CPC. Pelo contrário, a forma sumária (arts. 855.º e ss, do CPC) é a forma exceção, aplicável apenas nos casos expressamente previstos no n.º 2 do art. 550.º, do CPC,
180
A espécie de título executivo em que se fundamenta a execução releva também para determinar certos
aspetos da tramitação processual que deve ser seguida, como sucede relativamente à execução fundada em sentença. 181
Cfr. MESQUITA, L. e ROCHA, F. C. – A Ação Executiva no Novo Código de Processo Civil, Principais alterações
e legislação aplicável, 3.ª ed. atualizada, Porto: Vida Económica, 2014, p. 39.
75
exceto se ocorrer alguma das situações a que alude o n.º 3 daquela norma, casos em que a forma de processo é imperativamente ordinária182. Neste sentido, tendo em conta que a forma sumária é aquela em que a execução se inicia com penhora imediata e sem citação prévia, e, por isso, comporta um risco maior de agressão infundada ao património do suposto devedor183, há condições que impedem, independentemente das demais circunstâncias, a realização desse ato previamente à citação do executado. Essas condições verificam-se nas diversas alíneas do n.º 3 do art. 550.º, do CPC. Nestes casos, a execução tem obrigatoriamente que seguir a forma de processo ordinário, isto é, despacho liminar e citação prévia. Uma destas situações em que se impõe que a execução siga a forma ordinária é nas execuções movidas apenas contra o devedor subsidiário, maxime fiador, que não renunciou ao benefício da excussão prévia, na qual tem sempre que haver lugar à sua citação prévia, justamente para lhe permitir invocar o benefício da excussão prévia (arts. 550.º, n.º 3, al. d) e 745.º, n.º 1, do CPC). Assim, pelo contrário, sendo o fiador demandado sozinho, mas tendo renunciado ao benefício da excussão prévia, ou em execução movida contra o fiador e o devedor principal, a ação executiva segue a forma ordinária ou sumária, nos termos gerais, isto é, consoante o que decorra da aplicação do disposto nos n.ºs 1 a 3 do art. 550.º, do CPC184. Daqui resulta que é possível a aplicação da forma de processo sumário à execução instaurada contra o fiador, pelo que, importa analisar em que casos é aplicável esta forma de processo: a. Na execução de sentença condenatória que corra ou não nos próprios autos (arts. 550.º, n.º 2, al. a) e 626.º, n.º 2, do CPC), desde que o credor tenha recorrido à ação declarativa de condenação para obter título executivo contra o fiador e/ou contra o devedor principal. b. Em execução de requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória (art. 550.º, n.º 2, al. b), do CPC). Neste caso, o credor recorreu ao procedimento de injunção para obter um título executivo contra o fiador e/ou devedor. No entanto, para que o credor possa recorrer ao procedimento de injunção é necessário que se observem os requisitos previstos no art. 1.º, do diploma preambular, do DL 269/98, de 1 de setembro, nomeadamente, que se trate do cumprimento de uma obrigação 182
Cfr. MESQUITA, L. e ROCHA, F. C., ob. cit., p. 43.
183
Cfr. FARIA, P. R. e LOUREIRO, A. L. – Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2014, p. 465. 184
Não nos podemos esquecer da possibilidade de o exequente ter pedido a dispensa de citação prévia do
fiador, casos em que também terá lugar a penhora imediata dos seus bens, ainda que a execução siga a forma ordinária.
76
pecuniária emergente de contrato, cujo valor não exceda 15.000,00 euros ou, independentemente do valor, se se tratar de uma transação comercial. c.
Na execução de título executivo extrajudicial (art. 703.º, n.º 1, als. b) a d), do CPC) de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor (art. 550.º, n.º 2, al. c), do CPC). Pode suceder que, para a mesma dívida, se preste uma fiança e se constitua uma hipoteca sobre um bem. Por exemplo, nas escrituras de mútuo bancário garantido por hipoteca, nas quais se presta uma fiança para garantir o pagamento da quantia mutuada e ao mesmo tempo se constitui hipoteca sobre o imóvel. Nesta alínea, incluem-se os mais variados documentos negociais e extranegociais, como por exemplo, os documentos autênticos (art. 363.º, n.º 1, do CC), os documentos particulares autenticados (arts. 363.º, n.º 3 e 377.º, do CC e arts. 150.º e ss, do Código do Notariado) e alguns documentos não autenticados a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
d. No caso de execução de título executivo extrajudicial (art. 703.º, n.º 1, als. b) a d), do CPC) em que a obrigação se mostre vencida e cujo valor não exceda o dobro da alçada da 1.ª instância (art. 550.º, n.º 2, al. d), do CPC)185. Atualmente, a alçada do tribunal de 1.ª instância é de 5.000,00 euros (art. 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ). Nesta alínea, aplica-se o disposto na alínea anterior quanto aos títulos executivos extrajudiciais, podendo, in casu, inserir-se, por exemplo, o contrato de fiança (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC), no caso de a dívida ser inferior a 10.000,00 euros; o acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda com inclusão de uma fiança (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC) e o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida (art. 703.º, n.º 1, al. d), do CPC e art. 14.º-A, do NRAU)186. Nestes casos, não se verificando nenhuma das situações previstas no n.º 3 do art. 550.º, do CPC, a execução movida contra o fiador que renunciou ao benefício à excussão
185
No caso da alínea d) do n.º 2 do art. 550.º, do CPC, a forma sumária é limitada (art. 855.º, n.º 5, do CPC).
A admissão da execução é igualmente feita pelo agente de execução, no entanto, com a particularidade de que há despacho liminar e citação prévia do devedor principal ou do fiador no caso de ser necessária a penhora de um bem imóvel, designadamente de estabelecimento comercial, de direito real menor que sobre ele incida ou de quinhão em património que os inclua. 186
A aplicação do processo sumário tem subjacente três critérios, designadamente, a segurança dos títulos
executivos (art. 550.º, n.º 2, als. a) a c), do CPC), o reduzido valor da dívida (art. 550.º, n.º 2, al. d), do CPC) e a ausência de controvérsia na fase introdutória da execução (art. 550.º, n.º 3, do CPC).
77
prévia e a execução movida contra o fiador e o devedor principal, seguem a forma do processo sumário. Diferentemente, se a execução for movida apenas contra o devedor subsidiário, maxime fiador, que não renunciou ao benefício da excussão prévia, aplica-se imperativamente a forma ordinária, uma vez que o fiador terá que ser citado previamente à penhora para invocar, se assim o pretender, o benefício da excussão prévia (arts. 550.º, n.º 3, al. d) e 745.º, n.º 1, do CPC). Daqui resulta que, no caso de execução de decisão judicial condenatória que corre nos próprios autos (art. 626.º, do CPC), ainda que a regra seja a tramitação da forma sumária (art. 626.º, n.º 2, do CPC), em execução movida apenas contra o fiador que não renunciou ao benefício da excussão prévia aplica-se imperativamente a tramitação da forma ordinária (arts. 626.º, n.º 2 e 550.º, n.º 3, al. d), do CPC)187. A mesma regra vale para a execução de decisão judicial condenatória que não deva ser executada no próprio processo (art. 550.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do CPC), para a execução de requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória (art. 550.º, n.º 2, al. b) e n.º 3, al. d), do CPC), para a execução de título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor (art. 550.º, n.º 2, al. c) e n.º 3, al. d), do CPC) e para a ação executiva de título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância (art. 550.º, n.º 2, al. d) e n.º 3, al. d), do CPC). Assim, independentemente da natureza do título executivo e do valor da dívida exequenda, nas situações a que alude o n.º 2 do art. 550.º, do CPC, bem como no caso de execução de decisão judicial condenatória nos próprios autos (art. 626.º, n.º 2, do CPC) aplica-se imperativamente a forma ordinária, se a execução for instaurada apenas contra o fiador que não renunciou ao benefício da excussão prévia188, ainda que a regra para estas execuções seja a forma sumária. No entanto, pode suceder que o exequente pretenda obter a dispensa de citação prévia do fiador com fundamento no receio de perda de garantia patrimonial, tal como admite o art. 727.º, do CPC. Neste caso, a execução terá igualmente que se iniciar com a intervenção do juiz para decidir sobre aludida dispensa de citação prévia. Em qualquer dos casos, a execução sempre teria que seguir, na sua fase inicial, os termos da execução ordinária nos termos definidos no art. 550.º, n.º 3, alínea d), do CPC189. No processo comum ordinário, há sempre despacho liminar. Neste caso, o requerimento executivo é recebido pela secretaria (art. 725.º, n.º 1, do CPC), sendo o processo concluso ao juiz, para que este analise e verifique as respetivas condições de 187
Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., p. 71.
188
Sobre o benefício da excussão prévia e sobre a exclusão deste benefício, cfr., supra, capítulo I, II – regime
jurídico, 1.1 e 1.2. 189
Cfr. MESQUITA, L. e ROCHA, F. C., ob. cit., p. 45.
78
prosseguimento. Considerando o caso em concreto, o juiz profere despacho de indeferimento liminar, de convite ao aperfeiçoamento ou de citação, se o processo estiver em condições de prosseguir (art. 726.º, n.ºs 1 a 6, do CPC). No caso de o despacho ser de citação, esta é efetuada pelo agente de execução (art. 719.º, n.º 1, do CPC). Por sua vez, sendo pedida a dispensa de citação prévia do fiador, abre-se um incidente que é tramitado como urgente, no qual o juiz aprecia a prova, e, verificando que o alegado receio de perda de garantia patrimonial é justificado, ordena a dispensa de citação prévia (art. 727.º, n.º 2, do CPC). Após este despacho, a ação executiva segue os termos idênticos aos da execução sumária (art. 856.º ex vi n.º 4 do art. 727.º, do CPC)190. Diferentemente, no processo comum sumário, a execução inicia-se com penhora imediata sem despacho liminar, o que significa que, para além da dispensa de citação prévia do executado, há também dispensa do despacho liminar. Neste caso, o requerimento executivo e os documentos que o acompanham são remetidos ao agente de execução, por via eletrónica, com a indicação do número único do processo (art. 855.º, n.º 1, do CPC), sendo o recebimento e a recusa do requerimento executivo da sua competência, ao qual se aplica os fundamentos de recusa previstos no art. 725.º, do CPC, por força do disposto no art. 855.º, n.º 2, alínea a), do CPC. Tendo o processo de prosseguir, o agente de execução dá início às consultas e diligências prévias à penhora, a qual ocorrerá antes da citação do executado (art. 855.º, n.º 3, do CPC). Se o agente de execução encontrar bens para penhorar, é feita a penhora e é citado o executado, no próprio ato da penhora, no caso de ele estar presente, ou no prazo de 5 dias contados da efetivação da penhora, notificando-o igualmente do ato da penhora (art. 856.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Após a citação do executado e da notificação da penhora, corre o prazo de 20 dias para o executado deduzir embargos de executado e oposição à penhora, cumulando-se ambas se o executado tiver fundamentos para reagir contra a execução e contra a penhora (art. 856.º, n.º 3, do CPC)191. Em suma, no processo ordinário há controlo prévio do juiz e citação do devedor prévia à realização da penhora, ou seja, há contraditório prévio. Diferentemente, no processo sumário a citação do executado só ocorre após a realização da penhora, sem prejuízo da intervenção liminar do juiz provocada pelo agente de execução (art. 855.º, n.º 5, al. b), do CPC), sendo que o contraditório é diferido192. Note-se que, a diferenciação das formas do processo diz respeito à fase liminar do processo, pelo que do momento da penhora em diante há apenas uma sequência processual. Assim, a variação
190
Cfr. Idem, ibidem, pp. 50-51.
191
Cfr. Idem, ibidem, pp. 51-52.
192
Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., p. 30.
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interna mais importante é a da fase introdutória que pode ser contínua ou parcialmente diferida para o termo da penhora193. 2. INVOCAÇÃO DO BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA PELO DEVEDOR SUBSIDIÁRIO O momento de alegabilidade do benefício da excussão prévia está condicionado pela forma do processo aplicável e correspondente tramitação da ação executiva, uma vez que o fiador só irá invocar este benefício quando for chamado ao processo executivo. Independentemente da forma do processo aplicável, em execução movida contra o fiador singularmente ou em conjunto com o devedor principal194, não podem penhorarse os seus bens, enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal (art. 638.º, do CC e art. 745.º, n.º 1, do CPC195)196, salvo se o benefício da excussão prévia tiver sido afastado nos termos gerais. Assim, seguindo a execução a forma ordinária (art. 550.º, n.ºs 1 e 3, al. d), do CPC), o fiador é citado previamente à penhora para, no prazo de 20 dias, invocar fundadamente o benefício da excussão prévia (arts. 745.º, n.º 1 e 728.º, n.º 1, do CPC). Para o efeito, será suficiente a junção ao processo de um exemplar do contrato constitutivo das obrigações, do qual resulta que o fiador não renunciou ao referido benefício197. Ora, sendo o fiador chamado ao processo executivo através do despacho de citação, tem que invocar este benefício, uma vez que a excussão prévia do património do devedor principal depende de manifestação de vontade do fiador198. Contudo, se o devedor principal não tiver possibilidades económicas para cumprir a obrigação, nada
193
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 338.
194
A execução só pode ser movida contra o fiador e o devedor principal se forem ambos condenados (no
caso, do título executivo ser uma sentença) ou se figurarem ambos no título executivo. Sobre o título executivo, cfr., supra, capítulo II, I - título executivo, 1. 195
Este normativo pressupõe a regra da citação prévia à penhora. No entanto, tal como se disse, se for
aplicável à execução a forma sumária (designadamente, quando o fiador seja demandado em conjunto com o devedor principal, desde que não se verifique nenhuma das situações do n.º 3 do art. 550.º, do CPC) o fiador não será citado previamente à penhora (arts. 550.º, n.º 3, al. d), a contrario e 856.º, do CPC). Sobre as formas do processo, cfr., supra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação executiva, 1. Cfr. TORRES, P. P. – Guia para o novo código de processo civil, Do velho ao novo código – correspondência e comparação de normas, Coimbra: Almedina, 2013, p. 442. 196
Por força da subsidiariedade da fiança, o fiador tem o direito de recusar o cumprimento da obrigação
enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal (art. 638.º, do CC e art. 745.º, n.º 1, do CPC). Assim, o Ac. do TRL, de 27 de novembro de 2008. Sobre a subsidiariedade da fiança, cfr., supra, capítulo I, I – enquadramento, 2 e sobre o benefício da excussão prévia, cfr., supra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.1 e 1.2. 197
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 318.
198
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., p. 261.
80
obsta a que o fiador, ao ser intimado pelo credor para satisfazer o crédito, opte pela sua imediata satisfação de forma a evitar o agravamento da sua situação debitória199, ou seja, se o fiador souber que o devedor principal não tem bens penhoráveis, pode optar por não invocar o benefício da excussão prévia e pagar a dívida, de forma a evitar que a prestação se agrave. Tendo o fiador invocado o benefício da excussão prévia, a penhora inicia-se pelos bens do devedor principal, só podendo incidir sobre os bens do fiador depois de realizada a venda dos primeiros e se apurar que aqueles são insuficientes para o pagamento das custas da execução, do crédito exequendo e dos créditos dos credores reclamantes que antes dele tenham sido graduados200. Daqui resulta que a excussão do património do devedor principal implica a venda total dos seus bens e o apuramento exato da responsabilidade remanescente201. O fiador terá que invocar o benefício da excussão prévia em requerimento autónomo entregue no prazo da oposição à execução (arts. 745.º, n.º 1 e 728.º, n.º 1, do CPC), ou seja, no prazo de 20 dias e, neste caso, funciona como objeção preventiva à penhora202
203
. Se o requerimento for deferido, o fiador obtém a suspensão da execução,
até que o exequente requeira a citação do devedor principal contra quem tenha título executivo, para excutir o seu património (art. 745.º, n.º 2, do CPC)204. O devedor principal é citado para pagar ou opor-se à execução nos termos gerais e não apenas “para integral pagamento” como enuncia o n.º 2 do art. 745.º, do CPC205. Apesar deste preceito apenas se referir ao pagamento, o devedor principal pode também opor-se à execução, deduzindo embargos de executado. Naturalmente que, para o efeito, terá que invocar algum fundamento. Contudo, pode suceder que o exequente não tenha título executivo contra o devedor principal e, neste caso, a execução mantém-se suspensa até que ele o
199
Cfr. FERREIRA, F. A. – Curso de Processo de Execução, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 223-224.
200
A prévia excussão do património do devedor principal pode mostrar-se penosa para o credor, visto que o
fiador nomeado pode mudar de fortuna, com risco de insolvência nos termos do disposto no art. 633.º, n.º 2, do CC. Cfr. supra, capítulo I, II – regime jurídico, 3. 201
Neste sentido, LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, pp. 261-262,
RUI PINTO,
Manual de Execução e Despejo, p. 487, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Curso de Processo de Execução,
p. 225 e J. M. GONÇALVES SAMPAIO, A acção executiva e a problemática das execuções injustas, p. 219. Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pp. 261-262. 202
Cfr. PINTO, R. - Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 545.
203
Ainda que o fiador tenha o ónus de invocar o benefício da excussão prévia, nada impede que deduza
embargos de executado, invocando outro ou outros fundamentos (arts. 728.º e ss, do CPC). 204
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pp. 262-263.
205
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 318.
81
obtenha206. Esta situação pode verificar-se, por exemplo, se o título executivo for uma sentença, na qual apenas foi condenado o fiador. Assim, do exposto resulta que, sendo alegado o benefício da excussão prévia pelo fiador e tendo sido a ação executiva movida também contra o devedor principal, a execução prossegue apenas contra este último. Não obstante, se o título executivo for uma sentença proferida apenas contra o fiador, em ação que não interveio o devedor principal, o benefício da excussão prévia só é invocável se o fiador expressamente declarou no processo que não pretendia renunciar a este benefício (art. 641.º, n.º 2, do CC), uma vez que se o fiador não chamou o devedor principal a intervir na ação declarativa, a própria lei presume que o fiador a ele renunciou, sendo esta uma das situações em que este benefício é afastado (art. 641.º, do CC)207 208. Apesar de aparentemente excutidos todos os bens do devedor principal e dirigida a execução contra os bens do fiador, este pode ainda indicar bens do devedor principal que hajam sido posteriormente adquiridos ou que não fossem conhecidos, fazendo igualmente suspender a execução nos seus bens (art. 745.º, n.º 4, do CPC). Neste caso, o agente de execução deve proceder à penhora dos bens indicados. Se o agente de execução não o fizer e os bens desaparecerem, o fiador pode opor-se à penhora dos seus bens com fundamento no n.º 2 do art. 638.º, do CC, isto é, a não satisfação do crédito por culpa do exequente, ao qual será dado conhecimento da indicação de bens realizada pelo fiador209. Se o fiador não invocar o benefício da excussão prévia, segue-se de imediato a penhora dos seus bens, ainda que previamente à penhora e à venda dos bens do devedor principal, podendo este último nem sequer vir a ser demandado para o processo, se, através da penhora dos bens do garante, se obtiver o pagamento integral da dívida210. 206
Cfr. FERREIRA, F. A., ob. cit., p. 226.
207
Sobre a exclusão do benefício da excussão prévia, cfr., supra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.2.
208
M. J. COSTA GOMES
entende que, se o título executivo for uma sentença, o fiador pode já ter invocado o
benefício da excussão prévia na ação declarativa, tendo a subsidiarização da sua responsabilidade ficado demonstrada na sentença condenatória. Assim, defende que, neste caso, na ação executiva, o fiador pode defender-se em oposição à execução com fundamento na inexigibilidade da obrigação (art. 729.º, al. e), do CPC), ou através do incidente de oposição à penhora com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 784.º, do CPC. Refere o mesmo autor que “a prévia excussão do património do devedor primário funciona como um autêntico pressuposto da efetiva responsabilização do devedor subsidiário, o qual se encontra na posição de opor ao credor, quando acionado intempestivamente, a exceção da inexigibilidade do crédito”. Cfr. GOMES, M. J. C. - Assunção Fidejussória de Dívida, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 1140-1141 e FERREIRA, F. A., ob. cit., pp. 224-227. 209
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pp. 262-263.
210
Cfr. FARIA, P. R. e LOUREIRO, A. L. – Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra:
Almedina, 2014, p. 273.
82
Contrariamente, se à execução é aplicável a forma sumária211, a lei não é clara quanto aos termos de alegação do benefício da excussão prévia pelo fiador, uma vez que esta alegação só irá ocorrer depois da penhora dos seus bens. Neste caso, o benefício da excussão prévia será invocado no prazo das oposições a que se refere o n.º 1 do art. 856.º, do CPC, nomeadamente, da oposição à execução e da oposição à penhora. No entanto, a penhora já se consumou, pelo que o benefício da excussão prévia já não irá funcionar como uma forma de objeção preventiva à penhora, mas como um fundamento de oposição à penhora, nomeadamente, o previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 784.º, do CPC212. Esta alínea refere-se à imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda, ou seja, à penhora de bens em responsabilidade subsidiária objetiva e de bens em responsabilidade subsidiária subjetiva213. Com efeito, in casu verifica-se a penhora de bens em responsabilidade subsidiária subjetiva, ou seja, a penhora de bens do fiador que só subsidiariamente respondiam pela dívida exequenda. Contudo, importa referir que esta subsidiariedade não existe no caso de dívidas solidárias (por exemplo, o avalista214), o que significa que se o fiador não gozar do benefício da 211
Sobre a aplicação da forma sumária, cfr., supra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação executiva, 1.
212
Cfr. PINTO, R., Notas ao Código de Processo Civil, ob. cit., pp. 545-546.
213
Na responsabilidade subsidiária real ou objetiva, a subsidiariedade ocorre no interior do património do
executado, em resultado da existência de separação de patrimónios. Por sua vez, na responsabilidade subsidiária subjetiva, a subsidiariedade é entre dívidas de dois sujeitos e, consequentemente, entre os respetivos patrimónios. O regime processual da penhora numa situação de responsabilidade subsidiária subjetiva está prevista no art. 745.º, n.ºs 1 a 4, do CPC, aplicável ao fiador. Por sua vez, o regime processual da penhora numa situação de responsabilidade subsidiária objetiva encontra-se regulada no n.º 5 daquela norma, podendo ser conjugado com os arts. 740.º a 742.º, 786.º, n.º 1, alínea a) e 752.º, n.º 1, do CPC. Cfr. PINTO, R., Notas ao Código de Processo Civil, ob. cit., p. 544. 214
Vide o Ac. do TRL, de 25 de junho de 2009, segundo o qual, tendo em conta, a solidariedade das
obrigações do avalista e do avalizado e a faculdade de o credor/portador de uma letra ou livrança poder acionar qualquer um deles, em conjunto ou singularmente, sem vinculação a qualquer ordem, há que concluir que o executado, na qualidade da avalista, se apresenta perante o credor/exequente como um devedor autónomo, respondendo por uma obrigação própria, sem que perante ele possa invocar a acessoriedade ou outro benefício, nomeadamente o direito de sub-rogação que o III do art. 32.º, da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças (LULL), lhe confere e não pode recusar o cumprimento da sua obrigação, dado que não lhe é aplicável o disposto no n.º 2 do art. 638.º, do CC. Além disso, estando em causa uma obrigação solidária e não uma obrigação subsidiária, não é lícito ao opoente, invocar que a exequente teria de penhorar em primeiro lugar bens da aceitante – a 1.ª executada – já que, nesta situação, não tem qualquer aplicação o disposto no art. 828.º, do CPC (atual, art. 745.º, do CPC). Vide também o Ac. do TRP, de 17 de dezembro de 2014, o qual refere que, nos termos do disposto no art. 784.º, n.º 1, alínea b), do CPC, o executado pode opor-se contra a imediata penhora dos seus bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda, tratando-se de uma situação de impenhorabilidade subsidiária objetiva. Assim, a responsabilidade (cambiária)
83
excussão prévia não existe esta subsidiariedade. Note-se que também no caso de pluralidade de fiadores se aplicam as regras das obrigações solidárias nas relações entre eles (arts. 649.º e 650.º, do CC)215. A oposição à penhora é um incidente declarativo da execução, cuja finalidade é permitir ao executado defender-se de um ato de penhora de um bem seu. O pedido de oposição à penhora consiste na revogação da penhora de um bem do executado, pelo que está fora do seu objeto os fundamentos da decisão do pedido, como a existência ou inexistência do direito penhorado ou, por exemplo, a existência de uma fiança216. O prazo para apresentar a oposição à penhora é de 20 dias a contar da citação do executado e da notificação do ato da penhora (art. 856.º, n.º 1, do CPC). Tratando-se de um processo sumário a oposição à penhora aproveita-se do prazo legal para a dedução de embargos de executado, alargando-se assim o seu prazo normal que, ao abrigo do n.º 1 do art. 785.º, do CPC, é de 10 dias (art. 856.º, n.º 1, do CPC). No entanto, não sendo a oposição à penhora cumulada com os embargos de executado, o regime do incidente segue o disposto nos n.ºs 2 a 6 do art. 785.º, do CPC (art. 856.º, n.º 4, do CPC). Se o exequente requerer a dispensa de citação prévia do fiador (art. 727.º, do 217
CPC)
e o juiz após apreciação da prova ordenar a sua dispensa, o fideiussor também só
será citado após a consumação da penhora, pelo que, neste caso terá igualmente que deduzir oposição à penhora com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 784.º, do CPC. No entanto, ao lado do benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC), o fiador pode gozar também do benefício da excussão real previsto no art. 639.º, do CC218. Este benefício permite ao fiador invocar a execução prévia dos bens sobre que recai a garantia real prestada por terceiro, desde que seja anterior ou contemporânea à fiança,
do avalista não é subsidiária à do avalizado, pelo que não tem cabimento, na execução cambiária, a invocação pelo executado avalista do fundamento de oposição à penhora previsto nesta alínea com referência ao estatuído no art. 752.º, do CPC. Assim, nada obsta à imediata penhora do imóvel pertencente ao executado apelante, enquanto obrigado cambiário (arts. 32.º, 43.º e 47.º aplicável ex vi do art. 77.º, da LULL). 215
Vide o Ac. do TRL, de 27 de novembro de 2008, o qual estabelece que o fiador pode renunciar expressa
ou tacitamente ao benefício da excussão prévia, sendo que, neste caso, ao responsabilizar-se, por vontade própria, solidariamente com o devedor principal perante o credor, renunciou tacitamente ao benefício da excussão prévia, passando a responder perante aquele pela prestação integral, pelo que, o cumprimento da dívida tanto pode ser exigido ao fiador, no todo ou em parte, como pode ser exigido ao devedor. Tratando-se de uma obrigação solidária, não é lícito ao fiador, enquanto devedor solidário, opor o benefício da divisão. 216
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 720.
217
A dispensa de citação prévia pode ser requerida em relação a qualquer executado, incluindo o fiador com
benefício da excussão prévia. Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., p. 192. 218
A este propósito, cfr., supra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.1.
84
mesmo que os bens do devedor principal já se tenham esgotado219. Assim, ainda que o fiador tenha renunciado ao benefício da excussão prévia, esta renúncia não implica a perda do benefício da excussão real (art. 639.º, do CC), pelo que continua a existir subsidiariedade relativamente aos bens de terceiro onerados com garantia real, desde que, tal como enunciado, a sua constituição seja anterior ou contemporânea à fiança, isto porque o fideiussor já teve em linha de conta a existência daquela garantia. Daqui resulta que o fiador pode também invocar, em sede de oposição à penhora, o benefício da excussão real, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 784.º, do CPC. Contudo, quando as coisas oneradas garantam outros créditos do mesmo credor, esta prevalência só opera se o valor delas for suficiente para satisfazer todos os créditos (art. 639.º, n.º 2, do CC). Diferentemente, se a garantia real incidir sobre os bens do devedor principal, é irrelevante para o fideiussor, uma vez que este reclamará a excussão prévia dos bens do devedor principal, onerados ou não. Neste caso, o devedor principal é que terá que invocar, em sede de oposição à penhora, o benefício da excussão real, faculdade que lhe é concedida pelo art. 697.º, do CC. Tal como o devedor principal, se for constituída garantia real sobre os bens do fiador, este tem também direito a que a execução comece pelos bens onerados (art. 697.º, do CC e art. 752.º, do CPC). Trata-se do beneficium excussionis realis, segundo o qual, os bens não onerados só devem ser penhorados na falta ou insuficiência dos bens onerados220. No entanto, neste caso, não será necessário esperar pela venda dos bens para se concluir que o seu produto não será suficiente para o pagamento da dívida221
222
.
Em suma: Se o fiador gozar do benefício da excussão prévia e o tiver invocado, é fundamento de oposição à penhora o facto de não terem sido previamente penhorados e vendidos os bens do património do devedor principal (art. 638.º, do CC e arts. 745.º e 784.º, n.º 1, al. b), do CPC);
Se não gozar do benefício da excussão prévia, mas existirem garantias reais sobre os seus bens (art. 697.º, do CC e arts. 752.º, n.º 1 e 784.º, n.º
219
Cfr. FERREIRA, F. A., ob. cit., p. 224.
220
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 488.
221
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 342.
222
Vide o Ac. do TRP, de 11 de maio de 2006, o qual refere que na subsidiariedade real (por contraposição à
subsidiariedade pessoal) respondem prioritariamente pelo cumprimento da obrigação os bens do devedor onerados com garantia real, não se exigindo a prévia excussão dos bens que respondem prioritariamente, mediante a realização das vendas ou adjudicações, para se poderem penhorar os bens que respondem um último lugar. Basta que o exequente demonstre a insuficiência manifesta dos bens que devem responder em primeiro lugar.
85
1, al. b), do CPC) ou sobre bens de terceiro (art. 639.º, do CC e art. 784.º, n.º 1, al. b), do CPC), a oposição à penhora fundamentar-se-á na circunstância de não terem sido previamente penhorados os bens, seus ou alheios, que respondiam em primeiro lugar ou de não ter sido verificada a sua insuficiência para a satisfação dos créditos a satisfazer por força deles223; No entanto, o fiador não pode invocar o benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC), nem o benefício da excussão real (art. 639.º, do CC), se o devedor ou o dono dos bens onerados com a garantia não puderem, em virtude de facto posterior à constituição da fiança, ser demandados ou executados no território continental ou das ilhas subjacentes (art. 640.º, al. b), do CC)224. Não obstante, a penhora poderá também ser reforçada ou substituída pelo agente de execução, quando o devedor subsidiário, maxime fiador, não tendo sido previamente citado225, invoque o benefício da excussão prévia (art. 751.º, n.º 4, al. f), do CPC). Assim, se o exequente não tiver movido a execução contra o devedor principal e hajam bens deste ou, tendo sido movida a execução contra o devedor principal e contra o fiador, este último indicar bens do devedor principal suficientes para os fins da execução (art. 745.º, n.º 4, do CPC), a penhora inicial só é levantada depois de penhorados os novos bens, com vista a evitar a perda da garantia por ela conseguida (art. 751.º, n.º 6, do CPC)226. Ou seja, sem prejuízo de o fiador poder fazer sustar a execução nos seus próprios bens, indicando bens do devedor principal que tenham sido adquiridos posteriormente ou que não fossem conhecidos (art. 745.º, n.º 4, do CPC), só depois de realizada nova penhora é que se procederá ao levantamento da que incide sobre os bens do fiador227. Por último, se a execução for instaurada apenas contra o devedor principal, o problema não se põe, visto que nela não podem ser penhorados bens de terceiro, contra quem a execução não foi proposta, isto é, não podem penhorar-se bens do fiador, por ser estranho à execução. No entanto, tal como referido a propósito do litisconsórcio
223
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., p. 318.
224
Sobre a exclusão do benefício da excussão prévia, cfr., supra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.2.
225
O que se verifica quando à execução é aplicável a forma sumária (art. 550.º, n.º 3, al. d), a contrario, do CPC)
ou ainda que siga a forma ordinária, o exequente requereu a dispensa de citação prévia (art. 727.º, do CPC). 226
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., p. 280.
227
Vide o Ac. do TRP, de 26 de janeiro de 2010, segundo o qual a oposição à penhora (arts. 784.º e ss, do
CPC) não se confunde com o reforço ou substituição da penhora previstos no n.º 4 do art. 751.º, do CPC, uma vez que, enquanto a procedência da oposição à penhora conduz, sem mais, ao respetivo levantamento (art. 785.º, n.º 6, do CPC), na substituição o levantamento só deve ser autorizado depois da penhora realizada em substituição (art. 751.º, n.º 6, do CPC).
86
sucessivo, havendo título executivo contra o fiador, é possível a sua citação ulterior para a execução, depois de verificada, após a excussão, a insuficiência do património do devedor principal (art. 745.º, n.º 3, do CPC). Neste caso, o fiador é citado para a execução para a obtenção do pagamento do valor do crédito ainda em dívida. Todavia, pode suceder que o fiador tenha conhecimento da existência de outros bens do devedor principal. Nestas situações, o fiador pode igualmente utilizar a faculdade que lhe é atribuída pelo n.º 4 do art. 745.º, do CPC, isto é, indicar bens penhoráveis do devedor principal. Se tiver fundamento para tal, o fiador ao ser citado pode também deduzir oposição à execução (arts. 728.º e ss, do CPC). No entanto, se o exequente quiser incluir o fiador ou o devedor principal na execução com a qualidade de executado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 745.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, tem que apresentar no processo um novo requerimento executivo, justificando-se a sua necessidade na parte destinada à exposição dos factos228. Considerando que o subfiador goza de um duplo benefício da excussão prévia, designadamente em relação ao fiador e ao devedor principal (art. 643.º, do CC) é-lhe aplicável o mesmo regime, com as necessárias adaptações229. 3. MEIOS DE DEFESA DO FIADOR EXECUTADO O executado demandado em ação executiva tem o direito a defender-se da pretensão contra si deduzida. Efetivamente, o facto de existir um título executivo permite a formulação de um pedido executivo, uma vez que se presume a existência da obrigação dele constante. Contudo, o executado não está impedido de ilidir a presunção que consta do título executivo e, para o efeito, dispõe da faculdade de se opor à execução, através de embargos de executado230. Independentemente da forma de processo aplicável à execução, sendo o fiador citado pode, além de invocar o benefício da excussão prévia nos termos enunciados, pagar voluntariamente as custas e a dívida (arts. 846.º a 849.º do CPC) ou deduzir oposição à execução no prazo de 20 dias a contar da citação, nos termos do disposto no art. 728.º, n.º 1, do CPC. A oposição à execução encontra-se regulada nos arts. 728.º a 734.º e nos arts. 856.º a 858.º do CPC. A oposição à execução é o meio processual, através do qual, o executado, maxime fiador, exerce o seu direito de defesa ou de contradição perante o pedido do exequente. Este direito de defesa corporiza-se numa petição inicial231 do executado com 228
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 318.
229
Sobre a subfiança, cfr., supra, capítulo I, I- enquadramento, 3.1.
230
Cfr. PIMENTA, P. – “Acções e Incidentes Declarativos na Dependência da Execução”, Themis – Revista da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano V, n.º 9, 2004, p. 73. 231
A petição inicial apresenta a estrutura e conteúdo de uma comum petição inicial nos termos do disposto
no art. 552.º, do CPC. Com a petição inicial, o oponente deve arrolar as testemunhas e/ou requerer provas
87
vista à extinção da execução, tendo por fundamento a impugnação de factos ou afirmação de factos, quer sejam sobre a instância, quer sejam sobre a dívida. Os embargos de executado apresentam-se, no fundo, como uma ação declarativa funcionalmente acessória da ação executiva, justificada pela oposição de uma defesa à dedução de uma pretensão executiva, pelo que sem execução não há oposição232. O autor, neste caso, o fiador só pode invocar causas de pedir que sejam admitidas pela lei (arts. 729.º e 731.º, do CPC)233. No entanto, na execução de título diverso de sentença, além dos fundamentos de oposição a que alude o art. 729.º, do CPC, na parte que sejam aplicáveis, o executado pode alegar quaisquer outros factos que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração (art. 731.º, do CPC)234. Sendo o pedido de oposição procedente, a execução extingue-se, nos termos do disposto no art. 732.º, n.º 4, do CPC. Aliás, é este o efeito pretendido pelo executado com a oposição à execução, isto é, o autor-executado deduz um pedido de extinção da execução, total ou parcial. Este efeito extintivo tem como fundamentos decisórios: o reconhecimento da atual inexistência do direito exequendo ou a falta de um pressuposto, específico ou geral, da execução235. Assim, esta extinção pode ocorrer por procedência de um fundamento processual ou por procedência de um fundamento substantivo (arts. 729.º a 731.º do CPC). Por conseguinte, a extinção de execução pode dar lugar à absolvição da instância executiva (inclusive por falta de título executivo) ou à absolvição do pedido, conforme o fundamento seja processual ou material, pelo que a finalidade do pedido do executado é a sua própria absolvição na instância ou no pedido executivo, não pedindo, portanto, a condenação do réu-exequente, no pedido. A lei é que estabelece o tipo de facto admissível, sendo através da sua demonstração que a execução se extingue. No entanto, os factos admissíveis estão condicionados pelo título executivo em que se baseia a execução236. Assim, no âmbito dos fundamentos, o regime processual dos embargos de executado comporta um regime restritivo e um regime amplo de fundamentos.
(art. 293.º, n.º 1, do CPC). Além disso, pode também requerer a substituição da penhora por caução idónea (art. 751.º, n.º 7, do CPC). Neste último caso, não se trata de provocar a suspensão da execução conforme dispõe o art. 733.º, n.º 1, alínea a), do CPC, mas sim de proteger o interesse patrimonial do executado, obtendo-se o levantamento das penhoras que já foram realizadas. 232
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 391-393.
233
Apenas mencionamos os arts. 729.º e 731.º, do CPC, dado que o Ac. do TC, n.º 264/2015, de 8 de junho
de 2015, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 857.º, n.º 1, do CPC. 234
Nesse sentido, o Ac. do STJ, de 4 de dezembro de 2007.
235
Vide o Ac. do TRE, de 5 de junho de 2008.
236
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 394-397.
88
O regime restritivo de fundamentos é aplicável às execuções baseadas em sentenças. Este regime encontra-se regulado no art. 729.º, do CPC, e é também aplicável às execuções baseadas em decisão arbitral, sendo que, neste caso, para além dos fundamentos a que alude o art. 729.º, do CPC, podem também invocar-se aqueles em que se pode basear a anulação judicial da mesma decisão, sem prejuízo do disposto no art. 48.º, n.ºs 1 e 2, da Lei da Arbitragem Voluntária (art. 730.º, do CPC). Neste regime processual, apenas servem de fundamento aos embargos de executado um dos taxativamente enumerados no art. 729.º, do CPC237
238
. Esta solução tem subjacente a
ideia de que a oposição à execução não pode servir para se discutir novamente o que se tenha decidido no âmbito do processo declarativo239, uma vez que o respetivo litígio já foi decidido e apreciado em sede declarativa. Com efeito, o legislador ao consagrar um regime restritivo para as execuções baseadas em sentenças pretendeu impedir a repetição da apreciação de questões que já foram ou deveriam ter sido invocadas no processo declarativo, salvaguardando-se o respeito pela certeza e segurança jurídicas, evitando-se a prolação de decisões judiciais contraditórias240. Daqui resulta que preclude a alegabilidade de factos que, podendo sê-lo, não foram invocados na contestação e que, apesar de supervenientes, não foram alegados ou conhecidos241. Reforçando-se assim, a eficácia de caso julgado constituído na sentença que o exequente deu à ação executiva242. Por sua vez, o regime amplo de fundamentos está previsto no art. 731.º, do CPC, e é aplicável às execuções de título diverso de sentença. No regime amplo, para além dos fundamentos a que se refere o art. 729.º, do CPC, na parte que sejam aplicáveis (ou seja, as alíneas a), c), e) e g)), podem ser alegados quaisquer outros factos que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração (art. 731.º, do CPC),243
244
isto é,
todos os factos impeditivos, modificativos ou extintivos admissíveis em ação declarativa245
246
. Compreende-se que assim seja, uma vez que o executado não teve
237
Vide o Ac. do TRP, de 3 de junho de 2013.
238
Cfr. MESQUITA, L. e ROCHA, F. C., ob. cit., p. 56.
239
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 399.
240
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 247.
241
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 399.
242
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 247.
243
Vide o Ac. do TRG, de 12 de março de 2009.
244
Cfr. MESQUITA, L. e ROCHA, F. C., ob. cit., p. 56.
245
Note-se que, em execução baseada em sentença apenas se podem alegar os factos impeditivos,
modificativos e extintivos da obrigação, desde que sejam posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento (art. 729.º, al. g), do CPC). O mesmo não se verifica em execução de título executivo diverso de sentença.
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oportunidade de, em ação declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do exequente247, daí que não haja uma limitação temporal248. No entanto, existem alguns fundamentos que são comuns, aplicáveis quer se trate de execução baseada em sentença ou em título executivo extrajudicial. Assim, no que concerne à relação processual, o oponente pode deduzir exceções dilatórias (art. 729.º, al. c) conjugado com os arts. 730.º e 731.º, do CPC), como por exemplo, a incompetência do tribunal, a nulidade de todo o processo, a falta de personalidade ou de capacidade judiciária de alguma das partes, a falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter, a ilegitimidade de alguma das partes, a coligação indevida, a falta de constituição de advogado quando imposto ou a falta, insuficiência ou irregularidade de mandato judicial por parte do mandatário que propôs a ação, a litispendência. Todavia, alguns destes vícios são sanáveis (art. 6.º, do CPC), pelo que o juiz da oposição deve promover oficiosamente a sua correção por si próprio ou convidando o exequente ao suprimento, consoante o regime do vício249. Assim, suprida a falta de pressuposto, cessa o fundamento de oposição, que o juiz julgará, por consequência, improcedente250. Não obstante, também em relação ao título executivo, o oponente pode invocar a sua inexistência, ou seja, a não apresentação do título ou inexistência de aparência mínima do título, bem como a sua inexequibilidade, isto é, a não verificação dos pressupostos a que se referem os arts. 703.º a 708.º do CPC ou de normas avulsas, ou ainda a nulidade formal (art. 729.º, al. a) conjugado com os arts. 730.º e 731.º, do CPC). A invocação da inexistência ou da inexequibilidade do título executivo é uma defesa por impugnação, uma vez que o executado nega o facto da existência do documento ou o seu valor jurídico. São também fundamento de oposição à execução a incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação (art. 729.º, al. e) conjugado com os arts. 730.º e 731.º, do CPC), caso não tenham sido supridas na fase liminar da ação executiva. A alegação da inexigibilidade da obrigação constitui uma defesa por exceção perentória impeditiva em relação à exigibilidade do crédito e, por sua vez, a arguição de incerteza ou iliquidez da obrigação configura uma defesa por impugnação relativamente ao quid ou ao quantum do crédito. O executado pode ainda apresentar outros factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda (art. 729.º, al. g) conjugado com os arts. 730.º e 731.º, do CPC). Neste caso, são exceções perentórias, nos termos do disposto no art. 246
Cfr. RIBEIRO, V. C. e REBELO, S., ob. cit., p. 259.
247
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., p. 206.
248
Cfr. MESQUITA, L. e ROCHA, F. C., ob. cit., p. 57.
249
Cfr. PINTO, Rui, Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 399-401.
250
Cfr. FREITAS, J. L., A Ação Executiva: À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., p. 196.
90
576.º, n.º 3, do CPC. Os factos impeditivos têm subjacente a inexistência originária da obrigação, como por exemplo, a falta ou nulidade formal do seu título material, a nulidade não formal ou a falta de causa de aceite da letra ou livrança. Por sua vez, os factos modificativos podem ser, por exemplo, a modificação do contrato por alteração de circunstâncias, os factos em que se funda a inexigibilidade da obrigação, a substituição do objeto da prestação, a alteração das garantias. Por fim, os factos extintivos referemse à inexistência da obrigação (art. 729.º, al. e), do CPC)251. Estes factos podem ser comuns ou específicos, sendo comum, por exemplo, a anulabilidade por incapacidade do devedor (art. 731.º, do CPC). Os factos extintivos específicos em relação às pretensões creditícias podem ser o cumprimento ou qualquer outra causa de extinção das obrigações (arts. 847.º, 837.º, 841.º, 857.º, 863.º e 868.º, do CC), a impossibilidade objetiva do cumprimento da prestação (art. 790.º, n.º 1, do CC), a prescrição da dívida, a extinção de um reconhecimento de dívida. Além disso, o executado pode ainda impugnar a realidade dos factos constitutivos do crédito que o autor apresenta no título executivo. Por exemplo, temos um título executivo que é um documento autêntico através do qual o executado confessa haver recebido do exequente dada quantia a título de mútuo. Neste caso, os embargos de executado procedem se se provar que nenhuma quantia foi entregue à executada, ainda que esta deva pagar a quantia exequenda ao exequente, devido ao contrato de fiança celebrado252. Do exposto resulta que, independentemente da natureza do título executivo, o fiador pode alegar qualquer um destes fundamentos em sede de oposição à execução. No entanto, além destes fundamentos comuns, o fiador pode invocar causas de defesa específicas, uma vez que a violação das regras do direito substantivo da penhorabilidade subsidiária subjetiva, como por exemplo, a violação do disposto nos arts. 638.º e 653.º, do CC, são fundamento de oposição à execução253. Por seu turno, também o terceiro em execução por dívida provida de garantia real (art. 54.º, n.º 2, do CPC) pode invocar causas de defesa específicas, ou seja, o executado garante pode invocar causas próprias da sua posição jurídica, como por exemplo, a extinção da garantia real que onera o bem. No que diz respeito ao fiador, além dos meios de defesa254 que lhe são próprios (isto é, os que dizem respeito ao negócio da fiança, às relações entre fiador e credor), este pode também opor ao exequente os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito (v. g., a prescrição da obrigação principal, a sua extinção, a nulidade, porém, 251
Um exemplo de um facto extintivo da obrigação é o pagamento da obrigação, sem que o exequente o
tenha considerado e, ainda assim tenha procedido à propositura da ação executiva. 252
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., pp. 401-411.
253
Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., p. 43.
254
Sobre os meios de defesa oponíveis ao credor pelo fiador, cfr., supra, capítulo I, II – regime jurídico, 1.3.
91
neste caso, com ressalva do disposto no art. 632.º, do CC), ainda que o devedor tenha a eles renunciado, salvo se forem incompatíveis com a sua obrigação255 (art. 637.º, do CC). Além disso, tem ainda a faculdade de se opor ao pagamento forçado, enquanto o devedor principal puder impugnar o negócio donde provém a sua obrigação, ou o credor puder ser satisfeito por compensação por um crédito do devedor, ou se tiver a possibilidade de se valer da compensação com uma dívida do credor (art. 642.º, do CC)256. Pode também o fiador ser o credor do titular do crédito afiançado e haver lugar à compensação257. O fiador pode ainda recusar o cumprimento, em sede de embargos de executado, se provar que o crédito não foi satisfeito por inércia do credor, não obstante a excussão de todos os bens do devedor principal (art. 638.º, n.º 2, do CC)258. Assim, além de poder invocar o benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC) e o benefício da excussão real (art. 639.º, do CC) nos termos enunciados anteriormente259, pode também defender-se, em sede de oposição à execução, invocando, por exemplo, a sua liberação por impossibilidade de sub-rogação (art. 653.º, do CC), a prescrição da obrigação principal ou a prescrição da sua obrigação, a circunstância de o credor não ter observado o disposto no art. 652.º, do CC, e, portanto, a fiança caducou, ou ainda, a inexistência da obrigação porque ele ou o devedor principal já a cumpriram260. Ou seja, o fiador poderá defender255
É o que se verifica, por exemplo, com a anulabilidade resultante da falta de capacidade do devedor ou falta
ou vícios de vontade deste, se o fiador conhecia a causa da anulabilidade, nos termos do disposto no art. 632.º, do CC. 256
Cfr. PINTO, R., Manual de Execução e Despejo, ob. cit., p. 419.
257
Vide o Ac. do STJ, de 14 de março de 2013, o qual refere que a oposição à execução baseada em título
executivo extrajudicial, pode ser fundada em facto extintivo da obrigação, como o seja a compensação. Segundo o mesmo aresto, a declaração de compensação é um “negócio jurídico unilateral, que reveste a natureza de um direito potestativo extintivo, tem lugar quando o devedor que seja credor do seu próprio credor se libere da dívida à custa do seu crédito”. Contudo, a compensação só pode ser apresentada nos autos de oposição, quando não carecer de reconhecimento judicial, na medida em que não é legalmente admissível invocar a compensação quando a existência do crédito do executado carece ainda de ser declarada nos embargos à execução, por ser tido como incerto e hipotético ou nalguns casos relativo a uma obrigação de valor. Esta hipótese vale tanto para execução baseada em sentença, como para a execução de título extrajudicial (art. 729.º, al. h), do CPC). Neste sentido, o Ac. do TRP, de 25 de junho de 2013 e o Ac. do TRP, de 28 de abril de 2014. Cfr. CARVALHO, J. H. D., ob. cit., p. 52. 258
Cfr. VARELA, J. M. A. e LIMA, P. (com a colaboração de M. H. Mesquita), Código Civil Anotado, ob. cit.,
p. 656. 259
A este propósito veja-se, supra, capítulo II, III – tramitação inicial da ação executiva, 1.
260
Vide o Ac. do STJ, de 31 de março de 2009, o qual refere que, baseando-se a execução em documentos
particulares envolventes de contrato de mútuo e fiança (atualmente, atendendo ao disposto no art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC, estes contratos terão que ser celebrados por documento autêntico ou por documento particular autenticado, uma vez que o documento particular, por si só, deixou de constituir título executivo, à
92
se invocando fundamentos, quer de natureza substantiva, quer de natureza processual (v.g., a falta de qualquer pressuposto processual). Daqui resulta que, sendo o fiador citado previamente à penhora e invocando este benefício da excussão prévia, nada impede que o fiador deduza também embargos de executado invocando como fundamento, por exemplo, o benefício da excussão real (art. 639.º, do CC) ou a sua liberação por impossibilidade de sub-rogação (art. 653.º, do CC) ou a falta de qualquer pressuposto processual. Não sendo previamente citado à penhora, porque a execução seguiu a forma sumária ou porque o exequente requereu a dispensa de citação prévia, o fiador também pode deduzir oposição à penhora, na qual invoca o benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC) e/ou o benefício da excussão real (art. 639.º, do CC) com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 784.º, do CPC, e, simultaneamente, deduz oposição à execução invocando qualquer fundamento de natureza substantiva ou de natureza processual (art. 856.º, n.º 1, do CPC). No entanto, terá sempre que atender-se à natureza título executivo em que se funda a execução, uma vez que, tal como mencionado, sendo o título executivo uma sentença só podem ser invocados os fundamentos taxativamente enumerados no art. 729.º, do CPC. Assim, o fiador terá que invocar estes meios de defesa em sede declarativa. Pelo contrário, se for um título executivo diverso de sentença, como por exemplo, se for um contrato de fiança (art. 703.º, n.º 1, al. b), do CPC) aplicar-se-ão os fundamentos previstos no art. 729.º, do CPC, na parte que sejam aplicáveis por remissão do art. 731.º, do CPC, e quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração, ou seja, todos os factos já enunciados (art. 731.º, do CPC).
exceção dos títulos de crédito), a oposição é suscetível de se fundar na inexistência da obrigação exequenda. No entanto, refere ainda que o art. 652.º, do CC, é inaplicável ao contrato de fiança em que o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia. Assim, entendeu este aresto que, a prorrogação do prazo de pagamento das prestações do mútuo acordada entre o mutuante e o mutuário, prevista em proposta assinada pelo devedor principal e pelo fiador, não libera o garante da obrigação assumida no contrato de mútuo que foi modificado.
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CONCLUSÕES I – O fiador responsabiliza-se pessoalmente com o seu património pelo cumprimento da obrigação do devedor perante o credor. Assim, apesar de o fiador ser um devedor subsidiário, não deixa de ser um verdadeiro devedor do credor, visto que, em caso de incumprimento da obrigação pelo devedor, responde pelo cumprimento da mesma. II - Atendendo ao disposto no art. 457.º, do CC, e ainda que a lei não o refira expressamente, o negócio que dá origem à fiança tem caráter bilateral, isto é, a fiança resulta de um contrato celebrado entre o fiador e o credor ou entre o fiador e o devedor, uma vez que a solução contrária constituiria uma oposição ao princípio da tipicidade dos negócios jurídicos unilaterais. III - A forma da declaração de prestação de fiança tem que obedecer à forma exigida para a obrigação principal (art. 628.º, n.º 1, do CC). No entanto, para que o credor possa recorrer ao processo de execução terá que possuir um dos títulos executivos taxativamente enumerados no art. 703.º, n.º 1, do CPC. Daqui resulta que a fiança deve ser prestada em documento autêntico ou em documento particular autenticado de forma a conferir ao credor a possibilidade de recorrer de imediato à execução. IV - Relativamente às características da fiança, a acessoriedade apresenta-se como uma característica essencial, fazendo parte da sua própria natureza, na medida em que só se está perante uma fiança se a obrigação do fiador for acessória. Esta característica é de tal forma importante que se manifesta em vários preceitos do seu regime. Pelo contrário, a subsidiariedade não é uma característica essencial da fiança, podendo ser afastada por vontade das partes. Contudo, assume enorme relevo prático no processo executivo, já que constitui uma forma de o fiador afastar a penhora imediata dos seus bens, enquanto não se mostrem excutidos todos os bens do devedor principal. Esta característica concretiza-se no benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC). V - Quanto às modalidades da fiança, nomeadamente à subfiança e retrofiança, élhes aplicável o regime da fiança, com as necessárias adaptações. Daqui resulta que estão sujeitas ao regime da penhorabilidade subsidiária. A particularidade da subfiança é tratar-se de uma fiança de uma fiança, ou seja, o subfiador assegura o cumprimento da obrigação do fiador ao credor (art. 630.º, do CC). Assim, em caso de incumprimento da obrigação pelo fiador, responde o subfiador. No fundo, é uma mais-valia para o credor que, perante o incumprimento da obrigação por parte do fiador, dispõe de outra garantia. Outra especificidade desta figura é a circunstância de o subfiador gozar de um duplo benefício da excussão prévia (art. 643.º, do CC). Só após a penhora dos bens do património do devedor principal e do património do fiador é que se poderão penhorar os bens do subfiador. Por sua vez, a particularidade da retrofiança é a do retrofiador só responder na eventualidade de o fiador cumprir a obrigação perante o credor. Neste
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caso, o fiador transfere o risco de incumprimento ou de insolvência do devedor para o retrofiador. VI – O direito concedido ao fiador que mais se destaca é a possibilidade deste invocar o benefício da excussão prévia (art. 638.º, do CC). Este direito permite ao fiador recusar o cumprimento da obrigação, enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito. Corresponde, assim, a uma forma de o fiador evitar a agressão judicial dos seus bens, sem que antes e insatisfatoriamente hajam sido excutidos todos os bens do devedor. Este benefício é de tal forma amplo que permite ao fiador recusar o cumprimento da obrigação se o crédito garantido com a fiança continuar por satisfazer, mas por culpa do credor, ainda que se mostrem executados todos os bens do devedor (art. 638.º, n.º 2, do CC). Além disso, se existirem garantias reais sobre bens de terceiro, o fiador pode ainda exigir a execução prévia dos bens sobre que recai a garantia (art. 639.º, do CC). Contudo, pode suceder que o fiador não goze deste benefício, ou porque a ele renunciou ou porque foi afastado nos termos gerais (arts. 640.º e 641.º, do CC e art. 101.º, do CCom). Nestes casos, o fiador coloca-se numa posição mais frágil, uma vez que não pode afastar a penhora dos seus bens sem que se mostrem excutidos todos os bens do devedor. Assim, quando o fiador não goza deste benefício, deixa de ser um devedor subsidiário, equiparando-se a um devedor solidário. No entanto, esta solidariedade é imperfeita, uma vez que só se revela após o incumprimento da obrigação por parte do devedor. Diferentemente do que se verifica na solidariedade passiva, se o fiador cumprir a obrigação pode exigir do devedor a totalidade do que pagou (art. 644.º, do CC). Além disso, a fiança não é válida se não o for a obrigação principal (art. 632.º, do CC) e o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a sua obrigação (art. 637.º, do CC). O mesmo não acontece na solidariedade passiva. VII – No que concerne aos títulos executivos, além das espécies previstas, concluímos que é possível a formação de um título executivo contra o fiador em sede de oposição à execução e no âmbito da celebração de um acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda. No primeiro caso, o título executivo é a notificação realizada ao fiador para entregar o montante garantido, no caso de os embargos terem sido julgados improcedentes e o devedor não cumprir voluntariamente a obrigação. No segundo caso, o título executivo é o acordo de pagamento em prestações com a inclusão de uma fiança. Neste caso, atendendo à regra da tipicidade dos títulos executivos o acordo terá que ser realizado através de documento autêntico ou de documento particular autenticado. Do exposto podemos concluir que, para além da sentença condenatória e do contrato de fiança, podem fundamentar a execução instaurada contra o fiador estes dois títulos executivos.
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VIII - No âmbito do arrendamento urbano, discute-se se o título executivo previsto no art. 14.º-A, do NRAU, pode fundamentar uma execução instaurada contra o fiador. Esta é uma questão que não reúne consenso junto da doutrina e da jurisprudência. Se, por um lado, temos quem defenda a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador sem que este seja notificado, por outro lado, há quem defenda a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador, desde que este seja notificado. Quanto à primeira posição, entendemos que, apesar de o fiador não ter que ser interpelado, não deixa de ser um mero garante da obrigação, pelo que deve-lhe ser dada a mesma oportunidade que se dá ao arrendatário com a comunicação, isto é, a oportunidade de regularizar a situação contratual, evitando a execução. Por seu turno, relativamente à segunda posição que defende a admissibilidade da constituição do título executivo contra o fiador, desde que este seja notificado, importa sublinhar que as partes não podem criar títulos executivos para poder abranger qualquer outro responsável pelo pagamento da renda para além do arrendatário. Além disso, sendo esta uma situação de título executivo expressamente prevista na lei (art. 703.º, n.º 1, al. d), do CPC e art. 14.º-A, do NRAU) o art. 14.º-A, do NRAU, claramente se devia referir ao fiador, o que da leitura da norma concluímos que não se verifica. A lei apenas exige que a comunicação seja feita ao arrendatário e não ao fiador. Aliás, apesar de já ser conhecida toda esta polémica jurisprudencial e doutrinal, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, optou pela manutenção da menção expressa e exclusiva ao arrendatário, o que significa que para o legislador este preceito legal abrange exclusivamente a formação do título executivo contra o arrendatário. Assim, tratando-se de um título executivo complexo e tendo em conta que o fiador não consta de um dos documentos que o compõe, concluímos que não existe título executivo contra o fiador do arrendatário, não podendo fundamentar uma execução instaurada contra ele. IX –.Se existirem garantias reais sobre bens de terceiro, o credor pode escolher se quer ou não fazer valer a garantia real. No entanto, se optar por não acionar a garantia real corre o risco de o fiador invocar o benefício à excussão real. O momento em que este benefício será alegado está dependente do momento em que os executados serão chamados para a execução. Por seu turno, se o credor optar por fazer valer a garantia real tem que propor a execução contra o proprietário do bem, visto que não é possível a penhora de bens pertencentes a pessoa que não tenha posição de executado (art. 735.º, n.º 2, do CPC). Contudo, nada obsta a que o exequente demande o terceiro garante, o fiador e o devedor principal em conjunto, uma vez que estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário (art. 54.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC). X – Tem vindo também a ser discutida a admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiros na ação executiva, sendo que esta questão se coloca, fundamentalmente, no âmbito do litisconsórcio voluntário, mais propriamente, no âmbito
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da intervenção principal provocada, visto que não há dúvidas que para sanar a preterição de litisconsórcio necessário (art. 261.º, do CPC) é possível a dedução deste incidente. O problema também não se coloca nos casos tipificados na lei em que se deduz este incidente para o terceiro ocupar a posição de exequente ou de executado. Mas fora destes casos, poderá este incidente ser deduzido, por exemplo, pelo fiador ou pelo devedor principal? Não nos parece que a dedução deste incidente pelo fiador tenha interesse prático, uma vez que um dos objetivos da dedução deste incidente na ação declarativa é a formação de um título executivo também contra o chamado. Assim, o fiador executado não carece deste interesse, visto que já existe um título executivo. Além disso, se o fiador gozar do benefício da excussão prévia, apenas terá que invocar este benefício para que a penhora dos seus bens seja evitada (art. 745.º, n.º 1, do CPC), tendo ainda a faculdade de indicar para penhora novos bens do devedor principal, após a excussão dos bens que lhe eram conhecidos (art. 745.º, n.º 4, do CPC). Do exposto podemos concluir que o fiador não tem interesse em requerer a intervenção do devedor principal. Muito menos interesse terá o devedor principal em requerer a intervenção do fiador, uma vez que, se o fiador gozar do benefício da excussão prévia e o invocar só serão penhorados os seus bens quando se mostrem excutidos todos os bens do devedor principal. Também não nos podemos esquecer que a posição dos executados é distinta, visto que o fiador é um mero garante da dívida e, pelo contrário, o devedor principal é quem tem a obrigação de cumprir, pois foi ele que constituiu e tirou proveito daquela obrigação. Posto isto, concluímos que nem o fiador, nem o devedor principal têm interesse em deduzir este incidente. XI – Para aferir a forma do processo aplicável à execução instaurada contra o fiador tem que se atender à espécie de título executivo em que se fundamenta a execução, aos sujeitos demandados e à circunstância de o fiador gozar ou não do benefício da excussão prévia. Efetivamente, o art. 550.º, n.º 3, alínea d), do CPC, determina que se a execução for instaurada apenas contra o fiador e este gozar do benefício da excussão prévia, aplica-se imperativamente a forma do processo ordinário. Assim, podemos concluir que se o fiador não gozar do benefício da excussão prévia ou for demandado conjuntamente com o devedor principal aplicam-se as regras gerais previstas no art. 550.º, do CPC. Do exposto resulta que, se o fiador for demandado sozinho e gozar do benefício da excussão prévia e se o título executivo for, por exemplo, uma sentença é aplicável a tramitação do processo ordinário, ainda que a estas execuções seja de aplicar a tramitação da forma sumária. XII - O momento em que o fiador irá invocar o benefício da excussão prévia está dependente da forma do processo aplicável e correspondente tramitação da ação executiva, uma vez que o fiador só pode invocar este benefício quando é chamado para o processo executivo. Assim, se à execução for aplicável a forma do processo ordinário, o
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fiador é citado previamente à penhora, sendo-lhe dada a oportunidade de invocar o benefício da excussão prévia no prazo de oposição à execução (arts. 745.º, n.º 1 e 728.º, n.º 1, do CPC). Mas o mesmo não se verifica se à execução é aplicável a forma do processo sumário. Neste caso, quando o fiador é chamado ao processo executivo a penhora dos seus bens já se consumou. Daqui resulta que a aplicação da forma do processo sumário deixa o garante numa posição mais fragilizada, uma vez que, apesar de gozar do benefício da excussão prévia, ele não consegue evitar a penhora dos seus bens sem que antes e insatisfatoriamente se mostrem excutidos todos os bens do devedor principal. No fundo, não se dá ao fiador a hipótese de invocar o direito que lhe assiste no momento certo, ou seja, antes da penhora dos seus bens. XIII - Em sede de oposição à execução, além dos fundamentos que são comuns, o fiador pode invocar causas de defesa específicas, uma vez que a violação das regras do direito substantivo da penhorabilidade subsidiária subjetiva são fundamento de oposição à execução. Além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador pode ainda invocar os meios de defesa que competem ao devedor, desde que não sejam incompatíveis com a sua obrigação. No entanto, sempre teremos que atender à natureza do título executivo. XIV – Do exposto concluímos que, o facto de a obrigação do fiador ser subsidiária da obrigação principal, ou seja, do fiador gozar ou não do benefício da excussão prévia terá imensas implicações no processo executivo, desde logo na forma de processo aplicável à execução. Por seu turno, a forma do processo aplicável vai determinar o momento em que o fiador invoca o benefício da excussão prévia e o benefício da excussão real, bem como os seus meios de defesa. Além disso, se existirem garantias reais sobre bens de terceiro, mesmo que o fiador não goze do benefício da excussão prévia, poderá sempre invocar o benefício da excussão real.
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LISTA DE JURISPRUDÊNCIA Os acórdãos são indicados de acordo com a ordem com que foram citados no estudo, tendo sido consultados in www.dgsi.pt. - Acórdão do TRL, de 6 de dezembro de 2005, proc. n.º 4858/2005-6; - Acórdão do TRL, de 17 de setembro de 2009, proc. n.º 383/03.0TBAVR-2; - Acórdão do TRC, de 9 de fevereiro de 2010, proc. n.º 60/09.9TBMGR-A.C1; - Acórdão do STJ, de 26 de outubro de 2010, proc. n.º 357/1999.P1.S1; - Acórdão do TRP, de 13 abril de 2015, proc. n.º 5429/11.6YYPRT-E.P2; - Acórdão do TRG, de 11 de maio de 2005, proc. n.º 828/05-2; - Acórdão do TRC, de 29 de setembro de 2009, proc. n.º 5159/03.2TBLRA.C1; - Acórdão do TRL, de 2 de novembro de 2006, proc. n.º 8488/2006-8; - Acórdão do TRE, de 13 de janeiro de 2011, proc. n.º 277/08.3TBTVR.E1; - Acórdão do TRP, de 21 de março de 2013, proc. n.º 1068/11.0TJPRT-B.P1; - Acórdão do TRP, de 2 de julho de 2013, proc. n.º 2262/12.1YVPRT-A.P1; - Acórdão do TRL, de 27 de novembro de 2008, proc. n.º 9041/2008-6; - Acórdão do TRC, de 20 de abril de 2010, proc. n.º 899/08.2TJCBR.-C.C1; - Acórdão do TRP, de 11 de abril de 2005, proc. n.º 0454230; - Acórdão do TRP, de 5 de junho de 2014, proc. n.º 1596/06.9TBVRL-A.P1; - Acórdão do TRP, de 3 de março de 2009, proc. n.º 0828059; - Acórdão do TRL, de 26 de março de 2009, proc. n.º 6724/2008-6; - Acórdão do TRL, de 25 de fevereiro de 2010, proc. n.º 137/07.5TVLSB-6; - Acórdão do STJ, de 5 de março de 2002, proc. n.º 01A3971; - Acórdão do TRE, de 11 de dezembro de 2003, proc. n.º 2131/03-2; - Acórdão do TRL, de 5 de maio de 2011, proc. n.º 4815/08.3TBOER-A.L1-6; - Acórdão do TRG, de 18 de janeiro de 2006, proc. n.º 2421/05-.1; - Acórdão do TRL, de 4 de dezembro de 2006, proc. n.º 9714/2006-6; - Acórdão do STJ, de 30 de outubro de 2002, proc. n.º 02B2739; - Acórdão do STJ, de 24 de março de 2011, proc. n.º 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1; - Acórdão do TRL, de 23 de novembro de 2006, proc. n.º 2253/2006-6; - Acórdão do STJ, de 31 de março de 2009, proc. n.º 82/03.3TBMTR-A.S1; - Acórdão do TRC, de 28 de fevereiro de 1989, R. 288/88; - Acórdão do TRP, de 16 de junho de 2011, proc. n.º 18/07.2TBTBC.P1; - Acórdão do TRL, de 4 de fevereiro de 2010, proc. n.º 5022/07.8TVLSB.L1.8; - Acórdão do STJ, de 23 de janeiro de 2001, proc. n.º 00A197; - Acórdão do TC, n.º 408/2015, de 23 de setembro de 2015, proc. n.º 480/2015; - Acórdão do TRG, de 6 de novembro de 2008, proc. n.º 2116/08-2; - Acórdão do TRL, de 12 de dezembro de 2008, proc. n.º 10790/2008-7; - Acórdão do TRP, de 6 de julho de 2010, proc. n.º 377/09.2TBBGC.P1;
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O Domínio do Setor Público sobre o Setor Privado na Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis
O Domínio do Setor Público sobre o Setor Privado na Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis Os Serviços de Registo vs O Solicitador
Edgar Silva
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EDGAR SILVA
O DOMÍNIO DO SETOR PÚBLICO SOBRE O SETOR PRIVADO NA TITULAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS SOBRE IMÓVEIS: OS SERVIÇOS DE REGISTO VS
O SOLICITADOR
2017
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EDGAR SILVA
O DOMÍNIO DO SETOR PÚBLICO SOBRE O SETOR PRIVADO NA TITULAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS SOBRE IMÓVEIS: OS SERVIÇOS DE REGISTO VS
O SOLICITADOR
2017
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Resumo O presente trabalho é apresentado no âmbito da terceira edição do concurso para atribuição do Prémio Solicitador Daniel Lopes Cardoso e o seu primordial objetivo é o de promover uma reflexão acerca da problemática da concorrência entre, por um lado, o Solicitador, os demais agentes privados com funções notariais (designadamente os notários e os advogados), e, por outro, o setor público (designadamente os Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”), no âmbito da titulação de negócios jurídicos sobre imóveis. Neste trabalho (de índole jurídica) intenta-se uma análise do problema que, em nosso entender, afeta, de forma transversal, a classe profissional dos Solicitadores, no que ao livre exercício das competências notariais – legal e legislativamente estabelecidas – se refere. Não obstante a competência dos Solicitadores, em matéria notarial, ter evoluído positivamente ao longo dos últimos anos, através de diversa legislação criada para o efeito, vêem-se proliferar os serviços públicos de índole notarial, que concorrem direta e negativamente com os agentes privados, designadamente com os Solicitadores. A política de serviço público notarial, (re)criada e escondida por detrás do programa Simplex, não nos parece merecer justificação plausível, atenta a qualidade e a quantidade dos vários agentes privados, com competências notariais, existentes em todo o território nacional. Propõe-se, deste modo, com o presente trabalho, um análise profunda e crítica, que vise não apenas realçar uma problemática que atinge a classe (de Solicitadores), numa época de nítida contração do comércio jurídico, mas também alertar e reclamar por uma solução que a todos beneficie…
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Lista de siglas e abreviaturas
CAAJ – Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça CCivil – Código Civil CIMT – Código do Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis CN – Código do Notariado CTT – Correios de Portugal EOSAE – Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução IMI – Imposto Municipal sobre Imóveis IMT – Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis IRN – Instituto de Registos e do Notariado IS – Imposto do Selo OSAE – Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução RECS – Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços REH – Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação RERN – Regulamento Emolumentar de Registos e Notariado RGEU – Regulamento Geral das Edificações Urbanas RNPC – Registo Nacional de Pessoas Coletivas ROAS – Registo Online dos Atos dos Solicitadores SICAE – Sistema de Informação da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas
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Nota Introdutória O Solicitador assume, na sociedade contemporânea, um papel de destaque, não apenas pela elevada qualificação técnico-jurídica, necessária ao exercício da profissão, como pelas competências que desempenha com uma idoneidade exemplar. Trata-se, pois, de um profissional cada vez mais procurado pelos cidadãos em busca da resolução de problemas que se estendem pelos mais variados ramos do Direito. Entre as competências gerais, relativas ao mandato e à consulta jurídica, cumpre destacar a função notarial do Solicitador, que assume grande importância na atualidade. São vastos os atos que o Solicitador pratica e que lhe foram sendo, gradualmente, atribuídos desde o início deste século. No âmbito da função notarial do Solicitador destacamos, face ao amado do presente estudo, a autenticação de documentos particulares, que veio, na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, afirmar-se, com uma maior dimensão, na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis. Aquele diploma legal veio transformar, por completo, a formalização de contratos sobre bens imóveis, eliminando a obrigatoriedade de celebração por escritura pública e admitindo a possibilidade de titulação por documento particular autenticado (DPA). Desde então, abriu-se uma nova porta no leque dos serviços prestados pelo Solicitador, com a possibilidade de titulação de atos sobre imóveis e a promoção do respetivo registo predial, como entidade autenticadora. Contudo, a par da alteração introduzida na forma da titulação dos negócios jurídicos sobre imóveis, diversificando o conjunto de entidades privadas com competência para a sua prática, o setor público viu reforçados os seus serviços na prestação destes mesmos serviços, concorrendo com as entidades privadas que o legislador legitimou, designadamente com os notários, advogados e solicitadores. Se, inicialmente, o espírito do legislador se centrou numa linha de privatização do notariado – marcada pela reforma de 2004 –, transferindo competências para o setor privado, numa lógica de maior eficiência e de qualidade na prestação de serviços, com óbvia redução de encargos para o erário público, o certo é que, volvidos não mais que dois anos, o legislador iniciou um processo de nítida inversão da lógica e pensamento anteriormente preconizados. Incrementou-se, assim, uma nova ideologia legislativa, centrada na política do serviço público, mais rápido, mais simples e mais barato, denominado de Sistema SIMPLEX, que implementou um vasto conjunto de medidas legislativas de simplificação e eliminação de formalidades e procedimentos, numa perspetiva de desenvolvimento da competitividade da economia portuguesa. Foram, neste seguimento, constituídos diversos balcões públicos destinados à prática de serviços que vieram concorrer diretamente com os agentes privados, nomeadamente através dos balcões de
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constituição de sociedades e associações, “Empresa na Hora” e “Associação na Hora”; de titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, “Casa Pronta”; ou no tratamento de formalidades relacionadas com sucessões hereditárias “Balcão Heranças”. É, neste contexto de profunda mutação do serviço público, que surge a problemática da concorrência com o serviço privado, designadamente em matérias que lhe foram conferidas por Lei. Destacaremos, neste trabalho, o caso dos balcões “Casa Pronta” e “Heranças” como sendo os serviços que concorrem dramaticamente com os agentes privados que titulam negócios jurídicos sobre imóveis, e nos quais se insere o Solicitador. Procurar-se-á cimentar o entendimento de que, não obstante estes balcões propugnem a melhoria do serviço público oferecido aos cidadãos e às empresas, a sua existência provoca uma influência negativa na concorrência entre agentes privados e onera o Estado na concentração de recursos (humanos e materiais) necessários à prestação desses serviços, os quais, em nossa reflexão, poderiam (e deveriam, desejavelmente) ser inteiramente assegurados pelos agentes económicos privados com competências específicas para o efeito. Realizada esta sucinta abordagem, importa delinear a orgânica do presente trabalho e concretizar a problemática que nos reúne e que fundamenta as linhas que compõem este documento. Assim, no dealbar da PRIMEIRA PARTE, e, mais especificamente, no CAPÍTULO I debruçar-nos-emos sobre a resenha histórica da profissão de Solicitador. Propomo-nos, para o efeito, realizar uma curta viagem desde o surgimento dos primeiros registos da profissão e até aos dias de hoje, assumindo o Solicitador uma posição de destaque face à qualificação técnico-jurídica e ao conjunto de princípios deontológicos que está obrigado a prosseguir, no exercício da sua atividade e na defesa dos interesses dos seus clientes. Analisaremos também, ainda que sinteticamente, a matéria relativa aos atos próprios do Solicitador, no âmbito da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, nomeadamente no que concerne ao exercício do mandato, à consulta jurídica e à celebração de contratos. Em seguida, será desenvolvida a temática da função notarial do Solicitador, em que será realizada uma análise à evolução legislativa que permitiu reforçar as suas competências nesta matéria, desde a conferência de fotocópias até à autenticação de documentos particulares. No CAPÍTULO II, e ainda numa perspetiva histórica e de contextualização da temática que preside ao presente estudo, proceder-se-á a uma breve reflexão sobre a evolução notarial desde a época romana, aos primeiros registos da história do notariado em Portugal. Iremos ressalvar as transformações operadas entre o século XIII e o século XX, destacando, neste âmbito, a funcionarização do notariado operada na década de 40, e
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suas sucessivas modificações até à entrada em vigor do Código do Notariado, no ano de 1995. Em seguida, e ainda sob a égide do CAPÍTULO II, procede-se a uma sumária destrinça dos diversos sistemas de notários existentes, nomeadamente o sistema romano germânico, a que corresponde o notário tipo latino (sistema adotado em Portugal), o anglo-saxónico e o de direito socialista. A SEGUNDA PARTE irá incidir, essencialmente, sobre a reforma operada no notariado português, associada à sua privatização e liberalização. No CAPÍTULO III deste trabalho será feito um estudo acerca das intenções legislativas que intervieram no notariado português, desde 1995, e que se centraram na vontade de liberalização com vista alteração da figura do notário. O notário deixou de ser um funcionário público para assumir uma dupla função de oficial público e de profissional liberal. Os estudos desenvolvidos pretendiam, na sua génese, que a autonomização dos notários permitisse um conjunto de vantagens aos cidadãos e às empresas, com acentuada melhoria do serviço prestado. No entanto, só no ano de 2004, é legalmente operada a privatização do notário, através da aprovação do Estatuto do Notariado e do Estatuto da Ordem do Notários, e da definição da tabela de honorários e encargos notariais. A partir de então, o Notário passou a ser um profissional liberal, com autoridade pública delegada pelo próprio Estado. Seguidamente, mas ainda no mesmo capítulo, será feita a análise do conjunto de medidas legislativas criadas no âmbito do Programa SIMPLEX, que visou a implementação de
medidas
e
serviços
públicos
destinados
a
simplificar
e
desformalizar
os
procedimentos. Algumas das medidas implementadas passaram pela criação de serviços on-line e balcões destinados à realização de procedimentos quase imediatos. Falamos, a título exemplificativo, dos serviços “Associação na Hora”, “Empresa na Hora”, Balcões “Casa Pronta” ou “Heranças”. Todos estes serviços passaram a operar nas conservatórias, que deixaram de ser um simples serviço de registo, e passaram também a praticar atos que permitem a titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, nas mesmas condições que as entidades privadas com competências notariais, mas com vantagem relativamente a estas, não apenas pelos valores emolumentares praticados, mas também pelo conjunto de informação privilegiada que possuem e pelo conjunto de serviços preparatórios e acessórios que prestam, sem qualquer custo adicional. Com a privatização e a liberalização do notariado, o Conservador passou apenas a proteger os direitos legítimos de terceiros, em sede de registo, deixando ao Notário e às outras entidades autenticadoras a função de proteger as partes. Seguidamente, e caminhando a largos passos para o tema central deste trabalho, no CAPÍTULO IV, dedicar-nos-emos à análise do panorama concorrencial vivenciado entre os
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profissionais com competências notariais. De índole privada (notários, advogados e solicitadores), e os serviços prestados pelos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”. Neste capítulo, faremos uma breve resenha do conjunto de competências notariais atribuídas às entidades privadas, nomeadamente Solicitadores, Advogados e Câmaras de Comércio, bem como à questão da privatização do notariado, em contraponto com a prestação de serviços públicos similares, nos referidos balcões, em nítida concorrência com o setor privado. Socorremo-nos,
nesta
fase,
da
recomendação
1/2007,
da
AUTORIDADE DA
CONCORRÊNCIA, por forma a poder vincar a ideia de que a prestação destes serviços por parte do Estado, a preços notoriamente “subsidiados”, conduz não apenas ao aumento da sua procura – colocando os prestadores de serviços no setor privado em desvantagem concorrencial – como também reflete uma negativa gestão dos recursos públicos. A opção do Estado na criação de serviços públicos de desburocratização e simplificação “SIMPLEX” provocou, em matéria notarial, uma autêntica inversão da primária intenção legislativa de privatização, sendo considerado como um processo que rompeu claramente com as opções políticas anteriormente concretizadas. Posteriormente, encaminhar-nos-emos para a TERCEIRA PARTE deste trabalho, onde efetuaremos a análise prática de alguns serviços realizados nos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”,
refletindo
os
custos
emolumentares
associados
a
cada
um
dos
procedimentos. No CAPÍTULO V serão analisados, ainda que sucintamente, alguns requisitos de formalização dos DPA`s, com especial enfoque nos seguintes formalismos: identificação dos intervenientes e dos diversos documentos instrutórios; arquivamento; obrigações fiscais inerentes à celebração; e depósito eletrónico do DPA e de toda a documentação a ele associada. Seguidamente, no CAPÍTULO VI, faremos uma breve abordagem aos emolumentos praticados pelos serviços de registo “Casa Pronta” e “Heranças”, explicitando alguns exemplos práticos por eles publicitados. Procederemos, ainda, à destrinça dos honorários praticados pelos notários na celebração de certo tipo de atos, comparando-os com os valores cobrados pelo Setor Público (os referidos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”). Numa fase posterior, será realizada uma breve alusão ao enquadramento dos honorários praticados pelo Solicitador na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, através de DPA, enunciando superficialmente alguns dos deveres incumbidos às entidades autenticadores na sua titulação e, ainda, à identificação do conjunto de negócios jurídicos sobre imóveis que podem ser celebrados por essa forma. Já no CAPÍTULO VII, será feita uma análise crítica ao atual panorama da formalização de negócios jurídicos sobre imóveis, mediante DPA, e à correspondente titulação pelos serviços “Casa Pronta” e “Heranças”. Esta análise procurará refletir sobre a problemática
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da “vantagem” que tais serviços públicos detêm, quando em comparação com os profissionais liberais do setor privado. Não podem deixar de se equacionar, nesta reflexão, fatores como o baixo custo; o registo imediato; o título gratuito de diversos procedimentos acessórios; e o acesso privilegiado à informação através das bases de dados de registo. Nesta matéria, dar-se-á especial enfoque ao parecer da AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA e ao parecer do Professor Doutor Gomes Canotilho, relativo à distorção da concorrência provocada pelos serviços públicos no setor privado. Na reta final do nosso trabalho socorrer-nos-emos da Lei Fundamental para analisar a problemática concorrencial entre o setor público e o setor privado, em matéria de titulação de negócios jurídicos sobre imóveis. Constituirá aquela prática concorrencial, na comparação entre as atribuições notariais conferidas ao Solicitador e aos Serviços de Registo (Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”), uma nítida violação da garantia do Estado, plasmada na alínea f) do artigo 81.º da Constituição da República Portuguesa, no funcionamento eficiente dos mercados, na manutenção de uma equilibrada concorrência e na reprovação de formas de organização monopolistas? Eis a questão nuclear do presente trabalho, que procuraremos destrinçar nas páginas que se seguem.
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PRIMEIRA PARTE – A SOLICITADORIA E O NOTARIADO: BREVE RESENHA HISTÓRICA
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CAPÍTULO I – O Solicitador
1.1 – O Solicitador: Uma profissão com história Os primeiros registos da profissão de Solicitador remontam ao século XII, sendo atribuída ao Solicitador a menção de “vozeiro”. As suas declarações faziam prova plena perante as diversas autoridades. Mais tarde, já no decorrer do século XV, surgem, pela primeira vez, referências à profissão “(ainda sem vocábulo específico), através dos termos “voguar” e “procurar”, que ressaltam a diferença entre voguado e procurador – indivíduos que procuravam em Juízo – embora a Lei já estabelecesse a distinção entre graduados e letrados”261. Até meados do século XIX a profissão de Solicitador foi sendo regulada por diversas ordenações. Em 1866, foi publicado um decreto que veio efetuar uma destrinça entre “Solicitadores Encartados” e “Provisionários”. A 23 de maio de 1873, foi criada, na cidade do Porto, a primeira associação profissional do setor, denominada por Associação dos Solicitadores Encartados do Distrito da Relação do Porto. Nos finais da década de 90, por decreto, foi regulado o número máximo de Solicitadores por cada comarca e definido o acesso à profissão, o qual ocorria mediante concurso. Mais tarde, no ano de 1976, é publicado o Estatuto dos Solicitadores sujeitando os profissionais do setor aos regulamentos da Assembleia Geral, Conselho Geral e dos Conselhos Regionais, vindo a ser posteriormente revisto e alterado pelo Decreto-Lei n.º 8/99, de 8 de janeiro, que estabeleceu como requisito de acesso à profissão a licenciatura em direito ou o bacharelato em solicitadoria e a subsequente aprovação em estágio. Através da Lei n.º 23/2002, de 21 de agosto, surge uma nova especialidade na profissão de Solicitador, denominada Solicitador de Execução, iniciando-se uma reforma profunda na ação executiva, na medida em que a tramitação do processo passou a ser liderada por esta nova especialidade profissional. Mais tarde, no ano de 2008, com o aparecimento do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, introduzem-se novas e significativas alterações na ação executiva, reforçando-se o papel do Agente de Execução e permite-se o acesso à profissão por parte de Advogados. O Solicitador é, na sua essência, um profissional liberal que pratica um vasto leque de atos de índole jurídica por conta de terceiros.
Ordem dos Solicitadores – História do Solicitador – Evolução [Em linha]. Sem local de publicação: Ordem dos Solicitadores. [Consult. 21 nov. 2015] Disponível em www: <URL: http://solicitador.net/profissao/evolucao/.>. 261
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A profissão constitui, verdadeiramente, grande notoriedade e tem vindo a assumir uma posição de destaque por via do incremento das suas competências e também pelas exigências formativas académicas que o acesso à profissão veio impor e que a sociedade reclama. As sucessivas construções e alterações legislativas impõem a necessidade de profissionais habilitados e preparados para a resolução de problemáticas que se lhe colocam por parte dos seus clientes e que são atualmente transversais a todos os ramos de Direito. A sociedade vem reconhecendo o Solicitador como um profissional capaz de dar solução e resolver os mais diversos problemas, fruto da crescente formação que lhe é imposta, permitindo, deste modo, satisfazer as mais diversas exigências em matéria jurídica. No atual plano jurídico, a classificação do Solicitador como um “mero auxiliar de justiça” encontra-se, no nosso entender, manifestamente desatualizada, uma vez que as atuais competências e atos praticados estendem-se por um vasto leque de funções que se reproduzem no aconselhamento jurídico, na representação e defesa dos seus clientes, sejam eles pessoas singulares ou coletivas, ou entidades públicas. Os serviços prestados podem assumir uma natureza de índole judicial, no exercício pleno do mandato, embora seja de registar, ainda que com grandes limitações e restrições impostas pela lei processual civil e o total “bloqueio” do patrocínio no âmbito penal, que nos parece desajustado face à realidade da profissão do Solicitador, por via das suas competências académicas. Extrajudicialmente, o Solicitador representa e acompanha os seus clientes perante os diversos serviços públicos, sejam eles serviços de finanças, conservatórias, ou câmaras municipais, entre outras entidades. O Solicitador pratica um serviço de aconselhamento técnico-jurídico aos seus clientes, orientando-os na prossecução dos seus interesses e direitos legalmente protegidos, destacando-se, neste âmbito, matérias de índole fiscal, administração de património, sociedades, heranças e partilhas. O Solicitador é um profissional que presta o seu serviço com zelo e diligência relativamente a todas as questões que lhe sejam confiadas, correspondendo a uma atuação que “respeita ao uso de esmero, solicitude e cuidado, urgência e prontidão nas tarefas que lhe são atribuídas ao nível da atividade da solicitadoria”262. Tem também o dever de “proceder com urbanidade e com educação na relação com os colegas,
262
RODRIGUES, BENJAMIM DA SILVA – Estatuto dos Solicitadores, legislação e regulamentação complementar, p.216.
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magistrados, advogados, trabalhadores e demais pessoas ou entidades com quem tenham contacto profissional.”263. Trata-se, efetivamente, de um profissional que representa os seus clientes em todos os negócios jurídicos que os seus clientes pretendam celebrar, preparando toda a documentação e protegendo-os na tomada de decisões, direcionando-os sempre para o caminho mais correto. A segurança jurídica é, assim, constantemente garantida na celebração de qualquer negócio, quando o mesmo seja acompanhado pelo Solicitador. O papel do Solicitador torna-se inquestionável na segurança do tráfego jurídico, desde a preparação e análise de documentação, ao aconselhamento e à celebração dos mais diversos negócios. Além do aconselhamento jurídico, o Solicitador tem ainda uma função de prevenção de eventuais conflitos que possam minar os interesses e a vontade dos seus constituintes. A profissão de Solicitador é regulada pelo Estatuto da Ordem dos Solicitadores, fruto da recente alteração legislativa estatutária, que alterou a associação de direito público de Câmara para Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução264, doravante designada abreviadamente por O.S.A.E.. Considerando a vasta panóplia de áreas jurídicas em que atualmente o Solicitador intervém, permite-se a configuração de uma profissão atrativa, mas que, nos dias de hoje, exige elevadas habilitações e a sujeição a uma avaliação rigorosa por parte da O.S.A.E. no acesso à profissão, que protege a classe profissional e a projeta como uma profissão essencial ao serviço da sociedade. O Solicitador assume uma posição de destaque não só pelo seu conhecimento técnico-jurídico, como também na defesa dos seus clientes em matéria processual, apesar das suas atuais limitações, quando esteja em causa a resolução de um conflito de interesses que se revelou logrado na tentativa de conciliação extrajudicial. Não obstante o recurso, em determinados casos, à via judicial, o Solicitador, é um confidente do seu cliente, aconselhando-o sempre na tentativa de resolução dos seus problemas pela via do diálogo e do acordo mútuo, prevenindo-o do litígio e de custos acrescidos. Nesta dimensão extrajudicial, além de um importante papel técnico, o Solicitador tem o papel de um amigo, um defensor e confidente, investindo-se como uma pessoa de bem. Tal como já anteriormente foi referido, o acesso à profissão de Solicitador exige previamente a finalização de licenciatura em Solicitadoria ou Direito e a aprovação no Dever plasmado na alínea a) do n.º 1 do artigo 124.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução - RODRIGUES, BENJAMIM DA SILVA - Dos (novos) Estatutos (da ordem) dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e (da ordem) dos Advogados, p. 64. 264 Cfr. Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro. 263
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estágio promovido pela Ordem (O.S.A.E.), dispondo, a este propósito, o artigo 89.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução que “A atribuição do título profissional de solicitador ou de agente de execução e o exercício profissional destas atividades depende de inscrição como associado efetivo no colégio profissional respetivo da Ordem.”. O Solicitador com inscrição em vigor está habilitado a praticar os atos próprios da profissão em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, tais como o mandato judicial ou quaisquer outros atos de índole jurídica, podendo requerer em qualquer serviço público ou tribunal o exame de processos, documentos que não sejam secretos ou que não tenham caráter reservado, e exigir a correspondente passagem de certidões, sem necessidade de exibir procuração265. Possui, ainda, o direito de atendimento preferencial nas secretarias judiciais e outras repartições públicas, estando-lhe igualmente assegurada a existência de bancada nas audiências de julgamento, conforme dispõe o artigo 151.º do E.O.S.A.E.. O Solicitador assume-se como um profissional de reconhecido mérito, que tem como missão colaborar na correta e profícua administração da justiça, propondo soluções e medidas para o engrandecimento da justiça no território nacional. Em matéria deontológica, o exercício da profissão pauta-se por uma rígida disciplina, devendo obedecer a critérios de rigor, seriedade, idoneidade e de sigilo. O segredo profissional assume-se como um dos mais relevantes deveres, o qual deve vincular o Solicitador na sua relação com o cliente, ou perante factos que tenha conhecimento em virtude de cargo desempenhado na O.S.A.E., ou ainda a factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega ou com o qual preste colaboração. A obrigação do segredo profissional mantém-se ainda que o serviço solicitado ou cometido ao associado envolva representação judicial ou extrajudicial, seja ou não remunerado, ou não tenha chegado a ser aceite.266 Na relação com os seus clientes, o Solicitador deve, ainda, nos termos e para os efeitos plasmados no n.º 1 do artigo 144.º do E.O.S.A.E “a) dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento da pretensão do cliente, assim como prestar, sempre que tal lhe for solicitado, informação sobre o andamento das questões que lhe forem confiadas, sobre os critérios que utiliza na fixação dos seus honorários, indicando, sempre que possível, o seu montante total aproximado, e ainda sobre a possibilidade e a forma de obter apoio judiciário; b) estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade; c) aconselhar toda a composição que ache justa e equitativa; d) não
265 266
Cfr. artigo 150.º, n.º 1 do E.O.S.A.E.. Cfr. artigo 141.º do E.O.S.A.E.. 119
celebrar, em proveito próprio, contratos sobre o objeto das questões que lhe são confiadas; e e) não cessar, sem motivo justificado, a prestação de serviços nas questões que lhe estão cometidas.”. A atividade profissional do Solicitador exige, assim e admitindo dessa forma a confiança que os clientes nele depositam para a prestação dos serviços solicitados, uma conduta de retidão, socialmente irrepreensível, no estreito respeito pelas normas e deveres deontológicos. O Solicitador é representado pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, associação pública profissional, que tem como fins o “controlo do acesso e da atividade profissional dos solicitadores e dos agentes de execução, elaborando, nos termos da lei, as normas técnicas e deontológicas respetivas e exercendo o poder disciplinar sobre quem exerça essas atividades profissionais, sem prejuízo das atribuições especificamente cometidas à Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ), contribuindo ainda para o progresso da atividade profissional dos seus associados, estimulando os esforços dos seus associados nos domínios científico, profissional e social, e para o cumprimento das regras éticas e de deontologia profissional.”267 A Ordem, fruto da sua recente alteração estatutária, é agora composta pelo Colégio dos Solicitadores e pelo Colégio dos Agentes de Execução.
1.2 – Os atos próprios do Solicitador à luz da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto O Solicitador é, por excelência, um procurador, encontrando-se legitimado para, nesse específico âmbito, praticar um vasto leque de atos de natureza técnico-jurídica. Os atos próprios do Solicitador encontram-se previstos na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, que veio concretizar a amplitude dos atos próprios dos Advogados e dos Solicitadores e veio, ainda, criminalizar a procuradoria ilícita. Prevê o n.º 1 do artigo 1.º da referida Lei que “Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os atos próprios dos advogados e dos solicitadores.”. Dispõe ainda o n.º 5 do artigo 1.º que, sem prejuízo do disposto nas Leis do processo, são atos próprios dos advogados e dos solicitadores: “a) O exercício do mandato forense; b) a consulta jurídica”. O n.º 6 do artigo 1.º do citado diploma legal prevê, ainda, que são atos próprios dos advogados e dos solicitadores: “a) A elaboração de contratos e a prática dos atos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais; b) A
267
Cfr. art. 3.º do E.O.S.A.E.. 120
negociação tendente à cobrança de créditos; c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de atos administrativos ou tributários.”. A consulta jurídica e o mandato forense, constituem, deste modo, atos típicos, que só (Advogados e Solicitadores) podem exercer dentro dos limites impostos pelo seu Estatuto e pelas Leis do processo. Quem praticar atos próprios de advogados e solicitadores sem estar inscrito nas respetivas ordens profissionais, ou quem prestar auxílio ou colaborar na prática de atos próprios sem a respetiva inscrição, tal como dispõe o n.º 1 do artigo 7.º do referido diploma legal, incorre na prática do crime de procuradoria ilícita. A consulta jurídica prestada pelo Solicitador constitui uma atividade de aconselhamento jurídico solicitado pelo seu cliente, em que é realizada uma análise e interpretação, perante uma questão concreta. O Solicitador tem que apresentar uma solução, adequada e ponderada, com a devida fundamentação e que melhor servirá os interesses do cliente. Trata-se, pois, de uma atividade de aconselhamento jurídico, que consiste na interpretação e aplicação de normas jurídicas por solicitação de um terceiro, seu cliente ou constituinte. Um aconselhamento errado ou deficiente poderá comprometer o seu constituinte acarretando-lhe graves prejuízos, podendo daí advir responsabilidade disciplinar e civil para o Solicitador. Quanto ao mandato, este constitui um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outra268. O mandato que o Solicitador executa poderá ser classificado como mandato com representação e como mandato forense. O mandato com representação, encontra-se previsto no artigo 1178.º269 do Código Civil, e é aquele em que se conferem poderes ao Solicitador para representar o seu mandante perante quaisquer serviços públicos no tratamento e resolução dos problemas que o cliente lhe tenha apresentado. O mandato forense, por sua vez, tem por fim a representação do cliente em juízo, isto é, constitui o poder conferido pelo cliente ao Solicitador para ser exercido em qualquer tribunal, na sua defesa e no acompanhamento de processos judiciais. Em matéria contratual o Solicitador tem a faculdade de elaborar uma grande diversidade de contratos, desde a compra e venda, doação, partilha de imóveis, que poderão servir de base à celebração de escritura pública ou à sua autenticação por
268
Cfr. art. 1157 do Código Civil.
Diz-nos, a este propósito, ABÍLIO NETO que “Para que a representação produza o seu efeito típico, que é a inserção direta, imediata do ato na esfera jurídica do representado, dois requisitos são indispensáveis: a) Que o representante aja em nome do representado («contemplatio domini»); b) Que o ato realizado ainda dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante – que pode suceder logo ao tempo do negócio (legitimação representativa originária, como posteriormente (legitimação representativa subsequente). […]” NETO, ABÍLIO - Código Civil Anotado, p.1132. 269
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documento particular autenticado (D.P.A.), assim como a constituição de sociedades e suas alterações, entre outros. Constitui, ainda, competência do Solicitador a propositura de ações executivas tendentes à cobrança de créditos (com os limites impostos pela lei processual), bem como à elaboração de notificações e citações. O Solicitador tem, ainda, competência para aconselhar e acompanhar os seus clientes na preparação de divórcios por mútuo consentimento, esclarecendo-os quanto aos seus direitos, na verificação dos bens a partilhar, na eventual necessidade de prestação de alimentos, no caso de existirem filhos menores, apoiando os seus clientes e aconselhando-os na melhor opção a tomar, de acordo com as soluções em Direito permitidas. 1.3 – A função notarial do Solicitador Nos termos plasmados no Código do Notariado (n.º 1 do artigo 1.º) a função notarial corresponde à função de “dar forma legal e conferir fé pública aos atos jurídicos extrajudiciais”. Trata-se, pois, de uma função de inquestionável relevância no comércio jurídico. Nos últimos quinze anos, o Solicitador tem vindo a adquirir competências legais notariais, estando, ainda que excecionalmente e apenas relativamente a certo atos, apto ao desempenho das funções notariais (cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Notariado). Gradualmente, ano após ano, têm vindo a ser estendidas as competências notariais do Solicitador. Com efeito, em 2000, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março, foi conferida ao Solicitador a faculdade de poder certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais de que as mesmas são extraídas. O objetivo deste diploma legal prendeu-se com a necessidade de introduzir mecanismos legais de simplificação na certificação de atos, admitindo-se formas alternativas de atribuição de valor probatório dos documentos policopiados. A competência para a conferência de fotocópias foi estendida não apenas ao solicitador, mas também aos advogados, às Juntas de Freguesia, ao serviço público de correios, e às câmaras de comércio e indústria (Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de outubro). Seguidamente, em 2001, com a publicação do Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de agosto, veio possibilitar-se ao Solicitador o reconhecimento de assinaturas com menções especiais, por semelhança, e a tradução ou a certificação da tradução de documentos. Este diploma legal (Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de agosto) constituiu um objetivo político de prosseguimento da desburocratização do sistema do notariado, mediante a simplificação e a redução do número de atos que careciam, até então, de certificação por Notário e também de introdução de formas alternativas de atribuição de
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valor probatório aos documentos. A este propósito, e tal como resulta do artigo 6.º do citado diploma, “Os reconhecimentos e as traduções efetuadas pelas entidades previstas no artigo anterior conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial.”. Em 2001, e tal como resulta do exposto, em matéria de prática de atos de índole notarial,
era
permitido
ao
Solicitador
realizar
conferências
de
fotocópias,
reconhecimentos com menções especiais, por semelhança, traduzir documentos e certificar as traduções de documentos. Analisemos, ainda que de forma sintética, os atos notariais que se incluem na função notarial do Solicitador. Através da conferência de fotocópias, o Solicitador certifica que a fotocópia, apresentada pelo interessado ou extraída de um qualquer documento original que é apresentado ao Solicitador, está conforme o documento original de que foi extraída. Nos reconhecimentos de assinatura, que podem ser simples270 ou com menções especiais271, o Solicitador tem de proceder à verificação da autoria da assinatura, ou da letra e assinatura, e aos poderes de quem assina, caso se trate de um reconhecimento com menções especiais. No reconhecimento simples de assinatura, apenas se exige que o interessado assine o documento perante o Solicitador (trata-se de um reconhecimento presencial). No reconhecimento simples de letra e assinatura o interessado deve escrever e assinar o documento perante o Solicitador, que atestará tal facto no termo de reconhecimento. Como bem ensina FERNANDO NETO FERREIRINHA, o Solicitador deve “recusar-se a reconhecer a assinatura, ou a letra e assinatura, com fundamento nos mesmos motivos por que deve, legitimamente, recusar a prática de qualquer ato notarial que lhe seja solicitado, ou seja, nos casos a que se reporta o art. 173.º do CN: quando o acto for nulo, não couber na sua competência ou estiver pessoalmente impedido de o praticar; se tiver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes ou se as partes não fizerem os preparos devidos.”272. O reconhecimento de assinatura com menções especiais pode assumir o caráter presencial ou por semelhança. Neste tipo de reconhecimento, além da verificação da assinatura (feita perante o Solicitador, ou não), o Solicitador deve fazer constar a menção especial relativa à qualidade de representante do signatário, que verifica por simples “confronto da assinatura deste com a assinatura aposta no bilhete de identidade Dispõe o n.º 2 do artigo 153.º do Código do Notariado que “O reconhecimento simples respeita à letra e assinatura, ou só à assinatura, do signatário de documento.”. 271 O n.º 3 do artigo 153.º do Código do Notariado refere que “O reconhecimento com menções especiais é o que inclui, por exigência da lei ou a pedido dos interessados, a menção de qualquer circunstância especial que se refira a estes, aos signatários ou aos rogantes e que seja conhecida do notário ou por ele verificada em face dos documentos exibidos e referenciados no termo.”. 272 FERREIRINHA, FERNANDO NETO - A Função Notarial do Advogado, 1.ª Edição, p. 44. 270
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ou documento equivalente, emitidos por autoridade competente de um dos países da União Europeia ou no passaporte ou com a respetiva reprodução constante de públicaforma extraída por fotocópia.”273. Nos casos em que o interessado (signatário) não possa, ou não saiba, assinar o reconhecimento implica que a assinatura seja feita a rogo, no entanto o seu reconhecimento só poderá fazer-se pela via presencial, de acordo com o plasmado no n.º 1 do artigo 154.º do Código do Notariado. A tradução de documentos compreende a conversão para língua portuguesa do conteúdo integral do documento original, quando escrito numa língua estrangeira, e a conversão para uma língua estrangeira do conteúdo integral, quando o escrito esteja em língua portuguesa (cfr. als. a) e b) do n.º 1 do artigo 172.º do Código do Notariado). Dispõe o n.º 2 do referido artigo 172.º do Código do Notariado que “A tradução deve conter a indicação da língua em que está escrito o original e a declaração de que o texto foi fielmente traduzido.”, com declaração aposta pelo Solicitador relativa à conformidade da tradução com o texto original. Com o surgimento do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, operaram-se profundas alterações ao nível da função notarial, na medida em que o diploma veio implementar medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos registrais e notariais, tornando facultativas as escrituras públicas relativas a diversos atos da vida das empresas. No contexto da alteração legislativa introduzida, e no que concerne à vida das sociedades, deixou de ser obrigatória a celebração de escritura pública para a constituição de sociedades comerciais, a alteração do contrato ou estatutos das sociedades comerciais, o aumento de capital, a alteração de sede ou objeto social, dissolução, fusão ou cisão de sociedades comerciais. Com esta medida visou-se prescindir do duplo controlo público (feito pelo notário e também pelo conservador) que, até ali, se exigia na celebração da escritura pública para constituição de sociedades comerciais e no registo desse ato na conservatória do registo comercial competente, entendendo-se que a exigência de um único controlo público de legalidade seria suficiente para assegurar a segurança jurídica necessária dos referidos atos. Outra medida, de elevada importância, foi a alteração no domínio da autenticação e do reconhecimento presencial de assinaturas em documentos, permitindo aos advogados, aos solicitadores, às câmaras de comércio e indústria e aos conservadores passarem a poder fazê-las. O acesso dos cidadãos e empresas junto de entidades que se encontram aptas à prática daqueles atos tornou-se mais fácil. Além das competências que o Solicitador já havia adquirido, foi-lhe conferida a faculdade de autenticar uma vasta panóplia de documentos274, incluindo procurações. A 273
FERREIRINHA, FERNANDO NETO - A Função…, p. 39.
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procuração corresponde a um ato em que, determinada pessoa, seja ela singular ou coletiva, confere a um terceiro poderes (gerais e/ou especiais) de representação. Dispõe o n.º do artigo 116.º do Código do Notariado que “As procurações que exijam intervenção notarial podem ser lavradas por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado.”. No que se refere à procuração, as competências do Solicitador revestem duas formas: a de reconhecimento da letra e assinatura do procurador ou a elaboração de termo de autenticação da procuração, que permitirá ao procurador obter a plena validade e eficácia do ato em que a mesma consiste. Neste último caso, o Solicitador deve mencionar que a parte interveniente leu o documento e verificar que a mesma está perfeitamente inteirada do seu conteúdo, o qual exprime a sua vontade. Deve, ainda e se tal se verificar, ser efetuada a menção de ressalva de emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento, que não estejam devidamente ressalvados. O Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho275, que se seguiu ao Decreto-Lei n.º 76A/2006, de 29 de março, veio introduzir importantes medidas de simplificação, desmaterialização e eliminação de atos e procedimentos no âmbito do registo predial e atos conexos. Neste contexto legislativo, deixou de ser obrigatória a celebração de escritura pública para titulação de atos sobre imóveis, passando a ser válida a sua formalização através de documento particular autenticado. Assim, a título meramente exemplificativo, a compra e venda de imóveis, doação, partilha, constituição ou modificação de hipoteca sobre imóveis, ou mútuo e demais contratos que versem sobre imóveis, com a exceção da habilitação de herdeiros, testamento, ou escritura de justificação, passam a ser válidos (em específico, quanto à forma) se celebrados através de documento particular autenticado. No capítulo II do diploma legal ora em análise, mais precisamente no artigo 22.º, é mencionado que são válidos, caso sejam celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado: a) “Os atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, usamos e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis; b) Os atos de constituição, alteração e distrate de consignação de rendimentos e de fixação ou O artigo 38.º do Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de março prevê que “1 – Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial. 2 – Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efetuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial.”. 275 Com última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 99/2010, de 02 de setembro. 274
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alteração de prestações mensais de alimentos, quando onerem coisas imóveis; c) Os atos de alienação, repúdio e renúncia de herança ou legado, de que façam parte coisas imóveis; d) Os atos de constituição e liquidação de sociedades civis, se esta for a forma exigida para transmissão de bens com que os sócios entram para a sociedade; e) Os atos de constituição e de modificação de hipotecas, cessão destas ou do grau de prioridade do seu registo e a cessão ou penhor de créditos hipotecários; f) As divisões de coisa comum e as partilhas de patrimónios hereditário, societários ou outros patrimónios comuns de que façam parte coisas imóveis; g) Todos os demais atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre imóveis, para os quais a lei não preveja forma especial.”. Desde então (isto é, desde 2008), os atos anteriormente elencados deixaram de ser exclusivamente exarados por notários, sob a forma (até aí obrigatória) de escritura pública, para poderem ser formalizados por documento particular autenticado. Neste conspecto, a formalização contratual daqueles negócios jurídicos sobre imóveis passou a poder ser realizada também pelo Solicitador, através da autenticação de documentos particulares. As entidades competentes para a titulação de atos jurídicos sobre imóveis (e, de entre elas, o Solicitador), por escritura pública ou documento particular autenticado, ficam obrigadas a promover o registo predial, desonerando os interessados dos inconvenientes relativos ao procedimento de registo.
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CAPÍTULO II – O Notário
2.1 – A evolução da função notarial O Notário terá tido a sua origem em Roma, em que era apelidado de escrevente público. Escrevia notas e redigia documentos que lhe eram solicitados pelo povo, mas que não tinham qualquer fé-pública. Na era de Constantino, surgiram os tabeliães, que eram profissionais que mais se assemelhavam aos notários, e tinham a função de conferir forma escrita à vontade das partes. Posteriormente, na época do Imperador Justiniano, os tabeliães passaram a ser profissionais especializados, dotados já de formação jurídica, ganhando importância na questão de dar forma legal e autêntica à vontade das partes. Durante os séculos VII e VIII, em Itália, “a função do notário vê alcançado prestígio de relevo social, consolidada com o decurso dos anos e a evolução das sociedades”276. Socorrendo-nos das palavras de ALFREDO JOSÉ CASTANHEIRA NEVES, “a partir do Séc. XII surge o «publicus notarius», este finalmente tendo a seu cargo as funções que ainda hoje se apresentam como caracterizadoras dos notários: conferir fé pública e dotar de autenticidade (formal) os documentos que elaborava.”277. No nosso país, o notariado terá surgido no decurso do Século XIII, existindo registos da sua existência datados de 1299. Posteriormente, em 1305, “D. Dinis elaborou artigos relativos ao tabelionado. O primeiro dizia respeito à tabela emolumentar, para que fossem cobrados os emolumentos de forma igual, tirando-se aos tabeliães o arbítrio na cobrança dos seus proventos, e o segundo era relativo ao ofício, onde se estabeleceu que os tabeliães tivessem livros de notas, de papel, para neles lançarem as escrituras ou notas.”278. No reinado de D. Afonso IV surgiram algumas alterações, na medida em que se reforçou a proibição do exercício da profissão aos clérigos e os tabeliões passaram a ter as suas instalações para exercerem a sua atividade. A primeira Lei onde aparecem várias referências ao tabelionado é de D. Fernando, começando a profissão a ser efetivamente regulada neste reinado. No período compreendido entre o século XV e o século XIX, o “regimento dos tabeliães passou a constar das Ordenações do Reino, primeiro através das já referidas
Ordem dos Notários – Desde os Notários Romanos à libertação do notariado Português [Em linha]. Sem local de publicação: Ordem dos Notários. [Consult. 28 nov. 2015] Disponível em www: <URL:http://www.notarios.pt/OrdemNotarios/PT/OrdemNotarios/Historial/,>. 277 NEVES, ALFREDO JOSÉ CASTANHEIRA - A Privatização dos Cartórios Notariais, p.8. 278 MENDES, MARIANO MAIA (1961) – O Notariado e o seu Novo Código, separata da revista da ordem dos Advogados. Lisboa, Tip. G. Santelmo, Ltd., p.6, cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português – Trajetória para a Liberalização, p.26. 276
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ordens Afonsinas, seguindo-lhes as Manuelinas, a partir de 1521, e a partir de 1603, as filipinas.”279. Em 1899, é criado o primeiro regulamento notarial, tendo como fonte inspiradora a Lei francesa que marcou o início da idade contemporânea do notariado. Este regulamento veio autonomizar o notariado, criando o Conselho Superior do Notariado, que, “segundo o preâmbulo de tal diploma, era esse Conselho que conhecia as suas faltas disciplinares e erros de ofício, lhes impunha, em regra, penas de demissão, transferência e suspensão, embora com recurso para o Ministro da Justiça, e era da sua consulta que dependia a criação e redução dos lugares de notários e a sua nomeação definitiva.”280. Com esta autonomização, a classe dos notários passa a depender de si própria, ficando patente a vertente pública da respetiva função e admitindo-se o recurso ao Ministério da Justiça das decisões tomadas pelo Conselho Superior do Notariado. Terá sido, no entanto, a partir dos princípios do século XX que se terão operado as maiores transformações do notariado, através da emissão de diversos decretos. O primeiro decreto, aprovado já no século XX, foi o decreto de 14 de setembro de 1900, tendo-se seguido entretanto “outros diplomas legais que vieram introduzir alterações à reforma ocorrida anteriormente, pelo que em 1922, pelo Decreto 8373, de 18 de setembro, houve uma «Nova Reforma do Notariado», tendo esta também sido alterada por diplomas posteriormente publicados”281. O Conselho Superior de Notariado manteve-se em funções até 1926, tendo sido extinto com a publicação do decreto 12260, de 2 de setembro. Este decreto foi entendido como sendo “[…] talvez a pedra negra que os poderes soberanos puseram na urna do sufrágio para a determinação dos infelizes destinos do ofício da fé pública.”282. O decreto 15304, em 2 de abril de 1928, veio aprovar o primeiro Código do Notariado, tendo surgido pouco depois um novo código com o Decreto 19133, de 18 de dezembro de 1930 (retificado posteriormente pelo decreto 19261, de 23 de janeiro de 1931, que veio a ser alterado pelo decreto 19499, de 24 de março do mesmo ano), e, depois, substituído novamente por outro Código do Notariado, aprovado pelo decreto 20550, de 26 de novembro de 1931, retificado e alterado pelo decreto 20972, de 4 de março de 1932, tendo igualmente sido retificado em 30 daquele mês). Em 1935, surge um novo Código do Notariado, com o Decreto-Lei n.º 26118, de 24 de novembro de 1935, sendo ainda de registar os Decretos-Lei que lhe seguiram e que são dignos de registo (Decreto-Lei n.º 35390, de 22 de dezembro de 1945, e o Decreto-Lei n.º 37 666, de 19 de dezembro de 1949). MENDES, MARIANO MAIA, (1961) - O Notariado e o seu Novo Código…,p.26. PEREIRA M. GONÇALVES (1994) - Notariado e Burocracia (Desburocratizar – Reformar liberalizar), p.90, cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.27. 281 MENDES, MARIANO MAIA, - O Notariado e o seu Novo Código…, p.29. 282 CARVALHO, FERNANDO TAVARES DE, 1951 - Para uma Organização Notarial, I Antecedentes. Lisboa, s.e., p.42 Cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…,p.29. 279 280
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Ilustrando as palavras de M. GONÇALVES PEREIRA, “o regime atual do notariado português foi delineado na década de 40, […], nomeadamente através dos Decs.-Leis nºs 35390, de 22 de dezembro de 1945 e 37 666, de 19 de dezembro de 1949, com os quais se consumou
a
funcionarização,
em
consonância
com
a
natureza
autocrática e
centralizadora do regime então em vigor no país. As alterações que sofreram posteriormente aqueles diplomas não afetam as linhas gerais desse regime.”283. Foi no ano de 1949 que os notários portugueses “passaram a ser funcionários públicos, quer quanto à função, quer quanto à relação jurídico-laboral. Passaram a exercer a sua atividade como funcionários do Estado sendo por este remunerados, embora em moldes significativamente diferentes da generalidade dos funcionários públicos”284. O Decreto-Lei n.º 37666, de 19 de dezembro de 1949, introduziu e concretizou um novo regime no que concerne à organização territorial do notariado e à tipologia dos cartórios, nomeação, suas atribuições e obrigações dos funcionários. A conversão dos notários “em comuns funcionários do Estado alcançou o seu expoente máximo na década de 40 […] No entanto este foi um caminho que se veio traçando desde 1900, quando no decreto de 14 de setembro de 1900 se introduziu a fórmula: «os notários são funcionários públicos»”285. Com a revolução de abril de 1974 foram instituídos princípios democráticos nas diversas áreas da sociedade, que implicaram alterações profundas e, consequentemente, o notariado foi afetado por essas alterações. Neste sentido, foi criada a Lei Orgânica dos Serviços de Registo e Notariado, prevista no Decreto-lei n.º 519-F2/79, de 29 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 71/80, de 15 de abril e o Decreto Regulamentar n.º 55/80, de 8 de outubro, que “vieram consolidar a funcionarização do notariado, já que estes diplomas legais vieram regulamentar a orgânica dos Serviços sob um denominador comum – o facto de o notário ser considerado funcionário público, integrado numa carreira dependente, hierarquicamente subordinado ao Ministro da Justiça, através do Diretor – Geral dos Registos e do Notariado.”286. O Código do Notariado, instituído em 1967, manteve a sua redação até 1995, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto, que aprovou o novo Código do Notariado (que hoje reconhecemos).
PEREIRA M. GONÇALVES, (1994) – Notariado e Burocracia…,cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA A Reforma do Notariado Português…,p. 31. 284 Ordem dos Notários – Desde os Notários Romanos à libertação do notariado Português [Em linha]. Sem local de publicação: Ordem dos Notários. [Consult. 29 nov. 2015] Disponível em www: <URL:http://www.notarios.pt/OrdemNotarios/PT/OrdemNotarios/Historial/,>. 285 CARVALHO, FERNANDO TAVARES DE, (1932) - A dupla figura moral e jurídica do Notário, p. 37, cit., PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.33. 286 PEREIRA M. GONÇALVES (1990) - Notários ou funcionários públicos? Revista do Notariado, n.º 37 (Jan. – Abr.), p.32, cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA – A Reforma do Notariado Português…, p. 36. 283
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Este novo código vem prever uma redução dos fatores de natureza institucional, entendidos como constrangedores de uma moderna economia de mercado. Como bem nota ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA PINTO, “no ordenamento jurídico português, vários são os atos praticados pelos agentes económicos, sujeitos à intervenção do notário. O aspeto que se pretende ressalvar ao mencionarmos o fator económico […] do notariado português, prende-se com a realidade presente e consequentemente com a funcionarização do notariado.”287.
2.2 – Os sistemas jurídicos notariais: o sistema romano-germânico (notário tipo latino), o anglo-saxónico e o de direito socialista No que tange à esfera jurídica notarial diz-nos J. SEABRA LOPES que “O notariado Português integra-se no sistema designado por notariado latino que se rege por um certo número de princípios fundamentais entre os quais relevam o reconhecimento de fé pública aos atos praticados pelo notário – com as inerentes consequências a nível probatório dos documentos –, e autonomia funcional”288. É de referir, no entanto, que não existe um único sistema notarial e nem, por sua vez, no interior de cada sistema, um único tipo de notário. No contexto europeu deve referir-se que “Os notários na Europa, apesar de usarem uma raiz comum, não constituem um corpo de juristas com estatuto comum e idêntica função. A denominação análoga não deve iludir-nos, nem tão pouco a origem comum.”289. Existem três tipos de sistemas jurídicos notariais, a saber: o sistema romanogermânico, a que corresponde o notário tipo latino, o anglo-saxónico e o de direito socialista. O notário administrativo assenta no sistema de direito socialista, sendo definido o notário como “[…] um funcionário público, no sentido mais estrito de empregado do Estado, dependente, integrado numa hierarquia organizada, [em consequência de princípios políticos] com a missão de realizar justiça no domínio do trato jurídico privado, mas de assegurar a concretização da legalidade e ordem socialistas. Em consequência, o notário perde a sua natureza de profissional livre para ser apenas um elemento da superestrutura jurídica posta ao serviço da infraestrutura económica, subordinado aos imperativos e exigências desta.”290. Este tipo de notário tem como corolário a defesa da legalidade socialista e do interesse da economia do Estado estando,
PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.33. OLIVEIRA, FERNANDO BATISTA DE - Contratos Privados, Vol. II, p.57. 289 PEREIRA M. GONÇALVES (1990) - Notários ou funcionários Públicos? … Cit., PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.40. 290 PEREIRA, M. GONÇALVES (1990) - Notários ou funcionários Públicos? … Cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.41. 287 288
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por isso, a função autenticadora dependente deste, o que provoca uma certa incompatibilidade “com o dever de imparcialidade e independência do notário do mundo ocidental.”291. Na Europa ocidental, como a sociedade é efetivamente do tipo livre e democrática, observa-se a preponderância de notários livres, que são do tipo latino e anglo-saxónico. Assim, o notário anglo-saxónico é “aquele que exerce a função notarial [e] não necessita de ser um técnico de Direito, bastando que seja um homem honrado, acreditado no meio em que se insere, para certificar a vontade das partes, a sua identidade, apor o respetivo selo e assinatura como garantia da não alteração do documento.”292. O sistema de notariado anglo-saxónico encontra-se patente em países como a Inglaterra ou nos Estados Unidos da América. O notariado latino, a que corresponde o sistema germano-românico, foi o sistema adotado em Portugal. Este tipo de notário identifica-se numa duplicidade de “ofício público e de atividade profissional liberal”293. O serviço notarial foi objeto de complexas e sucessivas alterações que percorreram a história ao longo dos séculos. O notário português, que seguiu até à década de quarenta do século XX, evoluiu a par do sistema jurídico latino, a que corresponde o sistema romano-germânico, tendo permanecido até ao final do século passado dependente do Estado, pese embora tenha, posteriormente, sofrido uma alteração profunda no que respeita à sua liberalização e privatização (de que nos ocuparemos mais adiante).
PEREIRA, M. GONÇALVES (1990) - Notários ou funcionários Públicos? … Cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.41. 292 PEREIRA, M. GONÇALVES (1990) - Notários ou funcionários Públicos? … Cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.41. 293 CLAMOTE, FRANCISCO (1985) - O jurista e o Notariado. Revistado Notariado, n.º 20 (Abr. – Jun.) pp.155150,Cit. PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português… p.43. 291
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SEGUNDA PARTE – A REFORMA DO NOTARIADO E A LIBERALIZAÇÃO DO MERCADO NA TITULAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS SOBRE IMÓVEIS
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CAPÍTULO III – Os passos da reforma do Notariado
3.1 – As intenções legislativas no processo de liberalização notarial: Um processo (muito) complexo A liberalização do notariado português constituiu um processo evolutivo bastante complexo, moroso e controverso. A primeira intenção legislativa relativa à liberalização do notariado português foi concretizada em 1995, tendo a autorização legislativa, solicitada pelo XII Governo Constitucional à Assembleia da República, sido concedida pela Lei n.º 30/95, de 18 de agosto. Após a sua elaboração, o projeto foi aprovado em Conselho de Ministros, não tendo sido a mesma aprovada por via de veto presidencial, em virtude do governo daquela época se encontrar em final de mandato. O projeto legislativo em causa tinha como princípio a integração de Portugal, a este nível, na Comunidade Europeia com o intuito “de responder a uma sequência de reformas que se vinham desenvolvendo na sociedade e na economia nacionais, esta reforma pretendia implementar uma fisionomia e uma vitalidade novas para os serviços de notariado, por o considerar um dos elementos integrantes do sistema legal que configura e dá suporte ao funcionamento de uma economia de mercado.”294. A tentativa de liberalização concilia, “por um lado, a tradição histórica nacional, tragicamente interrompida com a funcionarização do notariado […], e por outro, o exemplo dos demais países do nosso sistema jurídico, mediado no plano institucional quer pela Conferência Permanente dos Notariados da União Europeia, quer de modo particular pela União Internacional do Notariado Latino […]295. Naquela proposta legislativa, o notário deixaria de ser um funcionário público, atribuindo-se-lhe o estatuto de oficial público e de profissional liberal. O artigo primeiro daquele diploma definia a função do notário como o oficial público encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes fé pública. Já se aludia ao caráter público da função desempenhada pelo notário e também à sua vertente privada. O número 2 do artigo 2.º referia que “a função notarial reveste, incindivelmente, natureza pública e privada”. A alínea a) do número 2 do artigo 2.º mencionava que “a natureza pública consiste na garantia de autenticidade dos documentos a que a lei reconhece fé pública e força executiva” e a alínea b) indicava que “a natureza privada corresponde à prestação de assessoria.”.
294 295
PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.64. MATOS, ALBINO - A Liberalização do Notariado – Ensaio Crítico, p.11.
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O Governo que se seguiu voltou a consagrar “a privatização do notariado, como umas das reformas a concretizar, tendo sido, para o efeito, constituída uma comissão ad hoc, presidida pelo Prof. JOÃO CAUPERS. Dos trabalhos desta comissão resultou um pacote legislativo que acabou por ser aprovado, na generalidade, pela Assembleia da República, em 1999, no último ano de legislatura.”296. No entanto, este pacote legislativo veio a ser abandonado pelo governo seguinte, ficando, assim, por efetivar a concretização legislativa da liberalização ou privatização do notariado. Os trabalhos desenvolvidos por aquela Comissão visavam a preparação do processo de liberalização do notariado que, por essa via, iria permitir um acréscimo de vantagens para os cidadãos e um acréscimo de agentes económicos, permitindo uma melhoria acentuada dos serviços prestados pelos notários. Tal comissão previa, ainda, que os notários teriam de ser autónomos, autossuficientes e teriam de trabalhar em regime de concorrência, assegurando-se que fosse mantida a segurança jurídica e a fé pública nos serviços notariais prestados. O
Estado
deveria,
neste
contexto,
assumir
um
papel
interventivo
no
desenvolvimento de funções de apoio e controlo da atividade notarial. O décimo terceiro Governo Constitucional utilizou o projeto realizado pela Comissão “Caupers” como base de trabalho para que a Direção-Geral de Registos e Notariado procedesse à sua revisão. Este projeto de revisão previa, também, instituir a reforma do notariado por meio da liberalização, mas, apesar desse objetivo comum, com o projeto “Caupers”, este projeto foi objeto de alguma polémica, relacionada com a opção do Governo de remeter à Direção Geral a revisão do trabalho de privatização notarial. Como bem nota ALBINO MATOS quanto à decisão tomada pelo Governo da época, “a direção-geral é parte interessada no processo de liberalização, tendo interesses próprios essenciais a defender nesse mesmo processo”297. Efetivamente, sendo a Direção Geral parte interessada no processo de liberalização e tendo interesses próprios no próprio processo não deveria aquela entidade intervir no mesmo, por questões de imparcialidade na condução do processo. Diz-nos ainda ALBINO MATOS que “a direção-geral foi sempre […] um instrumento de funcionarização notarial, por isso mesmo não fazia sentido, na hora da liberalização, apelar a tal instrumento […]”.298. Este projeto previa a manutenção da Direção-Geral dos Registos e do Notariado, implicando deste modo a manutenção da dependência dos notários em relação ao setor
Ordem dos Notários – Desde os Notários Romanos à libertação do notariado Português [Em linha]. Sem local de publicação: Ordem dos Notários. [Consult. 29 nov. 2015] Disponível em www: <URL:http://www.notarios.pt/OrdemNotarios/PT/OrdemNotarios/Historial/,>. 297 MATOS, ALBINO - A Liberalização do Notariado…, p.15. 298 MATOS, ALBINO - A Liberalização do Notariado…, p.15 296
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público. Tal projeto “justifica a manutenção da direção-geral pela dupla qualidade do notário, devendo existir enquanto órgão regulador da atividade do notário como oficial público.”299. Foi, ainda, contemplada a limitação do número de notários, prevendo-se a existência de, pelo menos, um por cada concelho e a sujeição a revisão, de cinco em cinco anos, do número, classe e localização dos notários. Outra matéria de grande relevância, prevista naquele projeto, está relacionada com a remuneração notarial, na medida em que a “retribuição deixa de ser uma taxa, receita tributária do Estado, passando antes a ser honorário, elemento de remuneração de um profissional liberal.”300. O n.º 2 do artigo 15.º daquele diploma previa a existência de uma tabela, que definia o valor dos atos notariais, onde se estabelecia o valor dos atos enquadrando-os em valores máximos e mínimos, preços livres e preços fixos, de acordo com a natureza do serviço, valor, complexidade e tempo de trabalho. Esta medida visava uniformizar os preços praticados pelos notários em todo o território nacional, protegendo, deste modo, o público no recurso aos serviços notariais por via de uma eventual oscilação remuneratória desordenada. Apesar de se estar, naquela época, perante uma reforma profunda, que reformularia a atividade notarial, a mesma foi abandonada pelo Governo em funções, vindo apenas a ser retomada com a aprovação, em 2004, do Estatuto do Notariado e o Estatuto da Ordem dos Notários. Trazendo à colação as palavras de ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA PINTO a liberalização notarial “tem como principal objetivo a implementação de uma mudança que se exige num setor fortemente absorvido pela máquina burocrática do Estado e, por conseguinte, não será mais do que um processo de modernização dentro da Administração Pública.”301. Contudo, é importante que o processo de liberalização se processe sempre em benefício do cidadão, numa resposta mais célere na prestação dos serviços notariais, mas que, de igual modo, salvaguarde a segurança jurídica dos atos praticados. 3.1.1 – Finalmente, a privatização… Na vigência do XIV Governo Constitucional, o rumo do notariado foi “novamente alterado em consonância com o respetivo ministério – a desfuncionarização ou liberalização deixara de ser um objetivo, para dar lugar a um conjunto de diplomas avulsos reguladores da atividade […]”302.
PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.70. MATOS, ALBINO - A Liberalização do Notariado…, p.87. 301 PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.85. 302 PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.74. 299 300
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Neste contexto legislativo foi publicado do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março, que, como atrás se referiu, admite a prática de determinados atos notariais por outras entidades além dos notários. Este diploma legal teve na sua génese a introdução de mecanismos de simplificação na certificação de determinados atos, permitindo novas formas de atribuição de valor probatório aos documentos. Em termos concretos, buscaram-se novas soluções destinadas a facilitar o acesso ao serviço de conferência de fotocópias, atribuindo a competência notarial a outras entidades, visando deste modo um acesso mais célere dos particulares a esse serviço, garantindo-se, contudo, o rigor e a certeza dos atos praticados. Neste seguimento, a certificação de fotocópias e os reconhecimentos de assinaturas passaram a poder ser efetuadas por juntas de freguesia, serviços de correios, câmaras de comércio e indústria, advogados e solicitadores303. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 36/2000, de 14 de março, instituíram-se novas alterações ao regime notarial, prevendo-se a dispensa de escritura pública para a realização de determinados atos relativos a sociedades, estabelecimento individual de responsabilidade limitada e ao agrupamento complementar de empresas. Este diploma veio proceder à alteração do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo DecretoLei n.º 262/86, de 2 de setembro, e ainda do Decreto-Lei n.º 248/86, de 25 de agosto, relativo à constituição do estabelecimento individual de responsabilidade limitada. Na génese deste diploma esteve a redução do número de atos sujeitos, até então, a escritura pública, admitindo-se a sua substituição por declaração de responsabilidade da sociedade, sempre que esteja sujeita a registo ou a qualquer outra forma de publicidade. No que concerne ao surgimento destes diplomas legais, diz-nos ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA PINTO que a modernização administrativa ao nível do notariado “não se ficou somente pela substituição do notário em determinados atos, é que outros foram eliminados do rol legislativo que obrigava as partes a formalizar determinado ato perante o notário […] tal medida pretendeu simplificar a vida das empresas, referindo-se no preâmbulo que tais atos não envolvem a diminuição de garantias.”304.
Dispõe o artigo 1.º do aludido diploma legal que “1- Podem certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais que lhes sejam apresentados para esse fim as juntas de freguesia e o operador de serviço público de correios, CTT - Correios de Portugal, S. A. 2 - Podem ainda as entidades referidas no número anterior proceder à extração de fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação. 3 - Querendo, podem as câmaras de comércio e indústria reconhecidas nos termos do Decreto-Lei nº 244/92, de 29 de dezembro, os advogados a os solicitadores praticar os atos previstos nos números anteriores. 4 - Em concretização das faculdades previstas nos números anteriores, é aposta ou inscrita no documento fotocopiado a declaração de conformidade com o original, o local e a data de realização do ato, o nome e assinatura do autor da certificação, bem como o carimbo profissional ou qualquer outra marca identificativa da entidade que procede à certificação. 5 - As fotocópias conferidas nos termos dos números anteriores têm o valor probatório dos originais.”. 303
304
PINTO, ALEXANDRA MÓNICA DA ROCHA - A Reforma do Notariado Português…, p.75.
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Pese embora, naquela época, se questionasse a segurança jurídica na prática de determinados atos notarias por outras entidades, bem como a desformalização de outros tantos, a intenção do legislador já possuía o seu eixo no espírito da simplificação, da celeridade e da eficiência em benefício de um melhor serviço prestado ao público e aos agentes económicos. Mais recentemente, com o surgimento do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, já analisado abreviadamente no capítulo anterior, surgiram novas alterações notariais, na medida em que veio tornar facultativas as escrituras públicas relativas a atos relacionados com a vida das empresas, bem como à atribuição de competências em matéria notarial, na qual se destaca a autenticação de documentos particulares305. 3.2 – A privatização e a (des)responsabilização do Estado na função notarial Com o intuito de pôr em prática um plano alargado de reformas estruturais na Administração Pública e de a tornar mais célere, moderna e eficiente, por um lado, e menos pesada para a economia nacional, por outro, o XV Governo Constitucional aprovou o Estatuto do Notariado, através do Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de fevereiro306 e seguidamente o Estatuto da Ordem dos Notários no âmbito do Decreto-Lei n.º 27/2004, de 4 de fevereiro307, assim como a tabela de honorários e encargos notariais prevista na Portaria n.º 385/2004 de 16 de abril308. O novo Estatuto do Notariado teve, na sua génese, o objetivo de transferir diversas competências do setor público para o setor privado, permitindo, deste modo, uma maior eficiência e qualidade na prestação dos serviços notariais e menos encargos para o erário público. Pela primeira vez em “Portugal, um serviço público da administração direta do Estado alterou totalmente o seu estatuto, passando do regime da função pública para o regime de profissão liberal […] materializou a reforma deste serviço público privatizandoo.”309. A nova figura do notário passa a deter uma dupla função, a de oficial enquanto depositário de fé pública, e a de profissional liberal. Na dependência do Ministério da Justiça permanece todas as questões relativas à fiscalização e à disciplina da nova De acordo com o plasmado no n.º 1 do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, “Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, nos termos previstos na lei notarial, bem como certificar a conformidade das fotocópias com os documentos originais e tirar fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março.” 306 Alterado pela Lei n.º 155/2015, de 15 de setembro. 307 Revogado pela Lei n.º 155/2015, de 15 de setembro. 308 Alterada pela Portaria n.º 574/2008, de 4 de julho. 309 In Projeto de Recomendação “Medidas de Reforma do quadro regulamentar do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais” – Autoridade da Concorrência, pp.24-25. 305
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atividade dos notários, no que tange à fé pública; à Ordem dos Notários são atribuídas as questões de índole deontológica. O notário, como profissional liberal, passa a ser uma figura autónoma responsável pela gestão do seu cartório e por eventuais erros ou prejuízos que possam advir do exercício da sua atividade. No entanto, o exercício da atividade de notariado está condicionado à prévia inscrição na Ordem dos Notários que terá o poder de fiscalização e disciplinar sobre eles. Esta reforma visou assegurar a implantação, em todo o território nacional, de notários, determinando o seu número e localização. Garantiu-se, ainda, uma remuneração mínima a conferir aos notários, que, em função da sua localização, pudessem não auferir rendimentos suficientes para fazer face aos encargos decorrentes da atividade do cartório notarial, assegurada através de um fundo de compensação inserido na própria Ordem. Verifica-se, nesta fase de privatização do serviço de notariado, a busca por um serviço mais eficiente e mais célere, associado a uma redução da despesa e um menor intervencionismo do Estado. De acordo com os dizeres de CARLA SOARES “a reforma operou-se repondo o notariado dentro da lógica da nossa tradição, que sempre se considerou o notário como um profissional liberal, apenas interrompida no período do Estado Novo.”310. A evolução legislativa em matéria notarial centrou-se, essencialmente, na desfuncionarização do notariado, sua desburocratização e liberalização, em prol do interesse público. Esta mudança imposta pela Lei implicou a transmissão do serviço notarial, detido até então pelo Estado, para o setor privado em regime de profissão liberal, tendo, na sua base, o princípio de que o notariado se assume como um elemento que integra o sistema de justiça e apoia o funcionamento da economia. Os notários passaram, deste modo, a exercer uma autoridade pública, delegada pelo próprio Estado. Contudo, nesta fase de transição, foi assegurada aos notários e funcionários a garantia de manutenção do vínculo à função pública, ou de realizarem uma adesão ao regime privado, beneficiando de uma licença sem vencimento expressada na possibilidade de, no prazo de cinco anos, poderem regressar à função pública. 3.3 – A desburocratização dos atos notariais: o Sistema Simplex No seguimento do processo de reforma notarial e na perspetiva do desenvolvimento da competitividade da economia portuguesa, definida como prioridade fundamental pelo
310
SOARES, CARLA - Contra-Reforma do Notariado e dos Registos: Um Erro conceptual, p.111.
138
XVII Governo Constitucional, é criado, através do Decreto-Lei n.º 111/2005, de 8 de julho311, o regime especial de Constituição Imediata de Sociedades “empresa na hora”, eliminando-se, deste modo, a necessidade da sua constituição por escritura pública. Neste contexto, os interessados passam a poder constituir uma sociedade comercial dirigindo-se a uma conservatória e manifestando tal intenção, bastando-lhes escolher uma das firmas pré-aprovadas à sua disposição e escolhendo o pacto ou ato constitutivo previamente aprovado e certificado pelos serviços de registo e notariado. Seguidamente, com o surgimento do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, o Estado introduziu uma nova reforma de desburocratização, atualizando e flexibilizando os modelos de governo das sociedade anónimas, instituindo medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos notariais e registrais e aprovando o regime jurídico da dissolução e liquidação de entidades comercias. Este diploma legal veio, ainda, introduzir outras medidas reformistas. São exemplos paradigmáticos: o caráter facultativo das escrituras públicas relativas a atos da vida das empresas (com exceção das situações em que se verifique a transmissão de bens imóveis), criação de uma modalidade de extinção imediata de sociedade, uma espécie de “dissolução e liquidação na hora” para sociedades comerciais em atendimento presencial único na Conservatória. Modifica-se, ainda, o regime de fusão e cisão de sociedades; a possibilidade da prática de atos de registo on-line, institui-se a certidão permanente; extingue-se a competência territorial em matéria de registos, entre outras medidas. A AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA refere, a propósito deste Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, que “um dos pontos chave deste novo Decreto-Lei, incide na eliminação do duplo controlo da legalidade efetuado pelo notário e pelo conservador do registo, nos casos em que a existência de um único controlo seja suficiente para assegurar a segurança jurídica”312. Através do Decreto-Lei n.º 125/2006, de 29 de junho313 aprova-se o regime especial de constituição on-line de sociedades e a “marca na hora”. Posteriormente, com a publicação do Decreto-Lei n.º 263-A/2007, de 23 de julho314, foi criado o procedimento especial de transmissão, oneração e registo de prédio urbano em atendimento presencial único, que vem a ser vulgarmente denominado de “Casa Pronta”, em cumprimento do programa “SIMPLEX 2007”. Tratou-se de um procedimento especial que se centra em dois objetivos: a eliminação de formalidades dispensáveis nos
311
Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 33/2011, de 7 de março. In Projeto de Recomendação “Medidas de Reforma do quadro regulamentar do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” 313 Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 209/2012, de 19 de setembro. 314 Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de agosto. 312
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processos de transmissão e oneração de imóveis e a possibilidade de realizar as operações e atos necessários num único balcão e perante um único atendimento. Com este procedimento simplificado passa a ser possível, num único atendimento, a celebração de um contrato de alienação ou oneração de um imóvel perante oficial público; o pagamento dos impostos que se mostrem devidos; a realização imediata de todos os registos, a solicitação de alteração de morada fiscal e eventual pedido de isenção de imposto municipal sobre imóveis. Dispensa-se, assim, com este procedimento, a escritura pública celebrada no cartório notarial e a deslocação ao cartório notarial e outro tipo de deslocações e custos associados. De referir que o procedimento previsto neste diploma legal prevê uma redução significativa de taxas cobradas, se comparadas com os montantes previstos para quem utilize o procedimento tradicional para a transmissão ou oneração de imóveis, isto é, o cartório notarial. No ano de 2007, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 40/2007, de 24 de agosto315, que cria o atendimento presencial único denominado de “Associação na Hora”, que aprovou o regime especial de constituição imediata de associações e atualiza o regime geral de constituição previsto no Código Civil. Seguidamente, pelo Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de setembro316, foram alterados o Código do Registo Civil e o Código do Notariado, aprovando-se um conjunto de medidas de simplificação e desformalização, com o objetivo de reduzir os obstáculos burocráticos e contribui para o desenvolvimento económico. Este diploma legal veio permitir que atos e formalidades relacionados com a sucessão hereditária se possam efetuar num único balcão, designado “Balcão de Heranças”, instalados nas Conservatórias de Registo Civil, podendo ali ser praticados todos os atos relacionados com a sucessão hereditária, tais como, habilitação de herdeiros, partilha dos bens imóveis, móveis ou participações sociais sujeitos a registo, liquidação de impostos devidos e entrega de eventuais declarações aos serviços de finanças, assim como os correspondentes registos e pedidos de registos dos bens partilhados, evitando obstáculos
burocráticos e deslocações
desnecessárias
aos
interessados. É de referir, neste âmbito, que aquele diploma atribui, no n.º 3 do seu artigo 19.º, caráter de urgência à execução dos registos decorrentes dos procedimentos (comercial e predial), sem subordinação à ordem de anotação no diário. Assim, os registos dos atos incluídos nestes procedimentos tem prioridade relativamente aos demais atos cujos registos tenham sido requeridos.
315 316
Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 247-B/2008, de 30 de dezembro. Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 247-B/2008, de 30 de dezembro.
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Criou-se, ainda, o balcão “Divórcio com Partilha”, simplificando-se as formalidades associadas ao processo de separação de pessoas e bens e de divórcio por mútuo consentimento. Neste balcão passaram a ser admissíveis os procedimentos de partilha de bens imóveis, móveis ou participações sociais sujeitos a registo, bem como a liquidação de impostos que sejam devidos e a realização de registos e pedidos de registo da partilha. No ano seguinte (2008), surgiu o Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho317 que veio dar continuidade às medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos no âmbito do registo predial. Uma das mais relevantes medidas implementadas no âmbito deste diploma legal foi a eliminação da obrigatoriedade de celebração de diversos atos por escritura pública. Deixaram, assim, de ser obrigatoriamente celebrados por escrituras os contratos através dos quais se proceda à alienação ou oneração de bens imóveis, permitindo-se que tais atos sejam celebrados através de documento particulares autenticados. No entanto, as entidades a quem a Lei confere a possibilidade de titulação de atos sobre imóveis por documento particular autenticado passam a estar obrigadas a promover os respetivos registos prediais dos atos em causa. Este
diploma
previu,
ainda
e
em
matéria
de
desregulamentação
e
desburocratização, a criação de um balcão informático denominado de “predial on-line”, destinado à concretização da autenticação do documento particular e ao depósito eletrónico do título e dos documentos que instruiram o respetivo título. Tem-se, assim, por objetivo a criação de um conjunto de serviços mais simples e menos burocratizados. A eliminação e a simplificação de atos e procedimentos registais tem por objetivo a continuação da prossecução de objetivos de interesse nacional, propiciando um clima favorável ao investimento, garantindo-se sempre a legalidade das medidas adotadas e a respetiva segurança jurídica e salvaguarda dos interesses dos cidadãos e das empresas. O Decreto-Lei n.º 247-B/2008, de 30 de dezembro veio, depois, criar o cartão da empresa e o sistema de informação da classificação portuguesa de atividades económicas (SICAE) e adotou “medidas de simplificação no âmbito do registo nacional de pessoas coletivas (RNPC), do Código do Registo Comercial, dos procedimentos simplificados de sucessão hereditária e divórcio com partilha do regime especial de constituição imediata de sociedades («empresa na hora») e do regime especial de constituição online de sociedades comerciais e civis sob forma comercial («empresa on-line»), do regime especial de constituição imediata de associações («associação na hora») e do regime especial de criação de representações permanentes em Portugal de entidades estrangeiras («sucursal na hora»)”. 317
Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 99/2010, de 2 de setembro.
141
Em meados de 2009 foi publicado o Decreto-Lei n.º 122/2009, de 21 de maio com vista à implementação de um procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios urbanos. Passou a ser admissível a transação e oneração de prédios rústicos, mistos e de prédios fracionados ou emparcelados e verificou-se um alargamento de competências dos notários com competência especializada criadas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 35/2000, de 14 de março, designadamente na prática de qualquer ato de registo. Na mesma linha de desburocratização, o Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12 de agosto veio adotar medidas de simplificação do regime de fusões e cisões de sociedades comerciais que o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março instituira, permitindo que estas operações societárias se realizassem de forma mais simples, rápida e menos onerosa. Anteriormente, a cisão ou fusão de sociedades comerciais implicava a necessidade de realizar três atos de registo nas Conservatórias, quatro publicações em Diário da República, uma escritura celebrada em notário e duas publicações em jornais locais; atualmente, e por ocasião da alteração introduzida, o procedimento de cisão ou fusão conta apenas com a realização de dois registos na conservatória e duas publicações eletrónicas. Posteriormente, em 2010, com o surgimento da Portaria n.º 67/2010, de 3 de fevereiro foi alargado o âmbito de aplicação do procedimento “Casa Pronta” a outros negócios jurídicos que impliquem a transmissão, a oneração e registo de prédios em regime de atendimento presencial único. Passou, assim, a permitir-se a celebração de negócios jurídicos de doação e de permuta de prédios. A sucessiva criação legislativa de desburocratização e simplificação notarial, ao abrigo do programa SIMPLEX, tinha por objetivo permitir, através dos novos balcões criados pelo Estado, uma melhor prestação de serviços e proporcionar um clima mais favorável ao investimento interno e externo e a concorrência na prestação de serviço que era, até aí, exclusiva dos Notários. Acresce, ainda, o facto de que, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008 de 4 de julho, veio permitir-se aos Advogados, Solicitadores e Câmaras de Comércio a titulação de atos sobre imóveis por documento particular autenticado e que, até então, só seriam válidos se celebrados mediante escritura pública. Neste contexto de desburocratização e simplificação notarial, verificou-se o aparecimento de uma multiplicidade de entidades privadas que concorrem entre si na prestação de serviços de índole notarial e a existência de um serviço público (concretizado nos balcões “Casa Pronta”, “Associação na Hora”, “Divórcio e Partilhas” e “Heranças”) que presta os mesmos serviços nos seus balcões.
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Esta evolução legislativa permitiu, por um lado, desburocratizar a prática de determinados atos notariais tornando-os mais simples e céleres, e, por outro, liberalizou a sua prática, colocando termo à exclusividade que era reservada aos notários. Estas medidas vieram, sem dúvida, simplificar o acesso aos serviços notariais, na medida em que foram estendidas as competências para a prática destes serviços, deixando as mesmas de estar exclusivamente atribuídas aos Notários e passando a ser uma competência comum de várias entidades: Notários, Advogados, Solicitadores e Câmaras de Comércio, bem como os respetivos serviços de registo, através das suas conservatórias. 3.4 – O caminho da liberalização notarial e o reforço das competências dos serviços de registo O dealbar da liberalização de competências notariais foi marcado pelo Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março. Desde então, com a faculdade de diversas outras entidades certificarem fotocópias, a liberalização e privatização notarial passou a ser um desafio assumido pelos sucessivos Governos Constitucionais, que foram introduzindo alterações atrás de alterações, destacando-se, de entre várias outras, a privatização do notariado, a prática de atos notariais por entidades que não os Notários; a modificação da titulação de atos notariais sobre imóveis e a modernização administrativa com incidência na titulação de atos sobre imóveis. No quadro da liberalização, e em apoteose da atribuição de competências a agentes económicos diversos dos notários, foi atribuída às Conservatórias a faculdade de prestarem serviços notariais, através dos Balcões318 que foram sendo implementados para o efeito. As Conservatórias deixaram de ser apenas um serviço de registo (civil, predial ou comercial), passando a assumir igualmente funções na titulação de atos de índole notarial, em condições análogas àquelas que o Notário (privado), o Solicitador e o Advogado exercem, mas sujeitas a valores emolumentares mais baixos dos que aqueles que foram instituídos para os notários privados, como demonstraremos mais adiante. O serviço prestado pelas Conservatórias, nos seus Balcões Únicos destaca-se pela celeridade e simplicidade na prática de atos titulados e no registo, amiudadas vezes efetuado no próprio dia e de forma imediata. Estes Balcões, além de disporem do acesso direto às plataformas informáticas das bases de dados de registo predial, civil, comercial e automóvel e às bases de dados dos serviços de finanças, realizam todo um conjunto de ações preparatórias, que se prendem Refira-se, a este propósito, os serviços prestados pelos Balcões “Casa Pronta”, “Heranças” ou “Divórcio com Partilha”, entre outros. 318
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com a liquidação de impostos (nos casos em que os mesmos se mostrem devidos), ou com a obtenção de certidões necessárias. Além da titulação dos negócios jurídicos, os Balcões permitem que o registo seja efetuado no próprio dia, com primazia sobre qualquer outra entidade (a quem cabe o poder/dever de promover o registo “on-line” ou presencialmente na Conservatória). A criação destes Balcões possibilitou ainda um incremento das competências dos funcionários dos serviços de registo (v.g. oficiais de registo), que passaram a dispor de um conjunto de competências que, até aí, lhes estava vedado (os oficiais de registo adquiriram, por exemplo, competências para realizar reconhecimentos e autenticar documentos, nos termos do número 1 do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março). De acordo com os dizeres de CARLA SOARES, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março “a competência dos escriturários era limitada ao serviço de expediente e apenas os escriturários superiores podiam assinar os reconhecimentos de assinaturas, fotocópias e certidões.”319. Também no âmbito do regime especial de constituição de associações, previsto na Lei n.º 40/2007, de 24 de agosto, o oficial de registo adquiriu competências similares às dos conservadores, passando a ter disponibilidade sobre a recusa de realização do ato. O oficial de registo adquiriu ainda a competência para, no âmbito automóvel, realizar registos automóveis e assentos. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, foram introduzidas, ao nível do registo predial, novas competências ao oficial de registo, que passou a estar habilitado para assinar diversos atos de registo.320. Neste contexto, e como bem refere CARLA SOARES, a competência dos oficiais de registo foi amplamente estendida, “pode[ndo] os oficiais dos registos rejeitar apresentações, qualificar registos (aferir da validade do título apresentado), lavrar e confirmar registos definitivos ou provisórios ou proceder à respetiva recusa”321 e lavrar despachos de rejeição de apresentação, de recusa ou de dúvidas. Questiona-se, no entanto e de forma legítima, a qualificação técnica dos oficiais de registo perante tais atribuições de competências, porquanto, na sua generalidade, os funcionários não possuem formação jurídica adequada que lhes permita apreciar a SOARES, CARLA, Contra-Reforma…, p.284. Dispõe o n.º 2 do artigo 75.º-A do Código do Registo Predial que os oficiais de registo têm competência para os seguintes atos de registo: "Penhora de prédios; Aquisição e hipoteca de prédios descritos antes de titulado o negócio; Aquisição por compra e venda acompanhada da constituição de hipoteca, com intervenção das entidades referidas nas alíneas c) e e) do artigo 8.º-B; Hipoteca voluntária, com intervenção das entidades referidas nas alíneas c) e e) do artigo 8.º-B; Locação financeira e transmissão do direito do locatário; Cancelamento de hipoteca por renúncia ou por consentimento; Averbamentos à descrição de factos que constem de documento oficial; Atualização da inscrição quanto à identificação dos sujeitos dos factos inscritos; Desanexação dos lotes individualizados em operação de transformação fundiária decorrente de loteamento inscrito e abertura das respetivas descrições; Abertura das descrições subordinadas da propriedade horizontal inscrita; Abertura das descrições das frações temporais do direito de habitação periódica inscrito.”. 321 SOARES, CARLA, Contra-Reforma…, p.295. 319 320
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viabilidade dos pedidos de registo, o conteúdo dos títulos e a validade dos atos neles contidos, a legitimidade dos interessados e a identificação dos prédios. Entende CARLA SOARES que, relativamente à falta de habilitação técnico-jurídica dos oficiais de registo, “O executivo, ao desviar atos de forma desleal, no domínio das relações privadas, de um profissional independente para um funcionário sujeito a uma hierarquia e não qualificado, torna Portugal mais pobre, por perder nesse âmbito as suas características de Estado de Direito e de Liberdade.”322. Aquela Autora questiona-se, legitimamente, digamos, sobre a circunstância de um ato notarial ou um ato praticado pelo Solicitador (ou pelo Advogado, como refere) vir a ser verificado por um funcionário que, amiudadas vezes, não possuirá mais que o 11.º ano de escolaridade e sem formação de índole jurídica. Mais do que o domínio dos serviços de registo (concretizados nos Balcões implementados nas Conservatórias um pouco por todo o país), assistimos a uma liberalização desmesurada, com perdas significativas ao nível do controlo da legalidade (que, até aqui, era primeiramente efetuado pelo profissional com a função notarial e, depois, pelo Conservador). A exaltação das competências do oficial de registo poderá trazer problemas acrescidos ao comércio jurídico e, sobretudo, na legalidade. Concorda-se, pois, com a interrogação formulada por CARLA SOARES quando questiona: afinal onde está aqui (nos serviços prestados pelos Balcões) o valor acrescentado? E o fim do duplo controlo da legalidade?. 3.5 – A nova política de controlo da legalidade pelo Conservador Não obstante a política de privatização notarial dinamizada pelo Estado ao longo dos tempo, a segurança jurídica e a publicidade dos registos efetuados pelos serviços de registo permanece assegurada e garantida. Os registos323 constituem situações jurídicas
SOARES, CARLA, Contra-Reforma…, pp.295-296. O registo rege-se por princípios orientadores. São eles: o princípio da instância, que nos indica que o registo se efetua a pedido dos respetivos interessado, tal como dispõe o artigo 41.º do Código do Registo Predial e o artigo 28.º do Código do Registo Comercial; o princípio da tipicidade, identificado nos artigos 2.º e 3.º do Código do Registo Predial e artigos 2.º a 10.º do Código do Registo Comercial que nos indica quais os factos que podem ser levados a registo e que e ele estão sujeitos perante a Lei; p princípio da presunção da verdade registral que se trata de um princípio pelo qual se presume que o direito existe e pertence ao titular inscrito (cfr. artigo 7.º do Código do Registo Predial e artigo 11.º do Código do Registo Comercial; o princípio da publicidade que tem por fim dar publicidade à situação jurídica das pessoas singulares ou coletivas e aos prédios (cfr. artigo 1.º, 104.º e 109.º do Código do Registo Predial e artigos 1.º, 70.º e 73.º do Código do Registo Comercial); o princípio da especialidade que se reporta às questões individualizadoras das pessoas ou bens (cfr. artigos 92.º e 93.º do Código do Registo Predial e artigos 8.º a 12.º, 14.º e 15.º do Regulamento de Registo Comercial); a princípio da legalidade, em que aprecia o pedido de registo em função das disposições legais aplicáveis em (cfr. artigo 43.º n.º 1 e 68.º do Código do Registo Predial e artigo 32.º e artigo 47.º n.º 1 do Código do Registo Comercial); o princípio da prioridade, pelo qual se impõe que o facto registado em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe sucederem (cfr. artigo 6.º e 77.º do Código do Registo Predial e artigo 12.º do Código do Registo Comercial); o princípio da legitimação de direitos em que só pode exercer direitos quem efetivamente estiver legitimado para os exercer (cfr. artigo 9.º do Código do Registo 322 323
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pessoais, no que respeita ao registo civil e comercial, ou reais, se relativas a registo predial e registo de determinados bens móveis. Como bem ensina PEDRO RODRIGUES, “a finalidade do registo consiste no assento de um conjunto de factos jurídicos previstos na lei, atinentes a pessoas ou coisas, lavrado em suportes documentais guardados nas conservatórias.”324. O registo pode ser “declarativo, quando apenas enuncia um facto, mas dele não depende a sua existência ou extinção, ou constitutivo, quando através dele se cria uma nova situação jurídica.”325. Com o novo regime do notariado, no que se refere à titulação de atos mediante escritura pública e consequente registo, deparamo-nos com um controlo de legalidade diferenciado, na medida em que, por um lado, o notário passa a deter a função de proteger as partes, e o Conservador, por sua vez e em sede de registo, a função de proteger os direitos legítimos de terceiros. Mas há situações em que o controlo da legalidade é efetuado pelo Conservador em única instância (sem o primeiro crivo do profissional com competência notarial). Relativamente a este “problema”, e acolhendo o pensamento de CARLA SOARES, “convém […] não esquecer que o controlo da legalidade por parte do conservador se deve imperiosamente manter no caso de não existir controlo anterior efetuado por entidade disso encarregue, por dever de ofício e com características de independência e imparcialidade […]”326, uma vez que “praticamente todos os contratos referentes a sociedades podem hoje ser formalizados por mero documento particular, logo por não juristas ou procuradores ilícitos; a partir de 1 de janeiro de 2009 praticamente todos os contratos que têm por objeto imóveis passaram a poder ser formalizados por documento particular autenticado, por não juristas, sem características de imparcialidade e independência (Câmaras de Comércio e Indústria, oficiais de registo, funcionários de instituições de crédito)”327, pelo que, nestes casos, o Conservador deve verificar da legalidade dos documentos (títulos) que lhe são apresentados a registo. O paradigma da privatização notarial culminou numa separação funcional entre o Notário, bem como outras entidades habilitadas à prática de atos notariais, e o Conservador, limitando-se este a aferir a validade dos documentos que lhe são apresentados para efeitos de registo. A atuação do Conservador “no nosso ordenamento jurídico, continua importante não apenas para que o Estado cumpra a função da qualificação, validação e hierarquização de atos e negócios jurídicos, mas também para que os sujeitos desses atos Predial); o princípio do trato sucessivo, que impõe que os titulares dos direitos devam constar do registo de forma continuada (cfr. artigo 34.º do Código do Registo Predial). 324 RODRIGUES, PEDRO - Direito Notarial e Registral, O novo regime jurídico do notariado, p.257. 325GUERREIRO, JOSÉ AUGUSTO GUIMARÃES MOUTEIRA - Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), 2.ª Ed., 9. 29 e ss. cit. SOARES, CARLA, Contra-Reforma…, p.115. 326 SOARES, CARLA, Contra-Reforma…, p.120. 327 SOARES, CARLA, Contra-Reforma…, p.121.
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tenham os seus direitos salvaguardados”328. O registo realizado com a segurança jurídica necessária contribuirá para a efetiva melhoria do serviço prestado ao cidadão e impulsionará mecanismos de crescimento e competitividade nas empresas.
In PROJETO DE RECOMENDAÇÃO “Medidas de Reforma do quadro regulamentar do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” – Autoridade da Concorrência., p.13. 328
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CAPÍTULO IV – O serviço de Notariado privado e os Serviços de Registo (Balcão “Casa Pronta” e Balcão “Heranças”): Uma rota de Colisão…
4.1 – O panorama concorrencial do serviço notarial: Um novo paradigma A legislação vigente nos últimos anos veio atribuir competências, em matéria notarial, a um amplo leque de entidades privadas e reforçar as do próprio Estado, através das competências dos serviços de registo. Tais competências, que até ao início deste século eram exclusivamente atribuídas aos notários, em regime de serviço público, sob tutela da Direção Geral de Registos e Notariado, passaram a ser também atribuídas a advogados e ao Solicitador. A privatização e liberalização notarial a que se assistiu entretanto veio permitir, como acima se referiu, que o serviço público notarial viesse a ser exercido por entidades privadas, admitindo-se, deste modo, uma maior liberdade de escolha do cidadão. A par da privatização e do alargamento de competências a outras entidades privadas (designadamente, Câmaras de Comércio, CTT, Advogados e Solicitadores), que passaram a concorrer entre si na prestação de alguns serviços notariais, o Estado criou diversos serviços concorrenciais, no âmbito do programa “Simplex”. Estes serviços passaram a concorrer diretamente com o setor privado, quer na prestação de atos notariais
genéricos,
tais
como
certificações
de
documentos,
autenticações,
reconhecimentos de assinaturas, entre outros, quer na titulação de atos sobre imóveis, através dos balcões “Casa Pronta”, “Heranças” “Divórcio com partilha” e ainda no âmbito societário, através do balcão “Empresa na Hora”, e no âmbito associativo, através do balcão “Associação na Hora”. A privatização do notariado fez implementar a tabela de honorários e encargos notariais (Portaria n.º 385/2004, de 16 de abril329), que tinha como principal móbil garantir que o serviço notarial qualificado estivesse ao alcance de todos os cidadãos, mesmo quando estivessem em causa atos de valor económico diminuto. A definição de preços fixos para determinados atos e de preços máximos para outros tinha como fim a proteção dos consumidores e a anulação das eventuais práticas de honorários excessivos. Refere, neste contexto, a recomendação da AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA330 que “na sua versão original, a portaria em causa submeteu a um regime
Com última redação conferida pela Portaria n.º 574/2008 de 4 de julho. As recomendações da Autoridade da Concorrência são emitidas nos contextos em que se verifique, ou possa verificar, a “existência de circunstâncias de condutas que afetem a concorrência nos mercados, ou setores económicos analisados […]”. Vide, a tal propósito, o art. 62.º do Novo Regime Jurídico da Concorrência. 329 330
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de preços fixos um número muito expressivo de atos notariais, tendo assim o regime de preços livres um peso incipiente no universo dos atos praticados por notários”331. Os valores dos honorários praticados pelas entidades com competência notarial 332, atribuída pelo Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março e pelo Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de agosto, eram definidos em função da tabela existente em vigor nos cartórios notariais, não podendo exceder os preços nela previstos. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 76-A 2006, de 29 de março, veio prever-se que os montantes a cobrar pela prestação dos serviços notariais não podiam exceder “o valor resultante da tabela de honorários e encargos aplicável à atividade notarial exercida ao abrigo do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de fevereiro333”. Contudo, “e não obstante o regime de preços fixos se manter ainda para a maioria dos atos notariais, o regime de preços livres foi, no entanto, alargado aos atos de reconhecimento de assinaturas, de autenticação de documentos particulares e de certificação de tradução de documentos, pela Portaria n.º 1416-A/2006, de 19 de dezembro.”334. A alteração ao regime de preços fixos, introduzida pela Portaria n.º 1416-A/2006, de 19 de dezembro, teve como finalidade fazer cessar a situação de desvantagem concorrencial em que os notários se encontravam relativamente às outras entidades privadas, nomeadamente, câmaras de comércio, advogados e solicitadores, uma vez que estas eram livres de praticar preços inferiores aos praticados pelo notário e, por isso, mais atrativos para os consumidores335. Considera a AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA que “a regulação dos preços elimina ou diminui significativamente a possibilidade de os profissionais concorrerem ao nível dos preços e reduz incentivos aos desenvolvimento da atividade com atenção aos custos, podendo daí decorrer a manutenção de preços acima de níveis concorrenciais bem como ineficiências produtivas resultantes da ausência de uma pressão concorrencial.”336. A AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA defendeu a tese de que seria desejável a prática de um sistema de concorrência baseado na qualidade do serviço prestado. No entanto, as In Autoridade da Concorrência – Recomendação n.º 1/2007 “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” p. 48. 332 Que se subsumem, como vem sendo referido ao longo do presente estudo, nas Juntas de freguesia, Câmaras de Comércio, CTT – Correios de Portugal, Advogados e Solicitadores. 331
333
Vide o n.º 5 do artigo 38.º.
In Autoridade da Concorrência – Recomendação n.º 1/2007 “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.”, pp. 48-49. 335 Contudo, deve salientar-se que o princípio da uniformidade dos honorários dos atos notariais foi instituído pela Portaria n.º 385/2004, de 16 de abril, referindo-se no preâmbulo deste diploma legal que “não põe em causa a desejável concorrência entre os notários, a qual já está assegurada pela consagração dos princípios da livre escolha do notário e da territorialidade, previstos no artigo 7.º do Estatuto do Notariado e no n.º 3 do artigo 4.º do Código do Notariado e ainda pela existência de atos de custo livre, na sequência dos últimos relatórios da Comissão Europeia sobre a concorrência nos serviços da profissões liberais.”. 336 In Autoridade da Concorrência – Recomendação n.º 1/2007 “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” p.51. 334
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assimetrias na relação entre o prestador do serviço e o cliente dificultariam uma correta avaliação da qualidade da prestação do próprio serviço, considerando que dificilmente o controlo dos preços iria gerar uma real concorrência na qualidade dos serviços prestados. Neste sentido, a sujeição ao regime de preços livres, no que se refere à certificação de fotocópias, reconhecimentos de assinaturas, termos de autenticação, traduções e notificações era, no entender da AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA, um passo a seguir, de forma a permitir uma livre e saudável concorrência na prática daqueles atos entre os notários e os demais prestadores de serviços com competência notarial. Foi, no seguimento da recomendação n.º 1/2007 da AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA, que se procedeu à primeira alteração da portaria que estabelece a tabela de honorários e encargos notariais. A Portaria n.º 574/2008, de 4 de julho, veio introduzir uma importante alteração ao regime de honorários dos notários, aplicando um regime de honorários máximos e livres, contrariamente ao regime de preços fixos e livres que até então era praticado. Refere o preâmbulo daquela portaria que o regime de preços máximos passa a aplicar-se ao atos previstos expressamente na tabela, que são aqueles cuja prática permanece no âmbito da competência exclusiva dos notários e o regime de preços livres passa a ser aplicável a todos os atos que não se encontram na tabela e relativamente àqueles em que passou a existir concorrência entre outros profissionais. A AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA foi mais além na Recomendação 1/2007, defendendo que não existe fundamento que subjaza à manutenção de um regime de preços fixos para os atos jurídicos em que foi dispensada a escritura pública. Com efeito, entendendo-se que “estando os notários sujeitos à concorrência de outras profissões jurídicas neste domínio, não faz sentido que seja o Estado, mas sim o mercado, a atribuir o valor devido pela intervenção notarial neste tipo de atos jurídicos, dando-se assim continuidade […] a um processo de liberalização de preços em setores e atividade notarial que se encontram já atualmente sujeitos a pressão concorrencial.”337. A evolução legislativa e a simplificação e desformalização notarial que se impôs ao longo dos últimos anos, embora tenha tido aspetos positivos, implicou também alguns desfasamentos, que se prendem sobretudo com o regime de preços fixos (ou tabelados) aplicável pelo Estado na prática de atos notariais. A questão centra-se nos serviços relativos a atos para os quais foi dispensada a obrigatoriedade de escritura pública e na consequente atribuição de competências notariais às Conservatórias, que têm um tabelamento de preços diferente (e, sobretudo, inferior) àquele que está legalmente previsto para a realização dos mesmos atos por escritura pública, nos cartórios privados.
In AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA – Recomendação n.º 1/2007 “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” p. 54. 337
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Não obstante a fixação de preços por parte dos serviços prestados pelo Estado nas Conservatórias e nos cartórios públicos dever seguir uma lógica de orientação para os custos, a Autoridade da Concorrência entende que “a opção por uma lógica de subsidiação de preços nesta área de atividade conduzirá a um aumento artificial da procura junto dos serviços públicos, na medida em que tal procura não será assim imputável a uma gestão eficiente mas ao preço subsidiado por estes praticado, o que não só distorce a concorrência338 entre a globalidade dos prestadores da categoria de serviços em causa, como é suscetível de se refletir negativamente na boa gestão dos recursos públicos, em termos de eficiência alocativa.”339. Em matéria de custos inerentes à prática de serviços notariais, os serviços de registo (Balcões “Casa Pronta”, “Heranças”, “Empresa na Hora” e “Associação na Hora) aplicam o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado340 e os notários privados, na definição e fixação dos seus honorários, seguem os termos da tabela de honorários e encargos341. As regras de concorrência, plasmadas no novo regime jurídico da concorrência342, são aplicáveis a todas as atividades económicas, exercidas com caráter permanente ou ocasional, nos setores privado, público e cooperativo. Como bem entende ADALBERTO COSTA, que acompanhamos, “todas as profissões, todas as atividades económicas e profissionais estão submetidas à disciplina das normas do direito da Concorrência. Do mesmo modo, o Direito da Concorrência aplica-se a todas a pessoas de direito privado e público”343. A prática de preços “subsidiados” pelo Estado coloca os prestadores de serviços do setor privado em desvantagem concorrencial, concluindo a AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA, ainda neste âmbito, que, além da situação de desvantagem provocada no setor privado, a prestação do serviço público notarial por parte das Conservatórias “desviará recursos públicos para uma área de atividade que se entendeu passível de ser eficientemente exercida por atores privados, em regime de profissão liberal”344.
Ao conceito de concorrência é atribuído o significado de “um tipo de comportamento, significando este a relação existente entre vários agentes ou empresas que estabelecem entre si competição para a realização de interesses que são entre si incompatíveis […]. A concorrência aqui poderá ter como sujeitos não só as empresas, como os trabalhadores, como os próprios consumidores. Este significado de concorrência opõe-se, como é óbvio, aos comportamentos daqueles que têm uma posição de domínio […]” (COSTA, ADALBERTO – O Novo Regime Jurídico da Concorrência, p. 199). 339 In AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA – Recomendação n.º 1/2007 “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” p. 63. 340 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de dezembro, com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 201/2015, de 17 de setembro. 341 Aprovada pela Portaria n.º 385/2004, de 16 de abril, com última redação conferida pela Portaria n.º 574/2008 de 4 de julho. 342 Aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio. 343 COSTA, ADALBERTO – O Novo Regime Jurídico da Concorrência, p. 207. 344 In AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA – Recomendação n.º 1/2007, “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais.” p. 63. 338
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4.2 – A consequência da desburocratização operada pelo Sistema SIMPLEX: a inversão da reforma do notariado Tal como foi já anteriormente explanado, a reforma do notariado português foi operada pelo Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de fevereiro, que instituiu o Estatuto do Notariado, e pelo Decreto-Lei n.º 27/2004, de 4 de fevereiro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Notários. Esta reforma, colocada em marcha pelo Estado, prosseguiu a transferência de competências notariais, que até aí estavam sob a sua alçada, para o setor privado. Assumiu-se clara a ideia de que a transferência de competências implicaria a prestação de serviços com maior eficiência, melhor qualidade, menores encargos para o erário público e por profissionais liberais. O notário privado assumiu, deste modo, uma dupla função: a de oficial, por um lado, enquanto depositário de fé pública delegada pelo Estado; e, pelo outro, a de profissional liberal, que exerce as suas funções com caráter de independência e imparcialidade. Neste âmbito, o Estado criou aos notários condições para que pudessem privatizarse, conferindo-lhes algumas garantias, nomeadamente o tabelamento dos atos praticados no privado, o numerus clausus de notários por área territorial e um fundo de compensações, destinado a garantir a sua subsistência. Para além destas garantias, o Estado definiu um período transitório, durante o qual os notários poderiam, se assim o desejassem e se se manifestassem nesse sentido, regressar ao setor público. Acompanhamos, neste sentido, J.J. GOMES CANOTILHO quando refere que a privatização do notariado português não se tratou “de um procedimento legislativo com mera audição dos notários ou do seu organismo representativo, antes se procurou construir um novo esquema jurídico estatutário que tivesse em conta os direitos e interesses dos vários grupos profissionais comprometidos na reforma legislativamente operada.”345. No ano de 2004, a par desta pretensão de privatização notarial por parte do Estado, já se admitia legalmente a prática de alguns atos notariais de simples relevo às Câmaras de Comércio, às Juntas de Freguesia, aos Serviços de Correios, e aos Advogados e Solicitadores. Não obstante, apesar da liberalização de alguns atos notariais a outras entidades que não os notários, o Estado passa “a dar guarida ao notariado “profissão privada” com a natureza de direito, liberdade e garantia […] que alicerçou um universo de direitos e pretensões subjetivas […] e que embora não se tenha criado uma “garantia institucional” impeditiva de remodelações legislativas futuras, não restam dúvidas que […] se procedeu a uma ordenação de funções e de situações que radicou no campo dos CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva dos notários e os remédios jurídicos adequados à sua defesa, p.6. 345
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notários privados um leque de posições jurídicas subjetivas merecedoras de proteção jurídica”346. O notário privado passou, assim, a exercer a sua função de uma forma liberal, num quadro legislativo de prestação de um serviço de melhor qualidade para o cidadão e de redução da despesa do Estado. Contudo, decorridos cerca de três anos após a implementação da reforma do notariado, deu-se o início a uma nova reforma no serviço público, que veio colidir com a política notarial até então seguida e operacionalizada. A implementação, por parte do Estado, do programa SIMPLEX visou um reforço da prestação de serviços com o intuito de criar um clima mais favorável à atividade económica no plano interno e externo. O legislador procurou, desde então, prosseguir uma política de desformalização e simplificação, provocando uma irreversível inversão da reforma do notariado com a publicação de sucessivos diplomas legais que vieram permitir que os serviços de registo viessem concorrer com os notários, na prática de atos notariais. Como bem entende J.J. GOMES CANOTILHO, a legislação que proclamou a inversão da reforma do notariado e “as respetivas medidas de execução condensadas no programa SIMPLEX acabou por ser de facto e de direito legislação restritiva e medidas restritivas ao exercício do notariado sem que haja qualquer transparência nessa teleologia restritiva.”347. A política do programa SIMPLEX veio, efetivamente, romper com a reforma do notariado nos próprios termos em que a mesma havia sido anteriormente projetada e concebida. Tal rutura projetou-se através da criação de diplomas legais que levaram à desformalização notarial e, de seguida, à criação de serviços públicos, tais como os Balcões “Empresa na Hora” “Casa Pronta” ou “Heranças”, revertendo maioritariamente a ideologia do processo de mudança dos notários que aceitaram acolher a privatização da sua função. Como lapidarmente põe em destaque J.J. GOMES CANOTILHO, o que torna, de facto, impossível o exercício da profissão do notariado privado consiste “no facto de os serviços públicos adrede criados implicarem preços mais baixos do que os praticados pelos notários privados para o mesmo serviço, desde logo porque não cabe na livre disposição destes a fixação dos preços. É o Estado que fixa os preços mais altos que os notários privados podem praticar.”348. Apesar da mudança de paradigma, adotada com a implementação do sistema SIMPLEX, estar legitimada pela liberdade de conformação legislativa do nosso legislador, considerar-se-á existir atualmente “uma ingerência através da concorrência quando CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.7. CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.10. 348 CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.19. 346 347
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existam privilégios fiscais, vantagens contratuais de acesso à rede de serviços (certidões de conservatórias de registo, civil e notarial) e dumping de preços. Nestes casos, o Estado tende a aniquilar a concorrência que ele próprio legitimou.”349. A política pública do SIMPLEX “acabou por criar um monopólio jurídico e fáctico de natureza sucessiva a favor da administração estatal […]. Os vários atos concretizadores – “casa pronta”, “empresa na hora”, “divórcio na hora” “partilha na hora” – são elementos constitutivos do monopólio estatal sucessivo”.350. Existirá uma nítida violação da confiança estabelecida entre os notários privados e o próprio Estado na reorganização pública do serviço notarial, que veio prejudicar profundamente as suas expectativas e também as expectativas de outros profissionais com competências notariais, não apenas pela prática de um serviço público a um custo reduzido, como também pela realização de uma vasta panóplia de atos acessórios, a título gratuito. Face a esta problemática, J.J. GOMES CANOTILHO entende que as autoridades administrativas “ou assumem este quase monopólio administrativo em termos claros, devendo indemnizar os notários pelos danos causados ou observam as regras básicas de concorrência, devendo eliminar as causas dos resultados lesivos derivados da tática de salame (privilégio de acesso à rede de registos, fixação de preços, isenções fiscais).”351. O sistema SIMPLEX constitui, nos dias de hoje, um expressivo afronto à atividade notarial privada, atualmente praticada por uma diversidade de entidades privadas, que considerando a presente conjuntura económica nacional, veriam, na prática dos serviços de índole notarial, um rendimento adicional, não fosse a massiva prestação de serviços notariais atualmente praticada pelo Estado a preços expressivamente reduzidos.
CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.20. CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.20. 351 CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.20. 349 350
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TERCEIRA PARTE – A TITULAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS SOBRE IMÓVEIS
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CAPÍTULO V – O Documento Particular Autenticado (DPA) e o domínio dos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças” na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis
5.1 – A formalização do Documento Particular Autenticado (DPA) Ao proceder à elaboração de um documento particular autenticado, o Solicitador deve obedecer a um vasto conjunto de formalismos de natureza notarial, já abreviadamente identificados supra. Os formalismos legais em causa servem quer para os casos em que se esteja perante a autenticação de um documento particular, quer para as situações de autenticação de um documento que titule um ato que, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, estava obrigatoriamente sujeito a formalização por escritura pública. Atendendo à sua importância, e ao contexto que assumem no presente estudo, passamos a analisar alguns elementos relativos à formalização do documento particular autenticado, nomeadamente os formalismos comuns aos termos de autenticação, as menções gerais do título, a identificação dos intervenientes, os documentos instrutórios, e as obrigações do Solicitador enquanto entidade autenticadora. 5.1.1 – Formalismos Comuns do Termo de Autenticação O termo de autenticação, que confere o caráter autenticado ao documento particular, pode ser lavrado no próprio documento (do documento particular) ou em folha anexa352, sendo permitido qualquer processo gráfico na sua redação, desde que o mesmo ofereça características de inalterabilidade e de nitidez. O documento particular e o termo de autenticação devem formar um único documento, mesmo que tenham sido lavrados em folhas separadas (ou avulsas), com o mesmo formato. Constituindo um ato notarial, o termo de autenticação deve ser redigido em língua portuguesa, conforme plasmado no n.º 1 do artigo 42.º do C.N.. Na composição do documento particular autenticado deve ser utilizada a cor preta. Diz-nos, a este respeito, DAVID MARTINS LOPES DE FIGUEIREDO que “pelas dificuldades que podem criar na extração de cópias e na digitalização, não devem ser usados na composição de documentos particulares autenticados […] materiais que não sejam de cor preta. O uso de esferográfica é permitido, desde que a tinta seja preta e dê garantias de durabilidade e de fixidez, podendo pois, ser utilizadas na composição do ato. As folhas também devem ser de cor branca, aumentando assim o contraste”.353.
Dispõe o n.º 4 do artigo 36.º do C.N. que “Os termos de autenticação e os reconhecimentos são lavrados no próprio documento a que respeitam ou em folha anexa.”. 353 FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p. 37. 352
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Na escrita do ato notarial, e bem assim, no caso concreto do termo de autenticação, deverá ter-se o cuidado da escrita por extenso, sendo apenas permitido o uso de algarismos e abreviaturas na indicação da naturalidade e residência dos intervenientes. A menção dos números de polícia, das inscrições matriciais e dos valores patrimoniais, na numeração de artigos e parágrafos de atos redigidos sob a forma articulada, bem como na numeração das folhas dos livros ou dos documentos, na referenciação a diplomas legais e documentos arquivados ou exibidos, e ainda nas palavras usadas para designar títulos académicos ou honoríficos354 deve ser feita por recurso a escrita por extenso. A exigência notarial de utilização da redação por extenso não se aplica ao documento particular a autenticar, uma vez que se trata de um documento escrito pelas partes intervenientes. O termo de autenticação não deverá conter quaisquer espaços em branco, devendo os referidos espaços em branco (que não estejam inteiramente ocupado por texto), quando existentes, ser inutilizados, por meio de uma linha horizontal. Com efeito, no caso dos documentos particulares autenticados que titulem atos referidos no artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, que implicam o depósito eletrónico do documento particular, do termo de autenticação, e de todos os documentos que servem de base à sua instrução, impõe-se à entidade autenticadora o dever de verificar e garantir que o documento particular não possui quaisquer espaços em branco que não tenham sido devidamente ocupados (por texto ou pela referida linha horizontal), sob pena de a autenticação do documento ser recusada. A inutilização das linhas deve também “ser observada também na linha que contenha ressalvas, quando estas não a ocupem totalmente, não só do documento particular, quando as ressalvas aí sejam efetuadas, como também no termo de autenticação”355. Neste âmbito, estamos perante um caso em que a autenticação de um documento particular, ao abrigo do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, impõe regras de segurança jurídica adicionais comparativamente à autenticação de um qualquer outro documento particular. Outra regra a observar tem que ver com o facto de o termo de autenticação, sendo um ato notarial e conforme prevê o n.º 1 do artigo 42.º do C.N., dever ser redigido em língua portuguesa. Esta regra é também extensível quando estamos perante documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial, na medida em que o n.º 1 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho dispõe que “os documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial devem conter os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto”.
354 355
De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 40.º do C.N.. FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p. 39.
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As menções gerais notariais, já anteriormente identificadas, previstas nas alíneas a) a n) do artigo 46.º e 151.º do C.N., são transversais a todos os termos de autenticação, quer estes se refiram à titulação de atos sujeitos a registo predial ou não. A primeira menção que consta da alínea a) do artigo 46.º do C.N. corresponde à necessidade do termo de autenticação conter a designação do dia, mês, ano e lugar em que for outorgado, sendo que a sua falta “constitui nulidade por vício de forma, embora sanável
se,
pelo
texto
do
instrumento/ato
notarial
ou
pelos
existentes
no
cartório/escritório da entidade autenticadora, for possível determinar a data ou o lugar da sua celebração (art.º70.º n.º1, al a) e n.º 2, e art. 132.º, do CN)356. A menção seguinte, constante na alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º do C.N, refere-se à indicação, no termo de autenticação, do nome completo do funcionário que interveio no ato, a menção da respetiva qualidade e a designação do cartório ou entidade autenticadora. Assim, caso a entidade autenticadora seja o Solicitador, deverá ser feita indicação expressa ao nome profissional e ao local onde a autenticação se realiza, que, porém, não terá que ser obrigatoriamente a morada do seu domicílio profissional, face à liberdade de competência territorial que o EOSAE confere aos Solicitadores. Tal já não acontece aos notários, que, em virtude das suas limitações ao nível de competência territorial, por via da imposição estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º do Estatuto do Notariado, estão circunscritos ao município em que está instalado o respetivo cartório. O Solicitador dispõe de liberdade de praticar qualquer ato próprio da sua profissão em todo o território nacional, e bem assim, de autenticar documentos sem qualquer limitação territorial, referindo, a este propósito, o n.º 1 do artigo 136.º do EOSAE que “os solicitadores com inscrição em vigor na Ordem e os profissionais equiparados a solicitadores em regime de livre prestação de serviços, podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar atos próprios da profissão, designadamente exercer o mandato judicial, nos termos da lei, em regime de profissão liberal remunerada”. A autenticação de documentos particulares não constitui um ato próprio do Solicitador, nos termos da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, sendo a sua prática realizada ao abrigo das funções que lhe foram legalmente conferidas. 5.1.2 – A Identificação dos Intervenientes O termo de autenticação tem, obrigatoriamente, de conter a menção da identificação dos intervenientes. Esta imposição decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do C.N. que nos diz que do ato deve constar o nome completo, estado civil, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por
356
FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p. 57.
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estes representados e, ainda, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas coletivas que os outorgantes representem, com menção das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa coletiva. As sociedades “devem ser identificadas pela identificação da firma, tipo, sede, conservatória do registo onde se encontrem matriculadas, número de matrícula e de identificação de pessoa coletiva e, sendo caso disso, pela menção de que a sociedade se encontra em liquidação; as de capitais devem ainda indicar o capital social, o montante do capital realizado, se for diverso, e o montante do capital próprio segundo o último balanço aprovado, sempre que este for igual ou inferior a metade do capital social – vide art. 171.º n.º 1 e 2, do Código das Sociedades Comerciais”357. A verificação identidade dos intervenientes, por parte da entidade autenticadora, é realizada nos termos do artigo 48.º do CN, podendo assumir várias formas, nomeadamente através de conhecimento próprio de quem preside ao ato, pela exibição do bilhete de identidade358, de documento equivalente ou da carta de condução, se tiverem sido emitidos pela autoridade competente de um dos países da União Europeia, pela exibição de passaporte, ou pela declaração de dois abonadores, identificados nos mesmo termos
anteriormente referidos, com expressa indicação do meio de
identificação. Verificando-se existirem intervenientes munidos de procuração, deve tal menção fazer-se constar no termo de autenticação, sendo referidas as respetivas procurações que atestem e justifiquem a qualidade do interveniente, tal como dispõe a alínea e) do artigo 46.º do C.N.. Como bem refere EDGAR VALLES, no caso de existir procurador “indica-se como outorgante quem intervém no ato, e não o representado. Daí que seja mencionado como outorgante o procurador ou o administrador, e não o representado ou a sociedade X”359. Em matéria de representação, e fazendo agora um pequeno parêntesis, existem três tipos: a representação legal, a representação voluntária e a orgânica. A representação legal ocorre quando o beneficiário, ou interessado, é civilmente incapaz e, para que o ato seja válido, tem de ser representado. A representação destina-se a suprir a incapacidade do(s) menor(es), do(s) interdito(s) e
do(s) inabilitado(s)360. A
FERREIRINHA, FERNANDO NETO - A Função…, p. 75. Em matéria de identificação civil, a Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro impôs a substituição do bilhete de identidade pelo cartão do cidadão, o qual contém informação importante acerca do cidadão, incluindo o seu número de identificação civil. Diz-nos FERNANDO NETO FERREIRINHA (- A Função…, p. 80) “que este cartão – que constitui título bastante para provar a identidade do titular perante quaisquer autoridades e entidades públicas e privadas em todo o território nacional (e fora dele, quando a sua eficácia extraterritorial for reconhecida por normas comunitárias e convenções internacionais) – é de obtenção obrigatória para todos os cidadãos nacionais, residentes em Portugal ou no estrangeiro, a partir dos 6 anos de idade ou logo que a sua apresentação seja exigida para o relacionamento com algum serviço público e facultativa para cidadãos brasileiros a quem tenha sido concedido o estatuto geral de igualdade de direitos e deveres”. 359 VALLES, EDGAR - Atos Notariais do Advogado, 5.ª Edição, p.50. 360 Vide a este efeito os artigos 124.º, 139.º e153.º do Código Civil. 357 358
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representação voluntária, por sua vez, encontra previsão legal no n.º 1 do artigo 262.º do Código Civil, constituindo “o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”. Este tipo de representação poderá afirmar-se como a mais comum na celebração de atos notariais, uma vez que ocorre perante a impossibilidade do(s) representado(s) poder(em) comparecer na data ou no local em que o mesmo é celebrado e a representação é realizada por terceira pessoa, em nome e por ordem do seu mandante, munido da correspondente procuração361. Finalmente, a representação orgânica corresponde à representação de pessoa coletiva por intermédio dos seus órgãos e regulada pela lei pessoal, nos termos do artigo 38.º do C. Civil. Como bem nos ensina FERNANDO NETO FERREIRINHA “estando as pessoas coletivas impossibilitadas de agir por si próprias, o exercício dos seus direitos tem de ser realizado por intermédio de pessoas singulares que, integrando o competente órgão de administração, estão incumbidas de atuar por elas, praticando em seu nome e no seu interesse e ainda no âmbito dos poderes que lhes são atribuídos, os atos que irão produzir os correspondentes efeitos na sua esfera jurídica”362. Genericamente a representação de pessoas coletivas é realizada por quem tenha poderes para a prática de determinados atos, poderes que decorrem da forma de obrigar a pessoa coletiva e que são definidos organicamente363. A representação das sociedades também é admissível por procuração conferida a terceiros. 5.1.3 – Os documentos instrutórios Na autenticação de documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial (ou atos sobre imóveis), além do cumprimento das regras notariais exigíveis para o documento particular e para o termo de autenticação, mostra-se ainda necessária a apensação de toda a documentação essencial à plena validade do DPA, tal como plasmado nos artigos 22.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho. A transmissão de propriedade de um prédio urbano ou de uma fração autónoma depende, desde logo, da apensação da licença (ou autorização) de utilização. Dispõe, a este propósito, o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de julho, alterado pelo artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, que “Não podem ser realizados atos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas frações autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura pública.”. Distinga-se de mandato, na medida em que o mesmo se trata de um contrato previsto no artigo 1157.º do Código Civil, em que uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra. Já a procuração corresponde a um negócio jurídico unilateral pelo qual se atribuem poderes de representação voluntariamente a terceiros. 362 FERREIRINHA, FERNANDO NETO, A Função…, pp. 96-97. 363 A representação das associações e fundações é realizada por quem tiver esse poder conferido estatutariamente, ou na falta de disposição, à administração. Nas sociedades por quotas e em nome coletivo a representação é realizada pela gerência e nas sociedades anónimas é a administração. 361
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A obrigatoriedade da junção da autorização da utilização apenas é dispensada nos casos em que o imóvel tenha sido construído antes da entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382/1951 de 7 de agosto. Assim, perante uma tal situação, “a prova da construção anterior à referida data [7 de agosto de 1951] faz-se através de qualquer documento autêntico, v.g., certidão do registo predial, escritura pública, certidão judicial de inventário, ou prova de que o imóvel já se encontrava inscrito na matriz anteriormente à entrada em vigor da entrada em vigor daquele Regulamento.”364. Um outro documento que deve instruir o documento particular autenticado referese, no caso de transmissão de prédio urbano para habitação, à ficha técnica da habitação. A imposição encontra-se plasmada no Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de março. Este diploma legal veio estabelecer um conjunto de mecanismos de reforço dos direitos dos consumidores e proteção dos seus interesses económicos na aquisição de prédios urbanos destinados a habitação, passando a ser disponibilizado um conjunto de informações que permitem a análise comparativa entre vários imóveis, que permite uma escolha mais correta. A imposição da ficha técnica da habitação não se aplica, porém, aos prédios já edificados e para os quais foi emitida ou requerida licença de habitação, anteriormente a 30 de março de 2004 e para os prédios construídos antes da entrada em vigor do Regulamento Geral de Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382/1951, de 7 de agosto. Além da ficha técnica da habitação é obrigatória, na transmissão de imóveis urbanos destinados a habitação, comércio e serviços, o documento comprovativo de certificação energética. A certificação energética de edifícios está em vigor desde o dia 1 de dezembro de 2013, com a publicação do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto365. São abrangidos pelo sistema de certificação energética os edifícios ou frações366, novos 364 365
FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, pp.185-186. Com a última redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 194/2015, de 14 de setembro.
Ao invés, e de acordo com o plasmado no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto, estão excluídos do regime de certificação energética “a) As instalações industriais, agrícolas ou pecuárias b) Os edifícios utilizados como locais de culto ou para atividades religiosas; c) Os edifícios ou frações exclusivamente destinados a armazéns, estacionamento, oficinas e similares; d) Os edifícios unifamiliares com área útil igual ou inferior a 50 m2; e) Os edifícios de comércio e serviços devolutos, até à sua venda ou locação depois da entrada em vigor do presente diploma; f) Os edifícios em ruínas; g) As infraestruturas militares e os edifícios afetos aos sistemas de informações ou a forças e serviços de segurança que se encontrem sujeitos a regras de controlo e de confidencialidade; h) Os monumentos e os edifícios individualmente classificados ou em vias de classificação, nos termos do Decreto -Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, alterado pelos Decretos Leis n.ºs 115/2011, de 5 de dezembro e 265/2012, de 28 de dezembro, e aqueles a que seja reconhecido especial valor arquitetónico ou histórico pela entidade licenciadora ou por outra entidade competente para o efeito; i) Os edifícios integrados em conjuntos ou sítios classificados ou 366
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ou sujeitos a grande intervenção, nos termos do Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação (REH) e do Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços (RECS). Dispõe o n.º 3 do artigo 3.º do referido diploma legal que “São também abrangidos pelo [sistema de certificação energético] os edifícios ou frações existentes de comércio e serviços: a) com área interior útil de pavimento igual ou superior a 1000,00m2, ou 500,00m2, no caso de centros comerciais, hipermercados, supermercados e piscinas cobertas; ou b) que sejam propriedade de uma entidade pública e tenham área interior útil de pavimento ocupada por uma entidade pública e frequentemente visitada pelo público superior a 500m2 ou, a partir de 1 de julho de 2015, superior a 250m2”. Prevê ainda o n.º 4 do artigo 3.º que “são ainda abrangidos pelo [sistema de certificação energético] todos os edifícios ou frações existentes a partir do momento da sua venda, dação em cumprimento ou locação posterior à entrada em vigor do presente diploma, salvo nos casos de: a) venda ou dação em cumprimento a comproprietário, a locatário, em processo executivo, a entidade expropriante ou para demolição total confirmada pela entidade licenciadora competente; b) locação do lugar de residência habitual do senhorio por prazo inferior a quatro meses; c) locação a quem seja já locatário da coisa locada”. Os edifícios novos ou sujeitos a uma grande intervenção estão sujeitos à apresentação de certificação energética na fase de projeto, ou seja, antes da construção ou da intervenção urbanística de grande relevo. Desde 1 de dezembro de 2013, o certificado energético passou, assim e tal como exposto, a constituir um documento instrutório obrigatório, que deve ser apresentado no momento da celebração do documento particular autenticado, nos casos de compra e venda, dação em cumprimento ou locação após a entrada em vigor da referida Lei e deve ser entregue ao comprador ou locatário após a celebração do ato. A certificação energética visa permitir a obtenção, aos futuros utentes ou utilizadores, de “informação sobre os consumos de energia potenciais, no caso de novos edifícios ou no caso de edifícios existentes sujeitos a grandes intervenções de reabilitação, dos seus consumos reais ou aferidos para padrões de utilização típicos, passando o critério dos custos energéticos, durante o funcionamento normal do edifício,
em vias de classificação, ou situados dentro de zonas de proteção, nos termos do Decreto -Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, alterado pelos Decretos- -Leis n.ºs 115/2011, de 5 de dezembro e 265/2012, de 28 de dezembro, quando seja atestado pela entidade licenciadora ou por outra entidade competente para o efeito que o cumprimento de requisitos mínimos de desempenho energético é suscetível de alterar de forma inaceitável o seu caráter ou o seu aspeto; j) Os edifícios de comércio e serviços inseridos em instalações sujeitas ao regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2008, de 15 de abril, alterado pela Lei n.º 7/2013, de 22 de janeiro. 162
a integrar o conjunto dos demais aspectos importantes para a caracterização do edifício.”367. Os promotores e proprietários dos edifícios devem recorrer a um perito qualificado para realizar todos os atos previstos no âmbito da certificação energética. Em matéria contraordenacional, a não entrega do pré-certificado ou certificado SCE ao comprador ou locatário, no ato de celebração de contrato-promessa de compra e venda ou de celebração do contrato de locação, e a falta de entrega do original no ato de celebração da compra e venda, é punível com coima de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) a 3.740,00€ (três mil, setecentos e quarenta euros) no caso de pessoas singulares, e de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) a 44.890,00€ (quarenta e quatro mil, oitocentos e noventa euros) no caso de pessoas colectivas368. 5.1.4 – A menção quanto aos documentos instrutórios sujeitos a arquivo ou a simples exibição O artigo 46.º do C.N. refere, nas alíneas f) e g), que o instrumento notarial deve conter a menção de todos os documentos que fiquem arquivados, mediante referência expressa de tal circunstância, acompanhada da indicação da natureza dos documentos, e ainda e em caso de incidência de impostos, a indicação do número da liquidação, data de emissão e repartição emitente quando esta não constar do próprio ato. Deve, ainda, fazer-se menção de todos os documentos apenas exibidos no ato pelos intervenientes, com indicação da sua natureza. O regime do artigo 46.º do C.N. é aplicável, por interpretação extensiva, ao termo de autenticação do documento particular. Neste sentido, na elaboração do termo de autenticação deve o titulador fazer menção expressa aos documentos que serviram de base à instrução do documento particular autenticado, mencionando se os mesmos ficam arquivados, juntamente ao título que servem, ou se apenas foram exibidos no ato da celebração do termo de autenticação (de que são caso paradigmático os documentos de identificação das partes). Refere, a este título, DAVID MARTINS LOPES DE FIGUEIREDO que “os documentos apresentados para integrar ou instruir os atos ficam, em princípio arquivados salvo quando a lei determine o contrário […] ou apenas exija a sua exibição.”369. Além de se fazer menção expressa aos documentos instrutórios (indicando a sua natureza e o facto de ficarem arquivados ou de apenas terem sido sujeitos a exibição), deve ter-se em consideração que a validade dos documentos particulares autenticados “está dependente de depósito eletrónico desses documentos, bem como de todos os
FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p.193. Cfr. art. 14.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de Agosto. 369 FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p.216. 367 368
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documentos que os instruam”, tal como plasmado no n.º 2 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008 de 4 de julho. Assim, os documentos instrutórios sujeitos a arquivamento devem ser depositados eletronicamente370, em formato adequado (digitalizado), conjuntamente com o título, assegurando a sua validade. No que se refere ao regime de obrigatoriedade de exibição de documentos instrutórios é apenas feita uma ressalva quanto ao certificado energético. Com efeito, a sua não exibição não invalida a celebração e a validade do documento particular autenticado, porquanto se trata de uma obrigação inter partes, “em que a obrigação da obtenção é imposta ao proprietário do edifício, conforme o art.º 14.º do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto, sendo a do titulador, prevista no art.º 20.º do mesmo Decreto-Lei, meramente fiscalizativa.”371. O arquivo do documento instrutório ou a sua mera exibição no ato trata-se, portanto, de uma exigência legal, que, à exceção do certificado energético, mina a validade do título. 5.1.5 – Obrigações fiscais: o Imposto do Selo e o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, os documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial (ou atos sobre imóveis) não podem ser “autenticados enquanto não se encontrar pago ou assegurado o imposto municipal sobre transmissões onerosas de imóveis e o imposto de selo liquidados” pelos serviços de finanças competentes. O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papeis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens372. Já o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional. A entidade autenticadora (o Solicitador, no presente estudo) está obrigada a verificar o cumprimento das obrigações fiscais relativas a qualquer dos referidos impostos, quando o contrato objeto de autenticação a eles esteja sujeito, devendo também fazer constar do termo de autenticação o valor dos impostos e a data de liquidação, ou a disposição legal que prevê a sua isenção.
A obrigatoriedade de depósito eletrónico decorre do n.º 1 do artigo 4.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, que refere que “Estão sujeitos a depósito eletrónico os documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, bem como os documentos que os instruam e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público.”. Adiante analisar-se-á, em específico, a questão do depósito eletrónico do documento particular autenticado. 371 FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p.217. 372 Vide artigo 1.º do Código do Imposto de Selo (CIS). 370
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Em matéria de liquidação, ou seja de apuramento do imposto devido pelo ato, cabe “aos serviços da Autoridade Tributária a liquidação do imposto […] ou reconhecer a isenção; não tem o titulador que se preocupar com o montante do imposto que foi apurado nem tem que se preocupar se o sujeito reúne as condições para beneficiar ou não da isenção concedida pela Autoridade Tributária que é a entidade competente para o efeito.”373. A função do titulador, no que às obrigações fiscais se refere, é a de verificar a compatibilidade dos documentos emitidos pela Autoridade Tributária, em matéria de imposto pago ou eventual isenção, e os valores apresentados no documento particular, antes de avançar para a sua autenticação. Porém, deve ter-se em consideração que nem sempre a liquidação de impostos precede a formalização do documento particular autenticado. Com efeito, os casos apenas sujeitos a imposto de selo (de que são exemplo paradigmático as doações), a liquidação e o pagamento do imposto são efetuados e momento posterior à celebração e depósito do documento particular autenticado. O que vem de dizer-se é também aplicável aos casos de partilha extrajudicial, com sujeição a imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT). O n.º 7 do artigo 37.º do CIMT refere, a este título, que o imposto deve ser pago nos trinta dias posteriores ao ato. Excetuando os casos atrás mencionados, em que a liquidação e pagamento do imposto de selo e imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis é, por imperativo legal, realizada posteriormente à realização do ato, todos os restantes casos impõem a prévia liquidação e pagamento dos aludidos impostos, devendo a entidade tituladora374 aferir a conformidade do valor entre o contrato e os documentos de liquidação apresentados. 5.1.6 Depósito eletrónico O documento particular autenticado que titule um ato sujeito a registo predial, nos termos plasmados nos artigos 22.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, está sujeito a depósito eletrónico obrigatório. Dispõe o n.º 2 do artigo 24.º do referido diploma legal que “a validade da autenticação dos documentos particulares que visem titular atos sujeitos a registo
FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p.216. O n.º 6 do artigo 49.º do CIMT refere, acerca da responsabilidade dos tituladores, que “São solidariamente responsáveis com o sujeito passivo pelo pagamento do imposto os notários que celebrem escrituras públicas e as pessoas que, por qualquer outra forma, intervenham nos documentos particulares autenticados, ou qualquer outro título, quando essa forma seja admitida em alternativa à escritura pública, desde que tenham colaborado na falta de liquidação ou arrecadação do imposto ou, na data daquela intervenção, receção ou utilização, não tenham exigido o documento comprovativo do pagamento ou da isenção, se for caso disso.”. 373 374
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predial está dependente de depósito eletrónico desses documentos, bem como de todos os documentos que os instruam.”. Da mesma forma, prevê o n.º1 do artigo 4.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, que “Estão sujeitos a depósito eletrónico os documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, bem como os documentos que os instruam e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público.”. O depósito eletrónico do DPA e dos documentos instrutórios é realizado nos termos do n.º 1 do artigo 5.º da Portaria acima referida, sendo efetuada através de plataforma eletrónica
acessível
a
partir
do
sítio
na
internet
com
o
endereço
www.predialonline.mj.pt. Na referida plataforma eletrónica devem ser inseridos, em formato digital, todos os documentos instrutórios e o DPA, destinando-se a posterior consulta do Conservador, no momento da apresentação a registo. Na elaboração do depósito eletrónico é imprescindível o preenchimento dos elementos de identificação dos intervenientes (tais como o nome, estado civil e número de identificação fiscal), do tipo de negócio jurídico titulado que está a ser alvo de depósito, de identificação do prédio, ou prédios que são objeto do contrato, do valor do contrato, caso seja oneroso, e da data em que foi realizada a autenticação. Após a realização do depósito eletrónico, o sistema emite uma chave (ou código) de acesso, que corresponderá ao código atribuído àquele ato e através do qual é possível a posterior consulta. Note-se que o depósito eletrónico do documento particular tem de ser, obrigatoriamente, realizado no dia da autenticação375. O código de acesso ao DPA tem uma validade de seis meses, podendo ser acedido e consultado durante esse período, de forma gratuita. Diz-nos, a este propósito, FERNANDO NETO FERREIRINHA que o código “permite que os documentos depositados sejam visualizados, quer pela entidade autenticadora, quer por qualquer pessoa a quem esta tenha disponibilizado o código de identificação, quer por outras entidades a quem a lei concede essa faculdade, designadamente os serviços de registo e os magistrados judiciais e do Ministério Público, no âmbito da prossecução das suas atribuições.”376. O depósito eletrónico do DPA tem um custo emolumentar de 20,00€ (vinte euros), definido no n.º 18.1 do artigo 21.º do Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado. Apenas se prevê a exceção para os casos de impossibilidade manifesta. A este propósito, veja-se o n.º 2 do artigo do artigo 7.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro que refere que “Se em virtude de dificuldades de caráter técnico respeitantes ao funcionamento da plataforma eletrónica referida no artigo 5.º não for possível realizar o depósito, este facto deve ser expressamente mencionado em documento instrutório a submeter, indicando o motivo da impossibilidade, a data e a hora do facto e a identificação da entidade autenticadora, devendo o depósito ser efetuado nas quarenta e oito horas seguintes.”. 376 FERREIRINHA, FERNANDO NETO, A Função…, p.134. 375
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CAPÍTULO VI – Análise comparativa e prática dos encargos devidos pela titulação de negócios jurídicos sobre imóveis
6.1 – O caso dos Serviços de Registo: Balcão “Casa Pronta” e Balcão “Heranças” O procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, denominado de “Balcão Casa Pronta”, e o “Balcão de Heranças” foram pensados e criados no âmbito do programa SIMPLEX. O seu objetivo principal foi o de dar resposta à crescente exigência dos cidadãos, “oferecendo um ambiente favorável aos negócios e criando condições para que as empresas sejam também mais competitivas fora do espaço económico nacional.”377. O serviço “Casa Pronta” veio, nesse conspecto, permitir a realização, de forma imediata, e num único balcão de atendimento, de todas as formalidades exigíveis à celebração de contratos de compra e venda, doação, permuta, dação em pagamento, relativos a prédios urbanos, rústicos ou mistos, com ou sem recurso a crédito bancário, a transferência de empréstimo bancário de um banco para o outro ou à realização de um empréstimo garantido por uma hipoteca sobre o imóvel objeto de aquisição, ou a constituição de propriedade horizontal378. Este balcão permite realizar, simultaneamente, a celebração do contrato e o correspondente registo e praticar um vasto conjunto de atos que vêm dispensar a deslocação do cidadão a outros serviços públicos, nomeadamente no que se refere à liquidação de impostos, à alteração de morada fiscal, ao pedido de isenção de imposto municipal sobre imóveis, no âmbito de uma aquisição de habitação própria e permanente, e à atualização do prédio na matriz predial respetiva. Com este serviço deixa de ser necessário, ao cidadão, a obtenção da certidão do prédio, junto da Conservatória do Registo Predial, antes de celebrar a escritura pública (como se verifica no caso de o título ser celebrado por outra entidade privada competente) e a obtenção da caderneta predial, comprovativa da situação matricial do prédio, visto que o serviço possui acesso à base de dados dos Serviços de Finanças. É, ainda, dispensada ao cidadão a obtenção da certidão da licença de habitação e a recolha de plantas perante as câmaras municipais379. No caso societário, por sua vez e em virtude de o Balcão possuir acesso à base de dados de registo comercial, deixa de ser necessária a obtenção da certidão de registo comercial, assim como a certidão de registo civil, quando exigível aos administradores,
Histórico Simplex – Programa Simplex [Em linha]. Sem local de publicação.[Consult.02 jan. 2016]. Disponível em <URL: http://www.simplex.pt/simplex.html#1,>. 378 Instituto dos Registos e do Notariado – Balcão Casa Pronta [Em linha] IRN:Sem local de publicação [Consult. 02 jan. 2016] Disponível em <URL: https://www.casapronta.pt/CasaPronta/,>. 379 Portal Simplex – Simplex [Em linha]. Faq. Simplex: Sem local de publicação. [Consult.02 jan. 2016] Disponível em <URL: http://www.simplex.pt/faqs/faqDetalhe02.html ,>. 377
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O procedimento ora em análise dispensa a celebração de escritura pública por notário, sendo o título celebrado perante o conservador, que procede ao registo imediato do ato e disponibiliza gratuitamente a certidão predial atualizada. A todas as vantagens anunciadas, e publicitadas pelo Estado, acresce a publicitação de um “serviço mais barato” comparativamente com o serviço notarial convencional. A título de exemplo, o procedimento no serviço “Casa Pronta” custa “350€ + impostos, se o processo der origem a um único ato de registo (uma aquisição ou hipoteca, por exemplo). E o preço da compra de casa sem financiamento bancário (se for usada uma conta poupança habitação custa apenas 230€ + impostos”, sendo, inclusive, publicitado pelo Estado que o preço médio de uma compra e venda sem financiamento bancário pelo método tradicional (ou seja, pelo notário) é superior à quantia de 550,00€ (quinhentos e cinquenta euros) a que acrescerão os impostos380. Caso o processo dê origem a mais de um ato de registo, o serviço tem um custo de 650,00€ (seiscentos e cinquenta euros), acrescido de impostos. É o caso, por exemplo, de uma compra e venda com financiamento bancário (em que são devidos os registos de aquisição e de hipoteca). O preço baixa para 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros) no caso de, para a aquisição, ser utilizada uma conta poupança-habitação. No portal eletrónico do Instituto dos Registos e Notariado (sito em http://www.irn.mj.pt), referese que, no serviço prestado pelo notário (método “tradicional”), o preço médio de uma compra e venda com financiamento bancário é superior a 900,00€ (novecentos euros), acrescidos de impostos. O “Balcão Heranças”, por sua vez, constitui um serviço com três procedimentos distintos, sendo eles: a habilitação de herdeiros (com ou sem registos); a habilitação de herdeiros com partilha e registos; e a partilha hereditária e registos. Além destes procedimentos, o Balcão pode ainda realizar a liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas (IMT) e, a solicitação dos interessados, requerer a alteração de morada fiscal dos mesmos, a isenção do imposto municipal sobre imóveis, relativo a habitação própria e permanente, e a inscrição ou atualização do prédio urbano na matriz predial respetiva. Neste último caso, o cidadão não tem de solicitar plantas à Câmara Municipal, uma vez que a Conservatória procede à recolha e envio das mesmas ao Serviço de Finanças. O procedimento de habilitação de herdeiros tem um custo associado de 150,00€ (cento e cinquenta euros) e o procedimento de habilitação de herdeiros e registo dos bens tem um custo de 375,00€ (trezentos e setenta e cinco euros). Os emolumentos em causa (relativos ao procedimento de habilitação de herdeiros e registo) incluem todos os registos de bens imóveis, móveis ou participações sociais e a ele acresce, por cada bem Portal Simplex – Simplex [Em linha]. Faq. Simplex: Sem local de publicação. [Consult.02 jan. 2016] Disponível em <URL: http://www.simplex.pt/faqs/faqDetalhe02.html ,>. 380
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além do primeiro, o valor de 30,00€ (trinta euros) por imóvel, quota ou participação social; 20,00€ (vinte euros) por cada bem móvel; e 15,00€ (quinze euros), no caso de se tratar de ciclomotores até 50 cm3, até ao limite máximo de 30.000,00€ (trinta mil euros). O procedimento de habilitação, partilha e registos tem um custo de 425,00€ (quatrocentos e vinte e cinco euros). O emolumento identificado para este procedimento inclui todos os registos de bens móveis ou participações sociais, assim como o registo de aquisição dos bens imóveis adjudicados a cada um dos partilhantes e a ele acresce, por cada registo de aquisição de bens imóveis, o valor de 125,00€ (cento e vinte e cinco euros), e por cada bem, além do primeiro, adjudicado a cada partilhante, a quantia de 30,00€ (trinta euros) por imóvel, quota ou participação social; 20,00€ (vinte euros) por cada bem móvel; ou 15,00€ (quinze euros) no caso de ciclomotores com cilindrada não superior a 50 cm3, até ao limite de 30.000,00€ (trinta mil euros). Acresce, ainda, o valor de 50,00€ (cinquenta euros) quando sejam tituladas, no mesmo ato, as habilitações de marido e mulher ou a partilha das respetivas heranças. Por cada consulta realizada à base de dados dos registos no âmbito dos procedimentos simplificados de sucessão hereditária é cobrado o valor igual ao valor mais baixo para a emissão de certidão online (ou seja, de 15,00€), ou em papel caso aquela não exista, relativa a cada espécie de registo, exceto se for apresentado código de acesso válido à certidão permanente, ou em suporte de papel.381.
6.2 – O caso do Notário: análise comparativa de custos com os Serviços de Registo (algumas situações práticas) Tal como foi já anteriormente referido, os honorários e encargos dos Notários encontram-se regulados na Portaria n.º 385/2004, de 16 de abril, alterada pela Portaria n.º 574/2008, de 4 de julho, que, atualmente, prevê a existência de honorários máximos para os atos descritos na tabela e honorários livres para todos os restantes atos notariais. A título exemplificativo, e acordo com a alínea a) do artigo 11.º da referida Portaria, a celebração de escritura pública de compra e venda de um prédio rústico, no valor de 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros), importa na quantia de 117,65€ (cento e dezassete euros e sessenta e cinco cêntimos), à qual acresce o custo de 9,00€ (nove euros), devido pela apresentação a registo na conservatória, nos termos do artigo 15.º daquele diploma legal. Ao valor da escritura e do custo a cobrar pela promoção do registo importa ainda o pagamento, a título de emolumentos registrais, tratando-se da aquisição de um prédio Instituto dos Registos e do Notariado – Balcão das Heranças e Balcão Divórcio com Partilha [Em linha]. Faq. Balcão das Heranças e Balcão Divórcio com Partilha: Sem local de publicação. [Consult.02 jan. 2016] Disponível em <URL: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/a_registral/posto-dos-registos/faq-s-balcao-das/ >. 381
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rústico, a quantia de 87,50€ (oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos) nos termos do artigo 21.º, n.º 2, ponto 12382 e artigo 28.º, ponto 33383 do Regulamento Emolumentar de Registos e Notariado (RERN). Neste caso, o valor final do ato celebrado pelo notário, incluindo o respetivo registo, e sem impostos, é de 214,50€ (duzentos e catorze euros e cinquenta cêntimos). O mesmo procedimento (escritura e registo), celebrado no Balcão “Casa Pronta”, custa ao cidadão a quantia de 187,50€ (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos), de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 27.º-A e ponto 33.1 do artigo 28.º do RERN. Neste caso, se o notário (ou outro profissional liberal com competências notariais para tal título) praticasse o ato (incluindo o registo) pelo mesmo valor, apuraríamos, a título de honorários, apenas o valor de 100,00€ (cem euros), uma vez que a quantia de 87,50€ (oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos) seria destinada ao pagamento dos emolumentos do registo predial. Acresce ainda o facto de que o valor cobrado pelo Balcão “Casa Pronta”, neste caso concreto, inclui a liquidação prévia de impostos (imposto municipal sobre transmissões onerosas e imposto do selo) e, ainda, a atualização da matriz sem qualquer custo adicional. No caso em apreço, o valor de 117,65€ (cento e dezassete euros e sessenta e cinco cêntimos), a cobrar pelo notário, corresponde ao valor máximo previsto na tabela de honorários, acrescido do valor de 9,00€ (nove euros) para a realização da apresentação a registo. O valor apurado pelo Balcão “Casa Pronta”, para a prática do mesmo ato notarial, é de apenas 100,00€ (cem euros), incluindo em tal ato, as pesquisas das bases de dados, a liquidação de impostos. Esta diferença, em termos de custos finais implica, desde logo, a necessidade de nivelamento dos honorários praticados pelo notário. Só assim o notário (ou os demais profissionais com competências notariais) poderá concorrer ativamente, em termos de valor final, com o serviço prestado pelo Estado através dos referidos Balcões. Outro exemplo é o caso da celebração de uma escritura de compra e venda de um imóvel urbano para habitação própria e permanente, no valor de 125.000,00€ (cento e vinte e cinco mil euros). O notário poderá, nos termos tabelarmente definidos, cobrar pelo ato o valor máximo de 147,06€ (cento e quarenta e sete euros e seis cêntimos), de acordo com a alínea a) do n.º 1 da sua tabela de honorários, acrescido do valor de 9€ (nove euros) para preenchimento do requerimento e apresentação a registo. Ao valor da escritura e do custo a cobrar pela promoção do registo importa, ainda, acrescentar o “De outros factos registados por inscrição ou por averbamento previsto no n.º 1 do artigo 101.º do Código do Registo Predial - (euro) 250”. 383 “Os emolumentos previstos nos n.ºs 2.1, 2.12, 2.16.2, 2.17, 3, 4, 5 e 12 do artigo 21.º, bem como o emolumento previsto nos n.ºs 7.7, 7.7.1, 7.7.2 e 7.7.3 do artigo 27.º, são reduzidos em 65% quando o facto respeite apenas a prédios rústicos de valor inferior a (euro) 10.000.”. 382
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pagamento, a título de emolumentos registrais, tratando-se da aquisição de um prédio urbano, a quantia de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), nos termos plasmados no artigo 21.º, n.º 2, ponto 12, do Regulamento Emolumentar de Registos e Notariado. O valor final do ato, a cobrar pelo notário, incluindo o respetivo registo de aquisição, perfaz o valor de 406,06€ (quatrocentos e seis euros e seis cêntimos). O mesmo ato, mas agora celebrado no Balcão “Casa Pronta”, incluindo a titulação da compra e venda, registo de aquisição, liquidação de impostos, averbamento da matriz, eventual pedido de isenção de IMI e alteração de domicílio fiscal, custa ao cidadão a quantia de 375,00€ (trezentos e setenta e cinco euros), de acordo com o disposto no ponto 2 do artigo 27.º-A do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado (RERN). Ora, em face do exposto, também neste caso o notário (ou os demais profissionais com competências para tal) teria que reduzir o valor de honorários a cobrar, de forma a poder, por essa via, concorrer com o valor final cobrado pelo Balcão “Casa Pronta”. Ainda um outro exemplo prático, agora referente à partilha por sucessão hereditária. Na escritura de partilha de três prédios urbanos, com um valor superior a 10.000,00€ (dez mil euros), sendo os bens adjudicados a um só herdeiro, o notário poderá cobrar pelo ato o valor máximo de 259,29€ (duzentos e cinquenta e nove euros e vinte nove cêntimos), de acordo com a alínea j) do n.º 1 da tabela de honorários, acrescido do valor de 9,00€ (nove euros) para realização da apresentação a registo. Ao valor da escritura e do custo a cobrar pela promoção do registo acresce, ainda, o pagamento, a título de emolumentos registrais, tratando-se da aquisição por partilha de três prédios urbanos, a quantia de 310,00€ (trezentos e dez euros), nos termos do artigo 21.º, n.º 2, ponto 12384 e ponto 16385 do Regulamento Emolumentar de Registos e Notariado (RERN). O valor final do ato a cobrar pelo notário, incluindo o respetivo registo de aquisição, importa no valor total de 578,29€ (quinhentos e setenta e oito euros e vinte e nove cêntimos). O mesmo ato, mas caso seja celebrado no Balcão “Heranças”, incluindo o registo de aquisição, liquidação de impostos, averbamento da matriz, eventual pedido de isenção de IMI e alteração de domicílio fiscal, custa ao cidadão a quantia total de 435,00€ (quatrocentos e trinta e cinco euros), de acordo com o disposto no artigo 18.º, n.º 6, alínea 10.4386 e artigo 18.º, n.º 6, alínea 10.5387 do Regulamento Emolumentar de Registos e Notariado (RERN).
“De outros factos registados por inscrição ou por averbamento previsto no n.º 1 do artigo 101.º do Código do Registo Predial - (euro) 250”. 385 “O registo de aquisição com base em habilitação de herdeiros, partilha de herança ou do património conjugal, que abranja vários prédios é cobrado por inteiro quanto ao primeiro prédio, acrescido de (euro) 30 por cada prédio a mais, até ao limite previsto no n.º 1.2;”. 386 “Pela partilha e registo dos bens partilhados - (euro) 375.”. 384
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Ora, em face dos vários exemplos enunciados, verifica-se que, apesar de os honorários dos notários possuírem um limite máximo, regulamentado por Portaria, o valor final praticado pelo Estado (no âmbito dos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”), na prática dos mesmos atos, impõe ao notário a prática de um preço mais reduzido, que possa concorrer com os preços praticados pelos serviços públicos. Associado ao preço mais reduzido praticado pelos serviços de registo acresce o facto de a feitura do registo assumir caráter imediato (e prioritário face aos demais registos) e o conjunto de atos acessórios (tais como a liquidação de impostos, os averbamentos na matriz, os pedidos de isenção de IMI, ou a alteração de domicílio fiscal, entre outros) ser praticado a título gratuito. Pese embora o Estado deva praticar preços que estejam em correlação direta com os custos dos atos praticados, a prática dos preços enunciados exerce sobre os notários e os demais profissionais liberais com competências notariais uma pressão desmesurada. Com efeito, em virtude de se verem obrigados a concorrer com os preços praticados nos serviços de registo, os profissionais com competências notariais veem-se obrigados a proceder ao nivelamento dos valores praticados a título de honorários. Os preços reduzidos, praticados pelo Estado nestes Balcões, colocam os profissionais liberais com competências notariais em desvantagem, obrigando-os a ajustar (ou nivelar) o valor dos seus honorários em função da crescente procura deste balcões, que publicitam serviços mais céleres e menos dispendiosos. 6.3 – O caso do Solicitador: a livre fixação dos honorários na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis As competências próprias do Solicitador, plasmadas na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, conferem-lhe o direito ao exercício do mandato forense e da consulta jurídica; à elaboração de contratos e à prática de atos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, à negociação com vista à cobrança de créditos e ainda ao mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de atos administrativos ou tributários. Em matéria notarial, a competência do Solicitador veio sendo alargada ao longo dos últimos quinze anos, desde a publicação do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de março, que lhe atribui a faculdade de certificação de fotocópias, até à entrada em vigor do DecretoLei n.º 76-A/2006, de 29 de março, que veio conferir a este profissional a possibilidade de realizar conferências de fotocópias, efetuar reconhecimentos simples ou com menções
“O valor fixado para o processo previsto no n.º 6.10.2 inclui todos os registos de bens imóveis, móveis ou participações sociais e a ele acresce por cada bem, além do primeiro, (euro) 30 por imóvel, quota ou participação social, (euro) 20 por cada bem móvel, ou (euro) 15 tratando-se de bem a que se refere o n.º 1.6 do artigo 25.º do presente Regulamento, até ao limite de (euro) 30.000.”. 387
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especiais, certificar ou fazer e certificar traduções e a possibilidade de autenticar documentos. O quadro normativo vigente veio permitir ao Solicitador, a par dos notários e dos serviços de registo, a prática de atos notariais, que assumiram um papel de extrema relevância na sua atividade profissional, não apenas pela diversificação das suas competências, como também pela projeção e destaque conferido à profissão, associada à qualificação académica exigida. Como anteriormente foi referido, os honorários devidos ao Solicitador pela prática de atos relativos a reconhecimento de assinaturas, de autenticação de documentos particulares e de certificação de tradução, foram liberalizados no setor privado pela Portaria n.º 1416-A/2006, de 19 de dezembro. Eliminou-se, pela via legal, a desvantagem concorrencial entre os notários e os demais profissionais liberais com competências notariais, em que os valores praticados se encontravam tabelados, sem qualquer poder de conformação por parte dos prestadores do serviço. Contudo, foi com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho que a competência notarial do Solicitador assumiu especial importância. Este diploma legal veio conferir, através do plasmado no seu artigo 22.º, uma profunda alteração na forma da titulação de atos notariais sobre imóveis, admitindo a possibilidade de formalização mediante documento particular autenticado388. Aquele normativo veio alterar “o artigo 80.º do CN, reservando nele os atos cuja validade continua a depender de escritura pública, e prever neste artigo 22.º os atos retirados daquele artigo 80.º, que passam a poder ser titulados por documento particular autenticado, a par da escritura pública.”389. Passou, assim, a admitir-se a prática, por todas as entidades com competência para a autenticação de documentos particulares, da titulação de atos que, anteriormente, estavam formalmente reservados à escritura pública. A formalização de um negócio jurídico sobre um imóvel, através de documento particular autenticado, não foi, O artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho dispõe que “só são válidos, se forem celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado: a) “Os atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, usamos e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis; b) Os atos de constituição, alteração e distrate de consignação de rendimentos e de fixação ou alteração de prestações mensais de alimentos, quando onerem coisas imóveis; c) Os atos de alienação, repúdio e renúncia de herança ou legado, de que façam parte coisas imóveis; d) Os atos de constituição e liquidação de sociedades civis, se esta for a forma exigida para a transmissão de bens com que os sócios entram para a sociedade; e) Os atos de constituição e de modificação de hipotecas, cessão destas ou do grau de prioridade do seu registo e a cessão ou penhor de créditos hipotecários; f) As divisões de coisa comum e as partilhas de patrimónios hereditário, societários ou outros patrimónios comuns de que façam parte coisas imóveis; g) Todos os demais atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre imóveis, para os quais a lei não preveja forma especial.”. 389 In DAVID MARTINS LOPES DE FIGUEIREDO, Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis, Coimbra, Edições Almedina, 2013, p. 25. 388
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contudo, deixada ao livre arbítrio das partes. O legislador definiu determinados requisitos de validade dos títulos, sem os quais os negócios que titulam poderão não ter eficácia jurídica. Com efeito, a título exemplificativo, a entidade tituladora está obrigada a assegurar o cumprimento das obrigações fiscais necessárias à celebração do ato e a proceder ao arquivo dos originais dos documentos particulares autenticados e dos seus documentos instrutórios, tal como dispõe o artigo 24.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho e o artigo 4.º, n.º 1 da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. A entidade autenticadora está, ainda, obrigada a elaborar o depósito eletrónico390 do documento particular autenticado (título) e de todos os seus documentos instrutórios. A validade do título depende deste depósito, tal como plasmado no artigo 24.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho. Como bem refere DAVID MARTINS LOPES DE FIGUEIREDO “as entidades que lavrem termos de autenticação em documentos particulares que titulem atos abrangidos pelo art.º 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4/7, devem observar os requisitos constantes das leis avulsas e do Código do Notariado, como se o ato fosse celebrado por escritura pública, inclusivamente, arquivando, em arquivo próprio, o original do respetivo documento particular autenticado, bem como os documentos que o instruem e que não constem de arquivo público, com o requisito adicional de segurança, o de procederem ao depósito eletrónico do documento particular autenticado e dos demais documentos arquivados, do qual depende a validade da autenticação.”391. Note-se que os documentos particulares autenticados celebrados ao abrigo do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho não possuem os mesmos formalismos dos documentos particulares autenticados designados por “tradicionais”
390 391
392
Realizado no sítio da internet em https://www.predialonline.pt/. FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE - Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis, p. 26.
Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho já eram praticados atos celebrados por documento particular com termo de autenticação exarado no próprio documento ou em folha anexa e cuja competência também já era conferida aos Solicitadores por via do artigo 38.º do Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de março. O referido termo de autenticação está sujeito a registo no sito da Internet denominado de Registo Online dos Atos dos Solicitadores (ROAS) (sito em https://www.solicitador.org/roas/login.jsp), disponibilizado pela OSAE (Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de junho). 392
Os termos de autenticação estão sujeitos aos formalismos previstos no código do notariado conforme dispõe o artigo 150.º do Código do Notariado e devem ser outorgados obedecendo ao disposto na alínea a) a n) do artigo 46.º do referido código, contendo, entre outras, a menção da designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado, ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou, assim como o nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial e das demais pessoas coletivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa coletiva.
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celebrados até então (até à entrada em vigor do referido diploma legal), na medida em que, apesar de constituírem uma efetiva autenticação de um documento particular e de prosseguirem, nos mesmos termos, o cumprimento das disposições latentes no Código do Notariado, os requisitos de registo são diferentes. Com a alteração ao disposto no artigo 80.º do CN, por via do artigo 22.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho, passaram a poder ser celebrados por documento particular autenticado determinados atos e contratos previstos no Código Civil, deixando, por isso, a esfera exclusiva da escritura pública. São eles: a) a promessa com eficácia real, quando a lei exija essa forma para o contrato prometido (artigo 413.º, n.º 2 do CCivil); b) a cessão de créditos hipotecários, quando não seja feita em testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis (artigo 578.º n.º 2 do CCivil); c) o ato constitutivo da consignação, se respeitar a coisas imóveis e não for efetuado por testamento (artigo 600.º, n.º 1 do CCivil); d) a constituição ou a modificação da hipoteca voluntária, quando recaia sobre bens imóveis, e não constar de testamento (artigo 714.º do CCivil); e) o contrato de compra e venda de bens imóveis; f) a resolução, se respeitar a coisas imóveis, após a notificação judicial ao comprador, se respeitar a coisas imóveis (artigo 930.º do CCivil); g) a doação de coisas imóveis (artigo 947.º, n.º 1 do CCivil); h) o contrato de mútuo, de valor superior a 25.000,00€ (artigo 1143.º do CCivil); i) a renda perpétua (artigo 1232.º do CCivil); j) a renda vitalícia, se a coisa ou o direito alienado for de valor igual ou superior a 25.000,00€ (artigo 1239.º do CCivil); k) a transação preventiva ou extrajudicial, quando dela possa derivar algum efeito para o qual seja exigida escritura pública ou documento particular autenticado393 (artigo 1250.º do CCivil); l) a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, incluindo a resultante da junção ou cisão de frações autónomas (artigo 1419.º e 1422.º-A do CCivil); e m) a alienação de herança ou de quinhão hereditário, se existirem bens cuja alienação deva ser feita por escritura pública ou por documento particular autenticado (artigo 2126.º do CCivil). Uma outra menção de grande importância a constar no respetivo termo corresponde à declaração de que já leram o documento e que estão perfeitamente inteirados do seu conteúdo e que o mesmo exprime a sua vontade. Além das menções que devem constar no termo de autenticação, é imperativa a obediência todas a regras notariais que sejam aplicáveis na sua redação, nomeadamente, aos materiais a observar na sua elaboração (artigo39.º), às requisitos a observar quanto à escrita (artigo 40.º), às eventuais ressalvas realizadas no termo e no documento a autenticar, que devam constar no termo (artigo 41.º), aos documentos exarados no estrangeiro que sejam necessários à elaboração do ato (artigo 44.º) verificação da identidade dos intervenientes (artigo 48.º) assim como a qualidade e poderes dos seus representantes (artigo 49.º). O Solicitador está ainda obrigado a realizar a leitura integral do termo de autenticação e explicar o seu conteúdo, em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes sob condição de validade do próprio ato de autenticação. Após a leitura e explicação do conteúdo do termo, devem todas as folhas ser devidamente rubricadas pelas partes com exceção das que conste já a sua assinatura e assinarem no final do termo onde será de seguida aposta também a assinatura do Solicitador que o autentica e rubrica e numera todas as outras folhas que componham o termo e o documento particular. 393 FIGUEIREDO, DAVID MARTINS LOPES DE, Titulação de Negócios…, p. 29.
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Ficou, assim e desde então, reforçada a competência do Solicitador na titulação de um vasto leque de negócios jurídicos, através da formalização por documento particular autenticado. Acresce que, no particular caso ora em análise, o legislador não definiu qualquer limite mínimo ou máximo para os valores dos honorários a ter em consideração pelo Solicitador quanto execute um documento particular autenticado na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis. O Solicitador é, pois, livre na fixação de honorários devidos pela elaboração da generalidade de documentos particulares autenticados (ainda que, amiudadas vezes, se guie pela tabela dos honorários definidos para os notários), vendo-se atualmente obrigado a prosseguir a política de emolumentos a custos reduzidos praticados pelos Serviços de Registo na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis.
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CAPÍTULO VII – Do problema da concorrência entre o Setor Público e o Setor Privado na Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis
7.1 – A titulação de negócios jurídicos sobre imóveis: o Solicitador vs os Serviços de Registo (Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”)
Vimos já, no seguimento da análise do parecer emitido pela Autoridade da Concorrência394 que, no caso dos serviços de registo (e, designadamente dos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”), se assiste a uma “subsidiação dos preços”, que conduz, inevitavelmente, a uma procura preferencial dos cidadãos por tais serviços, em detrimento dos serviços prestados pelos profissionais liberais com competências notariais. A referida “subsidiação dos preços” provoca uma distorção na concorrência na globalidade dos prestadores de serviços de índole notarial privados, porquanto são pressionados a tabelar os seus honorários a valores demasiadamente reduzidos e que, em certos casos, não são suscetíveis de cobrir o tempo despendido na preparação e os custos associados à prática do ato. Além da distorção dos preços praticados pelo setor público, a Autoridade da Concorrência chama ainda a atenção para a possibilidade (real) de os serviços notariais simplificados, praticados pelo Estado através dos referidos Balcões, serem suscetíveis de se refletir negativamente na boa gestão dos recursos públicos. Parece-nos, efetivamente, que a criação destes serviços obrigou a uma reorganização de recursos humanos, que implicou e continua ainda a impor custos adicionais ao erário público, quando tais recursos poderiam ser direcionados para outros setores, esses sim com défice de recursos humanos. Da análise a esta problemática, a Autoridade da Concorrência conclui que, além dos preços praticados pelo Estado, colocarem em desvantagem concorrencial os prestadores de serviços notariais no setor privado, a prestação deste serviço pelas Conservatórias desvia recursos públicos para um setor de atividade que considera ser eficientemente exercido pelas entidades privadas, com competência notarial. A cada ano que passa assiste-se a um acréscimo no número de entidades privadas com competências notariais, habilitadas e com formação jurídica adequada ao desempenho de tais funções. Com efeito, no início deste ano de 2016, existem, no território nacional, um total de 346395 (trezentos e quarenta e seis) cartórios notariais
Recomendação n.º 1/2007 “Medidas de reforma do quadro legal do notariado, com vista à promoção da concorrência nos serviços notariais”. 395 Informação obtida junto da Ordem dos Notários em 11 de fevereiro de 2016. 394
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privados, de 29812396 (vinte e nove mil, oitocentos e doze) advogados e 3587397 (três mil quinhentos e oitenta e sete) solicitadores, com inscrição em vigor e com competência para a celebração de atos notariais. No nosso entender, tais profissionais (notários, advogados e solicitadores) podem satisfazer, na íntegra, as necessidades dos cidadãos na prestação de serviços notariais, não apenas pelo crescente número de profissionais, como também pelas qualificações técnico-jurídicas que possuem (o que vemos não ocorrer nos serviços, que são essencialmente tramitados por profissionais sem habilitações académicas compatíveis). Porém, a par do reforço de competências notariais conferidas ao Solicitador, a política SIMPLEX instituída pelo Estado desenvolveu um conjunto de serviços notariais que concorrem com a atividade privada por eles desenvolvida. Não obstante o Estado possuir liberdade de conformação legislativa, no entender de J.J. GOMES CANOTILHO, tal como já anteriormente foi referido, o sistema SIMPLEX concorre com o serviço notarial privado por via das vantagens detidas pelo setor público, através do acesso privilegiado a informação de registo civil, predial, comercial e a documentos fiscais, acrescido de uma política de preços reduzidos que classifica como “dumping”, porquanto “aniquila a concorrência que ele próprio legitimou”398, criando assim um monopólio “jurídico e fáctico de natureza sucessiva a favor da administração estatal”. De facto, os serviços criados no âmbito do sistema SIMPLEX, com especial enfoque nos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”, concorrem com os serviços notariais prestados atualmente pelo Solicitador, designadamente na titulação de contratos de compra e venda, doações, partilhas “mortis causa”, permutas, dações em cumprimento, entre outros, celebrados por documento particular autenticado, impondo-lhe a prática de honorários abaixo dos emolumentos praticados pelo Estado. Nos últimos três anos (período compreendido entre 2013 e 2015), o número de documentos particulares autenticados sujeitos a registo predial, em que intervieram os vários profissionais liberais com competências notariais, é significativamente inferior ao número de títulos elaborados pelos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”. Analisemos, em termos exatos e comparativos, a tabela infra:
Informação obtida junto do Conselho Geral da Ordem dos Advogados em 18 de janeiro de 2016. Informação obtida junto do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução em 15 de fevereiro de 2016. 398 CANOTILHO, J.J. GOMES – A Posição Jurídico-subjetiva…, p.20. 396 397
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Tipologia de Documentos
DPA’s
Títulos celebrados no
Títulos celebrados no
Balcão “Casa Pronta”
Balcão “Heranças”
Ano civil 2013
12.361
52.876
30.515
2014
15.934
52.405
29.829
2015
49.913
59.483
31.263
TABELA I: Comparação entre documentos particulares autenticados (DPA’s) e títulos celebrados nos balcões “Casa Pronta” e Balcão “Heranças” nos anos de 2013 a 2015 (Fonte: Setor Técnico-Jurídico dos serviços de registo do IRN – 2016). Através da análise à Tabela I, verificamos que, pese embora o número de documentos
particulares
autenticados
sujeitos
a
registo
predial,
depositados
eletronicamente, tenha evoluído positivamente desde o ano de 2013, o conjunto de procedimentos celebrados nos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças” é nitidamente superior. Com efeito, em cada um dos anos sujeitos a análise o número de títulos praticados nos Balcões “Casa Pronta” (sempre acima dos cinquenta mil títulos), é significativamente superior e apresenta grande disparidade se comparado com o número dos documentos particulares autenticados praticados no setor privado (ressalvando-se a exceção no último ano, em que se verificou um aumento significativo dos documentos particulares autenticados). O diferencial em causa vem confirmar a preferência dos cidadãos pelo recurso aos serviços de registo mencionados, por via das vantagens associadas aos emolumentos praticados pelo setor público e ao conjunto de serviços acessórios à titulação praticado com caráter gratuito. Acresce, ainda, o facto de os títulos de atos realizados nos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças” serem objeto de registo predial imediato399, procedendo os serviços de registo à entrega do código da certidão permanente dos registos em vigor do prédio, atualizados em face do negócio titulado. A feitura de tais registos prevalece sobre quaisquer outras apresentações realizadas por Notários, Solicitadores ou Advogados, mesmo que prévias temporalmente. Segundo refere a Associação de Defesa do Consumidor (DECO), os Balcões “Casa Pronta”, “Heranças” e também “Divórcio com Partilha” constituem serviços em que “o
Vide, a este propósito, o disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 236-A/2007, de 23 de julho na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de agosto e Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de setembro. 399
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cidadão pode tratar de toda a documentação num único local e de forma mais barata pagando menos cerca de 60 a 70 por cento em relação às vias tradicionais”400. O atual panorama económico do país e a crise económica que se instalou e que teima em perdurar, impulsiona a procura de um serviço “mais barato”, agravando o profundo desvio relativamente às entidades privadas com competências notariais, que praticam tais atos, existentes no mercado nacional. O efeito nefasto causado pelos referidos serviços do setor público no setor privado (entenda-se, nos profissionais com competências notariais) tenderá a agravar-se com o eventual abrandamento da economia nacional e com a crescente entrada no mercado de trabalho de novos profissionais habilitados que verão, certamente, os serviços em causa serem absorvidos pela concorrência Estatal. 7.2 – Do domínio do setor público sobre o setor privado na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis e da sua implicação na concorrência entre agentes privados (o caso do Solicitador, em especial)
Vimos já que, em Portugal, as competências em matéria notarial estão atribuídas a uma diversidade de entidades, privadas e públicas. Porém, assistimos a uma intervenção estatal monopolizadora que, pese embora tenha vindo a criar mecanismos de privatização da atividade notarial, criou paralelamente serviços públicos que têm a capacidade de chamar a si uma grande parte do universo dos atos notariais que não têm que ser exclusivamente praticados por notários. Nesta matéria, parece-nos que a atuação do Estado tende a conflituar com o setor privado, não apenas pela prestação dos mesmos serviços, em regime de concorrência401, mas sobretudo em face da política de um serviço (público) mais simples, mais rápido e menos oneroso para os cidadãos. Questionamo-nos se, nesta específica questão, a intervenção do Estado é legítima e adequada? E a resposta não pode ser, necessariamente, linear. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA referem, a este propósito, que o “Estado goza de uma grande liberdade de participação direta na atividade económica e de regulação e fiscalização da atividade privada, desde que no primeiro caso, não ponha em causa a
INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO – Serviços mais rápidos e baratos, Casa Pronta, Balcão das Heranças e Balcão do Divórcio com Partilha [Em linha] IRN: Sem local de publicação [Consult. 30 jan. 2016]. Disponível em <URL: http://www.irn.mj.pt/sections/noticias/noticia-servicos-mais/>. 401 Poderemos definir o conceito de concorrência como “um processo cuja existência é constante e não transitório ou temporário, servindo-se de todo um conjunto de elementos, por isso multidimensional para que as empresas possam através desse processo e de vários mecanismos colher vantagens próprias em face das demais empresas concorrentes no mercado, vantagens essas que se procuram obter durante o maior período de tempo possível” (cfr. COSTA, ADALBERTO – O Novo Regime Jurídico da Concorrência, p. 204. 400
180
existência do setor privado, e desde que, no segundo caso, não afete o funcionamento do mercado e da concorrência.”402. Em nosso entender, a intervenção do Estado nas áreas atribuídas ao domínio privado deve ocorrer sempre que se verifique existir um défice ou inexistência de oferta no mercado, o que não será atualmente o caso, na questão da titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, em face do número crescente de entidades privadas que dispõem das mesmas competências. O serviço notarial atualmente praticado pelo Estado não constitui um serviço público essencial, uma vez que não se encontra abrangido403 pelo âmbito da Lei dos Serviços Públicos Essenciais404. Com efeito, e nas palavras de FERNANDO DIAS SIMÕES e MARIANA PINHEIRO ALMEIDA, os serviços públicos essenciais são “aqueles que desse modo sejam qualificados pelo legislador, independentemente da sua natureza específica. São abrangidos sob uma mesma regulamentação específica alguns serviços atendendo à sua essencialidade, ou seja, ao caráter básico, fundamental e indispensável que assumem na vida quotidiana dos cidadãos.”405. Ora, o serviço notarial que é prestado pelos serviços “Casa Pronta” e “Heranças” não reveste caráter básico, fundamental ou indispensável na vida dos cidadãos. Nesse conspecto, o Estado deve assegurar uma gestão eficiente dos recursos, através “da provisão de bens ou serviços públicos que, sendo desejados pelos cidadãos, não encontram provisão através do funcionamento dos mercados.”406. As opções políticas de
intervenção
do
Estado
na
economia
estão
dependentes
de
linhas
mais
intervencionistas ou mais liberais. A intervenção do Estado na economia está intrinsecamente dependente das linhas políticas dos partidos com assento parlamentar, que possuem uma ampla margem de conformação legislativa: por um lado, na otimização do serviço público, com reforço da oferta de serviços aos cidadãos; pelo outro, no setor privado, permitindo que o mesmo satisfaça as necessidades dos cidadãos, desonerando o aparelho do Estado em setores não essenciais, como ocorre, a nosso ver, nas questões notariais.
CANOTILHO, J.J. GOMES; MOREIRA, VITAL – Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Reimpressão, p.962. 403 De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, são serviços públicos essenciais: “a) serviço de fornecimento de água; b) serviço de fornecimento de energia eléctrica; c) serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; d) serviços de comunicações electrónicas; e) serviços postais; f) serviços de recolha e tratamento de águas residuais; g) serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.”. 404 Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. 405 SIMÕES, FERNANDO DIAS; ALMEIDA, MARIA PINHEIRO – Lei dos Serviços Públicos Essenciais, Anotada e Comentada, Coimbra, Edições Almedina, 2012, pp.13-14. 406 PEREIRA, PAULO TRIGO; AFONSO, ANTÓNIO; ARCANJO, MANUELA; SANTOS, JOSÉ CARLOS GOMES – Economia e Finanças Públicas, 2.ª Edição, p.12. 402
181
Um dos princípios basilares em matéria de organização económica, plasmado na nossa Lei Fundamental, corresponde à “coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo e social dos meios de produção”407. Para JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, este princípio constitucional pode também ser definido como o princípio da compatibilidade entre iniciativas privada, pública e cooperativa. Este princípio, que significa “concorrência entre iniciativas e abertura aos impulsos económicos, independentemente do caráter público ou privado dos agentes, […] revela-se em a Constituição tanto permitir o recurso a modelos económicos que, “privilegiem” a atividade económica privada como motor da economia como o recurso a modelos económicos que, através da iniciativa económica pública, procurem controlar a economia. Coexistência não significa, porém, equilíbrio entre iniciativa privada e pública, mas possibilidade de opção”408. Está, assim, constitucionalmente assente que a coexistência do setor público, do setor privado e cooperativo e social constitui um princípio fundamental da organização económica do país e que está intrinsecamente dependente das linhas de política económica definida pelo próprio Estado na adoção de ideologias mais intervencionistas ou mais liberais. Constitui, no entanto, incumbência do Estado, de acordo com a alínea f) do artigo 81.º da CRP, “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar formas de organização monopolistas e a reprimir abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”. Este normativo constitucional assenta na necessidade de proibir práticas restritivas de concorrência e de reprimir abusos de posição dominante409 que coloquem em risco a concorrência e cuja aplicabilidade abrange todas as empresas privadas ou públicas, no entanto, “se a constituição económica garante a existência de um setor público mais ou menos extenso, ela impede, contudo, que, em geral, as empresas do setor público empresarial sejam favorecidas pelo Estado relativamente às concorrentes e outros setores.”410. Entendem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS que “o princípio da concorrência não se aplica apenas às empresas situadas fora do setor público, devendo os poderes públicos, na criação e na gestão de empresas públicas sujeitar-se ao princípio da conformidade com o mercado em concorrência com empresas privadas […] no sentido de que a 407
Cfr. alínea b) do artigo 80.º da Constituição da República Portuguesa.
MIRANDA, JORGE; MEDEIROS, RUI – Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II – Artigos 80.º a 201.º, p. 13. 408
De acordo com a posição defendida por ADALBERTO COSTA (O Novo Regime Jurídico da Concorrência, p. 38) “Uma empresa dispõe de posição dominante quando age num mercado no qual não tem concorrência para os seus produtos, bens ou serviços, quando essa concorrência não é significativa ou assume preponderância relativamente aos demais concorrentes […]”. 410 CANOTILHO, J.J. GOMES; MOREIRA, VITAL – Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Reimpressão, p. 970. 409
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iniciativa pública […] deve ser exercida no quadro de uma economia de mercado aberto e de livre concorrência”411. Referem, ainda e a título exemplificativo, os citados autores que “as empresas públicas estão sujeitas, por imperativo constitucional – e não apenas legal ou comunitário – às regras relativas à concorrência e não podem transformar-se em instrumento de falseamento ou distorção do funcionamento eficiente do mercado”412. Tal como anteriormente foi referido, as regras de concorrência instituídas pelo novo regime jurídico da concorrência são aplicáveis a todas as atividades económicas exercidas, com carácter permanente ou ocasional, no sector privado, público e cooperativo413. A nosso ver, o Estado viola as regras concorrenciais impostas pelo regime legal da concorrência, na medida em que impõe condições díspares relativamente a determinados aspetos da prestação do serviço notarial, colocando os seus concorrentes privados numa clara situação de desvantagem. A sua atuação marginal provoca uma posição dominante no mercado, proibida à luz deste diploma legal414. Atento o exposto, e reportando-nos ao caso específico do presente estudo, o setor público exerce uma prática restritiva da concorrência415 entre os diversos agentes económicos privados, designadamente entre os Solicitadores, os Advogados e os Notários. Como vimos atrás, através da promoção de serviços de índole notarial a preços claramente inferiores aos praticados pelos notários e pelos demais agentes, os serviços públicos impõem aos profissionais liberais o tabelamento dos preços, a um ponto que os valores chegam a ser incomportáveis. A posição do setor público cria, assim, uma posição claramente dominante, com claro monopólio de facto416 público na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis. À política de baixo custo imposta pelos Serviços SIMPLEX, designadamente no âmbito dos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”, está ainda associado um conjunto de vantagens estatais, que tornam impraticável a coexistência. Os serviços públicos têm acesso MIRANDA, JORGE; MEDEIROS, RUI – Constituição da República…pp. 31-32. MIRANDA, JORGE; MEDEIROS, RUI – Constituição da República…, p.32. 413 Cfr. artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio. 414 Veja-se, a este respeito, o disposto nos artigos 9.º e 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio (Regime Jurídico da Concorrência). 415 Consideram-se práticas restritivas da concorrência “os acordos, as práticas concertadas e as decisões de associações de empresas [práticas colusivas, previstas no artigo 9.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, e no artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia]; os abusos de posição dominante [previstos no artigo 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, e no artigo 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia]; e os abusos de dependência económica [previstos no artigo 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio], [que] são, pois, formas ilícitas de as empresas se comportarem nos mercados, que resultam ou são suscetíveis de resultar em restrições concorrenciais.” (cfr. Autoridade da Concorrência – Práticas Restritivas da Concorrência [Em linha]. Sem local de publicação: Autoridade da Concorrência. [Consult. 10 nov. 2016], disponível e acessível na URL:http://www.concorrencia.pt/vPT/Praticas_Proibidas/Praticas_Restritivas_da_Concorrencia/Paginas/ Praticas-restritivas-da-concorrencia.aspx). 416 Que, no dizer de ADALBERTO COSTA (O Novo Regime Jurídico da Concorrência, p. 202) constitui uma “Situação em que uma empresa, estando no início em concorrência, aos poucos vai afastando as demais empresas suas concorrentes, ficando só a produzir e ou a distribuir.”. 411 412
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privilegiado a um vasto conjunto de informação (acesso às bases de dados dos registos e dos serviços de finanças); praticam diversos atos acessórios a título gratuito; obtêm com facilidade um vasto conjunto de documentação, já anteriormente identificada; e promovem o registo imediato dos títulos celebrados, que assumem, invariavelmente, prioridade perante todos os demais que tenham sido apresentados a registo por entidades privadas, o que releva desde logo a existência de um tratamento desigual em sede de registo, no qual o Estado assume uma nítida preferência pelos títulos celebrados no setor público. Todo este conjunto de vantagens coloca as entidades privadas em nítida desvantagem, se comparadas com o setor público. Ora, esta desvantagem fere, a nosso ver, o dever que o Estado tem na salvaguarda da equilibrada concorrência e na rejeição de abusos de posição dominante, provocando uma invariável distorção concorrencial no setor privado. Como bem entende MÁRIO PINTO, o Estado regulador “não pode ser o garante da concorrência leal entre os cidadãos e, simultaneamente, fazer-lhes concorrência desleal: tem de assegurar o funcionamento eficiente dos mercados de modo a garantir a equilibrada concorrência e a contrariar os monopólios […] mesmo contra si próprio: observando também ele os princípios que limitam as restrições aos direitos fundamentais, porque a Constituição impõe ao próprio Estado o respeito dos direitos liberdades e garantias (art. 18.º da CRP)”417 que vinculam entidades públicas e privadas. A ação do Estado prejudica, assim e de forma dramática, o livre exercício dos profissionais liberais na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, que o próprio Estado legitimou, através de sucessivas alterações legislativas, distorcendo a sã concorrência que deveria existir no mercado privado. No nosso entender, a distorção de mercado, provocada pelo domínio do setor público em matéria de titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, viola a equilibrada concorrência entre entidades ou agentes privados que, nos termos da nossa Lei Fundamental, incumbe ao Estado assegurar. É, pois, claro que a posição dominante do setor público, na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, prejudica o Solicitador na prestação dos serviços de natureza notarial, obrigando-o a praticar honorários manifestamente reduzidos, amiudadas vezes, abaixo dos custos, e a praticar determinados atos preparatórios ou instrutórios a título gratuito, se optar por acompanhar os emolumentos estipulados pelos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças”. Atendendo ao número crescente de profissionais habilitados à prática de serviços notariais e à difícil conjuntura económica que o país atravessa, consideramos que a política pública monopolizadora implementada pelo Sistema SIMPLEX, no que ao tema da titulação de negócios jurídicos sobre imóveis diz respeito, prejudica dramaticamente os PINTO, MÁRIO – Estado de Sociedade: Estado Arbitrário, ou Estado Subsidiário? - Revista Interdisciplinar sobre o Desenvolvimento Humano, n.º 1, 2010, p.9. 417
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prestadores de serviços privados, tanto pela redução drástica da sua procura para a prática daqueles atos como também pela violação das expectativas profissionais que lhes foram conferidas pelas ordens profissionais em que se integram e que colidem com a própria liberdade de exercício de cada profissão. A atitude monopolizadora do Estado lesa especialmente a classe de Solicitadores, que é forçada a lidar com limitações ao nível do mandato (na medida em que apenas está legitimado a intervir em ações cujo valor caiba na alçada primeira instância e se vê excluído do foro penal) e também com as limitações impostas pelo domínio dos serviços públicos, na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis.
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Considerações Finais O Solicitador é, nos dias de hoje, um profissional que assume inquestionável relevo e projeção na nossa sociedade, sendo uma profissão de acesso e escolha livre, tal como plasmado no n.º 1 do artigo 47.º da Lei Fundamental. Trata-se de uma profissão de índole liberal, que lhe tem atribuída por Lei a prática de diversos atos que se prendem com o mandato, a consulta jurídica, a celebração de contratos, e o desempenho de atos notariais (aqueles em que não se verifica existir uma competência exclusiva dos notários). É, pois, no âmbito notarial que se centra a problemática evidenciada neste trabalho, que agora se aproxima do fim. Como é já sabido, a função notarial do Solicitador foi sendo alargada ao longo dos anos, tendo culminado com a faculdade de autenticação de documentos particulares, que por via da alteração legislativa imposta pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, lhe veio permitir conferir validade formal à celebração de diversos negócios jurídicos sobre imóveis. Esta modificação legislativa constituiu, sem sombra de dúvida, um importante reforço dos serviços prestados por esta classe profissional, que se via anteriormente obrigada a recorrer aos cartórios notariais para a celebração de escrituras públicas, podendo, desde então, titular uma vasta diversidade de contratos sobre bens imóveis por documento particular autenticado. Se esta alteração legislativa foi merecedora de aplausos, o certo é que as opções políticas de simplificação administrativa, entretanto implementadas, relativas à atribuição de competências aos serviços públicos de registo para a realização de atos similares de titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, já não poderão merecê-los. O Estado promoveu a criação de um conjunto de serviços de índole notarial que passou a concorrer diretamente com os notários privatizados e com outras entidades privadas, nomeadamente Solicitadores e Advogados. Dir-se-á, sem quaisquer reticências, que a concorrência saudável estimula o desenvolvimento e a melhoria na qualidade dos serviços prestados pelas entidades privadas, tomando, neste sentido, as palavras de CLAUDE FRÉDÉRIC BASTIAT, economista francês do século XIX e grande defensor do livre comércio, que defende que “Destruir a concorrência é matar a inteligência”. No entanto, a política SIMPLEX, implementada no setor público relativamente à titulação de negócios jurídicos sobre imóveis e legitimada pela liberdade de conformação legislativa do Estado, veio prejudicar, de forma notável, a atividade notarial privada. Por um lado, os serviços públicos assumem uma política de preços abaixo dos praticados pelos notários (obrigados a seguir a tabela de honorários que lhes foi legalmente instituída); pelo outro, disponibilizam soluções mais rápidas e eficientes para os cidadãos e para as empresas, nomeadamente a obtenção de informação privilegiada, através de plataformas informáticas de uso exclusivo; a prática de atos acessórios de caráter
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gratuito; o registo imediato dos negócios jurídicos titulados; e também o facto de aos preços praticados não acrescer IVA (imposto sobre o valor acrescentado). Com efeito, o conjunto de vantagens oferecidas pelo setor público provoca uma inevitável procura preferencial dos seus serviços, por parte dos cidadãos e empresas, distorcendo a concorrência necessária no setor privado. Os prestadores de serviços privados vêem-se, em face de tal circunstância, obrigados a prestar os seus serviços em linha de igualdade com os preços praticados pelo Estado, definidos na ótica do custo. De facto, a fixação dos preços por parte dos serviços de registo, no que toca à titulação de atos sujeitos a registo predial, numa lógica de orientação para os custos, coloca os prestadores de serviços privados em nítida desvantagem concorrencial. O serviço público notarial constitui, sem dúvida, um serviço público não essencial, capaz de ser plenamente assegurado pelo mercado privado. No caso específico do Solicitador, os valores praticados pelo setor público, a título emolumentar, na titulação de atos sobre bens imóveis revelam-se quase que inatingíveis. A fixação dos honorários devidos ao Solicitador não pode ser desfasada do tempo dispendido na preparação e obtenção de documentação, nas deslocações realizadas e na titulação do ato, através de documento particular autenticado, acrescido, ainda, dos custos adicionais relacionados com o depósito eletrónico do documento. O Solicitador vive, agora e no que toca aos honorários da titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, na dúvida permanente. Se, por um lado, não pode deixar de equacionar o tempo dispendido e o trabalho preparatório e acessório da celebração de documentos particulares autenticados; pelo outro, a sua quantificação fará elevar o preço acima do custo emolumentar praticado pelos serviços públicos na titulação dos seus negócios jurídicos sobre imóveis. Podemos, assim e no seguimento do exposto, afirmar que o Estado se assume como dominante, quer porque imprime preços abaixo daqueles que os demais profissionais conseguem praticar, quer também porque, no caso dos honorários dos notários, os preços foram regulados pelo Estado, afastando deste modo a concorrência privada na prestação deste tipo de serviços. Deste modo, tanto o notário (dentro dos limites que lhe foram legalmente impostos), como o Solicitador e as demais entidades com competências notariais, são pressionados a tabelar os seus honorários de acordo com os preços praticados pelo setor público, nos mesmos serviços. Revemo-nos, portanto, nas palavras do professor Doutor GOMES CANOTILHO, quando considera que a política de preços praticada pelo setor público constitui, neste âmbito, um verdadeiro dumping, exercendo um monopólio na prestação deste tipo de serviços. A atuação do Estado provoca, pois, um efeito claramente nefasto na saudável concorrência operada entre profissionais do setor privado e, por isso, violadora das
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elementares regras do regime jurídico que a rege, retirando-lhe o seu livre domínio em competências que lhe foram legalmente conferidas. Devemos questionar-nos se é legítimo, neste caso específico, o papel dominante do Estado no funcionamento do mercado privado, ou se, pelo contrário, o Estado deveria assegurar o seu funcionamento eficiente e garantir uma equilibrada concorrência e contrariar formas de organização monopolistas, tal como lhe está imposto constitucionalmente. Parece-nos que a preocupação “cega” de servir mais e melhor o cidadão e as empresas, introduzida pela ideologia política do SIMPLEX, releva enormes dúvidas sobre se o fim do Estado segue uma linha orientadora justa para com os profissionais liberais do setor privado. Consideramos que a problemática abordada no presente estudo constitui, para o Estado, a violação da incumbência constitucional na salvaguarda de uma equilibrada e sã concorrência e no dever de contrariar monopólios. O desrespeito da atuação estatal assenta no rol de vantagens que os serviços públicos têm ao seu dispor na prestação de serviços de caráter notarial, e que lhe conferem um claro domínio no mercado, distorcendo o seu livre e saudável funcionamento. Trata-se, pois, aos nossos olhos, de um problema de complexa resolução, que se agrava com o tempo, na medida em que, por via da conjuntura económica vivenciada no país e do abrandamento do comércio jurídico, as dificuldades sentidas pelas entidades privadas são cada vez mais profundas. Acresce, ainda, o facto de atualmente termos uma diversidade considerável de profissionais com competências notariais, que cresce todos os anos com a entrada de novos profissionais no mercado de trabalho, que tende a saturar mais ainda a oferta, que, por si só, já se considera atualmente excessiva. Este facto reforça, mais ainda, a nossa convicção quanto à importância de manutenção de um serviço público, que pode ser perfeitamente avocado pelo domínio privado, deixando funcionar a livre concorrência privada e desonerando e reorganizado o serviço público para setores considerados deficitários, com uma lenta capacidade de resposta ao cidadão. O Solicitador, apesar de possuir um vasto leque de funções de índole técnicojurídica, possui ainda algumas limitações de competência, impostas pela lei processual civil, e uma completa restrição, quanto ao mandato no âmbito processual penal. Por esse motivo, nos atuais tempos, a função notarial do Solicitador reveste-se como um complemento importante ao exercício das suas funções, que poderá ser nitidamente melhorado, num plano de livre concorrência privada. O Solicitador aconselha os seus clientes na obtenção das melhores soluções para as suas necessidades que, por via de regra, lhes permite economizar custos com procedimentos desnecessários ou inúteis. Trata-se, sem dúvida, de um aconselhamento
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técnico personalizado de grande importância na otimização de custos e na procura da melhor solução. Devemos também destacar a relevância dos Balcões Únicos do Solicitador, que constituem um local especializado, onde, de forma eficiente, cómoda e simples, se pode comprar ou vender imóveis, criar empresas, certificar fotocópias, traduções, autenticar documentos, reconhecer assinaturas, tratar de procurações, entre outros atos, sem preocupações, sem outro tipo de deslocações ou custos desnecessários. Aliada à panóplia de serviços prestados pelo Solicitador, está ainda a segurança jurídica que é assegurada no tratamento destes assuntos e a proteção dos interesses dos cidadãos e das empresas. Destaca-se, portanto, a importância do Solicitador na prestação de serviços de índole notarial e a excelência da sua atuação, que se destaca e valoriza pela relação de proximidade desenvolvida com os seus clientes e que é assegurada pela elevada qualificação técnico-jurídica. Atenta a atual diversidade de profissionais privados com competências notariais, consideramos pertinente cogitar sobre a atuação do Estado na sua ação dominante no mercado. Não poderemos chegar a outra resposta que não a de condenar a lógica de distorção concorrencial operada pelo setor público na prestação dos serviços de índole notarial, nomeadamente no que concerne à titulação de negócios jurídicos sobre imóveis. Aqui chegados, somos de concluir que a atuação dos Balcões “Casa Pronta” e “Heranças” é merecedora de reprovação, não apenas pelo impacto negativo que imprime na concorrência operada no setor privado, como também pela violação de deveres, constitucionalmente assentes, de garantia de um funcionamento eficiente dos mercados na garantia de uma equilibrada concorrência e na proteção de formas de organização monopolistas ou de abusos de posição dominante. Torna-se, pois, necessária uma reflexão sobre o impacto destes serviços praticados pelo Estado nos profissionais privados; sobre a justiça das políticas públicas e sobre as expectativas (espoliadas) dos profissionais liberais, que o Estado legitimou, com o espírito de servirem mais e melhor a sociedade. No nosso entender, a solução desta questão deveria passar por garantir uma concorrência sã entre os profissionais privados, como uma total liberalização de preços em todos os atos notariais, deixando para o cidadão e para as empresas a possibilidade de escolha do profissional que apresenta a melhor relação preço-qualidade. Vamos, neste sentido, ao encontro do entendimento perfilhado pela AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA, na medida em que não faz sentido a manutenção de um regime de preços para atos jurídicos para os quais a escritura pública foi dispensada. Não deve ser o Estado a atribuir o devido valor pelos atos notariais praticados. Essa é uma tarefa que deveria competir ao mercado, em específico.
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Será também legitimo, portanto, propor a eliminação das desvantagens que atualmente o setor privado possui, relativamente ao setor público, seja pelo preços praticados na ótica do custo, pelo conjunto de ferramentas de informação que tem ao seu dispor, o registo prioritário ou pela prática de atos de índole gratuita. Questionamo-nos se os encargos públicos com a prestação destes serviços, numa tão grande multiplicidade de agentes privados competentes, serão legítimos, ou se, face a esta realidade, não deveria o Estado reorientar a sua política para a racionalização de recursos com otimização de setores da Administração Pública em situação deficitária e com falhas óbvias na atempada resposta às solicitações do cidadão. Perante um mercado que satisfaz as necessidades e os interesses da população, e que é composto de entidades várias, com competências e qualificações adequadas, e aptas a servir mais e melhor o cidadão, julga-se dispensável a intervenção do Estado, neste setor da titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, o Estado apenas deverá permitir operar a sã concorrência privada. Estão, assim, lançados os dados que fomos construindo ao longo deste estudo, com a tentativa de evidenciar uma problemática que afeta muitos destes profissionais liberais. É nossa ambição que este trabalho possa servir, de algum modo, para alertar consciências e para clamar uma solução que a todos os profissionais da área aproveite, com especial enfoque para a classe de profissionais que elogiamos e defendemos, com orgulho e afinco – o Solicitador!...
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A Liberdade Religiosa do Trabalhador à Luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
A Liberdade Religiosa do Trabalhador à Luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem Francisco Serra Loureiro
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A Liberdade Religiosa do trabalhador à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Francisco Serra Loureiro
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Resumo Numa sociedade hodierna caraterizada por uma crescente e, aparentemente, irreversível globalização assistimos a um fluxo migratório de trabalhadores que escolhem países que não o seu de origem para desenvolver a sua atividade profissional. Este fluxo vem promover o aumento da diversidade de culturas nos países de acolhimento, diversidade que se alarga a um contexto religioso. Pese embora a laicidade formal do Estado Português, bem como da generalidade dos Estados europeus, a legislação laboral interna não consegue, por si só, estabelecer uma proteção adequada a todas as religiões, nomeadamente as minoritárias, o que nos levou a abordar esta questão analisando a proteção dada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como instrumento solene de proclamação de Direitos Humanos, e o subsequente tratamento jurisprudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no que tange à liberdade religiosa dos trabalhadores. Através da análise dos diversos casos levados até ao Tribunal de Estrasburgo, cumpre, por um lado, aferir da eficácia da legislação existente e, por outro, e com o respeito da mesma, perceber até que ponto pode a liberdade religiosa de um trabalhador ceder aquando da celebração de um contrato de trabalho ou até onde deve um empregador ajustar a sua organização em respeito à liberdade religiosa dos seus trabalhadores nas suas diversas manifestações. Nesse sentido, analisaremos alguns casos de âmbito juslaboral em que as restrições impostas aos trabalhadores consubstanciam eventuais violações da sua liberdade religiosa nas mais diversas manifestações, nomeadamente, quanto a questões de índole religiosa atinentes a vestuário, horários ou alimentação entre outras. Palavras-chave: Liberdade Religiosa; Direitos Humanos; Direito do Trabalho; Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
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Abstract In a modern society characterized by a growing and, apparently, irreversible globalization we are witnessing a continuous migration of workers who choose to work in other countries rather than their own, to develop their professional activity. This flow promotes an increasing diversity of cultures in the host countries; diversity extended to a religious context. Despite the formal secular nature of the Portuguese State as the majority of European States, the domestic labour law cannot establish, by itself, adequate protection to all religions, in particularly the minority ones. In that sense, we believe it is appropriate to analyze the protection given by the European Convention on Human Rights and the subsequent treatment of the European Court of Human Rights case law in what regards to freedom of religion of the employees. Through the analysis of the various cases brought to the Strasbourg Court, we should, in first place, assess the effectiveness of the existing legislation and, secondly and regarding that same law, realize how far religious freedom of a employee can be reduced when concluding a contract of employment or how should an employer adjust its organization in respect for religious freedom of its employees in its various manifestations. In this sense, we will analyze some cases under a juslaboral scope, in which, the restrictions imposed on workers constitute possible violations of religious freedom in its various manifestations, particularly as the religious nature of matters relating to clothing, schedules or worker feeding, among others.
Keywords: Religious Freedom; Human rights; Employment law; European Convention on Human Rights; European Court of Human Rights.
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Lista de siglas e abreviaturas ac.
acórdão
al./als.
alínea
art./arts.
artigo/artigos
c.
contra
CC
Código Civil
cfr.
conferir
CEDH
Convenção Europeia dos Direitos do Homem
coord.
coordenação
CRP
Constituição da República Portuguesa
CT
Código do Trabalho
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos ed.
edição
et al.
e outros
LLR
Lei da Liberdade Religiosa
nº
número
OIT
Organização Internacional de Trabalho
ONU
Organização das Nações Unidas
org.
organização
p./pp.
página/páginas
PGR
Procuradoria Geral da República
PIDCP Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos proc.
processo
s.n.
sem editora
ss.
seguintes
STA
Supremo Tribunal Administrativo
TC
Tribunal Constitucional
TEDH
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TFUE
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
TJUE
Tribunal de Justiça da União Europeia
TRL
Tribunal da Relação de Lisboa
UE
União Europeia
vol.
volume
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Introdução Nos tempos hodiernos, o mundo apresenta-nos uma sociedade caraterizada por uma acentuada globalização nos seus diversos quadrantes. Da economia à política passando, por exemplo, pela informação encontramos uma massiva integração e dependência entre as diversas sociedades. Esta integração global verifica-se também num contexto laboral no qual destacamos um, cada vez maior, fluxo de trabalhadores para outros países que não os seus de origem promovendo um multiculturalismo também neste contexto e acarretando com ele as inerentes diferenças de índole cultural e, não raras vezes, de orientação religiosa, temática que promoveu a realização deste estudo. Acrescentamos que paralelamente à redação destas linhas ocorria um enorme movimento de migração oriundo, nomeadamente, da Síria, cuja esmagadora maioria da população é muçulmana sunita, com destino a diversos países da União Europeia (UE) que, embora por razões diferentes, vem acentuar, ainda mais, a pluralidade de culturas e religiões nos países de acolhimento. Pese embora este movimento migratório não tenha a sua génese numa situação de movimentações laborais, mas sim numa necessidade de fuga de um cenário de guerra, o facto é que indiretamente e após a integração de milhares de refugiados vamos, certamente, observar repercussões também no mercado de trabalho. A religião é, salvo melhor opinião, inerente ao ser. De facto, confunde-se com a própria existência humana desde há longo tempo, acompanhando o Homem na sua milenar viagem evolutiva até aos nossos dias. Um enfoque nos primórdios da literatura ocidental onde se encontram, desde logo, textos de índole religiosa como, por exemplo, a Bíblia ou o Alcorão, permite-nos perceber a relevância dada, desde sempre, pelo Homem à existência de um ser superior e omnipresente, de uma crença, de algo transcendente onde aquele ancore a sua fé e esperança. Existem ainda outras situações bem demonstrativas da contínua relevância da religião na história mundial, nomeadamente as diversas batalhas travadas na nossa milenar história. Muitas delas, ou mesmo a grande maioria, foram, efetivamente, de génese religiosa, situação que ainda hoje perdura como podemos constatar em inúmeros focos de conflito espalhados pelo globo. O reconhecimento da importância da liberdade religiosa para a sociedade em geral e para o indivíduo em particular, numa afirmação da sua própria identidade, implica que o legislador tenha vindo a acautelar a sua proteção, sendo que, na maioria dos Estados, observamos, inclusivamente, a sua previsão nos textos constitucionais. Também a nível internacional é notória a sua crescente relevância e consideração como direito humano ao lado de outros direitos de primeira geração de extrema importância como são, nomeadamente, o direito à vida, a proibição da escravatura ou o direito à liberdade. Nesse seguimento, encontramos a sua consagração em vários instrumentos internacionais de proclamação solene de direitos humanos dos quais os exemplos mais paradigmáticos são a Declaração Universal dos Direitos
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Humanos (DUDH) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)418, sendo este último diploma objeto do nosso estudo. Entendemos que seria relevante refletir sobre o exercício do direito à liberdade religiosa num contexto laboral e sobre as eventuais desconsiderações deste nesse contexto, ou seja, aquando do desempenho da função a que um trabalhador esteja adstrito após a celebração de um contrato de trabalho com determinada entidade empregadora, bem como sobre a compatibilização dos direitos dos diferentes intervenientes da relação juslaboral. É importante referir que, embora a maioria dos Estados seja caraterizada por um não confessionalismo, caraterizador da maior parte dos Estados, a própria legislação laboral dos diversos ordenamentos jurídicos apresenta bastantes influências derivadas da religião predominante. Tal situação sucede baseada numa aquisição de vários séculos de um quase totalitarismo dessa mesma religião que assim “influenciou” a construção de determinadas normas jurídicas de acordo com os padrões religiosos. Atentando no caso português, facilmente percebemos que o nosso ordenamento jurídico apresenta um padrão notoriamente preenchido por traços da história cristã apresentando, também na legislação laboral, algumas situações evidentes de influência católica como é o caso da consideração de determinadas datas com significado religioso como feriado, bem como a definição no próprio Código do Trabalho (CT) do domingo como dia de descanso semanal. O fito deste estudo passa, numa primeira fase, pela aproximação a um entendimento de um fenómeno tão abstrato como é a religião e, mais concretamente, a sua manifestação pelo indivíduo que ganha corpo através da liberdade religiosa de cada um nas suas diversas vertentes, prosseguindo, numa segunda fase, para uma análise da influência do Direito na restrição das normas religiosas, nomeadamente em contexto laboral, através de uma eventual limitação da liberdade religiosa do indivíduo enquanto trabalhador. São várias as possibilidades de reflexão num contexto laboral, nomeadamente, percebermos até que ponto é possível coartar um direito do indivíduo que, hodiernamente, além de observar proteção na nossa Constituição, bem como por legislação ordinária, beneficia de uma ampla proteção internacional nos mais diversos instrumentos de proclamação solene de direitos humanos. Abordaremos, deste modo, a possibilidade de conjugar a liberdade religiosa do trabalhador com os interesses económicos da entidade empregadora, conjugação essa que se pode manifestar num infindável rol de questões que se levantam no universo laboral e que podem passar, nomeadamente, pela influência da religião no momento da contratação de um trabalhador, pela omissão do desempenho de determinadas atividades ou mesmo a impossibilidade de uso de símbolos religiosos por parte do trabalhador durante o horário de trabalho.
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A convenção assim conhecida tem, no entanto, o nome oficial de Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
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Para abordarmos estas questões e outras tão ou mais pertinentes, recorreremos a diversa doutrina nacional e estrangeira que analisaremos, sempre, de um ponto de vista crítico. Obviamente, não olvidaremos, para a compreensão das diversas questões, a jurisprudência nacional que, embora parca, apresenta uma perspetiva que acreditamos ser conveniente referir pelo caráter inovador que manifesta. Não obstante a relevância da doutrina e da jurisprudência nacional, a trave mestra deste estudo passa pelo recurso à jurisprudência produzida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) quando chamado a intervir no âmbito da proteção dos direitos consagrados na CEDH, entendida como um instrumento de defesa dos direitos dos trabalhadores, nomeadamente na proteção da sua dignidade419. Neste seguimento, abordaremos, especificamente, as decisões do Tribunal de Estrasburgo no que tange às eventuais violações da liberdade religiosa, consagrada no art. 9º da CEDH, num contexto laboral. Apesar deste estudo se centrar nas relações laborais, recorreremos, sempre que necessário, a acórdãos proferidos a propósito de questões não laborais, pelo facto de serem entendidos como uma referência na construção jurisprudencial que aquele Tribunal faz da liberdade religiosa. Além da sua pertinência numa perspetiva global, entendemos que são passíveis de transposição para o universo do trabalho o que, inclusivamente, poderá permitir a recolha de um padrão aplicativo para situações futuras. Esta análise será efetuada em consonância com o que a nível legislativo está estabelecido no nosso ordenamento jurídico, bem como com a, já referida, jurisprudência dos tribunais nacionais. O tema deste trabalho, embora propenso a debates jurídicos, não o será menos a discussões filosóficas devido à predominância de conceitos com uma grande densidade axiológica e religiosa que poderá variar espacial e temporalmente, como são, por exemplo, liberdade religiosa, crenças, religião, entre outros. Não podemos olvidar que a religião, intrínseca à própria personalidade do indivíduo observa, também, uma dimensão externa que não raras vezes conflitua com direitos de terceiros. No entanto, foi nosso intuito realizar o estudo de um ponto de vista completamente laico sustentado por uma objetividade jurídica, deixando as interpretações filosóficas a cada leitor, pois essas são de todos e de cada um.
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Pese embora a CEDH propugne a defesa da dignidade humana, a verdade é que o TEDH é extremamente cauteloso com a utilização deste termo nas decisões respeitantes a questões laborais, excetuando nos casos cuja análise incida sobre a proibição de tortura e escravidão, respetivamente previstos nos arts. 3º e 4º da CEDH (McCrudden, 2015, p. 288).
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A liberdade religiosa do trabalhador Aproximação ao conceito e breve resenha histórica Religião e liberdade religiosa “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião” Assim se inicia o art. 9º da CEDH, que protege a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Independentemente da perspetiva com que abordamos a relevância da religião, a verdade é que esta é parte integrante da vida do Homem, desde os primórdios da civilização até aos nossos dias, sendo que, atualmente, encontra proteção nos mais diversos instrumentos normativos. Na senda de Parisi (2009, p. 1531), que entende a liberdade de consciência como “uma condição fundamental para a existência da democracia pluralista contemporânea”420, acreditamos que podemos estender essa conceção à liberdade religiosa. Parte da doutrina, nomeadamente Allen, Crasnow & Beale (2010, p. 218), aponta, inclusivamente, a liberdade religiosa como um dos direitos fundantes da ideologia dos direitos humanos ocidentais, o que atesta bem da sua intemporal importância. Mas a história demonstra-nos que nem sempre assim foi. Ao longo da nossa milenar evolução observamos inúmeras situações de conflitos baseadas em fundamentos religiosos que culminaram, não raras vezes, em sangrentas batalhas. Na Europa existiram as “guerras religiosas” entendidas por Campos & Campos (2010, p. 23) como “um momento crucial do processo de afirmação da independência nacional em face do Papado (…)”. Relembramos ainda as Cruzadas421 travadas em nome de Deus pelos Cristãos nas quais estes “expurgavam”, dos seus territórios, muçulmanos e outras comunidades religiosas minoritárias, ou ainda a intensa e prolongada opressão cristã sobre as comunidades judaicas perpetuada ao longo de diversos séculos. Povos inteiros foram oprimidos, perseguidos ou mesmo dizimados por terem e demonstrarem convicções religiosas não coincidentes com as da maioria, não podendo fazer, assim, um livre uso da sua “faculdade de acreditar em algo e de o manifestar” (Moreira & Gomes, 2014, p. 253), ou seja, simplesmente usufruir da sua liberdade religiosa. Para conseguirmos alcançar um conceito de liberdade religiosa, devemos, inicialmente, apresentar um conceito de religião recorrendo, unicamente, a ensinamentos doutrinais, visto não encontrarmos uma definição concreta em qualquer diploma do nosso ordenamento jurídico. Na esteira de Duarte (2005, p. 113), entendemos que a não existência de uma definição específica de religião em qualquer documento normativo não deriva de esquecimento do legislador. Acreditamos, pelo contrário, que tal ausência se deve ao facto de não se pretender restringir um entendimento, que é tão próprio de cada indivíduo,
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Assim como esta, todas as traduções no presente estudo são da nossa responsabilidade. Movimentos militares cristãos com o fito de combater o islamismo e salvaguardar o domínio cristão na apelidada Terra Santa. 421
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através de uma definição rígida que obstasse à concretização do núcleo essencial da religião como esta é entendida por cada um de nós. Numa aproximação a um conceito podemos, no entanto, referir o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República (PGR)422 que define religião como “um sistema ideológico que busca uma explicação transcendental, metafísica, para a razão de ser do universo e da vida exteriorizando-se em actos que traduzem uma relação do homem para com um ser superior – Deus”. Também a doutrina tem avançado com algumas definições amplas que nos permitem formular um entendimento sobre o conceito mais adequado. Refere Firpo (2013, p. 15) que a religião “é caracterizada pela sua universalidade, marcando presença em todas as sociedades”. Ora, sendo um fenómeno transversal a todas as sociedades, facilmente compreendemos a complexidade de estipular um conceito que consiga preencher os pressupostos entendíveis e aceitáveis para toda e qualquer cultura. Refere o autor que o termo religião “é adotado para mencionar qualquer conjunto de atos e valores que testificam a fé de determinada pessoa ou conjunto de pessoas” (Firpo, 2013, p. 17). Guerreiro (2005, p. 30), que também salienta a dificuldade de estabelecer uma definição, propõe, em sua alternativa, um “conceito operativo”. Entende a autora que o conceito de religião implica “uma relação com uma determinada autoridade que transcende a realidade visível, e que condiciona a forma de ver o mundo, quase sempre impondo um certo comportamento ao sujeito”. Acrescenta, ainda, que a este conceito aberto devemos associar duas ideias: um entendimento que nos falta alguma coisa e que assim nos faz acreditar em algo superior e ainda o facto dessa entidade se impor independentemente da nossa vontade (Guerreiro, 2005, pp. 41-42). Moreira & Gomes (2014, p. 254) também não estabelecem uma definição, referindo antes que a religião “normalmente, inclui uma série de ritos e rituais, regras e regulações que permitem ao indivíduo ou comunidades relacionar a sua existência com um Deus ou com Deuses”. Acreditamos que o conceito de religião passa, essencialmente, por uma relação existencial entre o indivíduo e um (ou vários) ser(es) superior(es). Este(s) concede(m) um suporte espiritual ao primeiro que rege a sua vivência através dos ditames de uma religião. Parece-nos que através desta descrição genérica se consegue compreender o conceito de religião sem necessidade de estabelecer uma definição rígida que possa, de algum modo, não ser coincidente com os ditames de alguma confissão em particular423. Partindo de uma concetualização ampla de religião, dedicamos, agora, a nossa atenção sobre uma definição de liberdade religiosa, objeto do nosso estudo, bem como a uma breve súmula histórica da sua preponderância. A própria jurisprudência do TEDH enfatiza 422
Parecer P001191990, de 10 de janeiro de 1991 (Garcia Marques), disponível em www.dgsi.pt. Consultado no dia 2 de novembro de 2016. 423 Importa referir que o TEDH, em observância do estabelecido no art. 9º da CEDH, nunca estabeleceu uma lista taxativa de religiões ou crenças, permitindo, deste modo, uma interpretação casuística, por parte dos diversos Estados, do conceito de religião ínsito neste preceito (Allen et al., 2010, p. 222).
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reiteradamente que a liberdade religiosa, em conjunto com a liberdade de pensamento e de consciência, é um “elemento fundante de uma sociedade democrática” e um dos “elementos que promove a identidade dos crentes e a sua conceção de vida”424. Quanto à doutrina, Marín (2006, p. 25) apresenta-nos a liberdade religiosa como aquela que tem por objeto a fé como ato, o conteúdo desse mesmo ato e ainda a prática da religião nas suas diversas manifestações425. Guerreiro (2005, pp. 27-28) opta por não concetualizar a liberdade religiosa, limitando-se a referir a amplitude e complexidade da mesma que observa diversas vertentes, nomeadamente a liberdade de escolher ou mudar de religião ou até a opção de não ter nenhuma religião, bem como a componente de manifestar, externamente, essa mesma religião. Simplificando, a liberdade religiosa, nas palavras de Moreira & Gomes (2014, p. 253), não é mais do que “a faculdade de acreditar em algo e de o manifestar”. Esta simplicidade concetual, que acompanhamos, pode ser explicada recorrendo aos ensinamentos de Canotilho. O autor refere-se à liberdade religiosa como umas das liberdades “constitutivas da identidade pessoal e do direito de desenvolvimento da personalidade” (Canotilho, 2007, p. 781), posição que perfilhamos e que entendemos ser demonstrativa da extrema relevância que este direito possui para a própria personalidade do indivíduo. Parece-nos que, se for coartado o direito de manifestar algo tão intrínseco426 à personalidade de cada um, estamos no fundo a restringir a própria personalidade, inibindo o indivíduo de acreditar em algo que lhe serve de suporte espiritual e que, salvo melhor entendimento, contribui para a sustentabilidade do próprio indivíduo como ser. Acrescenta ainda Canotilho (2007, p. 782) que a liberdade religiosa é entendida como ”irrenunciável, indisponível, intransferível e imprescriptível”, usufruindo do regime dos direitos, liberdades e garantias na nossa CRP.
Breve resenha histórica da liberdade religiosa A liberdade religiosa nem sempre obteve proteção nos diversos ordenamentos jurídicos nacionais e nos variados instrumentos internacionais entretanto emanados. A verdade é que, para que hoje possamos usufruir dessa mesma liberdade, inúmeras gerações foram perseguidas ou discriminadas meramente por não partilharem da mesma orientação religiosa que as ditas maiorias. Não obstante, observarmos, ainda hoje, inúmeros focos de conflitos de índole religiosa, nomeadamente perseguições a minorias na Birmânia, constantes 424
Ac. Kokkinakis c. Grécia, de 25 de maio de 1993, disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/ e onde poderão ser consultados todos os arestos deste órgão citados sem indicação de proveniência. Refira-se ainda que, assim como esta, a maioria das referências neste estudo reporta-se a acórdãos ditados pelo TEDH, pelo que não se faz menção à autoria dos mesmos, exceto quando os acórdãos provenham de outra instância, situações que serão devidamente identificadas. 425 Abordaremos as diversas manifestações da liberdade religiosa infra no ponto 1.2. 426 Neste caso em particular, e acreditando que a liberdade religiosa é um direito inato à própria natureza humana, aproximamo-nos de uma posição jusnaturalista que fundamenta o Direito positivo num Direito Natural. Para um maior aprofundamento deste tema, vide Justo (2015, pp. 95-136).
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discriminações no Egito contra diversas minorias religiosas (Copta427, Baha’i428, entre outras) ou perseguições a Cristãos, nomeadamente, no Iraque (Moreira & Gomes, 2014, p. 254), o facto é que, hoje, existe um rol de diplomas que preveem a proteção da liberdade religiosa, exercida individual ou coletivamente, e que permitem que essas mesmas minorias tenham liberdade religiosa429. Para isso contribuiu, salvo melhor opinião, a progressiva laicidade430 dos Estados e consequentemente do Direito, que Ramos (2010, p. 49) considera como “uma das mais importantes conquistas culturais da civilização ocidental”. Entende ainda o autor que a “dissociação entre o direito e a religião foi o passo fundamental para o desenvolvimento de uma cultura jurídica sem precedentes (…)” (Ramos, 2010, p. 50). Acrescentamos que, salvo melhor opinião, a laicidade dos diversos Estados e do Direito, na sua generalidade, proporcionou às minorias religiosas não só uma maior proteção jurídica mas também uma progressiva aceitação social pelos demais431. Por outras palavras, essa mesma laicidade Estatal permitiu que as diversas minorias pudessem expressar a sua liberdade religiosa sem a repressão caraterística dos Estados de índole confessional432. Não existindo uma religião oficial
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, “todas as confissões são reconhecidas e os governantes
abstêm-se de qualquer decisão sobre a sua vida interna, assim como elas se afastam do contraditório político” (Miranda, 2013, p. 27). Ressalvamos que a laicidade de um Estado pode ser verificada através de dois modelos que se distinguem pela sua intervenção normativa. Assim, de acordo com Liébana (2011, pp. 48-49), podemos observar uma neutralidade passiva, onde o Estado se abstém totalmente do fenómeno religioso, não o 427
Religião de base cristã que perfaz cerca de 10% da população religiosa do Egito. Para maiores desenvolvimentos consultar Figueiredo (2010, pp. 15-25). 428 Religião monoteísta fundada na Pérsia e atualmente com sede internacional em Israel. Para uma maior compreensão consultar Johnson (2005). 429 Recentemente, o TEDH condenou alguns Estados por estes não terem protegido suficientemente as minorias religiosas de agressões perpetradas por indivíduos pertencentes à maioria religiosa do país, quando aquelas se manifestavam de forma pacífica, conforme podemos constatar no ac. 97 members of the Gldani Congregation of Jehovah’s withnesses and 4 others c. Geórgia, de 3 de agosto de 2007, bem como no ac. Begheluri e outros c. Geórgia, de 07 de janeiro de 2015. 430 Os Estados dizem-se laicos quando não existe uma identificação da religião com a comunidade política nem com o próprio Estado (Miranda, 2013, p. 22). Nas palavras do autor (Miranda, 2013, p. 28), “laicidade significa não assunção de tarefas religiosas pelo Estado e neutralidade, sem impedir o reconhecimento do papel da religião e dos diversos cultos”. 431 Liébana (2011, p. 47) entende que a separação entre a Igreja e o Estado, bem como o reconhecimento da liberdade religiosa foi a solução encontrada para resolver o problema originado pelo pluralismo religioso que, nos tempos atuais, constatamos nas mais diversas sociedades. 432 Os Estados de natureza confessional são aqueles onde existe uma identificação entre o Estado e a religião e ainda entre a comunidade política e a comunidade religiosa. Podemos observar duas vertentes: a teocracia, onde existe um domínio do poder religioso sobre o poder político ou, em sentido inverso um domínio do poder político sobre o poder religioso, o que apelidamos de cesaropapismo (Miranda, 2013, p. 22). 433 Miranda (1986, p. 130) entende que a laicidade de um Estado não permite um tratamento privilegiado ou discriminatório de determinada confissão. No entanto, de acordo com o autor, os princípios constitucionais compadecem-se “com um tratamento diferenciado das várias confissões, em razão do peso real que têm na sociedade”. Só assim se justifica a manutenção de diversas normas, como, por exemplo, a consideração dos feriados religiosos como dias de descanso na legislação laboral.
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regulando, ou, por outro lado, uma neutralidade ativa, na qual aquele intervém garantido o exercício da liberdade religiosa por parte de todas as religiões e crenças através da feitura de leis que promovam esse mesmo exercício de uma maneira igualitária para todas as confissões. Entendemos que este último modelo é o mais adequado para uma efetiva promoção da liberdade religiosa, na medida em que a igualdade entre as religiões deve ser efetivada por integração de todas as religiões em detrimento de uma política absentista do Estado. Apesar de, ainda, existirem, situações de uma perfeita consonância entre a Religião e o Direito, nomeadamente nos países regidos pela Sharia434, e nunca olvidando “os inúmeros reveses e reaproximações entre o temporal e o espiritual” (Ramos, 2010, p. 56), a verdade é que, regra geral, a religião maioritária perdeu uma preponderância direta na criação de leis, abrindo assim lugar a uma legislação mais condizente com a pluralidade de confissões que hoje observamos num panorama global. Com o liberalismo político, surgem as primeiras proclamações da liberdade religiosa integradas numa afirmação dos direitos fundamentais do indivíduo perante o Estado, que, acompanhadas por questões políticas, levaram ao reconhecimento de uma maior atenção com as questões religiosas e posterior inserção em instrumentos de Direito internacional (Guerreiro, 2005, pp. 48-49). Assim surge, em 1776, o primeiro documento que consagrou a liberdade religiosa. Falamos da Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de junho de 1776435, que previa, na sua secção XVI, o “livre exercício de religião, de acordo com os ditames da sua consciência”, complementada com a entrada em vigor da Primeira Emenda436 que prescrevia a não intromissão legislativa do Congresso no que tange ao estabelecimento de qualquer religião nem à proibição de exercício da mesma. O ano de 1948 é particularmente rico nesta matéria, nomeadamente com a Declaração sobre a Liberdade Religiosa do Conselho Mundial das Igrejas e a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio437. Mas este ano é essencialmente relevante pela consagração da liberdade religiosa num documento de verdadeira dimensão global. Falamos da DUDH438, onde encontramos, nos seus arts. 2º e 18º, a consideração da liberdade
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A Sharia é a lei muçulmana baseada nos preceitos religiosos do Islão. Assim sendo, os preceitos legais são um reflexo dos textos religiosos não existindo uma clara separação entre Direito e Religião. 435 Disponível em http://www.archives.gov/exhibits/ charters/virginia_declaration_of_rights.html. Consultado no dia 6 de dezembro de 2016. 436 Disponível em: http://www.billofrightsinstitute.org/ founding-documents /bill-of-rights/. Consultado no dia 6 de dezembro de 2016. 437 O art. 2º da Convenção classifica de genocídio os atos cometidos com a intenção de destruir determinado grupo religioso. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/SistemaGlobal.-Declara%C3%A7%C3%B5es-e-Tratados-Internacionais-de-Prote%C3%A7%C3%A3o/convençã o para-a-prevencao-e-a-repressao-do-crime-de-genocidio-1948.html. Consultado no dia 6 de dezembro de 2016. 438 Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/UDHR /Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Consultada no dia 6 de dezembro de 2016.
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religiosa do indivíduo e da sua proteção, documento que serve de referência439 em matéria de direitos humanos em geral, e liberdade religiosa em particular, e que seria alvo de posterior desenvolvimento no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos440 (PIDCP), de 1966. Desde essa data surgiram vários diplomas, consagrando a liberdade religiosa, dos quais faremos referência aos que consideramos mais pertinentes, mormente, pela diversidade da sua área geográfica de aplicação: 1950 – Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 9º); 1969 - Convenção Americana sobre Direitos Humanos (arts. 12º, 13º, 16º, 17º e 23º); 1981 - Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (arts. 2º, 8º e 12º); 1990- Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islão; 1994 - Carta Árabe dos Direitos Humanos (arts. 26º e 27º); 1998 - Carta Asiática dos Direitos Humanos (art. 6º); 2001 - Congresso Mundial para a Preservação da Diversidade Religiosa. Já no que tange a Portugal, hoje caraterizado como um Estado não confessional, conforme nos elucida Miranda (2013, p. 29), aqui se verificou um progressivo alargamento da liberdade religiosa desde o início do constitucionalismo até aos tempos atuais, passando-se de um regime de religião de Estado com tolerância das demais confissões a um regime de separação com pleno reconhecimento da liberdade religiosa, consagrado nos art. 4º, nº 4, e 41º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como no art. 4º, nº 1, da Lei nº 16/2001, de 22 de junho, a Lei da Liberdade Religiosa (LLR)441.
As diferentes vertentes da liberdade religiosa do trabalhador Considerações gerais Chegados a este ponto, cumpre-nos explicitar como a liberdade religiosa se manifesta e como podemos classificar as diversas formas em que se expressa. Parece-nos relevante apontar, ab initio, a dupla vertente que a liberdade religiosa observa. De facto, e na senda de Liébana (2011, p. 43), entendemos que este direito possui, por um lado, uma vertente objetiva, que implica uma neutralidade ideológica e religiosa do poder público e, por outro, uma vertente subjetiva que se concretiza na autodeterminação do indivíduo e que, como refere a autora, irá eventualmente ser exteriorizada. Uma primeira análise, efetuada por um prisma subjetivo, remete-nos para duas dimensões da liberdade religiosa. Encontramos, por um lado, uma dimensão individual, associada ao 439
Conforti (2002, pp. 269-270) aponta a DUDH como uma verdadeira inspiração para a posterior codificação internacional desta matéria. 440 Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidhdudh-direitos-civis.html. Consultado no dia 6 de dezembro de 2016. 441 A Lei nº 16/2001, de 22 de junho, apresenta a redação dada pelas alterações, sucessivamente, promovidas pela Lei nº 91/2009, de 31 de agosto; Lei nº 3-B/2010, de 28 de abril; Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro; Lei nº 66º-B/2012, de 31 de dezembro. Esta Lei veio revogar expressamente a Lei nº 4/71, de 21 de agosto, bem como o Decreto nº 216/72, de 27 de junho.
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direito de cada indivíduo efetivar o direito estatuído nos mais diversos diplomas e, por outro, uma dimensão coletiva cujos titulares são as igrejas e outras entidades de tendência religiosa às quais é reconhecido o direito de, designadamente, se organizarem e de professarem as suas crenças fazendo uso da liberdade de culto que lhes é concedida442. A liberdade coletiva, nas palavras de Schouppe (2005, pp. 625-626), é entendida como uma liberdade institucional e que implica dois direitos fundamentais, a saber: a aquisição de personalidade jurídica443 e o respeito pela sua autonomia institucional444. Machado (2012, p. 88) refere, e bem, que a heterogeneidade deste direito deriva não somente da titularidade do mesmo poder ser individual ou coletivo, mas também de estarmos perante “um direito que pode fazer valer-se quer frente a sujeitos públicos, quer frente a sujeitos privados”. Quando enfocamos a liberdade religiosa na sua dimensão individual, devemos, inicialmente, dividir a mesma numa vertente interior e exterior, conforme fazem notar os juízes do TEDH, nas suas diversas decisões, nomeadamente no famoso leading case Kokkinakis c. Grécia445, no qual se esclarece que, embora a liberdade religiosa seja, primariamente, uma questão de consciência individual, não deixa de implicar, inter alia, a liberdade de manifestar essa mesma religião. Assim, a vertente interior da liberdade religiosa passa pelo direito de ter uma orientação religiosa, uma crença, que, como podemos verificar nos diversos normativos446, é um direito inviolável447 e que diz respeito ao próprio ser, não observando exteriorização. Esta só acontece se o indivíduo fizer uso da liberdade religiosa na sua vertente exterior, a qual se encontra plasmada nos mais diversos normativos448 já elencados anteriormente. Chamando novamente à colação o Parecer do Conselho Consultivo da PGR449, podemos extrair do mesmo que “será religiosa toda a atitude, individual ou colectiva, exteriorizável em actos, pela qual os homens manifestem a sua fidelidade aos princípios em que crêem”, o que configura, de uma maneira genérica, a vertente exterior da liberdade religiosa. No seguimento da classificação supra, é mister aferir de que modo pode ser exteriorizada a liberdade religiosa do indivíduo. De uma leitura do art. 9º, nº 1, da CEDH, bem como do art. 18º da DUDH, retiramos, desde logo, duas vertentes: a liberdade de mudar de religião e a liberdade de manifestar a mesma por diversos mecanismos. Entendemos, no seguimento da
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Cfr., nomeadamente, o art. 41º, nº 4, da CRP. Cfr., nomeadamente, o ac. Biserica Adevarat Ortodoxa Din Moldava e outros c. Moldávia, de 27 de maio de 2007, bem como o ac. Religionsgemeinschaft der Zeugen Jehovas e outros c. Áustria, de 31 de outubro de 2008. 444 Cfr., inter alia, os ac. The Holy Monasteries c. Grécia, de 9 de dezembro de 1994 e o ac. Metropolitan Chuch of Bessarabia e outros c. Moldávia, de 27 de março de 2002. 445 Ac. Kokkinakis c. Grécia, de 25 de maio de 1993. 446 Cfr. art. 9º, nº 1, 1ª parte, da CEDH e art. 18º, 1ª parte, da DUDH. 447 Cfr., nomeadamente o art. 41º, nº 1, da CRP e o art. 1º da LLR. 448 Cfr., a título de exemplo, o art. 9º, nº 1, 2ª parte, da CEDH, o art. 18º, 2ª parte, da DUDH ou ainda as diversas alíneas do art. 8º da LLR. 449 Parecer P001191990, de 10 de janeiro de 1991 (Garcia Marques), disponível em www.dgsi.pt. Consultado no dia 2 de dezembro de 2016. 443
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doutrina consultada450, que decorre ainda do forum externum da liberdade religiosa o direito de o indivíduo manter a sua religião ou mesmo não professar nenhuma religião ou crença. Infra, apontaremos as principais caraterísticas das diversas vertentes aqui elencadas.
O direito de não professar nenhuma religião Quando se fala em liberdade religiosa, prima facie, pressupomos desde logo uma manifestação positiva por parte do indivíduo. No entanto, a mesma liberdade que permite ao indivíduo a manifestação da sua crença dá-lhe também a faculdade de não se manifestar perante os outros ou, por outras palavras, guardar para si a sua crença451. Pode ainda a manifestação negativa do indivíduo passar, simplesmente, por não professar nenhuma religião, ou pela abstenção da execução de determinados deveres ou atividades que conflituam com a sua confissão452. Na senda de Canotilho & Moreira (2014, p. 612), quando os doutos jurisconsultos defendem “a proibição de discriminação para os que não têm qualquer religião”453, parece-nos que a liberdade religiosa passa também pela possibilidade de um cidadão não religioso demonstrar essa mesma posição perante a sociedade. Allen et al. (2010, p. 223) entendem que este direito engloba, inclusivamente, o direito de adotar crenças não convencionais e não perfilhadas pelos demais454. Estamos, assim, perante uma liberdade negativa de religião que, como salientam Moreira & Gomes (2014, p. 257), tem sido adotada por alguns Estados, nomeadamente pela Alemanha, França e Bélgica através de diversas leis que proíbem o uso de roupas e símbolos religiosos no domínio público, desde 2011, situação que, em nosso entendimento, é alvo de crítica. Entendemos que a verdadeira neutralidade de um Estado deve ser efetuada pela integração de todas as religiões, numa perspetiva de pluralismo religioso, em detrimento de uma simples abolição de qualquer identificação religiosa em contexto público que reduz a liberdade religiosa de todos os indivíduos.
A liberdade de mudar de (ou manter a) religião Expressamente consagrada na CEDH, bem como na DUDH, esta vertente de mudar de religião decorre, salvo melhor opinião, implicitamente do próprio direito de liberdade
450
Cfr. Guerreiro (2005, pp. 56-60); Firpo (2013, pp. 37-41); Moreira & Gomes (2014, pp. 256-257). Na Turquia, o cartão de identificação de cidadão continha a indicação da religião do indivíduo, o que consubstanciava uma grave violação do art. 9º da CEDH, cfr. ac. Sinan Isik c. Turquia, de 2 de maio de 2010. 452 Esta é uma situação bastante recorrente nos casos analisados pelo TEDH. Cfr., nomeadamente, os acórdãos Valsamis c. Grécia e Efstratiou c. Grécia, ambos de 18 de dezembro de 1996. 453 Neste sentido cfr. ac. do TEDH referente ao caso Darby c. Suécia, de 23 de outubro de 1990. 454 Cfr. ac. Sidiropoulos e outros c. Grécia, de 10 de julho de 1998 e ac. Church of Scientology Moscow c. Rússia, de 24 de setembro de 2007. 451
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religiosa455. Se o Homem é um ser em constante evolução e que, como decorre da diversa legislação, tem o direito de ter, ou não, uma religião, parece-nos que nada obsta que ao longo da sua vivência opte por professar, ou não, determinada confissão456. Não podendo ficar obrigado a uma escolha perpétua ao longo de toda a sua vivência, situação que decorre da própria liberdade do indivíduo enquanto ser, parece-nos que pode perfeitamente deixar de se identificar com determinada religião e optar por não professar nenhuma confissão ou então, fazendo uso da sua liberdade, dedicar a sua devoção a outra crença com a qual se identifique a partir de determinada altura da sua vida457. Estamos perante uma matéria com um grau de controvérsia bastante elevado, pois este direito não é consensual em muitos Estados. Em determinados países, como, por exemplo, na Arábia Saudita ou no Afeganistão458, não existe a referência à possibilidade de mudar de religião. Observamos também situações em que a própria religião condena a possibilidade de abandono da fé professada, seja por dedicação a outra confissão ou inclusivamente por um estilo de vida secular, o que configura o fenómeno da denominada apostasia (Guerreiro, 2005, p. 58). Criticamos estas posições por entendermos serem violadoras da personalidade do indivíduo, quando numa perspetiva de obrigar alguém a professar uma religião que não acredita, o que, a nosso ver, acaba por consubstanciar um contrassenso com o próprio conceito de religião. Quanto ao direito a manter a sua religião, parece-nos que estamos perante uma matéria consensual. Além de decorrer implicitamente do direito de ter uma religião, o facto de a própria liberdade religiosa consagrar a possibilidade de mudar de religião, pelas razões supra, parece-nos evidente que qualquer indivíduo tem o direito de manter a confissão que professa, se assim o desejar.
A liberdade de manifestação religiosa A vertente mais problemática da liberdade religiosa, mormente porque, ao contrário das anteriores, é passível de entrar em confronto com outros direitos e, eventualmente, sofrer restrições, é a liberdade de manifestar a religião, que pode, também, observar uma vertente negativa que passará pela possibilidade de o indivíduo guardar para si as suas convicções459. A vertente positiva engloba, nomeadamente460, a liberdade de culto, a qual inclui a possibilidade de proceder a ritos ou rituais, a exibição de símbolos ou mesmo o gozo 455
Machado (2012, p. 87) entende este direito de mudar de religião como a assunção de uma liberdade negativa por parte do indivíduo, em conjunto com o direito de não professar nenhuma confissão. 456 Cfr., nomeadamente, os acórdãos referentes ao caso Hoffmann c. Áustria, de 23 junho de 1993 e ao caso Kokkinakis c. Grécia, de 25 de maio de 1993. 457 Cfr., nomeadamente o ac. Ismailova c. Russia, de 02 de junho de 2008. 458 Estados onde as respetivas sociedades se baseiam na lei Sharia. 459 Cfr. ac. Saniewski c. Polónia, de 26 de junho de 1991. 460 Podemos observar com maior detalhe um elenco, não taxativo, de atos previstos pelo Comité dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), especificamente no seu Comentário Geral 22.
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de feriados religiosos. Além da liberdade de culto, aquele que professa determinada fé pode manifestá-la através do uso de símbolos religiosos, sejam roupas ou ornamentos, ou do acatamento de determinados regimes alimentares. Por fim, uma especial referência ao proselitismo religioso que consiste na tentativa de convencer os outros a aderir às suas crenças. A manifestação da liberdade religiosa em sede de CEDH é-nos apresentada pela doutrina, nomeadamente Vickers (2013, p. 212) e Allen et al. (2010, pp. 226-227), desdobrando-se em quatro tipos, a saber: adoração, observância, ensino e prática. De acordo com os citados autores, a adoração inclui os ritos, rituais e cerimónias várias. Já no que tange à observância, esta revela uma conexão direta com a manifestação através da adoração. O ensino passa, essencialmente, pela divulgação da religião nos estabelecimentos de ensino de caráter religioso, não olvidando também o proselitismo desenvolvido com os não crentes de determinada religião. Por fim, a prática que, na senda dos referidos autores, consideramos como o aspeto mais controverso, nomeadamente por ser o maior foco de conflito com outros direitos, mas também pela dificuldade de, não raras vezes, aferir se determinada prática é, de facto, determinada pela religião461.
Enquadramento normativo No que tange ao enquadramento normativo da liberdade religiosa devemos destacar, ab initio, a proteção plural que esta, incluída que está no elenco de direitos humanos, observa. De facto, vamos encontrar proteção destes direitos desde o Direito Civil até aos instrumentos de Direito Internacional, não olvidando os textos constitucionais. Isto denota uma extraordinária preocupação com os direitos humanos que, como bem refere Ascensão (2008, p. 277), faz com que constatemos, neste início do século XXI, “uma fase de verdadeiro apogeu em matéria de Direitos Humanos”. A relevância dada pelos distintos instrumentos normativos deriva do facto de estarmos perante, não somente um direito individual, mas simultaneamente um direito coletivo. Como defende Marín (2006, p. 34), estamos perante um interesse público da máxima importância por constituir uma parte essencial da infraestrutura jurídica de qualquer sistema democrático. Não obstante encontrarmos uma eventual duplicação de normas cujo conteúdo protege, em maior instância, um direito humano, explanaremos a liberdade religiosa nas suas diversas aceções normativas, procedendo a uma sucinta abordagem pelos vários diplomas que, de algum modo, estabelecem um grau de proteção à liberdade religiosa do, in casu, trabalhador, visto ser esta a especificidade que nos propomos a tratar. Realizaremos um pequeno enquadramento da liberdade religiosa, sucessivamente, como direito de
461
A jurisprudência do TEDH tem optado por não incluir todos os atos ou comportamentos de fiéis no escopo de prática religiosa (Allen et al., 2010, p. 227).
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personalidade previsto no Código Civil (CC) e no CT, como direito fundamental consagrado na CRP e, por fim, como direito humano plasmado na CEDH, entre outros instrumentos de proclamação desses mesmos direitos.
A liberdade religiosa como direito de personalidade Os direitos de personalidade estão previstos nos arts. 70º a 81º do CC, onde se encontram diversos direitos de personalidade em particular e a consagração de um direito geral de personalidade, especificamente, no art. 70º do mesmo diploma. Estes direitos são, nas palavras de Cunha (2007, p. 841), “a manifestação privatística de direitos fundamentais”. Nos melhores ensinamentos de Vasconcelos (2014, p. 5), “a personalidade é uma qualidade: a qualidade de ser pessoa”. Percebe-se assim que a liberdade religiosa, entendida como intrínseca do próprio ser, seja assim entendida e protegida como um direito de personalidade. O mesmo autor acrescenta ainda que o “Direito de Personalidade tem a ver com a posição das pessoas humanas no Direito, com a exigência da sua dignidade” (Vasconcelos, 2014, p. 6), o que no nosso entendimento consubstancia a necessidade de enquadramento da liberdade religiosa no rol desses direitos. Esta mesma proteção justificase pelo “envolvimento integral da personalidade do trabalhador na prestação e na execução do seu contrato” (Ramalho, 2013, p. 34), que assim fica mais sujeito a uma violação dos seus direitos por parte de uma entidade empregadora que se encontra numa posição de supremacia contratual462. Devemos referir que a liberdade religiosa não aparece concretamente estatuída entre os direitos especiais de personalidade elencados no Código Civil luso. Na senda de Ramalho (2012, p. 621), entendemos que apesar de não se contemplarem expressamente alguns direitos de personalidade de primeira grandeza, nos quais incluímos a liberdade religiosa, o que, de acordo com a autora demonstra a incompletude deste regime, a consideração da liberdade religiosa como direito de personalidade estará sempre salvaguardada pelo conteúdo amplo da norma geral ínsita no art. 70º, nº 1, do CC, a qual prevê a proteção legal de qualquer ofensa, ou mesmo mera ameaça, à personalidade física e moral de qualquer indivíduo. Quanto à previsão no ordenamento jurídico-laboral não é mais, salvo melhor opinião, do que uma decorrência das regras gerais do CC, bem como da CRP, posição também defendida por Martinez (2015, p. 366). O autor enfatiza a ideia referindo que, apesar de ainda existirem algumas normas específicas no CT, estas não inibem o recurso às “regras gerais de tutela da personalidade constantes da Constituição e do Código Civil” (Martinez, 2015, p. 367). De 462
Redinha (2004, p. 162) apresenta uma interessante consideração sobre a presença de uma cláusula geral de um direito geral de personalidade no CT. A autora considera que, além da inerente função legislativa, a sua existência promoveria um papel pedagógico da máxima importância bem como uma “elasticidade” que permitiria uma concretização jurisprudencial perante novas ameaças à personalidade do trabalhador.
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referir que parte da doutrina, nomeadamente, Abrantes (2009, p. 21), critica esta “colagem” do CT às normas do CC referindo a mesma como “uma obsessão do legislador pela aproximação ao direito civil”. Para o autor “a aposta (…) nos princípios de direito civil contraria o desígnio natural do Direito do Trabalho enquanto instrumento regulador duma relação de poder-sujeição (…)” (Abrantes, 2009, p. 22). A observância dos direitos de personalidade pode ser transposta, mutatis mutandis, para o Direito Laboral, mormente porque, pese embora no CT não se encontre uma proteção específica da liberdade religiosa, a mesma acaba por ser garantida pelas normas ínsitas no art. 14º e ss. do predito diploma as quais, resumidamente463, analisaremos em seguida. Comecemos pelo art. 14º do CT no qual é reconhecida a liberdade de expressão e de opinião e que engloba matérias de índole religiosa, salvaguardando a possibilidade de o trabalhador poder manifestar a sua opinião perante os demais trabalhadores e entidade empregadora tendo em atenção, obviamente, as convicções religiosas dos demais trabalhadores464. Seguindo a estrutura sistemática do CT, vamos encontrar a proteção da integridade física e moral do trabalhador no art. 15º do CT que, no mesmo sentido da apreciação anterior, acreditamos que implique o respeito pelas convicções religiosas do trabalhador, impedindo qualquer ato dos demais que possa consubstanciar uma ofensa à integridade física ou moral do indivíduo em questão. O art. 16º do CT, à semelhança do art. 80º do CC, estabelece a reserva da vida privada e engloba, no nosso entendimento, a proteção da liberdade religiosa. Como já defendemos, repetidas vezes, este é um direito intrínseco ao próprio ser e como tal parece-nos parte integrante da esfera privada do trabalhador465. Estendemos, ainda, esta mesma proteção ao art. 17º, nº 1, al. a), do mesmo diploma, no que tange à proteção de dados pessoais, ou mais em concreto, a reserva do trabalhador no sentido de não fornecer informações consideradas pessoais, salvo se estas forem estritamente relevantes para o desempenho da determinada função. Como nos diz Redinha (2014, p. 827), o trabalhador vê, por força deste princípio, “salvaguardada uma zona de reserva que o empregador não pode transpor” e que é aplicável às convicções religiosas do primeiro. Acrescentaríamos, ainda, uma referência aos arts. 23º e ss. do CT que consagram o direito à igualdade e a proibição de discriminação e que consentem a sua aplicação a um rol de questões, nas quais incluímos matérias de índole religiosa. Assim, o art. 24º, nº 1, do CT prevê, tanto no acesso ao emprego como na execução do contrato de trabalho, a igualdade de oportunidade e tratamento, sem que possa existir um tratamento discriminatório por 463
Não nos cabe, neste estudo, uma maior profundidade dessa matéria que, no entanto, nos é apresentada mais detalhadamente por Duarte (2005, pp. 119-138), num seu estudo sobre esta temática. 464 Abordaremos, mais detalhadamente, a questão do proselitismo no trabalho no ponto 2.3.5. 465 Ramalho (2012, p. 630) entende este direito como “o aspecto central da tutela laboral dos direitos de personalidade do trabalhador”. A mesma autora salienta “a importância da tutela dos direitos de personalidade no contrato de trabalho” com o subsequente reforço do elemento de pessoalidade do mesmo, bem como o caráter amplo desta proteção que abrange, além da duração do contrato, os períodos antecedentes bem como posteriores (Ramalho, 2015, p. 540).
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razões religiosas. Refere Duarte (2005, p. 137) que “o trabalhador tem o pessoalíssimo e inalienável direito de não ser discriminado com base nas suas convicções religiosas ou ausência dessas convicções”, consideração que transportamos para o art. 29º do CT que prevê a proibição de assédio. Este é entendido como um comportamento indesejado que pode assentar, nomeadamente, em discriminação fundamentada em razões religiosas que assim observa mais um mecanismo protetor em sede de legislação laboral.
A liberdade religiosa como direito fundamental No capítulo III do título II da CRP, encontramos, ab initio, a previsão de direitos especificamente laborais, inter alia, os arts. 57º e 58º, respetivamente o direito à greve e o direito ao trabalho. No entanto, verificamos, nos tempos hodiernos, uma consideração de outros direitos fundamentais, que não aqueles especificamente laborais, para o espetro laboral, no que Moreira (2011, pp. 95-96) classifica como “cidadania na empresa”. Nestes incluímos, entre outros, a liberdade religiosa, prevista no art. 41º da CRP, consagrada como direito fundamental em conjunto com a liberdade de consciência e de culto. Nesse sentido, Ramalho entende que estamos perante uma elevação dos direitos de personalidade, de génese civilista, a um plano Constitucional466. No entendimento da autora, “a importância geral dos direitos de personalidade justificou o seu reconhecimento pela Constituição, onde foram consagrados como direitos fundamentais” (Ramalho, 2012, p. 619), evidenciando desse modo “uma ampla margem de sobreposição destas duas categorias” (Ramalho, 2013, p. 33). A consideração dos direitos fundamentais no âmbito das relações de trabalho implica uma aplicação e interpretação de acordo com a Constituição, que Rodríguez-Piñero (2004, p. 355) apelida de “reinterpretação constitucional do Direito do Trabalho”. Outra interpretação é-nos apresentada por Alexy (2014, p. 830) que entende estarmos perante uma positivação constitucional dos direitos humanos, posição também defendida por Hespanha (2014,
pp. 360-361), quando aponta os direitos fundamentais como uma
necessidade de constitucionalizar os direitos humanos. Mais do que a sua projeção nas relações jurídicas entre particulares, aqui a liberdade religiosa aparece como uma prerrogativa do cidadão contra o Estado, munido do seu ius imperii mas, como bem refere Miranda (2010, p. 494), é preciso também “limitar o dominium e assegurar o respeito das liberdades de cada pessoa pelas demais pessoas”. Esta limitação decorre da própria DUDH, mais concretamente do seu art. 29º, nº 2, que, ao estabelecer o limite ao exercício dos direitos reconhecidos na Declaração, inclui nos mesmos limites o respeito pelos direitos dos outros. 466
Alguma doutrina estrangeira, nomeadamente Leite (2006, p. 50), destaca o papel de relevo internacional que a nossa Constituição de 1976 detém, juntamente com a Constituição espanhola de 1978 e a Constituição alemã de 1949. Estas são apontadas como marcos na “constitucionalização dos direitos de personalidade”.
217
De acordo com a doutrina maioritária467, estamos perante um regime diretamente aplicável estabelecendo
a
imediata
vinculação
de
entes
públicos
e
privados
conforme,
inclusivamente, decorre do art. 18º, nº 1, da CRP, o que, deste modo, implica a consideração do art. 41º da CRP para todas as relações laborais, independentemente de estas serem públicas ou privadas468. Numa abordagem diferente, Ramalho (2012, p. 624) entende que esta vinculação a entes privados só se justifica quando uma das partes detém uma posição de poder sobre a outra, posição também perfilhada por Andrade (2009, pp. 247-249) quando menciona que esta aplicabilidade somente se verifica em situações em que “as pessoas colectivas (ou, excepcionalmente indivíduos) disponham de poder especial de carácter privado sobre (outros) indivíduos”. Esse poder pode ser económico ou inclusivamente normativo, conforme defende o autor. Ora, como em contexto de relações laborais se observa esta mesma superioridade por parte da entidade empregadora, independentemente da posição assumida, afigura-se como entendível, salvo melhor opinião, que, in casu, o preceito do art. 41º seja diretamente aplicável à proteção da liberdade religiosa em todas as relações laborais, públicas ou privadas. Acompanhado a norma ínsita no art. 41º, encontramos no nosso ordenamento jurídico a Lei da Liberdade Religiosa (LLR)469, solução também adotada por outros ordenamentos jurídicos, nomeadamente em Espanha, onde surge concretizada através da Ley Orgánica 7/1980, de 5 de julho. No caso português, destacamos o art. 4º da LLR que estabelece a não confessionalidade do Estado Português, bem como os arts. 8º e 9º do mesmo diploma que vêm concretizar expressamente o predito preceito constitucional. Nestes dois artigos encontramos a explanação do conteúdo (positivo e negativo) da liberdade religiosa, e as dimensões470 onde o indivíduo pode manifestar a sua religião. No art. 8º vamos encontrar, nomeadamente, a prática de atos de culto [al. c)], a mudança de religião [al. b)], ou simplesmente ter ou não ter uma religião [al. a)]. Por outro lado, o art. 9º apresenta-nos o conteúdo negativo da liberdade religiosa onde se prevê, nomeadamente, que ninguém pode ser obrigado a professar determinada religião [nº 1, al. a)], ou ser coagido a integrar igreja ou comunidade religiosa [nº 1, al. b)]. No que tange aos direitos do trabalhador, chamamos particular atenção para a relevância do art. 14º que prevê a dispensa do trabalho, entre outras atividades, por motivo religioso.
467
Nomeadamente no entendimento dos constitucionalistas Canotilho & Moreira (2014, p. 384) ou Cunha (2007, p. 841) que defende a sua aplicação “nas relações totalmente inter pares, inter cives…”. 468 Conforme refere Miranda (2010, p. 494) “não se compreenderiam uma sociedade e uma ordem jurídica em que o respeito da dignidade e da autonomia da pessoa fosse procurado apenas nas relações com o Estado e deixasse de o ser nas relações das pessoas entre si”. 469 Lei nº 16/2001, de 22 de junho. 470 Temática previamente abordada, cfr. ponto 1.2 do estudo.
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A liberdade religiosa como direito humano A relevância da liberdade religiosa resulta também clara em sede de Direito Internacional, com a sua consideração e consagração em diversos instrumentos internacionais de proclamação solene de direitos humanos. Apesar da secularização de grande parte dos Estados aderentes aos referidos instrumentos, é notória uma influência da religião na conceção daqueles. Perfilhamos a posição de Junior (2013, pp. 7-9) quando aponta a perceção da existência de uma ideologia religiosa, nomeadamente de conceção cristã. Refere o autor que “as mais antigas declarações de direitos humanos foram em boa medida influenciadas pela ideologia religiosa, mais precisamente pela concepção cristã, o que muitas vezes se denuncia de forma escancarada nos respetivos textos”. No mesmo sentido, Leite (2006, p. 67) propugna a responsabilidade do cristianismo no que tange à ideia de dignidade humana471 “ao proclamar a vinculação existencial do homem a Deus”. No entanto, esta influência cristã na formação dos direitos humanos “não gera necessariamente a respectiva inadequação ao plano internacional” (Coutinho, 2012, p. 299), ou seja, parecenos que, pese embora a génese cristã dos direitos humanos, nada obsta a que estes sejam aplicados transversalmente a todas as culturas independentemente da(s) religião(ões) predominante(s). Além disso, os direitos humanos, em geral, e a liberdade religiosa, em particular, além de serem entendidos como direitos subjetivos, inerentes a cada pessoa, devem ser interpretados como princípios gerais de justiça (Fortman, 2001, p. 10), numa demanda por uma aplicabilidade global472. Não obstante a proteção dada pelos diversos ordenamentos jurídicos, a verdade é que estamos perante um direito que, sendo extremamente volátil e, não raras vezes, alvo das mais variadas atrocidades, merece consideração num plano internacional, pois, como nos ensina Magalhães (2010, p. 32), quando se refere aos direitos humanos na sua generalidade, estamos perante um problema universal de uma só sociedade: “a sociedade do mundo”, tendo, assim, sido crucial o alargamento da proteção da liberdade religiosa aos diversos instrumentos internacionais anteriormente referidos. Como bem refere Moreira (2011, p. 101), existe uma necessidade de “proteger os direitos de personalidade dos empregadores e dos trabalhadores, numa lógica de protecção da dignidade humana”, o que, no nosso entendimento, explica perfeitamente a dimensão internacional que os direitos de personalidade, nomeadamente a liberdade religiosa,
471
Recuperando uma de muitas definições de dignidade humana, referimos uma concetualização simplificada e apresentada por Alexandrino (2008, p. 505) que nos define “dignidade da pessoa humana como a referência da representação do valor do ser humano”. 472 No mesmo sentido, Lima Jr. (2002, p. 19) defende que a inserção dos direitos humanos num plano global “permite o fortalecimento da própria ideia de direitos humanos e dos meios para se ampliar e fortalecer a realização de direitos”.
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adquiriram bem como a sua elevação à condição de direitos humanos473. A consideração da liberdade religiosa como direito humano é a garantia “que homens e mulheres, no tempo e local de trabalho, não abandonam a sua qualidade de cidadãos nem se despem dos atributos jurídicos da sua humanidade” (Redinha, 2004, p. 161). Não podemos esperar que um determinado indivíduo, enquanto trabalhador, se dissocie da sua personalidade, dos seus ideais, ou, como refere Machado (2011, p. 3), “o trabalhador não pode deixar as suas convicções religiosas à porta da fábrica (…)”, criando uma identidade diferente daquela que assume na vida social e familiar474. Deste modo, vamos encontrar a consideração da liberdade religiosa como direito humano em diversos instrumentos internacionais. Para o fito do nosso estudo, concentramos as nossas atenções na CEDH475, especificamente no art. 9º desse mesmo diploma476. No mesmo artigo, mais concretamente no seu nº 1, aparece, grosso modo, a proteção das várias manifestações exteriores que este direito pode assumir477, garantido tanto a pessoas singulares como pessoas coletivas, nomeadamente Igrejas478. Aos diversos Estados cabe, por um lado, adotar condutas positivas para assegurar as liberdades reconhecidas neste preceito e, por outro, cumpre a obrigação negativa de não interferir no exercício deste direito, exceto nas situações elencadas no nº 2 do predito artigo e que estabelece a possibilidade de restrição legítima da liberdade religiosa479. A segunda parte do nosso estudo terá precisamente em conta a aplicação deste mesmo preceito convencional às diversas situações, de contexto laboral, que ao longo das últimas décadas foram colocadas sob a apreciação do TEDH e, como tal, abstemo-nos de um maior aprofundamento por agora. Quanto à aplicabilidade da Convenção no nosso ordenamento jurídico, devemos referir que Portugal, após a assinatura a 22 de novembro de 1976480, se encontra vinculado à Convenção desde 9 de novembro de 1978481, data em que o instrumento de ratificação foi depositado.
473
Na senda de Leite (2006, p. 57), relembramos que os direitos de personalidade são efetivamente parte integrante do rol de direitos humanos que, como refere, engloba outros direitos como os direitos políticos, os direitos sociais e os direitos metaindividuais. 474 Por outro lado, como refere Gomes (2007, p. 300), há que ter em conta que a liberdade religiosa tem custos e que o trabalhador crente tem de ter em consideração que a sua fé implica sacrifícios. 475 A relevância da CEDH para o nosso estudo passa pelo que a mesma representa num espaço concreto, in casu, a Europa. Nas palavras de Barreto (2015, p. 12), “faz a ponte entre o idealismo das grandes declarações e o pragmatismo exigido pelos novos dinamismos sociais”. 476 A liberdade religiosa encontra também acolhimento, nomeadamente, no art. 18º da DUDH e no art. 18º do PIDCP. 477 Cfr. ponto 1.2. 478 Cfr. ac. Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França, de 27 de junho de 2000. 479 Temática abordada no ponto 1.4. 480 s Na mesma data Portugal assinou também os Protocolos nº 1, 3 e 5, tendo posteriormente assinado o Protocolo nº 2, no dia 27 de janeiro de 1977. 481 Para maior aprofundamento desta temática, ver Barreto (2015, pp. 32- 67).
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Restrições à liberdade religiosa do trabalhador Embora estejamos perante um direito que goza de elevada proteção, a liberdade religiosa não pode ser entendida como um direito absoluto, sendo objeto de certas limitações que se compreendem a partir do momento em que o trabalhador se coloca sob o poder de direção do empregador. Por outro lado, e não obstante a possibilidade de limitação deste direito482, é estritamente necessário acautelar que qualquer “restrição não seja excessiva” (Leitão, 2014, p. 147), sob pena de se afetar o núcleo essencial do direito. No mesmo sentido, como bem refere Abrantes (2009, pp. 23-24), hoje “é indiscutível a ideia de que a celebração do contrato de trabalho não implica a privação dos direitos que a Constituição reconhece a todas as pessoas e cidadãos”. Entendemos que estas duas ideias se complementam na perspetiva de que, não obstante a possibilidade de a liberdade religiosa ser restringida, nunca o poderá ser ao ponto de vermos totalmente coartado um direito que está inserido no âmbito dos direitos liberdades e garantias da nossa lei fundamental, granjeando uma proteção acrescida, conforme já mencionámos. Consensual que é a possibilidade de, em abstrato, existirem limitações à liberdade religiosa, cumpre agora escalpelizar os motivos que, em concreto, podem estar subjacentes a essa restrição483. Numa perspetiva constitucional, estamos, não raras vezes, perante um “problema de delimitação de direitos” (Abrantes, 2004, pp. 146-147), pois, na situação concreta dos problemas levantados em âmbito laboral, constatamos uma colisão de dois direitos fundamentais entre, por um lado, um direito do trabalhador exercer a sua liberdade religiosa, prevista no art. 41º da CRP, e por outro, o direito à iniciativa económica privada (art. 61º, nº 1, da CRP), bem como a liberdade de organização empresarial do empregador com estatuição no art. 80º, al. c), da nossa Lei Fundamental. Destarte, observamos uma confrontação dos “interesses das partes contratuais de uma forma muito viva” (Moreira, 2011, p. 101). A mesma autora refere, ainda, que o grande desafio do Direito do Trabalho passa por “conseguir encontrar um modo de compatibilizar a competitividade das empresas com os direitos de cidadania e dignidade dos trabalhadores” (Moreira, 2016, p. 75) o que, na atualidade, se afigura como uma árdua batalha devido às contingências sócio económicas, o que não raras vezes leva a que o trabalhador encare como “aceitável a perda de liberdade em prol da produtividade” (Quintas, 2013, p. 131). Se atentarmos nesta situação por um prisma económico-financeiro, não podemos olvidar que a manutenção da competitividade das empresas tem implicações na própria existência e
482
Atentemos, em concreto, no art. 81º, nº 1, do CC que estabelece a possibilidade de limitação voluntária dos direitos de personalidade, onde incluímos a liberdade religiosa. Nesse mesmo preceito, refere-se que essa mesma limitação, embora possível, será nula se for contrária aos princípios da ordem pública. Prevê-se ainda a possibilidade de revogar essa mesma limitação conforme estabelecido no nº 2 do mesmo artigo. 483 Para um maior aprofundamento do tema, ver o estudo de Mac Crorie (2013) que corresponde à dissertação de Doutoramento da autora.
221
longevidade da relação de trabalho484. Assim, é nosso entendimento que, embora a liberdade religiosa seja entendida como direito fundamental, não é um direito absoluto, podendo ser coartado na medida do necessário para a garantia do núcleo essencial do direito de organização económica do empregador485. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional (TC)486 refere inclusivamente um “princípio da mútua compreensão que deve nortear a harmonização dos direitos fundamentais”, tendo em consideração que o direito fundamental do trabalhador pode ver o seu conteúdo não essencial restringido “para que seja possível realizar uma harmonização com o conteúdo de outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos (…)”487. Verificamos, deste modo, uma colisão autêntica de direitos fundamentais488, que nos melhores ensinamentos de Canotilho (2014, pp. 1270-1271), surge “quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular”, entendemos que a resolução passa por um exercício de adequação de direitos, em conformidade com o previsto no art. 18º, nº 2, da CRP. Qualquer limitação da liberdade religiosa implica a consideração do regime dos Direitos, Liberdades e Garantias, nomeadamente que a sua compressão se deve restringir ao necessário para garantir outros direitos constitucionalmente previstos489, in casu, a liberdade de organização empresarial por parte da entidade empregadora, estatuído no art. 80º,
al.
c),
da
Constituição490.
Atendemos
assim
aos
critérios
de necessidade,
484
Xavier (2004, p. 165) refere que, por um lado, sem liberdade da empresa e iniciativa da empresa não existem empregos nem trabalhadores mas, noutra perspetiva, esses mesmos pressupostos organizativos só existem se for possível recorrer a trabalhadores. 485 Quintas (2013, p. 133) aponta a “formulação de negócios jurídicos contra legem ou no limite da legalidade” como causa principal da violação dos direitos do trabalhador, posição que acompanhamos. A autora acredita que se deve limitar a autonomia negocial das partes quando esta entra em colisão com os direitos dos trabalhadores. 486 Ac. nº 306/03 do TC, com o processo nº 382/03 (Conselheiro Mário Torres), de 25 de junho de 2003, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos. 487 Também os juízes do Tribunal Constitucional espanhol preconizam um equilíbrio dos direitos em conflito quando referem que a sujeição a um contrato não retira a condição de cidadão a um trabalhador, mantendo este os seus direitos fundamentais mas os mesmos não podem ser invocados sem limitações. Sentença 129/1989, de 17 de julho. Disponível em: http://hj.tribunalconstitucional. es/es/Resolucion/Show/1335. 488 Canotilho (2014, pp. 1270-1271) apresenta-nos ainda a colisão de direitos em sentido impróprio que “tem lugar quando o exercício de um direito fundamental colide com outros bens constitucionalmente protegidos”. 489 Acompanhamos a posição de Andrade (2009, pp. 267-268). O autor defende que numa situação de conflito de direitos passa por uma solução restritiva, solução essa que está expressamente consagrada no art. 18º da CRP. O cerne desta solução passa por uma ponderação dos direitos em causa com a consequente salvaguarda do núcleo essencial de cada um dos direitos em conflito. 490 Embora a génese do Direito Constitucional passe por uma prevalência dos direitos pessoais sobre os direitos económicos, acreditamos que, não obstante essa tendência, o art. 18º, nº 2, estabelece uma remissão generalizada para todos os direitos, liberdades e garantias e, salvo melhor opinião, devemos conceber a limitação da liberdade religiosa em prol do direito consagrado no art. 62º da CRP.
222
proporcionalidade em sentido estrito e adequação491, o que, a nosso ver, implica uma óbvia apreciação casuística que passará pela harmonização dos direitos, ou, não sendo possível, pela prevalência de um deles, após um juízo de ponderação da relevância dos direitos em colisão (Canotilho, 2014, p. 1274). In casu, com o fito de harmonização dos dois direitos, em paralelo à conservação do núcleo essencial do direito à liberdade religiosa por parte do trabalhador, devemos ter sempre em consideração a preservação do núcleo essencial do direito de liberdade de organização empresarial por parte do empregador. Não sendo possível a harmonização, a mesma apreciação casuística ditará a prevalência de um sobre o outro. Como refere Ascensão (2008, p. 295), “a ordem jurídica não pode impor aos seus membros nem o se nem o como da realização pessoal, mas deve estabelecer os seus quadros (…)”. No seguimento das palavras do autor, entendemos que, na sua vertente interior, a liberdade religiosa pode ser entendida como absoluta, pois ninguém pode ser privado de acreditar em determinada religião. Mas “é impensável reduzir a liberdade religiosa à mera convicção interior e pessoal” do indivíduo (Quintas, 2013, p. 266). Assim, devemos atender à vertente exteriorizada da mesma liberdade, que deve ser apreciada tendo em conta alguns fatores que poderão de algum modo coartar a sua realização e que abordaremos de seguida. A grande questão prende-se, assim, com a delimitação das limitações da liberdade religiosa ou, por outras palavras, perceber até onde poderá este direito ser legitimamente limitado. Abrantes (2009, p. 24) faz uma crítica ao legislador na perspetiva de este não se ter preocupado em efetivar uma “delimitação das restrições a tais direitos”492. Não perfilhamos este entendimento do autor. De facto, entendemos a liberdade religiosa, bem como outros direitos humanos, como um direito de natureza abstrata493 e que, não raras vezes, colide com outros direitos da mesma categoria. Nesta perspetiva, afigura-se impossível, no nosso entendimento, estabelecer limites rígidos que podem, se observados, implicar prejuízo grave à manutenção do núcleo essencial do outro direito em conflito. Parece-nos que a limitação passa, efetivamente, por uma não afetação do núcleo essencial de tão relevante direito, com as dificuldades inerentes a essa mesma conceção, mas que entendemos ser necessária. Na senda de Quintas (2013, p. 244), consideramos que, pese embora a liberdade religiosa deva ser o mais protegida possível, também “a obrigação contratual de respeito é devida quer a fé religiosa seja originária, quer seja superveniente”. Continua a autora referindo que “terá de ser alcançada uma zona de contração entre o
491
Alexy (2014, p. 819) entende a utilização dos critérios da necessidade, proporcionalidade em sentido estrito e a adequação como expressão de uma ideia de otimização para resolução dos conflitos emergentes de direitos fundamentais. 492 Neste caso o autor refere-se à proteção da personalidade do trabalhador num âmbito geral mas, estando a liberdade religiosa inserida na mesma, acreditamos que a crítica será diretamente aplicável a esta questão em particular. 493 Nesse sentido, ver Alexy (2014, p. 831), entendimento que perfilhamos.
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respeito pelo contrato e o respeito pelo imperativo de consciência” (Quintas, 2013, p. 264), posição que acolhemos. Estamos assim perante um direito condicional, pois não sendo objeto de uma proteção absoluta e inderrogável – com exceção da sua dimensão interior –, como por exemplo o direito à vida, admite limitações e derrogações, usufruindo, meramente, de uma proteção relativa que poderá ser legitimamente restringida, desde que se verifiquem as condições ínsitas no art. 9º, nº 2, da Convenção. Em ambiente laboral a mais comum das restrições que a liberdade religiosa pode sofrer é, precisamente, a determinada pelo exercício dos direitos do empregador, que, num plano supranacional, encontra acolhimento na parte final do preceito supra, quando se prevê “a proteção dos direitos e liberdades de outrem”. Este normativo vem elencar as restrições que a liberdade de religião pode legitimamente sofrer e que, além da já mencionada, inclui ainda limitações que derivem de razões de segurança pública, proteção de ordem, saúde e moral públicas494 e que, embora não sejam as situações mais usuais, não deixam de ser fundamento de recurso ao Tribunal de Estrasburgo495. Além do requisito lógico de as restrições estarem, obrigatoriamente, previstas na lei496, ressalvamos que a redação deste art. 9º da CEDH inclui duas particularidades a ter em conta. Primeiramente, devemos apontar o cuidado de a sua redação passar por um texto que inclui a expressão “não pode ser objeto de outras restrições senão as que(…)”, o que, em nosso entendimento, demonstra uma intenção bem vincada de relevar a importância deste direito através de uma redação que consagra as exceções à regra de não poder ser restringida, ao invés de estabelecer, de pronto, um elenco de possíveis restrições. A segunda particularidade passa pela existência de um requisito adicional para a efetivação dessas restrições: as razões invocadas sejam necessárias numa sociedade democrática, requisito que, de acordo com Quintas (2013, p. 254), “representa a última salvaguarda contra ingerências no gozo das liberdades fundamentais da pessoa”. Assim, um Estado, embora tendo uma margem de discricionariedade para apreciação dos casos sob a sua jurisdição, está sujeito a um controle por um Tribunal independente (TEDH), que, se chamado a intervir, determinará se as medidas tomadas (ou a ausência das mesmas) por um Estado, foram as necessárias para assegurar uma das situações elencadas no nº 2 do art. 9º da CEDH justificando, desse modo, a restrição da liberdade religiosa do queixoso numa sociedade democrática497. 494
Referência ao “conjunto de princípios basilares de uma dada ordem jurídica, fundados em valores de moralidade, de justiça ou de segurança social, que regulam interesses gerais e considerados fundamentais da colectividade, e que informam um conjunto de disposições legais” (Prata, 2016, pp. 1016-1017). 495 Cfr., nomeadamente, ac. Beldjoudi c. França, de 26 de março de 1992; ac. Manoussakis c. Grécia, de 26 de setembro de 1996; ac. Pentidis c. Grécia, de 21 Fevereiro de 1997;ac. Refah Partisi e outros c. Turquia, de 13 fevereiro de 2003; ac. Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França, de 27 de junho de 2000. 496 Cfr. ac. Fusu Arcadie e outros c. República da Moldávia, de 17 de outubro de 2012. 497 Cfr. ac. Manoussakis e outros c. Grécia, de 26 de setembro de 1996.
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O Contrato de trabalho e a liberdade religiosa à luz da CEDH Considerações preliminares Portugal, tal como a maioria dos Estados europeus, carateriza-se por ser um Estado não confessional, não existindo, deste modo, uma identificação oficial deste com uma religião em particular. Não obstante esta dissociação, a verdade é que muitas das normas laborais apresentam uma forte influência da religião maioritária em Portugal, o Catolicismo498. Como bem refere Ramos (2010, p. 50), “a religião nunca deixou de constituir para a tradição jurídica ocidental uma importante fonte de conteúdo”, o que se compreende pelos séculos de história que o nosso país já observa. Com a subordinação do trabalhador ao empregador, a liberdade religiosa do primeiro pode, por diversas formas, sofrer limitações ao seu exercício pleno. De facto, “ao aceitar submeter-se
à
autoridade
e
direcção
do
empregador,
o
trabalhador
efectua
necessariamente uma autolimitação dos seus direitos de personalidade (…)” (Leitão, 2014, p. 147). No fundo, como bem refere Lopes (2010, p. 17), os trabalhadores nestas situações encontram-se “psicologicamente condicionados na reivindicação dos seus direitos, liberdades e garantias”. Não obstante o panorama supra, o trabalhador, “embora sujeito à auctoritas de outrem, não pode ver cerceado o seu direito à dignidade da pessoa humana” (Quintas, 2013, p. 145). No mesmo sentido, Rosas (2008, p. 2) entende que os direitos humanos “definem um padrão mínimo de dignidade humana e que nenhum governo – nem ninguém – deveria violar”. Na senda do autor, entendemos que, numa relação contratual caraterizada por uma posição de supremacia da entidade empregadora, deve existir particular cuidado com a proteção dos direitos humanos dos trabalhadores. A verdade é que mesmo numa ótica empresarial existe um óbvio interesse em proteger os direitos subjetivos dos trabalhadores, pois, ao fazê-lo, estamos a “tutelar a viabilidade da produção, in casu, o capital humano e social dos meios de produção” (Penido, 2013, p. 548). Com este mesmo objetivo, a Organização Internacional de Trabalho (OIT) identificou alguns direitos laborais como integrantes dos direitos humanos, que assim adquirem uma maior proteção. Nesse elenco figura a eliminação de qualquer tipo de discriminação no emprego na qual, obviamente, enquadramos a discriminação fundamentada em motivos religiosos499/500.
498
A relação entre a religião e legislação que, de algum modo, ainda subsiste não é exclusiva do nosso ordenamento jurídico. Tomemos como exemplo o caso da Espanha onde a confessionalidade do Estado e as inerentes relações entre a Igreja e o Estado, são ainda hoje uma questão chave da história constitucional espanhola junto com a dicotomia Monarquia – República, temática de sobeja importância em Espanha (Costa, 2007, p. 199). 499 Para maior aprofundamento do tema, consultar o estudo de Mantouvalou (2012a) sobre a consideração dos direitos laborais como direitos humanos. 500 A proibição de discriminação está plasmada numa das Convenções fundamentais da OIT, nomeadamente a Convenção nº 111, que, como as demais Convenções fundamentais da Organização, está disponível em:
225
O espaço jurídico-laboral é, per naturam, uma fonte de atropelamentos dos direitos humanos devido “ao seu caráter desequilibrado e assimétrico” (Quintas, 2013, p. 130). Assim, e sendo notório que o Direito do Trabalho se afigura como “um riquíssimo banco de ensaio para a dogmática geral dos direitos fundamentais e dos direitos de personalidade” (Ramalho, 2013, p. 39), apraz dizer que esta mesma área do Direito se afigura como um excelente campo de estudo para a verificação de eventuais violações dos direitos humanos e, em concreto, o não respeito pela liberdade religiosa do trabalhador. Se atentarmos nos ensinamentos de Adams (2006, p. 14), este aponta uma forte influência da filosofia e da teoria religiosa na génese dos direitos do trabalhador, o que realça a importância de percebermos como este mesmo direito pode ser lesado pelas obrigações decorrentes de um contrato de trabalho. Parece-nos, assim, premente a análise de alguma jurisprudência do TEDH501 e a influência que esta pode ter na produção jurisprudencial dos tribunais portugueses, em matérias laborais, acompanhando, assim, a posição de Barreto (2015, p. 48) quando este refere que o recurso à jurisprudência daquele Tribunal se tornou “uma salutar constante ao nível dos nossos tribunais”. A proteção e o desenvolvimento dos direitos humanos passam, precisamente, pela “cooperação e colaboração entre o Tribunal e as instâncias nacionais (Barreto, 2008, p. 17). Este é um novo posicionamento do TEDH, hoje mais ativo na área laboral, pois, conforme faz notar Calfisch (2009, p. 17), a CEDH, que nunca havia sido um instrumento de proteção dos trabalhadores, é hoje mais profícua nessa intenção. Conforme já referimos anteriormente, o indivíduo-trabalhador é indissociável do indivíduo-ser e a CEDH, que tende a proteger os direitos humanos na generalidade, engloba, deste modo, os direitos do indivíduo enquanto trabalhador. A consideração da CEDH como instrumento de proteção dos direitos do trabalhador ganha um relevante impulso com a metodologia introduzida no acórdão Demir e Baykara c. Turquia502. Este acórdão constitui um marco na jurisprudência do TEDH503 devido ao recurso a um método interpretativo evolutivo da Convenção efetivado através do emprego de instrumentos
normativos
internacionais504.
Como
podemos
retirar
dos
melhores
ensinamentos de Mantouvalou (2013, p. 10), hoje e ao contrário do que sucedia, os juízes do TEDH “não operam num esplêndido isolamento de uma torre de marfim construída http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_visita_guiada_03b_pt.htm. Consultada em 14 de janeiro de 2017. 501 Para um mais aprofundado conhecimento do TEDH e do seu funcionamento, ver um artigo realizado por Barreto (2011), juiz do mesmo Tribunal, que nos presenteia com uma clara apresentação desse tema. 502 Ac. Demir e Baykara c. Turquia, de 12 de novembro de 2008. 503 Ewing e Hendy (2010, p. 41) referem-se a esta decisão como um marco histórico na batalha pela alma do Direito Laboral, na qual os direitos humanos vincaram a sua superioridade sobre um irracionalismo económico que perdurava. 504 No âmbito das relações laborais falamos, nomeadamente, do recurso a Diretivas da UE, a normas da OIT ou outras com previsão no PIDCP. Para um maior aprofundamento da relevância das normas da OIT nas decisões do TEDH, ver Ebert & Oelz (2012).
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exclusivamente com material originário das invenções interpretativas da CEDH”, nem o Tribunal “opera num vácuo” (Dorssemont & Lörcher, 2013, p. 418). Pelo contrário, a Convenção, que deve ser interpretada como um instrumento vivo, é analisada de acordo com o tempo presente tendo em consideração elementos de outros instrumentos internacionais e a sua interpretação pelos órgãos competentes, não olvidando a prática dos Estados europeus nas matérias abordadas (Lörcher, 2013, pp. 5-7) 505. No mesmo sentido, e recorrendo aos ensinamentos de Diène (2007, p. 16), urge encontrar um equilíbrio entre a dimensão universal e ética dos direitos humanos em conjugação com a realidade política desses mesmos direitos enquanto inseridos nos diversos Estados. O equilíbrio que se pretende passa, também, pela intervenção do TEDH, que nas suas decisões deve sempre atender a dois princípios: o da subsidiariedade e o da margem de apreciação506. O primeiro princípio passa pelas premissas de que, atendendo a que o sistema de proteção convencional apresenta, por um lado, um caráter subsidiário em relação aos sistemas nacionais de proteção de direitos humanos, e, por outro, de que as instâncias de cada Estado são “as mais qualificadas para fixar a matéria de facto”, o Tribunal de Estrasburgo intervém subsidiariamente507. De facto, somente depois de se esgotarem os meios de recurso internos é que o cidadão pode recorrer ao TEDH, atuando desse modo contra o Estado, por ação ou omissão deste. Compreende-se esta reserva jurisprudencial dos Estados, como uma garantia da sua soberania e do respeito pela sua diversidade cultural e histórica ou, como refere Lugato (2012, p. 68), como uma “salvaguarda do pluralismo” que é “o coração da proteção internacional dos direitos humanos”. O caráter subsidiário da intervenção do TEDH permite, inclusivamente, que a produção jurisprudencial de cada país, se relevante, possa ser inspiradora de futuras decisões do Tribunal de Estrasburgo508. Acresce dizer que os acórdãos do TEDH, quanto ao caso julgado, não possuem eficácia erga omnes509 nem força executiva direta, mas somente eficácia inter partes. Essas mesmas 505
No mesmo sentido, Barreto (2008, p. 7) refere que embora a Convenção seja um texto de 1950, graças ao “esforço de interpretação” do TEDH, bem como da extinta Comissão, os organismos responsáveis “têm vindo a cobrir realidades difíceis de prever no momento da sua redação”, fazendo da primeira “um instrumento vivo, a interpretar à luz das condições de vida actual”. 506 Vide o Protocolo nº 15, de 24 de junho de 2013, que vem introduzir no preâmbulo da Convenção uma menção expressa a estas metodologias de interpretação (ainda não se encontra em vigor). 507 Cfr. art. 35º, nº 1, da CEDH: “O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas(…)”. No mesmo sentido, Cunha, Silva & Soares (2010, pp. 270-271) referem que “as estruturas institucionais e poderes mais próximos das realidades são quem deve ter a competência para curar dos respectivos problemas(…)”. 508 Na senda de Cunha et al (2010, p. 271), entendemos que abdicar das diferenças jurídicas dos diversos Estados seria incoerente, mormente porque, como referem os autores, “o Direito não é uma matemática universal, transcultural, antes multicultural”. 509 Não obstante a eficácia meramente inter partes, existe uma tendência para a jurisprudência de outros Estados seguirem o entendimento do TEDH, sob pena de uma idêntica situação gerar uma condenação internacional do Estado interveniente.
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decisões, que de acordo com Botelho (2013, p. 141) têm uma “eficácia persuasiva” e uma “força interpretativa”, além de promoverem uma reparação pelo Estado condenado510, servem, em simultâneo, como uma guide line para os demais Estados do Conselho da Europa. Deste modo, o Estado condenado, “ao mesmo tempo que tem a possibilidade de resolver o conflito sem a intromissão de terceiros, aperfeiçoa, ainda, o seu sistema no particular ponto que deu origem ao litígio” (Vilela, 2014, p. 784). Por outro lado, os demais Estados devem colocar os respetivos sistemas em sintonia com as orientações deste Tribunal, porquanto os seus arestos têm força interpretativa erga omnes. Quanto ao segundo princípio, o TEDH, tendo em conta as premissas observadas na Convenção, concede às autoridades nacionais uma certa latitude de deferência ou de erro, ou seja, uma margem de apreciação. A doutrina utilizada pelo TEDH entende a existência de variações nos limites impostos a alguns direitos humanos permitindo uma “razoável margem de apreciação quando a limitação de uma liberdade é necessária” (Martínez-Torrón, 2012, p. 332). No caso da liberdade religiosa, cumpre referir que, sendo esta uma matéria sobre a qual não existe um consenso generalizado, existe uma tendência para uma margem de apreciação mais dilatada e, por conseguinte, não raras vezes, o TEDH atribui uma ampla discricionariedade aos Estados, na implementação das regras estatuídas na CEDH, descurando, não raras vezes, a proteção da liberdade religiosa. Lugato (2012, pp. 51-52) refere que esta implementação passa pela verificação de dois elementos: uma conduta que orienta, genericamente, a implementação (embora esta possa ser efetivada pelo modo que o Estado considere mais conveniente); o facto de essa implementação, eventualmente, observar condições específicas de cada Estado, nomeadamente questões determinadas pelas autoridades511 que podem diferir consoante a interpretação dada pelos diversos Estados em consonância com a sua história e outras variáveis.512. Pese embora seja alvo de algumas críticas, mormente por obstar a uma aplicação uniformizada de proteção dos direitos humanos nos diferentes Estados, propugnamos pela defesa da existência da margem de apreciação. No seguimento da maioria da doutrina513, acreditamos que a discricionariedade existente se justifica pela diversidade de fatores históricos, sociais, políticos e culturais dos inúmeros Estados vinculados à Convenção. Conforme refere Martínez-Torrón (2012, p. 331), o objetivo do art. 9º da CEDH passa pela proteção da liberdade religiosa e não por uma harmonização das relações entre a Igreja e os Estados. Por outras palavras, não cabe no espírito da CEDH, nem, a posteriori, aos juízes do 510
Entende-se que o tribunal somente tem a obrigação de decidir se, no caso em concreto, os direitos do queixoso foram, ou não, violados, conforme decorre do acórdão Kjeldsen, Busk Madsen e Pedersen c. Dinamarca, de 7 de dezembro de 1976. 511 Fatores de ordem, saúde ou moral pública, casos de estado de emergência, entre outros. 512 Cfr, nomeadamente, o ac. Kimlya e outros c. Rússia, de 1 de março de 2010 e o ac. Church of Scientology Moscow c. Rússia, de 24 de setembro de 2007. 513 Cfr., nomeadamente, Lugato (2012, p. 53) que elabora uma apreciação deste tema em aplicação à decisão do caso Lautsi e outros c. Itália, de 18 de março de 2011.
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TEDH estabelecer critérios uniformes que possam, de algum modo, fazer tábua rasa da história e da cultura das diferentes sociedades democráticas em causa. Cabe sim ao TEDH, em última instância, zelar pelo respeito da liberdade religiosa, sendo que caberá aos Estados adotar as medidas necessárias para que, dentro da referida margem de apreciação, o estatuído no art. 9º, nº 1, da CEDH seja observado pelo poder público, bem como pelos entes privados. Para tal, o TEDH vai aferir, casuisticamente, de eventuais violações do art. 9º, seguindo uma linha orientadora que pressupõe a resposta a cinco questões, a saber: se a queixa do requerente cabe dentro da proteção do art. 9º da CEDH; se existiu alguma interferência na liberdade religiosa do trabalhador; existindo interferência, se a mesma é justificada por um fim legítimo; se esta interferência está prevista na lei; se a mesma é necessária numa sociedade democrática514. Na senda de Mantouvalou (2012b, p. 24), não podemos olvidar a força moral única que os direitos humanos têm e que, se os trabalhadores virem coartados os seus direitos, caberá à lei e, em última instância, aos tribunais dotá-los de uma proteção efetiva. No entanto, e não obstante ser perfeitamente entendível e desejável que a liberdade religiosa veja a sua proteção efetivada no âmbito laboral, a verdade é que a jurisprudência do TEDH tem primado por uma orientação favorável à entidade empregadora, propugnando que o trabalhador não se pode escusar de obrigações que assumiu livremente aquando da assinatura do contrato de trabalho e que, em última instância, o seu direito à liberdade religiosa está garantido pelo facto de poder, livremente, denunciar o contrato de trabalho e, assim, usufruir da liberdade consagrada no art. 9º da CEDH515. Acompanhando a posição adotada por Vickers (2013, p. 210), consideraremos, para a análise que se segue, a liberdade religiosa na sua vertente exterior, pois o seu forum internum engloba meramente assuntos intangíveis e que só observam repercussão se o indivíduo fizer uso da liberdade religiosa na sua vertente exterior, manifestando a mesma perante a sociedade. Esta situação é visível no caso Kosteski c. Macedonia516, no qual o requerente aponta uma intromissão por parte do Estado no seu forum internum, nomeadamente porque lhe foi exigido que provasse a sua fé para com a religião muçulmana517. Como refere Marín (2006, p. 18), o direito só se pode imiscuir na vertente de manifestação da liberdade religiosa não interferindo, obviamente, na liberdade de pensamento do trabalhador. Outrossim, duas ideias essenciais emergem de pronto: o empregador, assumindo um princípio de neutralidade, não pode impor as suas crenças ao trabalhador, nem pode
514
Para uma análise aprofundada desta metodologia, vide Murdoch (2012, pp. 13-43). Vide, nomeadamente, o ac. Tuomo Konttinen c. Finlândia, de 3 de novembro de 1996. 516 Cfr. ac. Kosteski c. Macedónia, de 13 de abril de 2006. 517 No caso em apreço, o queixoso, que pretendia que lhe fosse reconhecido o direito de não trabalhar durante os feriados muçulmanos, foi indagado pelas autoridades nacionais sobre a sua verdadeira conexão com a religião, visto a sua conduta social não indiciar nenhuma prática muçulmana, o que promoveu dúvidas sobre a veracidade da queixa do Senhor Kosteski. 515
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impedir que este exerça as suas convicções religiosas (Rodríguez-Piñero, 2004, p. 364). No entanto, este princípio geral comporta exceções que abordaremos no ponto subsequente.
A liberdade religiosa das entidades empregadoras de tendência religiosa Também num espetro laboral, podemos encontrar a manifestação da liberdade religiosa numa vertente coletiva, o que, sucedendo, pode consubstanciar uma exceção ao princípio de neutralidade a que o empregador está sujeito aquando da contratação, bem como durante a pendência da relação contratual. Falamos, in casu, das entidades empregadoras de tendência religiosa, pessoas coletivas cujos valores orientadores são baseados numa determinada confissão, o que, em contexto de CEDH, nos leva a analisar a liberdade religiosa tendo em conta outro direito previsto no mesmo diploma, a liberdade de reunião e associação que encontramos no seu art. 11º. Acompanhando Cardo (2011, p. 26), entendemos que nem todos os empregadores podem ser considerados de tendência religiosa por sua exclusiva vontade, obedecendo a um conjunto de requisitos imposto pelos ordenamentos jurídicos correspondentes518 e uma delimitação do seu escopo519. A extensão da liberdade religiosa a uma perspetiva coletiva tem sido entendida pela jurisprudência520 como indispensável para um pluralismo inerente a uma sociedade democrática e, como tal, enquadrável na proteção concedida pelo art. 9º da CEDH521. Deste modo, os conflitos podem surgir no âmbito organizacional de determinada entidade, seja num contexto de contratação ou manutenção de um posto de trabalho ou mesmo na afirmação da liberdade religiosa da entidade no âmbito da sua independência organizacional522. No que tange à relação do empregador de tendência com os seus trabalhadores, devemos referir que, regra geral, pela observância de diversos normativos, facilmente constatamos a proibição de discriminação na contratação do trabalhador fundamentada em aspetos religiosos523. Também na CEDH essa garantia é dada através da proibição de discriminação, estabelecida no art. 14º, no gozo dos direitos e liberdades dos demais preceitos estabelecidos na Convenção524. Assim através da conjugação do predito artigo com, in casu,
518
No caso português, cfr. arts. 35º e ss. da LLR. Podemos apontar como casos típicos as igrejas, templos, mesquitas, sinagogas e escolas associadas a uma determinada religião. 520 Cfr., entre outros, o ac. Jehovah’s Witnesses of Moscow e outros c. Rússia, de 22 de novembro de 2010. 521 Atendendo, mais uma vez, à não existência de um elenco taxativo de religiões na CEDH, devemos referir que cabe aos Estados definir os requisitos necessários para que determinada associação religiosa seja registada e considerada como uma organização plena de direitos e deveres. 522 Cfr., nomeadamente, ac. Svyato-Mykhaylivska c. Ucrânia, de 14 de setembro de 2007. 523 Cfr., nomeadamente, os arts. 24º, 25º e 381º do CT, bem como os arts. 1º e 2º da Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de 2000. 524 Para uma análise da proibição de discriminação, prevista no art. 14º da CEDH, conjugada com os outros direitos previstos na Convenção, ver Bruun (2013). 519
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a liberdade religiosa prevista no art. 9º, conclui-se que estará vedado ao empregador a discriminação baseada em fundamento religioso aquando da contratação. Não obstante a afirmação anterior, é essa mesma legislação que vem estabelecer algumas exceções que permitem a estas entidades obter “alguma legitimidade para a imposição de limitações à liberdade religiosa dos seus trabalhadores” (Machado, 2012, p. 115). Resulta do CT a possibilidade de o empregador estabelecer critérios de contratação baseados em fatores religiosos desde que, conforme estatuído no art. 25º, nº 2, do predito diploma, “constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional, em virtude da natureza da atividade (…)”. No plano europeu, destacamos o art. 4º, nº 1, da Diretiva 2000/78/CE, de 29 de novembro de 2000, quando estabelece que “não constituirá discriminação sempre que, em virtude da natureza da actividade profissional em causa ou do contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial e determinante para o exercício dessa actividade, na condição de o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional”. Pelo contrário, estaremos perante uma situação de discriminação sempre que as “diferenciações introduzidas forem determinadas ou movidas por motivos especialmente odiosos e ético-juridicamente condenáveis” (Lopes, 2011, p. 60). Como exemplo, podemos observar o caso Devlin c. Reino Unido525, onde se constatou que a não contratação do queixoso se verificou por questões religiosas não fundamentadas na especificidade do cargo a ocupar, consubstanciando uma violação do art. 9º em conjugação com o art. 14º, ambos da CEDH. Assistimos, no caso El Majjaoui e Stichting Touba Moskee c. Holanda526, à controversa contratação de um imã de uma mesquita. Neste caso, a entidade empregadora pretendia designar para o cargo um indivíduo não europeu para o qual seria necessária a atribuição de uma licença de trabalho. Tal contratação, de acordo com a legislação holandesa em vigor à data527, só seria possível se não existisse manifestação de interesse por parte de trabalhadores do espaço europeu ou outros com estatuto equivalente. Tal não sucedeu por deficiente divulgação da oferta de trabalho por parte da mesquita. Pese embora o caso não tenha chegado ao seu epílogo, em jeito de conclusão, podemos referir que, embora a entidade empregadora possa contratar de acordo com a religião, não pode para tal suprimir as disposições reguladoras do mercado de trabalho do ordenamento jurídico em causa528. Como se depreende da lei, uma entidade empregadora pode, então, exigir que os seus trabalhadores professem a mesma crença da orientação religiosa da entidade empregadora. Para tal, como também estabelece a lei, é necessário que na atividade em causa a religião ou crença seja um critério de seleção essencial para o seu desempenho. Na senda de Machado (2012, pp. 115-116), entendemos que qualquer restrição por parte do empregador 525
Cfr. ac. Devlin c Reino Unido, de 30 de janeiro de 2002. Cfr. ac. El Majjaoui e Stichting Touba Moskee c. Holanda, de 20 dezembro de 2007. 527 Secção 2 e 8 do The Foreign Nationals (Employment) Act. 528 Vide, na mesma temática, o ac. Jehovas Zeugen in Österreich c. Áustria, de 25 de setembro de 2012. 526
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só se justifica quando se verifica uma “conexão muito estreita entre as funções exercidas pelo trabalhador e garantia das ideologias prosseguidas pelo empregador”, existindo deste modo uma proporcionalidade adequada ao fim pretendido. Por outras palavras, para as tarefas de tendência529 acreditamos que se justifica esta limitação da liberdade religiosa pela importância que tais tarefas assumem nos desígnios da entidade empregadora. Esta relevância encontra acolhimento nas decisões do TEDH, nomeadamente no ac. Fernández Martínez c. Espanha530 no qual os juízes, referindo-se ao caso em concreto de um professor de uma escola católica, entendem que é perfeitamente compreensível que a entidade empregadora espere um comportamento leal do seu trabalhador, tendo em conta que a existência de uma discrepância entre o estilo de vida do professor e os ensinamentos por ele ministrados colocava em causa a credibilidade da sua atuação como docente. Refere o coletivo de juízes que “o elevado grau de lealdade é justificado pelo facto de para a manutenção da credibilidade da religião o seu ensinamento deve ser ministrado por uma pessoa cujo estilo de vida e declarações públicas não sejam conflituantes com a religião em causa”. O caso Fernández Martínez c. Espanha é bem demonstrativo da problemática da liberdade religiosa coletiva e da interferência que esta pode ter sobre outros direitos previstos na CEDH. No caso em concreto, o queixoso fundamenta a sua exposição ao TEDH com uma violação do art. 8º da Convenção, entendendo o Senhor Martínez que o seu direito ao respeito pela sua vida privada531 havia sido violado. O requerente lecionava a disciplina de religião (católica) sendo, como tal, funcionário do Estado a quem caberia renovar, ou não, o seu contrato. No entanto, essa renovação, devido à especificidade da matéria, dependia de proposta prévia da Diocese que, na altura, não incluiu o nome do Senhor Martínez na lista de potenciais contratados532. Na opinião do queixoso tal situação deriva do facto de manter opiniões dissidentes no que tange ao celibato propugnado pela igreja católica e por pertencer a uma organização defensora desta mesma ideologia533, situação que entende pertencer à sua esfera privada. Não obstante o Tribunal concordar com essa intromissão por parte da Diocese, entende que a mesma se justifica em defesa de outro direito consagrado na CEDH, ou seja, a liberdade religiosa da Diocese de apontar como candidatos ao lugar de professor de religião somente pessoas que preencham os requisitos entendidos necessários para o cargo que no caso passa pelo professar das mesmas linhas orientadoras da religião a lecionar. Entendeu o TEDH que esta restrição do art. 8º era proporcional ao fim pretendido prevalecendo, deste modo, a liberdade religiosa de uma 529
Aquelas tarefas com uma conexão direta com os objetivos ideológicos da entidade empregadora. Cfr. ac. do TEDH referente ao caso Fernández Mártínez c. Espanha, de 12 de junho de 2014. 531 Acompanhando um entendimento de Marguénaud & Mouly (2008, p. 12) devemos entender, in casu, a vida privada não somente como a que diz respeito ao foro pessoal do requerente, mas também a vida privada social do trabalhador, ou seja, o comportamento social do individuo fora do seu horário de trabalho. 532 No mesmo sentido, vide ac. Lombardi Vallauri c. Itália, de 20 de outubro de 2009. 533 MECEOP – “Movement for Optional Celibacy” of priests. 530
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entidade empregadora de tendência fundamentada no art. 8º, nº 2, da CEDH, bem como no art. 4º, nº 1, da Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro. Por outro lado e quanto às demais tarefas534, que Machado (2012, p. 115) apelida de neutras, parte da doutrina, nomeadamente Rodríguez- Piñero (2004, p. 366), acredita que embora não seja razoável pedir aos trabalhadores que conformem as suas convicções pessoais com o ethos da entidade empregadora, esta pode restringir as manifestações de liberdade religiosa daqueles enquanto ao seu serviço, de modo a não entrar em conflito com a ideologia religiosa da própria entidade. Neste âmbito, o TEDH pronunciou-se no caso Obst c. Alemanha535 a propósito de um despedimento de um funcionário de uma igreja mórmon por este estar envolvido numa relação extraconjugal536. In casu, o trabalhador é despedido com o fundamento de desrespeitar uma das cláusulas do contrato de trabalho, a qual previa que aquele deveria orientar a sua conduta por padrões morais elevados, o que, no entendimento da sua entidade empregadora, não se verificou. Entendeu a igreja que este comportamento era contrário aos desígnios da sua confissão e, assim sendo, cessou contrato com o trabalhador por este não adotar um comportamento digno da religião mórmon. Neste caso, o TEDH entendeu que a liberdade religiosa da entidade empregadora deveria prevalecer sobre a reserva da vida privada do trabalhador e, como tal, não considerou que existisse uma violação do art. 8º da CEDH537, garantindo, por outro lado, a prevalência da liberdade religiosa do empregador. Cai no mesmo enquadramento o caso Siebenhaar c. Alemanha538/539, no qual a queixosa, uma educadora de um jardim-de-infância com ligação ao Protestantismo, foi despedida com fundamento idêntico. A Senhora Siebenhaar, católica de religião, viu o seu contrato cessar ao abrigo de uma cláusula contratual que previa que os colaboradores da igreja Protestante não podiam pertencer ou colaborar com organizações cujos princípios fossem diferentes dos professados pelos Protestantismo. Em sua defesa a requerente apontou o facto de, efetivamente, desenvolver a sua atividade religiosa noutra localidade que não a da entidade empregadora. Além disso, alegou que sempre se absteve de praticar qualquer ato de proselitismo durante o seu horário de trabalho. A posição do TEDH passou pela procura de um justo equilíbrio entre o interesse geral (da igreja) e o interesse individual (da 534
Aproveitando o exemplo supra, o caso de um jardineiro ou um motorista de uma escola católica. Cfr. ac. Obst c. Alemanha, de 23 de dezembro de 2010. 536 O trabalhador recorreu ao TEDH pelo facto de entender que existiu uma violação do art. 8º da CEDH, ou seja, uma intromissão na sua vida privada. 537 Na mesma data, o Tribunal pronunciou-se sobre um caso idêntico, o ac. Schüth c Alemanha de 23 de dezembro de 2010, no qual se verificou um desfecho oposto pelo facto de o Estado não sustentar a intromissão da reserva da vida privada do trabalhador com a necessidade de garantir a liberdade religiosa do empregador, sendo como tal condenado por violação do art. 8º da CEDH. 538 Cfr. ac. Siebenhaar c. Alemanha, de 20 de junho de 2011. 539 O caso Siebenhaar é, provavelmente, o melhor exemplo do recurso à metodologia implementada desde o ac. Demir e Baykara c. Turquia. No decurso daquele acórdão, observamos inúmeras referências aos casos Obst e Schüth, o que é bem demonstrativo do recurso à jurisprudência existente para fundamentar decisões em novos acórdãos do TEDH. 535
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requerente) que pode promover algumas limitações aos direitos previstos na Convenção. Entenderam os juízes de Estrasburgo que a Senhora Siebenhaar estava, ou deveria estar, consciente dessas limitações ao assinar o contrato e que o seu despedimento foi justificado para que se garantisse a credibilidade da Igreja Protestante aos olhos do público em geral e, em particular, dos pais das crianças do jardim-de-infância, não se verificando, assim, nenhuma violação do art. 9º da CEDH, pois a sua restrição deriva da necessidade de proteção dos direitos e liberdades de outrem, conforme estipulado no nº 2, in fine, do predito artigo. De acordo com as decisões do TEDH que acabámos de analisar, retiramos que a entidade empregadora de tendência religiosa pode exigir aos seus trabalhadores que coadunem a sua conduta na sua vida privada em obediência aos preceitos da confissão daquela. Esta posição, também defendida por Reufels & Molle (2012, p. 1569), é por nós parcialmente criticada. Como já referimos anteriormente neste ponto, estas limitações embora compreensíveis nos trabalhadores que desempenham tarefas de tendência, não se afiguram como razoáveis para os demais trabalhadores, exceto se a sua conduta causar danos efetivos na organização da entidade empregadora, o que, salvo melhor entendimento, não se verificou nos casos descritos. O nº 2 do art. 9º da CEDH prevê a possibilidade de limitação da liberdade religiosa do trabalhador540, ressalvando que a mesma é efetuada no que for meramente necessário à garantia de direitos de outros, garantindo assim uma proporcionalidade entre o fim pretendido e a limitação de tão relevantes direitos. Acreditamos que esta segregação exagerada dos trabalhadores nas entidades empregadoras de tendência promove, ao invés de uma tolerância entre as religiões, um maior afastamento entre as mesmas, o que, na nossa opinião, contraria o verdadeiro intuito harmonizador e tolerante de um Estado secular como por nós é entendido. No que tange à independência organizacional das entidades de tendência religiosa, concordamos com o entendimento que tem sido preconizado pelo TEDH. O Tribunal de Estrasburgo tem primado pela salvaguarda da independência dos grupos religiosos, nomeadamente, aquando da escolha dos seus líderes religiosos obstando, deste modo, a uma intromissão por parte dos Estados, situação que pode ser observada, nomeadamente, nos casos Perry c. Letónia541, Serif c. Grécia542, Agga c. Grécia543 ou no caso Hasan e Chaush c. Bulgária544. Assim, sempre que existiu uma intromissão por parte de um Estado nessa mesma liberdade de organização por parte da entidade religiosa, o TEDH tem decidido pela violação da liberdade religiosa consagrada no art. 9º da CEDH, quando interpretado à luz do
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Aplicável, mutatis mutandis, ao previsto no art. 8º, nº 2, da CEDH no que diz respeito à proteção da vida privada e familiar do trabalhador. 541 Ac. Perry c. Letónia, de 2 de junho de 2008. 542 Ac. Serif c. Grécia, de 14 de março de 2000. 543 Ac. Agga c. Grécia, de 06 de agosto de 2002. 544 Ac. Hasan e Chaush c. Bulgária, de 26 de outubro de 2000.
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art. 11º do mesmo diploma, ou seja, através da existência de uma violação à liberdade de associação das organizações de tendência religiosa. No entanto, e tal como na vertente individual da liberdade religiosa, também a liberdade religiosa das entidades de tendência pode ser coartada545, nomeadamente por razões de segurança pública ou garantia de direitos e liberdades de outros como podemos constatar, a título de exemplo, no caso Leela Förderkreis E.V. e outros c. Alemanha546. Saliente-se que este é um fenómeno a acompanhar com particular atenção, mormente pela proliferação de novas religiões547 num espaço europeu cada vez mais caraterizado pela pluralidade religiosa.
Trabalhar e professar uma religião: um binómio discordante? Os (diferentes) costumes alimentares do trabalhador A temática dos costumes alimentares é, porventura, uma das matérias menos problematizadas neste vasto campo de estudo que é a liberdade religiosa em contexto laboral. Não obstante, entendemos pertinente a sua consideração como objeto deste estudo devido ao crescente pluralismo religioso que grassa no seio das entidades empregadoras e que potencia o aparecimento de vários conflitos, incluindo pelo motivo supra referido. Devemos, desde logo, mencionar a enorme discrepância de entendimento que se conhece nas determinadas crenças. Para algumas religiões a questão alimentar não tem grande preponderância nos respetivos ditames confessionais, estabelecendo para os seus fiéis somente algumas recomendações como é o caso da religião católica que, salvaguardando a referência genérica à gula como um dos pecados capitais, se limita a estabelecer algumas restrições alimentares em datas específicas como, nomeadamente, no período da Quaresma. Para outras, no entanto, as questões alimentares adquirem uma importância capital, É o caso, por exemplo, do judaísmo que segue uma rígida e restrita dieta cujos alimentos, apelidados de comida kosher, são definidos e preparados de acordo com as leis judaicas da alimentação548, a Kashrut. Também a religião hindu impõe determinadas restrições alimentares, nomeadamente ao não permitir a ingestão de carne bovina. Outras religiões, como a muçulmana, promovem a obrigação de efetuar períodos de abstinência. Durante o Ramadão, que corresponde ao nono mês do calendário do Islão, os fiéis abstêm-se de, entre outras coisas, comer durante o período que medeia entre o nascimento do sol e o seu ocaso. 545
Qualquer restrição deve ser efetuada tendo em consideração o fim pretendido em cumprimento do princípio da proporcionalidade e sempre dentro da margem de apreciação atribuída aos Estados. Caso tal não suceda, a intervenção do poder estatal, embora compreensível ao abrigo do art. 9º, nº 2, da CEDH, poderá ser considerada como ilegítima e violadora da liberdade religiosa das entidades, conforme podemos observar no ac. Holy Synod of the Bulgarian Orthodox Church e outros c. Bulgária, de 5 de junho de 2009. 546 Cfr. ac. Leela Förderkreis E.V. e outros c. Alemanha, de 6 de fevereiro de 2009. 547 Recentemente, o TEDH tem se pronunciado sobre casos cujos requerentes são novas organizações religiosas, como é o exemplo do Aumisme – Religion Universelle de l’Unité des Visages de Dieu. Cfr. ac. Association des Chevaliers du Lotus d’Or c. França, de 30 de abril de 2013. 548 Cfr. ac. Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França, de 27 de junho de 2000.
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Encontramos, ainda, o caso dos cristãos ortodoxos que respeitam a abstinência de determinados alimentos em certos dias da semana ou datas festivas. Com esta breve exposição, pretendemos demonstrar que não é de todo impossível que a relação de trabalho possa ser perturbada por questões atinentes à alimentação dos trabalhadores. É entendimento de Machado (2012, p. 106) que “o tempo das refeições, em princípio não (seja) considerado como tempo de trabalho”. Não obstante não discordarmos com a autora, salvo melhor opinião, a constante evolução e competitividade no mercado de trabalho tem promovido uma maior laboração em regime por turnos, o que, regra geral, implica uma jornada contínua de trabalho e a consequente necessidade de efetuar as refeições durante o período de trabalho. A estas situações, acrescentamos aquelas em que o empregador dispõe de uma cantina na qual são servidas as refeições aos seus trabalhadores, o que nos leva a considerar esta matéria motivo de estudo. Embora em contexto laboral observemos uma ausência de produção jurisprudencial por parte do TEDH, recorremos à apreciação de um caso que incide sobre problemáticas alimentares inseridas num contexto religioso por entendermos que a sua análise pode ser uma excelente orientação para eventuais situações de conflito entre trabalhadores e empregadores. O caso em apreciação apresenta-nos um recluso budista que recorrera ao TEDH por entender que a situação em que se encontrava consubstanciava uma violação do preceituado no art. 9º da CEDH pelo facto de a alimentação que lhe era fornecida não cumprir com os requisitos impostos pela sua religião. Neste caso, o Senhor Jakóbski549, que pertencia ao movimento Mahayana550, estava detido num estabelecimento prisional na Polónia,551. Era entendimento do queixoso que, ao abrigo da manifestação da sua liberdade religiosa, lhe fosse servida alimentação que não contivesse carne, visto assim estar instituído na dieta preconizada pela religião budista por ele professada. Considerou o Governo polaco que este pedido não deveria ser satisfeito pelo facto de entender que a opção por uma dieta vegetariana não era uma imposição mas somente uma orientação da crença do recluso e, assim sendo, não conflituava com a liberdade religiosa deste. Esta posição foi refutada pelo Tribunal que entendeu que a decisão de adesão a uma determinada dieta pode ser motivada pela religião e ser, portanto, considerada como expressão direta da liberdade religiosa. A impossibilidade de cumprir essa dieta é, pois, entendida como uma interferência na liberdade religiosa do queixoso, em violação do estipulado no art. 9º, nº 1, da CEDH, que só se entenderia como justificada se verificada alguma das restrições previstas no nº 2 do referido artigo. Feito esse cotejo, entendeu o Tribunal, posição que acompanhamos, que deveríamos ter em consideração a garantia dos direitos de outros, nomeadamente uma excessiva implicação financeira nos encargos da 549
Cfr. ac. Jakóbski c. Polónia, de 07 de março de 2011. O movimento Mahayana é, em conjunto com o movimento Theravada, um dos grandes movimentos budistas da atualidade. 551 Vide, no mesmo sentido, o ac. Vartic c. Roménia (no. 2), de 17 de março de 2014. 550
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instituição o que, indiretamente, poderia ter implicações nas condições dos outros reclusos. Ora, efetuada a devida ponderação dos direitos em causa, entendeu o Tribunal que, no caso em concreto, a preparação de uma refeição sem carne não implicaria um aumento das despesas do estabelecimento prisional e, como tal, não justificaria a interferência no direito do recluso552. Pese embora a margem de apreciação concedida aos Estados, entendeu-se que, neste caso, o Estado não efetuou a devida ponderação dos direitos em conflito coartando desnecessariamente a liberdade religiosa do requerente, promovendo a subsequente violação do art. 9º da CEDH. Se no caso em apreço a solução foi fácil de encontrar, entendemos que noutros casos em que a observância de determinadas dietas implique uma preparação e confeção totalmente diferenciada do regime alimentar praticado pela maioria, o desfecho poderá ser diferente. Transpondo a situação para o universo laboral, a verdade é que teremos sempre de efetuar a devida ponderação entre o direito de o trabalhador ver a sua liberdade religiosa respeitada e os direitos de outros, nomeadamente a organização económica da entidade empregadora que, no nosso entendimento, não poderá ser demasiado onerada com a solução encontrada. Na senda de Machado (2014b, p. 507), o empregador deve efetuar um “esforço razoável para adaptar a organização da empresa aos condicionalismos religiosos dos seus trabalhadores tendo sempre em atenção as circunstâncias do caso concreto”. Parecenos que as diversas situações devem ser alvo de apreciação casuística, com uma correta ponderação dos direitos em causa, pois a razoabilidade do esforço do empregador para ajustar as condições aos desígnios religiosos dos seus trabalhadores está sujeita a diversas variáveis como são, nomeadamente, o número de trabalhadores ou a dimensão da própria entidade empregadora553.
A flexibilidade na organização do tempo de trabalho A oração é uma manifestação da liberdade religiosa na vertente de liberdade de culto, consagrada na CEDH, concretamente no art. 9º, nº 1, in fine, que pode ser efetivada individual ou coletivamente, seja pela prática da meditação ou expressando orações e cânticos religiosos. Entende-se este momento do culto como a manifestação religiosa mais relevante por parte do indivíduo, em virtude de ser o momento em que o crente está em comunhão espiritual com o “ser superior” ou, como refere Junior (2013, p. 345), quando o primeiro está “em contato direto com a divindade (ou as divindades)”. Devemos compreender a liberdade de culto como uma manifestação da religião num espetro mais intimista, numa vertente interna do indivíduo, em contraste com as situações de
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Refere o tribunal que a refeição não teria de ser preparada, cozinhada ou servida de uma maneira especial, nem necessitava de outros ingredientes. 553 Cfr. art. 100º, nº 1, do CT que estabelece os diferentes tipos de empresas consoante a sua dimensão.
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proselitismo, que abordaremos num título infra554, nas quais a manifestação da liberdade religiosa do indivíduo implica a interação com um ou mais elementos da sociedade, como verificado no caso Pitkevich c. Rússia555, onde é abordada uma situação na qual uma juíza é acusada de rezar publicamente durante as audiências. No caso de um trabalhador que pretenda fazer uso da sua liberdade de culto durante o horário de trabalho, é notório um óbvio conflito de interesses entre esta intenção e a organização da entidade empregadora que pretende a disponibilidade do trabalhador para executar as tarefas para as quais foi contratado. Esta situação poderá ocorrer, nomeadamente, num cenário onde exista um trabalhador muçulmano, que cumpra, escrupulosamente, as regras impostas pela sua confissão. In casu, a prática do culto deve ser efetuada cinco vezes por dia em horários relativamente rígidos556 que poderão coincidir com o horário de trabalho podendo, inclusivamente, ser exercida no local de trabalho, visto a religião em causa não estabelecer um local específico para a realização da mesma. Entendemos que a problemática deriva de uma enorme dificuldade em articular dois direitos, a saber: por um lado, a liberdade religiosa do trabalhador e, por outro, a liberdade de organização económica da entidade empregadora, nomeadamente na determinação do seu período de funcionamento557 e a subsequente atribuição de horários558 a cada trabalhador. Não raras vezes, os períodos destinados a professar a crença do trabalhador, vistos como uma obrigação espiritual, por parte deste, são coincidentes com o horário de trabalho, que deriva de uma obrigação contratual. Assim como Jover (1990, p. 300), entendemos que a liberdade de culto faz parte do “conteúdo essencial do direito de liberdade religiosa” e que qualquer restrição deve ser devidamente ponderada. Por outras palavras, é importante aferir a exequibilidade do trabalhador se abster de cumprir o horário de trabalho que lhe havia sido adstrito pelo seu contrato, de modo a poder professar a sua fé nos períodos estipulados pelos ditames da sua confissão. No que tange às decisões do TEDH, entendemos que seria de esperar uma maior proteção da liberdade religiosa por tão douta instância. Embora compreendamos a dificuldade inerente à articulação dos direitos em confronto559, devemos criticar o facto de o Tribunal de Estrasburgo primar por um
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Vide ponto 2.3.5. Cfr. decisão de admissibilidade Pitkevich c. Rússia, de 8 de fevereiro de 2001. 556 A primeira oração deve ser realizada entre a alvorada e o nascer do sol, a segunda desde o meio-dia até à hora da oração da tarde, sendo que esta se realiza entre as 15:30 e o pôr do sol. A quarta oração é efetuada com o início do pôr do sol e a última oração do dia surge no início da noite. 557 Corresponde ao período de tempo que determinado estabelecimento pode exercer a sua atividade, cfr. art. 201º do CT. 558 Corresponde à determinação do descanso semanal e das horas de início e de termo do período normal de trabalho que o trabalhador se obriga a cumprir, cfr. arts. 198º e 200º do CT. 559 Na senda de De Schutter (2013, p. 139), não podemos deixar de mencionar que na génese dos direitos previstos na CEDH existe uma proteção contra os poderes dos diversos Estados e não para os poderes exercidos pelos empregadores no âmbito das relações juslaborais, o que, como refere o autor, obriga os tribunais a serem inventivos, acarretando diversas dificuldades nas soluções apresentadas. 555
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sentido decisório único, sustentado numa prevalência dos direitos económicos da entidade empregadora sobre a liberdade religiosa dos trabalhadores. Não obstante a nossa análise incidir sobre a jurisprudência do TEDH, gostaríamos de iniciar a nossa abordagem efetuando uma breve explanação de um caso colocado sob apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que remonta ao ano de 1976, facto demonstrativo da preponderância e relevância histórica da jurisprudência em matérias de liberdade religiosa em contexto laboral. É, deste modo, notório a existência de produção jurisprudencial antes de qualquer iniciativa da UE, nomeadamente a Diretiva 2000/78/CE, bem como a inclusão da garantia de tão relevantes direitos no próprio Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia TFUE. Referir somente que o caso em questão, que opõe a Senhora Vivien Prais e o Conselho da Comunidade Europeia560, não aborda um conflito derivado de uma relação contratual propriamente dita mas sim uma problemática gerada por um concurso de admissão a um cargo de tradutor nos quadros do Conselho. A Senhora Vivien, que à data da ocorrência professava a religião judaica, concorreu ao predito cargo de tradutora nos quadros do Conselho, tendo, na altura em que foi informada da sua admissão para a realização de testes escritos, comunicado a sua religião ao seu eventual empregador. Esta informação da requerente surge pela necessidade de informar da sua impossibilidade de comparecer nos preditos testes devido a motivos religiosos, pois a data da prova coincidia com o feriado religioso judaico do Pentecostes. A comparência da Senhora Vivien nas provas obstava a que cumprisse com os seus deveres religiosos que, entre outras obrigações, a inibiam de viajar ou prestar provas escritas no dia festivo em causa, o que levou a queixosa a indagar sobre a fixação de outra data para a realização do teste escrito, pedido que foi prontamente indeferido pelo Conselho por entender que todos os testes escritos deveriam ser realizados na mesma altura para garantir uma igualdade de condições avaliativas. Por outro lado, o Conselho excluiu uma eventual alteração de datas que garantisse essa mesma igualdade por consubstanciar uma situação prejudicial para os demais concorrentes que contavam com a data previamente marcada. Nestas circunstâncias, a requerente apresentou a situação à Comissão por entender que os factos em apreciação consubstanciavam uma violação da sua liberdade religiosa (cfr. art. 9º, nº 1, da CEDH). A Senhora Vivien acrescentou que o próprio regulamento da função a desempenhar estabelece que a admissão ao cargo é realizada sem atender à raça, religião ou sexo dos concorrentes, o que, no seu entender, não foi respeitado pelo facto de a data em causa obstar à presença de judeus praticantes na realização das mesmas. Não obstante a explanação da requerente, a Comissão pronunciou-se desfavoravelmente à sua pretensão de impugnar os resultados do concurso, dando razão aos argumentos da defesa que recorreu ainda ao timing da informação por parte da Senhora Vivien. Refere o Conselho que se a 560
Caso Vivien Prais c. Conselho das Comunidades Europeia do TJUE, processo 130/75, de 27 de outubro de 1976, disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:61975CJ0130.
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requerente tivesse informado da sua religião aquando da realização da candidatura a marcação da prova escrita seria efetivada tendo em consideração esse facto, pois, nessas circunstâncias, não observaríamos eventuais prejuízos para os demais concorrentes. Não o realizando, e tendo em conta que a liberdade religiosa não é um direito absoluto, a Comissão entende que este poderia, e foi, coartado com base no art. 9º, nº 2, in fine, da CEDH, quando o normativo estipula que este direito pode sofrer limitações em função da proteção de direitos de terceiros, ou seja, os demais concorrentes ao cargo. Compreende-se assim a limitação deste direito em prol da defesa de direitos de terceiros e como tal propugnamos a boa decisão por parte da Comissão. Já no âmbito da jurisprudência do TEDH, retiramos dois casos que apresentam bastantes similitudes561. Falamos do caso Ahmad c. Reino Unido562 e do caso Konttinen c. Finlândia563 que são bem demonstrativos da preponderância dos direitos económicos sobre a liberdade religiosa dos trabalhadores. No caso Ahmad c. Reino Unido encontramos um professor, muçulmano, que pretendia ajustar o seu horário de modo a que, em todas as sextas feiras, conseguisse frequentar uma mesquita para rezar564, dando assim cumprimento ao estipulado pela sua religião. A dada altura da sua vida profissional foi transferido para uma escola que, devido à proximidade com uma mesquita, lhe permitia cumprir com os seus desígnios religiosos desde que lhe fosse permitida uma pequena ausência da escola565 a seguir ao período da manhã. Como o tempo de culto excedia o período de pausa das atividades letivas, o queixoso pretendia que o seu horário fosse ajustado de modo a não ter atividades logo no início da tarde de sextafeira, tempo esse que seria compensado ao longo dos seus períodos livres nos outros dias da semana. Não obstante o seu pedido ter sido indeferido reiteradamente, o requerente frequentava a mesquita, o que levava a ausências nas aulas de cerca de 45 minutos todas as sextas feiras, comportamento que acabou por desencadear o seu despedimento. O caso foi levado à Comissão, que indeferiu a pretensão do requerente, nomeadamente por se entender que não ficou comprovada uma imposição pela sua religião para a observância desse mesmo período e, assim sendo, não existia uma afetação do núcleo essencial da liberdade religiosa566. Esta situação remete-nos para o problema de identificar até onde se pode considerar uma verdadeira obrigação as estipulações da confissão que se professa. Tal como no uso dos símbolos religiosos, onde o TEDH já considerou o uso do crucifixo católico
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Existem outros casos que, com as devidas especificidades, são idênticos aos aqui analisados, nomeadamente o caso Stedman c. Reino Unido, de 9 de abril de 1997. 562 Caso Ahmad c. Reino Unido, de 12 de março de 1981. 563 Caso Tuomo Konttinen c. Finlândia, de 3 de novembro de 1996. 564 Considerando que a distância para a mesma fosse relativamente curta. 565 De acordo com o requerente, o tempo de culto na sexta-feira, começava às 13 horas e tinha a duração de pelo menos uma hora. 566 Cfr., no mesmo sentido, ac. Kosteski c. Macedónia, de 13 de abril de 2006.
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como facultativo em contraste com a utilização do hijab567, que considerou como imposição da doutrina islâmica, também cabe às instâncias jurisdicionais aferir casuisticamente se estamos perante uma imposição ou uma faculdade de culto por parte dos crentes nas mais diversas religiões. O entendimento passou assim por uma não obrigação de frequentar a mesquita, o que em confronto com a organização dos horários escolares levou à prevalência deste último direito. Parece-nos que, mesmo não sendo uma imposição por parte da religião em causa, nada obstava a que existisse um compromisso por parte da escola em permitir ao Senhor Ahmad a ida à mesquita para cumprir com as suas crenças. Efetuando um breve exercício de ponderação dos direitos em confronto, parece-nos que a organização económica da escola, que passaria pela atribuição de outro horário ao trabalhador, seria perfeitamente exequível para garantir a liberdade religiosa do trabalhador. Assim, o Senhor Ahmad continuaria a desempenhar as suas funções, com um horário adaptado, mas respeitando o período normal de trabalho que lhe estava adstrito no contrato de trabalho, não causando prejuízo grave ao empregador. Situação idêntica encontramos no caso Konttinen c. Finlândia, em que o trabalhador, funcionário dos caminhos de ferro estatais da Finlândia, foi demitido por inadimplir o seu horário de trabalho devido ao cumprimento de obrigações religiosas. De facto, esta não era a religião inicialmente professada pelo requerente mas este, já durante a vigência do seu contrato de trabalho, tornou-se membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, cumprindo assim com uma das vertentes inerentes à liberdade religiosa, ou seja, a faculdade de mudar de religião. Com o professar desta confissão, surgiram as obrigações inerentes a qualquer crente. Destacamos a 20ª crença pelo facto de conter a obrigação que desencadeia toda a conflitualidade explanada no acórdão. Nessa mesma crença é estabelecida a obrigação de o membro adventista se abster de qualquer prática relacionada com o trabalho no período entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol de sábado. Dos ditames desta religião retiramos que este período é reservado, exclusivamente, para o culto e para a família. Aqui, e contrariamente ao que sucedeu no caso Ahmad onde o Tribunal entendeu o ato de rezar como uma faculdade e não uma obrigação por parte do trabalhador, a 20ª crença é encarada como uma imposição por parte da religião e que deve ser escrupulosamente respeitada pelos Adventistas. Para dar cumprimento ao estipulado na sua confissão, o Senhor Konttinen requereu que não lhe fosse atribuído um turno que coincidisse com as horas de impedimento religioso, manifestando disponibilidade de compensar essas ausências em alturas que o mesmo sucedesse mais tarde, nomeadamente nos meses de verão. O pedido foi indeferido pelo empregador, o que levou o queixoso a abandonar o seu posto de trabalho sempre que o
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Das vestimentas preconizadas pela doutrina islâmica é, provavelmente, o lenço mais utilizado no espaço europeu. Cobre o cabelo, pescoço e ombros deixando o rosto totalmente visível.
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seu horário se prolongava além do pôr do sol de sexta-feira, situação que culminou no seu despedimento. No seguimento da situação enunciada e após o esgotamento dos recursos jurisdicionais in foro domestico, o Senhor Konttinen recorreu ao TEDH, onde viu, mais uma vez, a sua pretensão negada. Defendeu o Tribunal que a liberdade religiosa do requerente não estava colocada em causa, visto que, em última instância, o trabalhador poderia sempre cessar o seu contrato e assim nada obstaria a que cumprisse com os desígnios da sua religião. Machado (2015, p. 176) critica esta solução do Tribunal por este adotar “uma visão redutora do problema ao ignorar por completo as convicções religiosas do trabalhador”. Parece-nos que esta interpretação é contrária ao verdadeiro fito da CEDH, pois é nosso entendimento que ao TEDH cabe harmonizar568 os direitos humanos com os demais e não, em sentido oposto, limitar-se a escolher entre eles. Caberá ao Tribunal providenciar por uma minimização das limitações dos direitos humanos do indivíduo enquanto trabalhador, pois com esta decisão o TEDH aponta para uma solução optativa por parte do requerente e não uma solução integradora que seria, salvo melhor opinião, um real garante para tão relevantes direitos. Por fim, gostaríamos de fazer referência ao caso Sessa c. Itália569. In casu, encontramos um advogado, membro da comunidade Judaica de Nápoles que, no exercício da sua profissão, pretendia que a data de uma audiência fosse alterada para que não coincidisse com feriados judeus570. O diferendo surgiu após uma audiência prévia na qual o juiz deu a escolher às partes intervenientes duas datas para a realização de uma nova audiência, datas que coincidiam com os feriados em causa. O Senhor Sessa informou de pronto sobre a sua situação, facto que o juiz ignorou, procedendo à marcação da audiência para o dia 13 de outubro, data na qual o advogado não compareceu, invocando motivos pessoais (índole religiosa). Entendeu o requerente que ao comparecer em juízo incumpriria as suas obrigações religiosas e que o comportamento intransigente do juiz consubstanciava uma violação da liberdade religiosa. O entendimento do TEDH acompanhou a posição apresentada pelo Estado italiano que entendeu, em primeiro lugar, que o Senhor Sessa poderia ser representado por um colega ou, inclusivamente, não comparecer visto a sua presença não ser obrigatória no caso em concreto. Complementaram a argumentação referindo que uma eventual alteração da data traria um inconveniente de grande monta para os demais intervenientes colocando em causa, inclusivamente, o preceito do art. 6º da CEDH, nomeadamente o direito que qualquer pessoa tem de ver a sua causa examinada num prazo razoável, o que, em conjugação com o art. 9º, nº 2, do mesmo diploma, poderia consubstanciar uma situação de restrição, 568
Harmonização que, nas palavras de Ulloa (2012, p. 546), passa por uma “conveniente proporção e correspondência” entre os direitos em causa. 569 Caso Francesco Sessa c. Itália, de 3 de abril de 2012. 570 Dias 13 e 18 de outubro de 2015, respetivamente Yom Kipur e Sukkot.
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nomeadamente por razões de proteção de liberdades de outrem. Discordamos desta posição, pois não se afigura que o facto de não ser obrigatória a presença do senhor Sessa na audiência sirva de fundamento para que se faça tábua rasa de um direito tão relevante como é a liberdade religiosa. Caberia ao advogado a decisão de estar em tribunal ou delegar num colega essa responsabilidade, facto que não sucedeu no caso sub judice. Quanto ao prejuízo invocado por uma eventual alteração da data, entendemos que a mesma se justificaria se a audiência fosse previamente agendada e o pedido do Senhor Sessa fosse posterior, situação que não sucedeu571. Quanto ao prazo razoável para apreciação da causa, parece-nos que, tendo em conta o lapso temporal572, seria possível realizar uma reorganização dos julgamentos sem colocar em causa o estatuído no art. 6º da CEDH. Da análise dos casos supra, retemos alguma inflexibilidade por parte do TEDH nas decisões proferidas. Excetuando o caso Prais, entendemos que em qualquer das situações se afigurava como possível a concordância do exercício da liberdade religiosa do trabalhador com a organização económica do empregador mormente porque seria viável a atribuição de um horário diferente ao trabalhador que permitisse compensar integralmente as horas que este dedicava ao culto religioso. Devemos referir que as medidas tomadas não se afiguram como proporcionais na prossecução de garantir, por um lado, a liberdade religiosa e, por outro, a organização económica. Na senda da declaração de voto de vencido573 de parte do coletivo de juízes do caso Sessa c. Itália onde se refere que “a proporcionalidade é o teste por excelência para aferir da necessidade da medida tomada numa sociedade democrática”, entendemos que a liberdade religiosa poderia ser garantida através de alguns ajustes aos horários de trabalho ou, no caso Sessa, através da marcação de outra data para a audiência. Nestas circunstâncias, a liberdade religiosa dos trabalhadores seria acautelada, em sintonia com o art. 9º, nº 1, da CEDH, sem que o direito de organização económica das entidades empregadora fosse colocada em causa, ou que a solução para estes fosse demasiado onerosa. Como defende Almeida (2008, pp. 17-18), “não basta reconhecer e proclamar os direitos humanos (…). Necessário se torna garantir o seu respeito” e, neste caso, parece-nos que caberá ao TEDH esse papel através de uma via integradora. Neste ponto do estudo, entendemos pertinente efetuar uma referência a duas recentes decisões do TC574, cuja apreciação entendemos ser de extrema relevância para a proteção do exercício da liberdade religiosa na sua vertente de culto. Destes acórdãos devemos,
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Parece-nos que o facto de existirem datas sujeitas a escolha é demonstrativo da inexistência de uma calendarização definitiva da audiência. 572 Entre a indicação da data da audiência/pedido de alteração e a realização da mesma mediaram quatro meses. 573 A votação foi de quatro votos a favor e três contra. Votaram contra a decisão do TEDH os juízes Tulkens, Popovic e Keller. 574 Ac. nº 544/2014 do TC, com o processo nº 53/12 (Maria José Rangel de Mesquita), e ac. nº 545/2014 do TC, com o processo nº 52/2014 (Carlos Fernandes Cadilha), ambos de 15 de julho de 2014, disponíveis em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
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desde logo, ressaltar o caráter transversal da sua aplicabilidade. De facto, encontramos como requerentes uma magistrada do Ministério Público (ac. do TC, nº 545/2014) e uma operária fabril (ac. do TC, nº 544/2014), representando assim, respetivamente, o setor público e o setor privado do nosso espetro laboral. Em comum, o facto de as suas funções serem desempenhadas em regime de trabalho por turnos e também o facto de ambas serem praticantes da Igreja Adventista do Sétimo dia que, como constatámos anteriormente575, as inibe de prestar trabalho entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol de sábado, sendo este período reservado ao culto e à família, situação que as requerentes pretendiam observar para dar cumprimento aos desígnios da sua confissão. A fundamentação do pedido ao TC passa pelo estipulado no art. 14º, nº 1, da LLR que prevê a possibilidade de o trabalhador suspender o horário de trabalho no dia de descanso semanal prescrito pela sua religião576. Para o trabalhador fazer uso da prerrogativa legal devem verificar-se três requisitos cumulativos: a) o trabalhador desempenhar funções em regime de flexibilidade de horário; b) ser membro de Igreja ou comunidade religiosa que tenha comunicado ao Governo os dias e períodos referentes às festividades da religião; c) existir a possibilidade de compensar integralmente o período de trabalho que, pelos motivos supra, não tivesse sido realizado. O cerne da questão passa pela interpretação da al. a) do n.º 1 do art. 14º da LLR, ou seja, o conceito de regime de flexibilidade de horário. Era entendimento das requerentes que o trabalho por turnos estaria abrangido pelo regime supra, mas os acórdãos dos diversos tribunais577 que precederam as decisões do TC vão em sentido oposto, propugnando pela não inclusão daquele regime. Os juízes dos diversos tribunais envolvidos entenderam a laboração por turnos como um regime caraterizado por uma rigidez que deriva da perfeita definição da hora de início e de turno de período normal de trabalho. Nas palavras dos doutos juízes, “não é por trabalhar em regime de turnos que se verifica essa flexibilidade. As horas de início e termo do período normal diário estavam perfeitamente determinados e eram fixos, apenas alternando em função da rotação do turno. E esse carácter fixo é precisamente o oposto de flexibilidade de horário”578. Esta posição é sustentada doutrinalmente por 575
Cfr. apreciação do caso Konttinen c. Finlândia apresentado supra. Contrariamente à posição defendida por Leitão (2014, p. 155) quando refere que “relativamente à utilização de dias de descanso que não correspondam aos legalmente previstos, parece que o empregador não estará legalmente obrigado a permitir a sua observância (…)”, entendemos que decorre taxativamente da lei, nomeadamente do artigo em apreciação, essa obrigatoriedade. 577 O recurso de constitucionalidade decidido no ac. nº 544/2014, vem no seguimento das decisões proferidas no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) com o processo nº 449/10.0TTLSB.L1-4, de 15 de dezembro de 2011 (Ramalho Pinto), disponível em: www.dgsi.pt, e de decisão prévia no Tribunal de Trabalho de Loures. Quanto ao recurso de constitucionalidade decidido no ac. nº 545/2014 surge após improcedência dos pedidos efetuados pela requerente, cujas decisões foram proferidas sucessivamente nos seguintes acórdãos do STA: ação administrativa especial, com o processo nº 058/12, de 06 de dezembro de 2012 (Costa Reis) e subsequente recurso jurisdicional, com o mesmo nº de processo, de 12 de novembro de 2013 (Madeira dos Santos) ambos disponíveis em: www.dgsi.pt/jsta. 578 Cfr. ac. do TRL de 15 de dezembro de 2011, disponível em www. dgsi.pt. 576
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Fernandes (2014, p. 311) que define o horário flexível como aquele em que estando “delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador (…) este, com respeito por esses períodos, escolhe, dentro de certas margens, as horas de entrada e saída do trabalho (…)”, o que, efetivamente, não acontece num trabalho por turnos. O mesmo entendimento foi aplicado pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) quando refere que “o magistrado de turno tem, por definição, de se apresentar (ou estar contactável para uma apresentação imediata) no tribunal durante as horas de expediente, não dispondo da liberdade de escolher as suas horas de entrada e saída”579. Com a nova interpretação do art. 14º, nº 1, da LLR dada pelos juízes do TC, entende-se que o conceito de flexibilidade não se restringe ao entendimento que até então vinha sendo seguido pela jurisprudência que, baseada numa interpretação literal, se aplicava somente aos trabalhadores com responsabilidades familiares580. Com os acórdãos em análise, o conceito de flexibilidade de horário passou a ser aplicado não somente aos trabalhadores referidos supra mas também aos trabalhadores por turnos581. Embora não discordemos da interpretação do STA ou do TRL quando referem que o trabalho por turnos obedece a um regime rígido pelo facto de contemplar as horas de início e de termo do período de trabalho, a verdade é que entendemos que a flexibilidade pode e deve ser entendida, não numa perspetiva individual de cada trabalhador mas antes pelo prisma coletivo do empregador que ao criar, ab initio, diferentes horários na sua organização, permite a possibilidade de ajustamentos entre os diversos trabalhadores em casos como o aqui referenciado. O caráter inovador desta decisão do TC é, salvo melhor opinião, uma mais valia na defesa dos direitos humanos. Ao estabelecer uma interpretação extensiva ao conceito de flexibilidade de horário, o TC permite que a liberdade religiosa adquira, agora, uma alargada aplicabilidade a trabalhadores que observem as condições de manifestar a sua crença desde que não se verifique um prejuízo desproporcional dos seus deveres para com a entidade empregadora. Acreditamos que esta nova interpretação, num aprofundamento da metodologia iniciada no acórdão Demir e Baykara c. Turquia, pode ser uma referência para futuras decisões do TEDH, bem como para tribunais de outros ordenamentos jurídicos nos quais a existência de um dever empresarial de acomodação razoável dos tempos de trabalho perante as crenças religiosas ainda é um passo a realizar (Forteza, 2014, p. 72).
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Cfr. ac. do STA relativo a recurso jurisdicional com o proc. nº 058/12 de 12 de dezembro de 2013 (Madeira dos Santos), disponível em: www.dgsi.pt/jsta. 580 O CT prevê, no seu art. 56º, a possibilidade de o trabalhador com filhos menores de 12 anos ou filho com deficiência ou doença crónica (independentemente da idade) trabalhar em regime de horário flexível. 581 O tribunal entendeu ainda estender a aplicabilidade desta norma a outros regimes de trabalho existentes no nosso ordenamento jurídico, nomeadamente aos horários em jornada contínua, horários desfasados, e ainda aos contratos de trabalho onde esteja considerada a isenção de horário. Salvo melhor opinião, este último regime de horário parece-nos, inclusivamente, o tipo de horário onde fará mais sentido a aplicação da norma em apreciação.
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A omissão de deveres do trabalhador As dificuldades inerentes aos eventuais conflitos que advenham do respeito pela liberdade religiosa do trabalhador em contraponto com a organização económica da entidade empregadora, regra geral, não carecem da possibilidade de resolução através de uma ponderação dos direitos em conflito sendo que, num plano ideológico, como defende Machado (2011, p. 14), tudo poderia ser resolvido através do recurso ao princípio da boa fé582 para que empregador e trabalhador, num exercício de adaptação, chegassem a um entendimento, posição com a qual concordamos. De facto, toda “a execução do contrato de trabalho deve passar pela assunção de condutas corretas, leais e sem reservas” (Lambelho & Gonçalves, 2014, p. 159) e, assim sendo, parece-nos que devemos estender estes comportamentos a quaisquer conflitos que surjam entre as partes promovendo, deste modo, uma resolução que não comprometa nenhum dos direitos em confronto. Existem inúmeras situações recorrentes de trabalhadores do setor público que, devido às especiais caraterísticas das suas funções, prestam um juramento solene antes de iniciarem o desempenho da atividade para a qual havia sido contratado ou empossado583. Falamos, nomeadamente, do caso Buscarini e outros c. São Marino584, no qual os queixosos, nomeados para o Parlamento de São Marino, eram obrigados a prestar juramento, no qual constava uma referência religiosa, aquando da tomada de posse. Entenderam os requerentes que esta situação configurava uma violação da sua liberdade religiosa, na perspetiva em que os obrigava a, de algum modo, prestar publicamente fidelidade a uma determinada religião, sendo que, se não o fizessem, não poderiam assumir funções para as quais houveram sido nomeados. A obrigação de se expressarem publicamente parece-nos que consubstancia uma violação da liberdade religiosa, pois esta abrange a possibilidade de, por um lado, não só ter ou manifestar uma religião, mas também, por outro lado, a faculdade de não professar ou mesmo ter qualquer confissão. O TEDH sustentou, precisamente, que existia, in casu, uma violação do art. 9º, visto que a restrição deste direito não era necessária num estado democrático, falhando, como tal, um dos requisitos impostos pelo art. 9º, nº 2, da Convenção. Nesse sentido, apraz referir que ainda antes desta decisão do Tribunal, foi introduzida no ordenamento jurídico de São Marino585 a possibilidade de os novos membros do Parlamento, ao tomarem posse, optarem por jurar sobre o evangelho ou sob a sua honra, 582
O respeito pelo princípio da boa fé está expressamente referido no art. 126º, nº 1, do CT que estipula a obrigação das partes procederem de “boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respetivas obrigações”. 583 O prestar de juramento sucede em demais situações, nomeadamente aquando da prestação de declarações em tribunal. Também aqui o TEDH teve a oportunidade de se pronunciar sobre dois casos em que o juramento incluía referências religiosas. Vide ac. Dimitras e outros c. Grécia, de 3 de novembro de 2011, bem como o ac. Alexandridis c. Grécia de 21 de fevereiro de 2008. 584 Cfr. ac. Buscarini e outros c. São Marino, de 18 de fevereiro de 1999. 585 Lei nº 115/1993, de 29 de outubro (São Marino).
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o que acaba por demonstrar que essa mesma obrigação não se afigurava como necessária. Assim como o Tribunal, também nós entendemos que num Estado secular não se afigura como viável uma obrigação desta índole, existindo, eventualmente, espaço para tal em entidades empregadoras de tendência, nomeadamente pelo ethos que professam e pela especial relação que detêm perante os seus trabalhadores586/587. Mais abrangente do que uma mera omissão de um ato no desempenho de uma profissão é o caso da escusa a uma atividade no seu todo. Por excelência, devemos apontar os casos de recusa de cumprimento do serviço militar588 que, em termos quantitativos, no que tange a decisões que versem sobre matérias de índole religiosa, surgem como um dos expoentes máximos da jurisprudência do TEDH. Efetivamente tem sido fundamento de inúmeras queixas ao Tribunal de Estrasburgo, a violação da liberdade religiosa de indivíduos que são chamados a cumprir o serviço militar589, situação que é contrária à sua fé, nomeadamente das Testemunhas de Jeová. Conforme nos é referido no ac. Bayatyan c. Arménia590, “o pacifismo é visto como um princípio fundamental da religião que proíbe qualquer conduta ou prática associada com a guerra ou violência, mesmo que indiretamente”. Primeiramente, é mister perceber que o serviço militar obrigatório não é contrário aos desígnios da CEDH. Não obstante o art. 4º, nº 2, da Convenção prever a proibição de trabalhos forçados ou obrigatórios, o nº 3 do mesmo dispositivo apresenta um elenco de exceções onde encontramos, em concreto na sua al. b), a previsão de qualquer serviço de caráter militar ou, no caso de países que reconheçam a objeção de consciência, qualquer outro serviço de caráter civil que substitua aquele. O problema passa sim pela violação da liberdade religiosa prevista no art. 9º, especificamente nos casos em que não existe reconhecimento da objeção de consciência. Nessa situação, o facto de não estar prevista uma alternativa ao serviço militar obrigatório, implica uma imposição que é contrária aos desígnios da religião dos queixosos dos diversos casos. O TEDH tem reiterado que, nestes casos, se verifica uma violação da liberdade religiosa pelo facto de existir uma obrigação sem que estejam consagrados mecanismos alternativos que salvaguardem a liberdade religiosa dos indivíduos pertencentes a religiões que se manifestem contra qualquer prática associada a situações de guerra ou violência. Na senda das decisões do Tribunal,
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Cfr. ponto 2.2. Na mesma temática vide ac. McGuinness c. Reino Unido, de 08 de junho de 1999. 588 Pese embora, na atualidade, o serviço militar seja voluntário na maior parte dos países europeus, verificou-se durante um largo período de tempo a existência de serviço militar obrigatório. Em Portugal a extinção do serviço militar aconteceu em 2004. 589 Muitos dos casos em questão, incidem sobre a violação do art. 9º em conjugação com o art. 14º, ambos da CEDH. Os requerentes, com funções nas suas congregações de religiões não reconhecidas ao abrigo da legislação interna, entendem que a sua liberdade religiosa estava coartada no sentido de serem obrigados em cumprir serviço militar ao contrário do que sucede com os membros das religiões legalmente reconhecidas. Vide, nomeadamente ac. Löffelmann c. Áustria, de 12 de março de 2009, o ac. Lang c. Áustria, de 19 de março de 2009, ou o ac. Tsirlis e Kouloumpas c. Grécia, de 29 de maio de 1997. 590 Cfr. ac. Bayatyan c. Arménia, de 27 de outubro de 2009. 587
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entendemos que esta ingerência no direito previsto no art. 9º da CEDH, não se justifica numa sociedade democrática591. O Tribunal refere que na maioria dos Estados membros do Conselho da Europa onde vigora o serviço militar obrigatório existe uma solução alternativa ao cumprimento desta obrigação, desde que devidamente justificada ao abrigo do art. 9º, o que leva a que os países onde tal não se verifique tenham uma reduzida margem de apreciação no que tange à interferência na liberdade religiosa dos seus habitantes592. Neste sentido, o Tribunal tem vindo a condenar alguns Estados pelo facto de não preverem no seu ordenamento jurídico a existência de alternativa ao serviço militar, apontando a existência de um problema estrutural de base, como, por exemplo, sucedeu nos casos Erçep c. Turquia593 e Buldu e outros c. Turquia594. Aos Estados compete criar condições para que a liberdade religiosa seja respeitada sob pena de serem condenados por violarem o preceito do art. 9º da Convenção por omissão das obrigações positivas a que estão adstritos. Parece-nos, deste modo, que, nesta matéria específica, as decisões do TEDH têm primado por um correto entendimento da CEDH, em particular o facto de entender essas mesmas omissões dos Estados condenados como uma ingerência na liberdade religiosa dos requerentes. Nos dois cenários apresentados supra, identificamos uma adaptação dos Estados, seja, numa primeira situação, pela possibilidade de o juramento ser prestado sem uma referência de caráter religioso ou, nesta última situação, a possibilidade de exercer outras funções em detrimento da prestação do serviço militar. Não obstante as situações anteriormente explanadas passarem por uma solução de adaptação, sucede que, por vezes, é mais complicado compatibilizar os interesses das partes e, não raras vezes, constatamos situações de conflito que, no entendimento do TEDH, não passam por uma aproximação entre os desígnios dos intervenientes da relação juslaboral, mormente numa situação em que um trabalhador se recuse a efetuar uma tarefa determinada pelo seu empregador por esta ser contrária à sua religião. Tomando como exemplo o ordenamento jurídico português, o trabalhador ao escusar-se a realizar as preditas tarefas está, regra geral, a violar o dever de obediência previsto no art. 128º, nº 1, al. e), do CT, por não cumprir com as ordens do empregador. Pese embora estejamos perante um dos deveres acessórios mais importantes do trabalhador, este não é absoluto e “apesar da sua intensidade e extensão (…) tem limites gerais e específicos” (Ramalho, 2014, p. 437). Os limites gerais são precisamente os direitos e garantias do trabalhador como podemos observar na própria norma, in fine. Nestas circunstâncias o trabalhador pode recusar-se a realizar tarefas que coloquem em causa esses mesmos direitos. Urge, assim, 591
Cfr. ac. Tsaturyan c. Arménia, de 10 janeiro de 2012. Cfr., nomeadamente, o ac. Feti Demirtas c. Turquia, de 12 de janeiro de 2012, e o ac. Bukharatyan c. Arménia, de 10 janeiro de 2012. 593 Cfr. ac. Erçep c. Turquia, de 22 novembro de 2011. 594 Cfr. ac. Buldu e outros c. Turquia, de 3 de junho de 2014. 592
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aferir da liberdade religiosa como fundamento para afastar a realização dos deveres a que o trabalhador esteja vinculado. No caso Knudsen c. Noruega595 um vigário de uma pequena localidade, em protesto à entrada em vigor de uma lei que atribuía à mulher a possibilidade de interromper voluntariamente a gravidez até ao final da décima segunda semana de gestação, entendeu não efetuar as funções que lhe eram atribuídas pelo Estado, nomeadamente a realização de casamentos, resignando ao cargo atribuído pelo Estado e ao respetivo vencimento. Não obstante, entendeu manter-se como vigário da paróquia por considerar que havia sido designado pela Igreja, executando pequenas tarefas administrativas. Por decisão do Tribunal acabou por ser despedido por incumprimento dos seus deveres, situação que, ao contrário da pretensão do requerente, a Comissão não considerou como violadora da liberdade religiosa, visto este não ter sido coagido a mudar o seu ponto de vista perante a questão do aborto, nem lhe ter sido coartada a possibilidade de exprimir as suas ideias, obstando assim ao prosseguimento do pedido do requerente para julgamento. Dentro dos mesmos moldes, encontramos o caso Pichon e Sajous c. França596, que nos apresenta dois coproprietários de uma farmácia, condenados pelos tribunais franceses ao pagamento de uma indemnização a diversas clientes devido ao facto de se recusarem a vender pílulas anticoncecionais. Não obstante as clientes estarem munidas de receita médica, os queixosos entendiam que não eram obrigados a ter medicação contracetiva na sua farmácia (única na localidade), visto a sua utilização ser contrária ao preconizado pela sua religião. Embora, no caso, não estejamos perante trabalhadores, na conceção que temos abordado, torna-se extremamente fácil realizar um exercício de adaptação e perceber que, se a recusa partisse de um trabalhador, que não proprietário, a análise do caso seria idêntica e, se a situação desencadeasse um despedimento, parece-nos que a liberdade religiosa do trabalhador não seria fundamento para o impugnar. Na senda da decisão do Tribunal, que declarou a inadmissibilidade desta queixa, entendemos que a liberdade religiosa não passa pela imposição das crenças aos demais. Embora seja plausível que os requerentes sigam os ditames da sua religião, não recorrendo a meios contracetivos, não implica que imponham a terceiros essa mesma orientação, através da recusa em vender a dita medicação. A situação mais mediática no que tange a esta temática da omissão de deveres por parte dos trabalhadores é abordada no leading case Eweida e outros c. Reino Unido597, mais concretamente nos casos Ladele e McFarlane, onde os requerentes, despedidos por se escusarem a realizar funções inerentes à sua ocupação, entenderam que sofreram uma violação do art. 14º conjugado com o art. 9º, ambos da CEDH. Num enquadramento sucinto
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Decisão de admissibilidade Knudsen c. Noruega, de 8 de março de 1985. Vide decisão de admissibilidade do TEDH: Pichon e Sajous c. França, de 2 de outubro de 2001. 597 Cfr. ac. Eweida e outros c. Reino Unido, de 15 de janeiro de 2013. 596
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da factualidade, encontramos, num primeiro caso, a Senhora Ladele, funcionária do Registo Civil, a qual se recusava a realizar uniões civis entre pessoas do mesmo sexo por ser contrário ao estipulado pela igreja católica e, num segundo caso, o Senhor McFarlane, psicólogo que desempenhava funções numa organização privada que providenciava serviços de terapia sexual e ainda aconselhamento de relacionamentos de casais, que, devido às suas crenças católicas, assumiu um conflito entre os seus ideais religiosos e a prestação de terapia sexual a casais de pessoas do mesmo sexo. Consequentemente, em ambas as situações, os queixosos foram despedidos por não desempenharem as suas funções em conformidade com o estipulado pelas referidas entidades empregadoras, que promoviam um ideal de não discriminação e tratamento indiferenciado para toda a comunidade. A Senhora Ladele entendeu ser alvo de discriminação com fundamento na sua religião. Defendeu que a sua atuação não causaria prejuízo aos casais homossexuais, visto que existiam outros colegas de trabalho que realizariam as uniões de facto em causa. Assim sendo, pretendia, meramente, um tratamento diferenciado precisamente pelo facto de a sua situação ser, também ela, diferente dos colegas de trabalho que não tinham nenhuma objeção às uniões entre pessoas do mesmo sexo. No mesmo sentido, o Senhor McFarlane entendia que a sua situação poderia ter sido resolvida através da atribuição de outro conselheiro aos casais homossexuais sem que isso lhes causasse prejuízo. A decisão do TEDH foi, em ambos os casos, no sentido da não violação da liberdade religiosa dos trabalhadores, mormente pelo facto de entender que, na ponderação dos direitos em confronto, se afigurava como legítimo aos empregadores exigirem aos seus trabalhadores a execução das tarefas a que estavam adstritos cumprindo com o desígnio de fornecer um serviço não discriminatório e estendendo essa obrigação a todos os trabalhadores. Não obstante os Estados observarem uma liberdade decorrente da margem de apreciação, como refere Taramundi (2013, p. 176), o estabelecimento dessa mesma margem deve ter em conta “a necessidade de manter um autêntico pluralismo religioso que é inerente ao conceito de sociedade democrática”, situação que, no nosso entendimento, não foi aqui salvaguardada. Verificamos que, concretamente no Caso Ladele, o Tribunal não questionou a possibilidade de adaptação das funções dos trabalhadores em respeito às suas convicções religiosas sem olvidar, obviamente, as necessidades organizacionais do empregador. A demonstração fáctica da possibilidade de ajustamento dos direitos em confronto através de um exercício de adaptação598 permite-nos concluir, salvo melhor opinião, que também nestes casos seria possível salvaguardar a liberdade religiosa dos trabalhadores sem colocar em causa a missão não discriminatória da entidade empregadora. Relembra Gallego (2012, p. 3) que estas decisões seguem a posição tradicional do TEDH quando confrontado com “dilemas morais”.
598
Cfr., nomeadamente, ac. Buscarini e outros c. São Marino, de 18 de fevereiro de 1999.
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Parece-nos, no entanto, e acompanhando a posição dos juízes Vucinic e De Gaetano599, que nada obstava a que existisse uma consideração e distribuição de serviço adequada aos interesses da trabalhadora. De facto, a Senhora Ladele nunca nas suas funções tentou impor as suas crenças aos demais, impedindo a realização das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. Simplesmente não queria ser responsável por um acontecimento que contrariava os desígnios da sua religião. Na senda de Leigh & Hambler (2014, p. 7), acresce referir que a entidade empregadora, ao designar a Senhora Ladele para as cerimónias em causa, colocava-lhe uma imposição de agir contra a sua própria consciência e orientação religiosa, o que se afigura, no nosso entendimento, como uma violação inequívoca do art. 9º da CEDH. Compreendemos, sendo inclusivamente de louvar, a intenção de salvaguardar um direito de não discriminação, concedendo às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo um tratamento idêntico ao concedido às uniões entre heterossexuais, na prossecução de um verdadeiro pluralismo inerente a uma sociedade democrática mas, nesse mesmo sentido, também a liberdade religiosa de todas as crenças deveria ser salvaguardada, o que nesta situação não se verificou. Acompanhando Taramundi (2013, p. 177), para que se estabeleça essa “sociedade democrática e pluralista é necessário um compromisso entre direitos contrapostos” que, cremos, nesta situação ficou por alcançar.
O vestuário e os adereços como símbolos religiosos Não olvidando as demais manifestações da liberdade religiosa de um trabalhador, o uso de vestuário ou adereços de caráter religioso é, sem dúvida, a mais visível demonstração de ligação a uma confissão por parte de um crente. Desde o católico que ostenta um crucifixo até à muçulmana que enverga um hijab, passando pelo judeu que utiliza uma kippa600, encontramos inúmeros objetos demonstrativos da fé de um determinado indivíduo. Para que se possa efetivar o seu enquadramento ao abrigo da proteção do art. 9º da CEDH, devemos compreender que “o uso de símbolos religiosos nem sempre é o resultado de uma decisão tomada de forma racional mas resulta, quase sempre, de uma obrigação do divino” (Machado, 2012, p. 105). É vital distinguir se a utilização de determinada peça de roupa ou ornamento é uma imposição por parte da religião ou meramente uma faculdade do crente, de modo a averiguar se existe uma efetiva limitação da liberdade religiosa. Sendo a demonstração de fé efetuada através de roupa ou acessório uma realidade mais visível
perante
empregadores
e
terceiros,
sejam
clientes
ou
fornecedores,
é,
potencialmente, uma das situações com mais possibilidades de conflituar com os direitos daqueles. E é precisamente neste foco de conflito que mais se acentua a clivagem existente
599
Posição discordante dos juízes que votaram contra a decisão do TEDH, no ac. Eweida e outros c. Reino Unido de 15 de janeiro de 2013. 600 Cobertura utilizada na cabeça que serve para relembrar a presença constante de Deus.
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entre as correntes jurisprudenciais do Tribunal de Estrasburgo601 e que Lopes (2011, p. 66) apresenta como, por um lado, o reconhecimento do pluralismo religioso e, por outro, a possibilidade de restrição à liberdade individual de manifestar a religião. Campos (2014, p. 223) refere-se a esta divergência jurisprudencial como uma “encruzilhada (…) entre um entendimento laicista e um entendimento pluralista da liberdade religiosa”. No contexto laboral a dicotomia passa, por um lado, pela proibição de todo e qualquer símbolo religioso no local de trabalho, correspondendo a uma restrição absoluta por parte da entidade empregadora ou, noutro sentido, pela permissão do uso desses símbolos, num clima de aceitação e integração. Se a segunda possibilidade nos parece exequível e, inclusivamente, potenciadora de uma maior aceitação por parte das diversas religiões, já a primeira pode dar azo a diversos conflitos, como constatamos na diversa jurisprudência do TEDH. Para demonstrarmos a perspetiva do TEDH direcionada para um reconhecimento de pluralismo religioso, chamamos, novamente, à colação o acórdão Eweida e outros c. Reino Unido, onde encontramos uma decisão que se afirma como um marco na jurisprudência do TEDH no que tange a questões atinentes ao uso de símbolos religiosos no tempo e local de trabalho. Dos casos integrantes deste acórdão encontramos duas situações relevantes para este ponto do estudo: o caso da Senhora Chaplin, enfermeira num hospital público, e o caso da Senhora Eweida, funcionária de uma companhia de aviação comercial. Em ambos os casos, as requerentes, católicas de religião, pretendiam utilizar, de forma visível, um símbolo religioso, nomeadamente um crucifixo, como expressão da sua crença. Não obstante a pretensão das queixosas ser idêntica, o resultado final primou por decisões diferentes devido às inerências particulares de cada caso. A Senhora Eweida, entretanto suspensa pela entidade empregadora, recusou-se a acatar a ordem do seu empregador para que não utilizasse o crucifixo por cima do uniforme da empresa. O empregador baseava esta proibição no regulamento da própria empresa que inibia a utilização de qualquer símbolo religioso de forma visível, salvo se tal não fosse possível devido ao caráter do próprio símbolo e mediante autorização superior prévia. Esta autorização nunca surgiu pelo facto de a entidade empregadora não considerar o crucifixo como uma obrigação da religião católica mas somente uma faculdade que assiste aos crentes602. No entender da companhia aérea, a utilização de um símbolo religioso atentava contra a imagem de laicidade que pretendia transmitir à sua clientela. Em sentido contrário, posição que acompanhamos, a decisão do TEDH primou por um entendimento favorável à Senhora Eweida, nomeadamente pelo facto de entender que a utilização do
601
Como exemplo mais paradigmático desta divergência jurisprudencial, vide ac. Lautsi c. Itália, de 3 de novembro de 2009 (2ª secção) em contraponto com o ac. Lautsi e outros c. Itália (tribunal pleno), de 18 de março de 2011 que surge após recurso do governo italiano à primeira decisão. 602 Em sentido contrário, a companhia aérea permitia a utilização do turbante e pulseira Sikh (religião que expressa uma fusão entre o islamismo e o hinduísmo), bem como o hijab pelo facto de serem imposições das respetivas religiões.
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crucifixo, como uma manifestação legítima da sua liberdade religiosa, deveria prevalecer sobre a organização económica da entidade empregadora603, nomeadamente na proteção da imagem comercial que pretendia projetar. Pese embora alguns autores, nomeadamente Machado (2014a, p. 686), critiquem o facto de a decisão do TEDH não definir linhas orientadoras para casos posteriores, entendemos que a especificidade casuística inerente ao conceito de liberdade religiosa obsta a que se estabeleçam critérios mais rigorosos, não olvidando a margem de apreciação concedida a cada Estado na prossecução da salvaguarda dos direitos previstos na CEDH. Já no caso da Senhora Chaplin o desfecho acabou por ser contrário às pretensões da requerente. No caso sub judice, embora as intenções da requerente encontrassem acolhimento no estatuído no art. 9º, nº 1, da CEDH, a necessidade de garantir a saúde pública, prevista no nº 2 do mesmo artigo, veio limitar, legitimamente, o direito em discussão. As suas funções como enfermeira obrigavam ao contacto com doentes e a sua utilização poderia colocar em risco a saúde destes (nomeadamente através de contato com feridas abertas), bem como da própria trabalhadora (risco de um paciente puxar o crucifixo e causar lesões), o que permitiu um enquadramento da factualidade no elenco das restrições do art. 9º, nº 2, da CEDH. Verificamos, deste modo, que as distintas decisões do TEDH nos dois casos sob apreciação derivam de uma ponderação dos direitos em confronto. Se no caso da Senhora Eweida a liberdade religiosa prevalece sobre a organização económica, já o mesmo não sucede no caso da Senhora Chaplin, onde a liberdade religiosa é coartada pela necessidade de prevalência da saúde pública, sendo esta limitação entendida como legítima e necessária numa sociedade democrática. Estas decisões diferenciadas, salvo melhor opinião, são demonstrativas da necessidade de aferição casuística. Mas o ac. Eweida c. Reino Unido acaba por ser um oásis no meio da jurisprudência nitidamente orientada para uma limitação da liberdade religiosa. Tomemos como exemplo o caso Dahlab c. Suíça604 onde encontramos uma professora, muçulmana, cuja pretensão de utilizar um véu islâmico, durante o desempenho das suas funções, foi vetada pelo seu empregador, o Estado suíço. Neste caso em concreto, o Tribunal de Estrasburgo entendeu não existir nenhuma violação da liberdade religiosa da requerente, visto propugnar no mesmo sentido que os tribunais suíços que previamente se haviam pronunciado pela necessidade de limitação do direito da Senhora Dahlab em prol da manutenção da segurança pública, obtendo enquadramento no art. 9º, nº 2, da CEDH. O TEDH, numa perspetiva de
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No decorrer do processo, a companhia aérea promoveu uma alteração do regulamento, diminuindo as restrições existentes e permitindo desde então a possibilidade de uso de símbolos religiosos pelos seus trabalhadores. Na senda da decisão do TEDH, entendemos que esta alteração demonstra que a imposição inicial da empresa não era assim fundamental para a preservação da imagem da companhia conforme haviam fundamentado. 604 Cfr. ac. Dahlab c. Suíça, de 15 de fevereiro de 2001.
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exclusão dos símbolos religiosos do local de trabalho, entendeu que o facto de a queixosa estar em contacto com crianças, e estas olharem para o professor como um modelo a seguir, criaria entropia a um sistema educativo que, tal como o Estado suíço, se pretendia secular consubstanciando, no entendimento do Tribunal, uma limitação justificada pelo fim legítimo do Estado. Este entendimento do Tribunal que indicia a utilização do véu como uma ferramenta de eventual proselitismo acarreta, salvo melhor opinião, algumas dificuldades de aceitação, mormente porque também em sede do TEDH o caso Lautsi e outros c. Itália decidiu-se pela manutenção de um crucifixo católico numa escola frequentada por crianças católicas e de outras religiões minoritárias. Neste caso, e após queixa de pais de alguns estudantes, o Tribunal defendeu a manutenção do símbolo religioso num entendimento efetivamente pluralista da liberdade religiosa. Como temos referido ao longo do estudo, somos apologistas deste entendimento que permite uma verdadeira coexistência das diversas religiões. Mas se partilhamos da decisão do TEDH no caso Lautsi e outros c. Itália605, no qual o crucifixo é entendido como tendo um efeito prosélito meramente passivo (Vickers, 2013, pp. 232- 233), questionamos se também o vestuário, no caso Dahlab c. Suíça, não poderia ser entendido da mesma forma, ao contrário da conotação poderosa que lhe é atribuída. Pensamos que a nítida tendência de conotar a utilização de certas vestimentas com atos fundamentalistas poderá, por um lado, potenciar situações de coartação da liberdade religiosa sem um fundamento adequado e, por outro lado, promover uma constante desconfiança perante as demais religiões, dificultando em muito a coexistência das diversas crenças. Também no uso de vestuário de conotação religiosa, salvo melhor opinião, devemos efetuar uma apreciação casuística, pois não podemos, nomeadamente, equiparar o uso de um hijab com a utilização do niqab606, situação onde, no nosso entendimento, se poderá justificar a restrição da sua utilização por questões de segurança e ordem pública607. Situação idêntica é verificada no caso Ebrahimian c. França608, facto que não nos deixou de causar alguma estranheza, visto estarmos perante uma decisão posterior ao acórdão Eweida e outros c. Reino Unido. Na situação sub judice, a Senhora Ebrahimian, assistente social num serviço de psiquiatria, vê o seu contrato caducar sendo que a não renovação do mesmo deriva, no seu entender, do facto de se recusar a trabalhar sem um lenço na cabeça. O TEDH, na senda da corrente jurisprudencial restritiva da liberdade religiosa, deliberou pela necessidade de manter a ordem pública e garantir o princípio de laicidade do Estado francês e, como tal, não considerou a existência de uma violação do art. 9º da CEDH. Concordamos
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Em sentido contrário, Firpo (2014, p.129) discorda desta decisão do TEDH, propugnando pela anterior decisão do tribunal no acórdão Lautsi c. Itália. 606 Véu integral que cobre integralmente o corpo e o rosto com exceção dos olhos. Para um maior aprofundamento da (não) aceitação do niqab no espaço europeu vide Jerónimo (2014, pp. 105-130). 607 Cfr. ac. S.A.S. c. França, de 1 de julho de 2014. 608 Cfr. ac. Ebrahimian c. França, de 26 de novembro de 2015.
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com a opinião dissidente do juiz De Gaetano, quando na sua exposição de voto de vencido refere que o lenço, por si só, não se afigura como atentatório aos valores seculares de um Estado. Continua o douto juiz referindo que, embora a margem de apreciação inerente à atuação dos Estados seja manifestamente alargada, a verdade é que a mesma obedece a limites, sob pena de se desrespeitarem os valores subjacentes à CEDH. É imperativo não olvidar, como também fazem notar Leigh & Hambler (2014, p. 4), que o TEDH ao permitir um poder discricionário na consideração do que é necessário para a manutenção, nomeadamente, da ordem pública, deve fazê-lo com um exímio rigor apreciativo sob pena de, ao conceder um critério demasiado alargado, conferir um livre trânsito na preterição da liberdade religiosa dos trabalhadores com esse fundamento, situação que, salvo melhor opinião, se verificou, entre outros, no caso Ebrahimian, onde o TEDH, numa posição acrítica, não questionou a argumentação apresentada pelo Estado francês. Também no caso Dogru c. França609, no qual a queixosa se viu impedida de participar nas aulas de educação física por utilizar o véu islâmico610, proibição baseada na salvaguarda da saúde e segurança da estudante, o Tribunal não contestou os argumentos do Estado. Na situação em concreto, parece-nos que caberia ao TEDH exigir que o Estado estabelecesse um nexo de causalidade entre o uso do véu e os eventuais perigos para a saúde ou segurança da estudante, o que não fez, demonstrando, deste modo, uma “aceitação acrítica das opções estaduais” e uma “completa ausência de supervisão europeia (Jerónimo, 2014, p. 120). Situação idêntica verificou-se no caso Leyla Sahin c. Turquia611, onde a requerente, uma estudante universitária, se viu impedida de realizar um teste escrito devido à utilização de um véu islâmico. Também aqui o TEDH sustentou a argumentação do Estado turco que esta restrição era necessária para a defesa do princípio de secularidade estabelecido na Turquia, sem que ficasse demonstrado que a utilização do véu pela Senhora Sahin fosse atentatório desse mesmo princípio612. Na senda de Jerónimo (2010, p. 523), entendemos que a presença dos mais diversos símbolos religiosos, seja em ambiente laboral ou outros, deveria ser entendida como uma situação normal e não como uma ameaça. Pelo contrário, as diversas decisões do TEDH têm sustentado a ausência dos símbolos religiosos em vez da utilização generalizada dos mesmos. No entendimento de Cumper & Lewis (2008, p. 8), o Tribunal parece atribuir uma diminuta importância à manifestação da liberdade religiosa através de símbolos e vestuário. No entanto, e de acordo com os mesmos autores (Cumper & Lewis, 2008, p. 4), não podemos esquecer que, nomeadamente, no caso do véu islâmico existe uma ideia pejorativa
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Cfr. ac. Dogru c. França, de 4 de dezembro de 2008. No mesmo sentido, cfr. ac. Kervanci c. França, de 4 de dezembro de 2008 e decisão de admissibilidade do caso Zeynep Tekin c. Turquia de 29 de junho de 2004. 611 Cfr. ac. Leyla Sahin c. Turquia, de 10 de novembro de 2005. 612 Na mesma temática, vide decisão de admissibilidade do caso Karaduman c. Turquia, de 3 de maio de 1993. 610
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sobre a sua utilização associando-a, hoje, a movimentos políticos extremistas. Percebemos assim que o Tribunal olhe hoje para a utilização do véu com um significado político, o que poderá influenciar as suas decisões numa resposta aos anseios de uma sociedade insegura. Não obstante compreendermos esta tomada de posição, acreditamos que estamos perante um entrave a uma sociedade efetivamente democrática baseada na tolerância e num real pluralismo sustentado por um espírito de compromisso das diversas religiões. O proselitismo no local de trabalho: legítimo ou abusivo? Quando, de algum modo, é feita menção à expressão proselitismo, regra geral, existe uma tendência para uma associação a algo pejorativo613. Não são raras as vezes em que aparece associado a situações de incitamento a desobediência da religião professada, manipulação mental, alienação de indivíduos da sua esfera familiar614 ou, inclusivamente, aliciamento a crianças para integrarem a confissão promovida615. Frequentemente, estas situações derivam de comportamentos de membros de crenças minoritárias que, muitas vezes, recorrem a processos menos usuais para a divulgação da sua fé em virtude da dificuldade de integração da sua crença num Estado onde exista uma religião dita dominante616 e que consubstanciam, em determinados países, uma prática criminal punida com pena de prisão ou mesmo motivo de expatriação para estrangeiros, como no caso Nolan e K. c. Rússia, no qual foi vedada a renovação do visto de permanência no país de acolhimento617. Nas palavras de Folque (2014, p. 169), “a fé imprime às relações com o outro e à compreensão do real um sentido e um valor apenas explicáveis por um referente cuja existência é indiscutível aos olhos da fé” garantindo assim que a liberdade religiosa consagre a possibilidade de propor mas nunca de impor. Não obstante esse entendimento generalizado, a realidade é que o proselitismo é, na verdadeira aceção da expressão, a tentativa de convencer outros a aderir a uma determinada crença, sendo inclusivamente um dos grandes fundamentos da existência de determinadas religiões. Qualquer uma das manifestações da liberdade religiosa que abordámos nos pontos anteriores pode, de facto, ser considerada como uma expressão do proselitismo do trabalhador se este as efetivar com intenção de convencer os demais trabalhadores618. Na verdade, a própria LLR prevê no seu art. 8º, al. d), o direito de procurar para a confissão professada novos crentes através dos mais diversos meios,
613
Como refere Hidaka (2002, p. 16), quando existe um ato que não deva ser praticado contra um ser humano e o mesmo ocorre, este é mais facilmente identificável e condenável pela sociedade. O autor, em oposição aos Human Rights, refere-se a tais atos como Human Wrongs. 614 Cfr. ac. Jehovah’s Witnesses of Moscow e outros c. Rússia, de 22 de novembro de 2010. 615 Cfr. ac. Kuznetsov e outros c. Rússia, de 11 de abril de 2007. 616 Cfr. ac. Ivanova c. Bulgária, de 12 de julho de 2007. 617 Cfr. ac. Nolan e K. c. Rússia, de 6 de julho de 2009. 618 Cfr. decisão de admissibilidade Pitkevich c. Rússia, de 8 de fevereiro de 2001.
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nomeadamente pela palavra ou pela imagem619. Quanto à sua previsão na CEDH, embora não esteja taxativamente consagrado, é entendimento comum620 que se depreende a sua proteção através da referência à liberdade de manifestar a sua religião, bem como através da possibilidade de mudar de religião. A dificuldade assenta na prática em si do proselitismo, ou seja, o método pelo qual o indivíduo é abordado. Na senda de Guerreiro (2005, p. 176), entendemos que, quando a “prática do proselitismo assume uma atuação menos adequada, à luz dos direitos consagrados pelos instrumentos internacionais (…)” é necessário estabelecer limites aos meios pelos quais a divulgação é realizada e até onde a prática pelos crentes é considerada admissível. Não se afigura de todo uma tarefa fácil estabelecer uma linha entre, por um lado, a liberdade de atrair outros para a crença que se professa e, por outro, uma situação de proselitismo impróprio621. Urge assim perceber até que ponto a liberdade religiosa de um individuo manifestada através da divulgação da sua fé poderá conflituar com a liberdade religiosa dos demais, alvos dessa mesma explanação, sem que estejamos perante uma das restrições elencadas no art. 9º, nº 2, da CEDH, nomeadamente a devida proteção dos direitos e liberdades de outrem622, perfazendo assim uma distinção entre o proselitismo legítimo e o proselitismo abusivo. Como nos refere Guerreiro (2005, p. 199), a verdade é que nem o próprio TEDH estabelece uma concreta separação entre os dois conceitos, limitando-se a caraterizar o proselitismo abusivo como uma deformação do evangelismo e, como tal, incompatível com o verdadeiro sentido do proselitismo como entendido no art. 9º da CEDH623. Incidiremos a nossa demanda sobre questões que, eventualmente, transcendem o âmbito do proselitismo legítimo e, como tal, passíveis de serem apreciadas pelo TEDH. Embora no espetro laboral exista a possibilidade de um determinado trabalhador, fazendo uso do seu posto de trabalho, exercer estas práticas com terceiros624, nomeadamente grupos mais vulneráveis como são, nomeadamente, crianças ou idosos625, restringiremos a nossa observação a casos que se situam dentro da esfera da entidade empregadora. Nesse âmbito 619
É comum muitas das situações de proselitismo serem observadas através da utilização de meios escritos, nomeadamente livros ou artigos de jornais. Cfr. ac. Baskaya e Okçuoglu c. Turquia, de 8 de julho de 1999; ac. Arslan c. Turquia, de 8 de julho de 1999; ac. Sener c. Turquia, de 18 de julho de 2000. 620 Vide, nomeadamente, Guerreiro (2005, p. 184). 621 Este foi um dos argumentos utilizados no famoso caso Kokkinakis. Este caso tornou-se um marco pelo facto de, pela primeira vez, o TEDH se ter debruçado exaustivamente sobre a questão do proselitismo, sendo que a partir dessa data o mesmo acaba por se tornar um ponto de referência para as demais situações similares apreciadas pelo tribunal de Estrasburgo. Cfr. ac. Kokkinakis c. Grécia, de 25 de maio de 1993. 622 Também a LLR prevê no seu art. 9º, nº 1, respetivamente nas als. a) e b), a impossibilidade de alguém ser obrigado a receber propaganda em matéria religiosa ou ser coagido a fazer parte de determinada igreja ou comunidade religiosa. 623 Vide ac. Kokkinakis c. Grécia, de 25 de maio de 1993. 624 Cfr. decisão de admissibilidade Pitkevich c. Rússia, de 8 de fevereiro de 2001. 625 Tomemos como exemplo um educador de infância que partilha o seu dia com inúmeras crianças ou um guia turístico de uma excursão com turistas mais idosos.
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destacamos, desde logo, o caso Larissis e outros c. Grécia626, no qual o TEDH é chamado a pronunciar-se sobre uma situação de proselitismo praticado por três oficiais da Força Aérea grega, todos seguidores da Igreja do Pentecostes. In casu, os requerentes foram acusados da prática de proselitismo abusivo relativamente a militares627 do mesmo ramo das forças armadas, ortodoxos de religião, sendo que estes se encontravam numa posição hierárquica subalterna em relação aos primeiros. O recurso ao TEDH deriva do facto de os três oficiais terem sido condenados pelos tribunais gregos e entenderem que a sua liberdade religiosa tinha sofrido uma violação derivada de não poderem manifestar a sua crença com os outros membros das forças armadas. Entenderam os juízes do TEDH, posição que acompanhamos, que a limitação da liberdade religiosa dos queixosos se entende ao abrigo do estipulado no art. 9º, nº 2, da CEDH, mormente a proteção dos direitos dos militares alvo das ações dos seus superiores e, assim sendo, não existe nenhuma violação do art. 9º, nº 1, da CEDH, no que aos oficiais diz respeito. Na ótica do Tribunal a existência de uma relação hierárquica caraterizada por uma inferioridade dos militares, colocava-os numa posição especialmente delicada e suscetível de sofrer influências por parte dos seus superiores, que nas conversas supra explanavam os benefícios da sua confissão. Como esclarecem os juízes, tornava-se complicado aos militares recusarem uma conversa iniciada pelos seus superiores com receio de eventuais repercussões dentro da organização. Transpondo esta situação para o nosso ordenamento jurídico, parece-nos que a proteção da liberdade religiosa dos militares teria enquadramento no art. 9º, nº 1, al. a), da LLR, visto entendermos que estes se sentiam obrigados a escutar os seus superiores pelas razões já por nós apontadas. Anteriormente, já o TEDH se tinha pronunciado sobre esta temática no caso Kalaç c. Turquia628, embora não abordando o tema do proselitismo de modo tão premente como no caso Kokkinakis c. Grécia. No caso do Senhor Kalaç, estamos perante um capitão da Força Aérea turca que, na altura dos acontecimentos, desempenhava funções de juiz advogado nessa instituição. Sucede que foi alvo de um despedimento pelo facto de adotar opiniões fundamentalistas ilegais que contrariavam o fito secular de uma instituição como a Força Aérea. O requerente, acusado de pertencer a uma comunidade com tendências fundamentalistas, além da participação em diversas sessões de formação, promoveu o favorecimento de membros dessa mesma seita, aquando de diversas nomeações de militares, o que, na consideração dos tribunais nacionais turcos, causava transtorno ao equilíbrio funcional de uma instituição secular. Nesse seguimento, o TEDH pronunciou-se por uma não violação da liberdade religiosa do requerente, mormente por entender que a própria natureza da função a desempenhar, acarreta limitações que, por exemplo, não poderão ser impostas a civis. Entende o Tribunal que o queixoso ao aceitar desempenhar 626
Cfr. ac. Larissis e outros c. Grécia, de 24 de fevereiro de 1998. A acusação da prática de proselitismo abusivo por parte dos oficiais verificou-se também contra alguns civis, matéria que, no entanto, não é analisada neste contexto. 628 Cfr. ac. Kalaç c. Turquia, de 1 de julho de 1997. 627
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estas funções tinha, ou deveria ter, noção dessas mesmas disposições reguladoras em prol de uma ordem instituída numa instituição, que à imagem do Estado, se pretende secular. As situações analisadas apresentam em comum o facto de se desenvolverem num ambiente militar que, não só pelas relações hierárquicas estabelecidas mas essencialmente pela rigidez disciplinar existente, nos parece mais suscetível da prática de atos de proselitismo abusivo. Não obstante esta constatação, e pese embora a ausência de jurisprudência do TEDH em âmbito empresarial, no que a esta matéria diz respeito, parece-nos que esta é uma situação que poderá surgir dentro das mais diversas organizações empresariais. Facilmente se consegue estabelecer um paralelismo entre uma instituição militar e uma sociedade, pois, por exemplo, os trabalhadores de uma linha de montagem poderão sentir as mesmas dificuldades de reprimir os discursos de um seu supervisor ou mesmo de um diretor de departamento que as observadas pelos militares nos casos supra, mormente pela relação de subordinação subjacente. Outra situação prende-se com determinadas funções desempenhadas pelos trabalhadores de uma entidade. Damos como exemplo um membro da comissão de trabalhadores ou comissão sindical que, fazendo uso da sua especial posição629, aproveite um plenário de trabalhadores para manifestar e promover a sua crença, ou ainda um trabalhador do refeitório de uma empresa que, fazendo uso do seu contacto reiterado com grande parte dos seus colegas, aproveita esse mesmo contacto para abordar esse tema e tentar convencer os demais trabalhadores. Nestas situações voltamos a verificar a dificuldade de traçar uma linha entre um proselitismo legítimo e um proselitismo abusivo. Perceber quando se transcende essa linha não se afigura tarefa fácil e parece-nos que será sempre alvo de tratamento casuístico pela especificidade das situações encontradas. Para finalizar, fazemos notar que, para que se entenda o proselitismo como abusivo, não basta invocar determinados comportamentos, mas sim aferir as situações concretas, bem como os indivíduos envolvidos630.
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Na jurisprudência do TEDH encontramos diversos casos sobre a consideração do proselitismo como abusivo através da disseminação através de discursos e intervenções públicas, nomeadamente no ac. Güller e Ugur c. Turquia, de 2 de março de 2015. 630 Vide ac. Jehovah’s Witnesses of Moscow e outros c. Rússia, de 22 de novembro de 2010.
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Considerações finais Ao longo da história verificamos uma progressiva evolução no que tange à proteção da liberdade religiosa tanto num plano nacional, nomeadamente no CC, no CT e na CRP, como também num espetro internacional graças às garantias definidas, por exemplo, na DUDH e na CEDH. Esta proteção, atribuída num sentido amplo, deve também ser aplicada ao indivíduo enquanto trabalhador, visto este não se abstrair da sua personalidade pelo mero facto de se encontrar a desempenhar funções sob a orientação do empregador. Entendemos, inclusive, que numa relação contratual de trabalho, desequilibrada à partida pela distribuição assimétrica dos poderes pelas partes, encontramos um plano de observação perfeito para eventuais violações de direitos humanos em geral e da liberdade religiosa em particular, como direitos tão intrinsecamente ligados ao indivíduo. Não obstante, o facto de tal liberdade ser contemplada entre o leque de direitos e liberdades da CEDH, diploma que foi objeto do nosso estudo, especificamente no seu art. 9º, não implica, por si só, que a liberdade religiosa seja encarada como um direito absoluto. De facto, este direito pode, eventualmente, ser limitado em função de uma das situações elencadas no art. 9º, nº 2, da Convenção, seja pela prevalência da segurança e ordem pública ou em prol da garantia de direitos e liberdades de outros, como é, em contexto laboral, o direito de organização económica do empregador. A proteção da liberdade religiosa em âmbito laboral deve ser entendida não somente sob um prisma individual, quando atendemos aos direitos dos trabalhadores, mas também numa vertente coletiva, mormente quando abordamos as entidades empregadoras de tendência religiosa. Nesta última situação assistimos a uma exceção a um princípio de não discriminação por motivos religiosos patente tanto na contratação como na pendência de um contrato de trabalho. É a própria lei que estabelece a possibilidade de contratar mediante a orientação religiosa de um trabalhador desde que seja um requisito justificável e determinante para a função a desempenhar, posição que tem sido acompanhada pelo TEDH, conforme pudemos constatar nos acórdãos analisados. No entanto, parece-nos que as decisões do Tribunal de Estrasburgo primam por uma linearidade excessiva, pois entendemos que a mesma solução não é aplicável a todas as funções a desempenhar. Parece-nos, efetivamente, que as restrições contratuais podem ser estabelecidas quando o trabalhador está adstrito a funções de tendência, pois nessa situação compreende-se que a sua conduta deva estar em consonância com o ethos do seu empregador. Já no que tange a funções auxiliares, não se afigura, salvo melhor opinião, justificável a contratação mediante a religião do trabalhador. Para que a liberdade religiosa do trabalhador possa ser limitada deve-o ser no meramente necessário à garantia dos direitos dos outros e, salvo melhor opinião, nas funções auxiliares, não se afigura como uma medida razoável exceto se o trabalhador praticar comportamentos que provoquem danos efetivos no seio da entidade empregadora.
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Na sua vertente individual, a liberdade religiosa, entendida como a faculdade de acreditar em algo superior que, de algum modo, promove um apoio espiritual ao indivíduo, pode ser manifestada em diferentes vertentes das quais destacamos a faculdade de o indivíduo manifestar a sua religião, situação que, eventualmente, pode despoletar diversos conflitos entre o empregador e os trabalhadores. Não raras vezes, o TEDH foi chamado a pronunciar-se sobre eventuais violações da norma ínsita no art. 9º da Convenção, tanto por uma intromissão, como por omissão por parte dos diversos Estados, no garante do direito do trabalhador. Se as temáticas relacionadas com a alimentação do trabalhador de uma religião dita minoritária ainda não observam grande produção jurisprudencial por parte do Tribunal de Estrasburgo, o mesmo já não podemos dizer relativamente a questões relacionadas com a flexibilidade do tempo de trabalho. Existe um rol de casos apresentados no TEDH, em que os requerentes, para dar cumprimento aos desígnios da sua religião, pretendiam uma adaptação no seu horário de trabalho. Não obstante esta pretensão, as decisões do TEDH por nós analisadas demonstram uma preponderância dos direitos das entidades empregadoras perante a liberdade religiosa dos trabalhadores, obstando, desse modo, à concretização do interesse destes. Nestas situações vislumbra-se uma opção por parte do Tribunal em dar prevalência a um direito do empregador em detrimento da liberdade religiosa do trabalhador quando, salvo melhor opinião, o verdadeiro fito do TEDH passaria pela harmonização dos direitos em conflito. Nesse sentido, destacamos o papel do TC português que, através de uma recente interpretação, promoveu uma mais abrangente proteção da liberdade religiosa dos trabalhadores, permitindo, sempre que possível, uma verdadeira integração dos direitos em confronto. As nossas críticas estendem-se às decisões proferidas nos casos envolvendo omissão de deveres do trabalhador, as quais primam, mais uma vez, por uma prevalência dos direitos do empregador em detrimento da liberdade religiosa dos trabalhadores. In casu, salvo melhor opinião, consideramos que seria possível uma adaptação das funções dos trabalhadores para que não tenham de realizar atividades que conflituem com os ditames da sua confissão, desde que essa adaptação, em respeito pelo princípio da proporcionalidade, não tenha implicações demasiado onerosas para o empregador. Ao longo deste estudo, apercebemo-nos de uma clivagem que grassa entre duas correntes jurisprudenciais do TEDH, em particular no que tange à manifestação religiosa através da utilização de roupas e símbolos religiosos. O Tribunal, num sentido quase único, tem decidido por uma total abolição da existência de símbolos religiosos, em detrimento da aplicação de um efetivo pluralismo religioso na sociedade que, salvo melhor opinião, se manifesta por uma presença indiferenciada dos mais diversos símbolos religiosos. De facto, é o próprio TEDH que propugna pela necessidade de harmonizar as diversas religiões mas, não obstante a emanação desse desígnio, a verdade é que as decisões têm
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ido em sentido contrário, o que, no nosso entendimento, condiciona uma efetiva integração das religiões minoritárias, no geral e, especificamente, em questões laborais. Devemos ainda referir que as ações e omissões dos Estados, salvaguardados por uma margem de apreciação relativamente alargada que lhes tem permitido definir com grande amplitude as linhas orientadoras desta matéria, acabam por encontrar acolhimento nas decisões do TEDH. ao qual tem cabido um papel meramente acrítico e conivente com estas decisões. A evolução no campo da liberdade religiosa, salvo melhor entendimento, passa pela aceitação e integração das diversas religiões e não pela sua segregação que, sucedendo, conduz a diversas situações de intolerância, obstando à existência de um efetivo pluralismo religioso. É nossa opinião que pelo facto de permitirmos a utilização de símbolos ou roupas apensas a uma determinada religião não se afigura como uma violação da liberdade religiosa dos demais pois, a estes, nada está a ser imposto. No mesmo sentido a omissão de uma determinada atuação por parte do trabalhador não implica que esteja a impedir ou a obrigar um terceiro a ter um determinado comportamento condizente com o seu. Ressalvamos, no entanto, as situações de proselitismo abusivo que, se observadas, implicam uma violação da liberdade religiosa dos demais. Quanto a estas situações, propugnamos por uma análise casuística das situações que vão surgindo na nossa sociedade em geral e em contexto laboral em particular, muito devido à dificuldade de estabelecer uma linha que permita aferir tout court onde encontramos um proselitismo legítimo ou abusivo. Este estudo permitiu-nos um conhecimento mais aprofundado da intervenção do TEDH na prossecução de uma eventual reposição da liberdade religiosa dos trabalhadores que, no entendimento destes, viram o seu direito limitado injustificadamente por uma ação ou omissão do seu Estado de residência. Não obstante a evolução observada ao longo das últimas décadas, entendemos que a liberdade religiosa continua carente de uma maior proteção pelo Tribunal de Estrasburgo optando este, não raras vezes, por uma prevalência dos demais direitos em vez de optar por uma harmonização dos direitos em confronto. Entendemos que cabe ao TEDH, como um dos derradeiros bastiões de defesa dos direitos humanos, uma maior e melhor intervenção na procura de um verdadeiro respeito pela liberdade religiosa dos trabalhadores, cabendo à sociedade, no seu todo, uma progressiva aceitação de todas as religiões.
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Responsabilidade no Crédito Hipotecário – O Princípio da Subsidiariedade
Responsabilidade no Crédito Hipotecário O Princípio da Subsidiariedade
Luís Neves
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Responsabilidade no Crédito Hipotecário - O princípio da subsidiariedade Luís Neves
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Siglas CC
Código Civil
CCom
Código Comercial
CPC
Código de Processo Civil
CRPredial
Código de Registo Predial
CRP
Constituição da República Portuguesa
DL
Decreto-Lei
FIIAH
Fundo de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional
LGT
Lei Geral Tributária
Nº
Número
PARI
Plano de Ação para o Risco de Incumprimento
PERSI
Procedimento
Extrajudicial
de
Regularização de
Situações
de
Incumprimento NPCP
Novo Código de Processo Civil
RACE
Rede de Apoio ao Consumidor Endividado
ss
seguintes
277
Introdução Considerando
um
percurso
feito
no
âmbito
da
procuradoria/solicitadoria
de
representação bancária e ao mesmo tempo como agente de execução, a concessão bancária e tudo o que a sustenta, condiciona e provoca, tornou-se num foco e numa linha de trabalho bastante rica em termos de desafios, resoluções e obstáculos. As competências do solicitador enquanto procurador e representante da banca nas outorgas dos títulos associados a um crédito hipotecário, uma função que está subentendida às suas competências, traduzindo-se na transmissão de todas as implicações que podem advir do incumprimento do pagamento da dívida, causa deste modo um papel de transparência a todo o processo levando ao aumento exponencial da responsabilidade no crédito hipotecário, sem por isso aumentar os trâmites jurídicos implícitos. Pode-se assim considerar, que este foi o ponto de partida para a escolha deste estudo. Não deixa, contudo, de ser pertinente que a busca de algo inovador para a exploração teórica, traz sempre à tona os temas mais habituais e tradicionalmente abordados no âmbito das questões jurídicas, levando mesmo à tentação de trabalhar e investigar os mesmos noutras vertentes. Foi assim um desafio constante permanecer na linha de investigação escolhida, e nunca deixar de olhar à volta e considerando tudo o que já foi produzido e que pudesse contribuir, por pouco que seja, para um enquadramento aprofundado e exaustivo do tema. A questão encontrada como pertinente e que foi a escolha para este estudo, o crédito hipotecário, encerra vários problemas jurídicos, daí numa primeira fase, de forma a definir o objeto científico corretamente, delimitou-se o objeto de estudo. Este tratamento foi exaustivo e levou a uma reflexão sobre todos os aspetos jurídicos relevantes que o tema inclui, o que implicou uma delimitação do mesmo. Esta foi realizada de forma gradual, à medida que as questões acessórias foram surgindo durante a redação deste estudo. Numa segunda fase, objetivou-se uma análise da jurisprudência no sentido de elencar factos que possam incorporar numa hipótese de resolução proposta neste trabalho de investigação académico, nomeadamente pelo levantamento de ocorrências nos últimos cinco anos, dado tratar-se de um período ainda de crise financeira a nível nacional. O estudo sobre o fenómeno social da subsidiariedade, assim como da sua aplicação no direito bancário surgiu como um desafio, no sentido de articulá-lo para as soluções a apresentar no que concerne o incumprimento da dívida. Para a boa prossecução dos caminhos descritos foi definido como objetivo geral, descrever e caracterizar o crédito hipotecário e as questões jurídicas associadas,
278
considerando a responsabilidade subjacente apelando ao princípio da subsidiariedade. Como objetivos específicos foram estipulados de forma sintética os seguintes: 1. Caraterizar o crédito hipotecário enquanto uma garantia real e enquanto uma concessão inicial; 2. Elencar e caracterizar os diferentes elementos/partes envolvidas; 3. Avaliar o princípio da subsidiariedade no decorrer do crédito hipotecário; 4. Verificar as soluções existentes para resolução dos problemas de dívidas, durante o decorrer do crédito; 5. Analisar os casos de execução de dívidas à banca, existentes na jurisprudência portuguesa. A metodologia de investigação foi definida à partida aquando a escolha da temática geral, a concessão bancária, e da opção feita em relação à responsabilidade subsidiária no crédito hipotecário. Assim, e como será descrito abaixo, a metodologia qualitativa foi a eleita. Como técnica, a opção recaiu na pesquisa documental através do levantamento da legislação e jurisprudência, recolha de referências bibliográficas e revisão da literatura permitindo desta forma uma análise qualitativa da informação existente. Os manuais, constituição, códigos anotados, artigos de revistas jurídicas assim como toda a jurisprudência fazem parte da pesquisa documental efetuada, tendo sido alvo de análise e reflexão de forma a distinguir enquadramentos, abordagens jurídicas, legislação e posições tomadas pelas diferentes doutrinas. No que concerne a jurisprudência, as fontes utilizadas para o direito nacional foram as bases de dados jurídico-documentais631, para a legislação nacional o Diário da República eletrónico632 e a Procuradoria-Geral da República de Lisboa633. Relativamente a publicações a pesquisa foi efetuada com base em catálogos online das instituições de ensino superior na área jurídica634, e do Centro de Estudos Judiciários635. Dada a dimensão do tema, crédito hipotecário, foram selecionados conceitos e alguns termos de pesquisa associados e foi efetuada uma pesquisa em catálogos disponíveis online em bibliotecas de quatro instituições de ensino superior: Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade do Porto e o Instituto Universitário da
Bases de dados jurídico-documentais: http://www.dgsi.pt/ Diário da República Electrónico: https://dre.pt 633 Procuradoria Geral da República de Lisboa http://www.pgdlisboa.pt/ 634Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: http://www.uc.pt/fduc/biblioteca/Pesq_bibliografica; Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade do Porto: http://sigarra.up.pt/fdup/pt/web_base.gera_pagina?P_pagina=2310; Biblioteca do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra: http://www.iscac.pt/index.php?m=15_51&lang=PT; Biblioteca do Instituto Superior da Maia http://www.ismai.pt/MDE/Internet/PT/Superior/Escolas/ISMAI/ServicosApoio/catabiblioteca.htm 635 Centro de Estudos Judiciários: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/destaques_publicacoes.php 631 632
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Maia. A frequência das referências para cada termo de pesquisa636 permitiu delimitar a consistência científica dos conceitos relacionados com o tema principal. O contributo do tema escolhido pode ser analisado em duas vertentes no que diz respeito à solicitadoria. Por um lado, no âmbito da execução, demonstrar que todo o processo executivo relativo à dívida dum crédito hipotecário pode ser realizado com mais êxito, sendo mais eficaz nos resultados no que concerne à economia processual, o que advém da continuidade do processo aquando do produto da venda não ser suficiente para satisfazer a dívida. Por outro lado, existe nas competências do solicitador enquanto procurador e representante da banca nas outorgas dos títulos associados a um crédito hipotecário, uma função que está subtilmente subentendida às suas competências que consiste em transmitir a noção de todas as implicações que podem advir do incumprimento do pagamento da dívida, causando deste modo um papel de transparência a todo o processo, levando ao aumento exponencial da responsabilidade no crédito hipotecário, sem por isso aumentar os trâmites jurídicos implícitos.
São exemplo de alguns termos de pesquisa: banca; crédito hipotecário; subsidiário; direito bancário; subsidiariedade; hipoteca; cadastro de aquisições; ética bancária. 636
280
Capítulo I - Crédito hipotecário enquanto concessão inicial 1. Definição de crédito: história do conceito enquanto uma garantia real A relevância do crédito nos dias de hoje é duma dimensão da máxima importância, dado o contexto e prática atual de endividamento e dificuldade do cumprimento das obrigações, nomeadamente aquelas por parte do devedor que as elas se vinculam. Não se esperando que este cenário mude, dadas as oscilações fortes da economia mundial, apraz perceber a complexidade que o crédito traz consigo assim como a dimensão da hipoteca enquanto uma garantia real e que o Código Civil tão bem protege nas suas diferentes dimensões. Entre as diferentes definições de crédito, consegue-se encontrar uma linha em comum que se traduz em conceber o crédito como “a cedência da disponibilidade efectiva de um bem, por uma contraprestação futura consistente em um bem análogo ao primeiro”637. Ou seja, consiste na prestação de um bem presente contra a promessa de restituição futura, a partir do qual o credor confia um bem semelhante acrescido de certa remuneração. Os elementos característicos da noção de crédito e que servem de base ao conceito são o tempo, a confiança, a promessa e a remuneração. O tempo implica o presente e o futuro e a troca de bens implícita, a confiança implica a concessão de crédito ao devedor, o qual se presta a uma solvabilidade, e a promessa traz a reboque a restituição de algo, isto é, o compromisso de pagamento num determinado prazo. Observando, de forma muito objetiva, a operação de crédito, esta consiste numa troca de moeda por um ativo financeiro, traduzindo-se numa troca diferida, da qual emerge a remuneração. Usualmente, as formas típicas das operações de crédito são o empréstimo de dinheiro e a venda a prazo. Poderá ser feita uma breve revisão das formas e funções do crédito, não sendo objetivo descrever as diferentes formas de concessão de crédito, mas sim demonstrar a complexidade que o crédito implica nos dias de hoje pela sua diversidade. Deste modo, apresentam-se quatro classificações: crédito a curto, médio e longo prazo; crédito à produção e crédito ao consumo; crédito pessoal e crédito real; crédito público e crédito privado.638 Regressando às características que sustentam o conceito de crédito, numa perspetiva económica, a qual implica o tempo, a confiança, a promessa e a remuneração como elementos básicos, é possível analisar o negócio de crédito e as respetivas operações bancárias.
RIBEIRO, Teixeira J. J. – Economia Política (Moeda), polic., Coimbra, 1962/63, p. 53 cit. por PATRÍCIO, José Simões – Direito do Crédito, Introdução. Lisboa: Lex, Edições Jurídicas, 1994, p.15. 638 Cf. PATRÍCIO, José Simões – Direito do Crédito, Introdução, p. 20-27 637
281
Contudo, a perspetiva jurídica, na vertente do direito bancário, e, especificamente do direito do crédito, é aquela que se deve sublinhar no âmbito deste estudo, caso contrário perderia o sentido de ultimar considerações mais profundas sobre a temática apresentada. Verifica-se que o direito do crédito enquanto um importante capítulo do direito bancário, não deixa de ser transversal na sua dimensão a outras áreas do direito, como o direito civil e o direito comercial. E consoante as oscilações económicas do país, interessará intervir no crédito através do direito privado, ou então através do direito público, o que leva a uma difícil tarefa de delimitar teoricamente o fenómeno do crédito hipotecário. A configuração do direito de crédito passa por examinar o conceito numa perspetiva essencialmente jurídica, nomeadamente a estrutura do mesmo à luz do Direito das Obrigações, uma vez que se trata de uma garantia real. A temática da garantia das obrigações representa uma importância prática indiscutível e essencial para uma compreensão mais clara sobre o tema em análise. De imediato, limitando o estudo no âmbito do Direito das Obrigações, o conceito de garantia tem sido considerado subentendido no próprio conceito de obrigação, plasmado no artigo 397º do CC, enquanto vínculo jurídico. De facto, assim que se refere vínculo jurídico, a ideia de garantia surge inevitavelmente. Atualmente verifica-se nas noções apresentadas sobre o conceito de obrigação a exclusão da garantia, no entanto, não se pode deixar de sublinhar a sua importância, porque apesar do conceito de garantia não surgir definido nos textos legislativos, uma vez que se trata de uma expressão da prática jurídica, cujo objetivo é garantir a realização dos direitos do credor, a lei acaba apenas por elencar formas específicas de atingir esse objetivo. Dentro das garantias das obrigações distinguem-se639: a garantia geral das obrigações, que é enunciada no artigo 601º do CC – “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor, susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”640 – ou seja, trata-se do conjunto de todos os bens penhoráveis que constituem o património do devedor, e que respondem pelo não cumprimento das obrigações a que este se encontrava adstrito; as garantias especiais das obrigações, que consistem num reforço da garantia geral, numa posição de privilégio, que é atribuída a um credor, de diversas formas (caução, fiança, consignação de rendimentos, penhor, privilégios creditórios) face aos outros credores comuns do mesmo devedor, que apenas podem satisfazer os seus créditos à custa dos bens penhoráveis que, no momento de execução, incluem o património do devedor.
Cf. VASCONCELOS, Luís Miguel Pestana de - Direito das Garantias, Coimbra: Almedina, 2010, p. 53 Civil Português, aprovado pelo DL n.º 47 344 de 25 de novembro de 1996, Livraria Almedina, Coimbra, 2002, p.159. 639
640Código
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O problema que advém da análise relativamente aos direitos de crédito reside na distinção dos contornos dos direitos reais e dos direitos de crédito que leva, segundo Rui Pinto Duarte, necessariamente a uma confrontação determinada pelas noções adotadas. O autor refere a existência de duas diferenças principais: “o caráter absoluto dos direitos reais versus o caráter relativo dos direitos de crédito” e “a imediação dos direitos reais versus o carácter relativo dos direitos de crédito”641. No entanto, outras posições doutrinais apelam para a eliminação destas diferenças, conforme o autor refere ao sublinhar a importância das doutrinas monistas que defendem que todos os direitos patrimoniais são reconduzíveis a uma estrutura comum, o que se poderá constatar por exemplo com a teoria personalista dos direitos reais. Neste caso, os direitos patrimoniais são reconduzíveis a relações obrigacionais, isto é, por um lado existe a posição do titular do direito real caracterizado pela obrigação passiva e universal, por outro lado a ideia que os direitos de crédito são reduzidos a direitos reais, uma vez que os mesmos também recaem sobre os bens.642 Não se esgota aqui a reflexão sobre as diferenças que possam ou não existir entre direitos reais e direitos de crédito. Segundo a análise de Santos Justo a teoria realista visa o direito real como um poder direto e imediato sobre uma coisa certa, sem existir intermediário entre o titular e o objeto desse direito. Esta perspetiva é objeto de crítica uma vez que “o poder directo e imediato sobre uma coisa é uma simples consequência jurídica do poder de impor aos outros uma abstenção” e por outro lado, “observa-se que há direitos reais que não conferem qualquer poder directo e imediato sobre a coisa”643. É verdade que é importante distinguir “macrojuridicamente”644 o direito patrimonial do direito pessoal e contrapor os direitos reais aos direitos de personalidade no sentido de aferir uma perspetiva que estabeleça e caracterize o direito real em contraposição ao direito de crédito, uma vez que até aqui referiu-se a distinção considerando a estrutura. Deste modo, adotou-se a perspetiva de Menezes Leitão645, sobre o conceito e estrutura da obrigação o qual se torna basilar para compreender o alcance do direito de crédito num campo que é tão vasto que o reconhecimento de uma noção jurídica poderá ser evasiva senão for delimitada no âmbito que compete a jurisdição e a praxis. Considerando mais uma vez o artigo 397º do Código Civil (CC), que enuncia a obrigação como “o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação”646, permanece-se numa noção do direito de crédito delineada a partir do seu objeto.
641Cit.
in DUARTE, Rui Pinto - Curso de Direitos Reais, Estoril: Principia, 2007, p. 27. Cf. DUARTE, Rui Pinto - Curso de Direitos Reais… 643 JUSTO, A. Santos - Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2007, p. 47. 644 CARVALHO, Orlando – Direito das Coisas. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 85. 645LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I. 6ª edição. Coimbra: Almedina, 2007. 646Código Civil Português… p.109. 642
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Verifica-se deste modo que a prestação será o comportamento do devedor vinculado em benefício do credor o que leva a questionar se simplesmente se trata dum comportamento que está a ser vigiado e que será penalizado em qualquer momento, ou se a essência do crédito será sim o património do devedor, porque só assim esse controlo por parte do credor será judicialmente concretizado. Assim, constata-se a existência de dois objetos do direito de crédito: em termos éticos o comportamento do devedor traduzido na prestação; em termos práticos os bens do devedor, isto é, o seu património. Diferentes questões se levantam relativamente sobre afinal qual é o objeto do direito do crédito, trazendo para esta reflexão quatro teorias, as quais são exploradas por Menezes de Leitão, e, não sendo pretensão retirar-lhes a devida importância, no que concerne a linha de investigação em curso, entende-se como importante enuncia-las fazendo o paralelo com o objetivo específico apresentado, uma vez que, dentro do direito de crédito, especifica-se a hipoteca: caraterizar o crédito hipotecário enquanto uma garantia real e enquanto uma concessão inicial. De acordo com o entendimento de Menezes Leitão647 são quatro as teorias a apresentar: personalistas, realistas, mistas e doutrinas da complexidade obrigacional, sendo que desde já se sublinha que as teorias mistas serão as mais conducentes a uma teorização do crédito hipotecário enquanto garantia real e concessão inicial. Às teorias personalistas e realistas apresentadas a seguir, na linha deste autor, serão também apontadas outras perspetivas que complementam as mesmas. As teorias personalistas tiveram origem, entre outros, no trabalho do jurista francês Planiol, o qual afirmou que o direito real é uma relação não entre uma pessoa e uma coisa, mas entre um sujeito e todos os outros associados. O núcleo fundamental desta teoria é que existe uma obrigação passiva universal, presente tanto no direito real como obrigação geral e negativa e, no direito de crédito, o dever que recai sobre o titular passivo é um dever de prestação a cargo de pessoa determinada ou determinável648. Na análise efetuada por Menezes Leitão, as teorias personalistas perspetivam o direito do crédito como uma ligação pessoal, neste caso, à conduta do devedor, traduzindo-se por um lado na teoria que o crédito é como um direito sobre a pessoa do devedor e, por outro, a teoria que o crédito é como um direito à prestação do devedor649. A primeira remonta ao Direito Romano, que representava o direito de crédito como um direito de domínio sobre uma pessoa, ou então ao Direito Moderno que representa o mesmo como um domínio sobre uma atuação de prestação do devedor. No caso da segunda teoria, enquanto uma perspetiva clássica, qualifica o direito de crédito como um direito à prestação, isto é, o direito a uma conduta do devedor, LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… Cf. MOREIRA, Álvaro; FRAGA, Carlos – Direitos Reais, segundo as preleções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto ao 4º Ano Jurídico de 1970-71. Coimbra: Almedina, 2007. 649 Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… p. 68 647 648
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exigindo-se desta forma a concretização de determinada conduta para beneficiar outrem, e que corresponderá a um valor patrimonial, o qual permite a execução do património do devedor para indemnização do credor650. Esta teoria destaca a relação do homem com os homens, e conforme referido, Planiol trouxe à discussão a “obrigação passiva universal” como sendo uma caraterística do direito real. Já as teorias realistas visionam o direito de crédito como um direito sobre o património do devedor e Menezes Leitão destaca quatro opções que se passam a descrever651. A primeira teoria realista atribui ao crédito um direito sobre os bens do devedor, recaindo sobre todo o património do devedor. Neste caso, há uma negação à prestação, sendo que existe apenas a faculdade de executar o património do devedor. Segundo a análise de Luís Menezes Leitão, as diferentes abordagens desta teoria realista, são falsas porque existe uma faculdade de execução que se destina a garantir o direito de crédito, consistindo o seu objeto verdadeiro na prestação. A segunda teoria realista concebe o direito de crédito como uma relação entre patrimónios, onde o credor e devedor são meros representantes jurídicos dos seus bens, o que implica uma dívida do património do devedor ao património do credor. Deste modo, o património seria o sujeito das obrigações, e o homem apenas seria um elemento. Mais uma vez, o autor considera esta teoria falsa, uma vez que as relações jurídicas apenas se estabelecem entre pessoas, e os patrimónios são complexos de bens e não substituem as pessoas em atos jurídicos. A terceira teoria realista apresentada pelo autor, enuncia o direito de crédito como um direito à transmissão dos bens dos devedores, sendo que o fim da obrigação consiste na aquisição da propriedade e a diferença entre o direito de crédito e o direito real seria na capacidade deste exercer diretamente sobre a coisa e aquele teria um direito à aquisição de bens do devedor. Esta terceira teoria traz duas conceções que são de destacar: por um lado a obrigação é qualificada como uma alienação da propriedade do devedor652, e por outro, o credor é qualificado como sucessor do devedor653. Estas teorias e conceções, são consideradas incorretas, porque a obrigação não implica a transmissão ou sucessão de bens, já que a prestação pode ser de facto e não tem de ter valor económico. Deste modo, segundo Menezes Leitão, como o direito de crédito tem sempre como objeto a prestação do devedor, sendo que mesmo que o credor possa penhorar bens do devedor em caso de incumprimento, os mesmos estão sujeitos à venda executiva para pagamento.
Cf. LEITAO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… p.71 Cf. LEITAO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… p.73 652 “De acordo com Cazelles, a constituição do crédito deveria ser vista como um processo de aquisição de bens, sendo qualificada a situação do credor como um adquirente de um cero valor do património do devedor, semelhante a um comprador a termo” cit por LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… p. 77 653No entender dos autores que defendem esta perspetiva, o fenómeno da sucessão estaria presente no direito de crédito porque o credor partiria dos direitos de outra pessoa, o que lhe daria a mesma posição dele. 650 651
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Em quarto lugar, o autor examina a teoria realista que também nega a existência de um direito à prestação e cujos defensores preconizam que é possível distinguir na obrigação duas relações fundamentais: o débito e responsabilidade, sendo que o débito corresponde a um dever do devedor, e a responsabilidade a um estado de sujeição, e ao correspondente direito daquele, a quem seja devida uma prestação para fazer valer essa sujeição, de forma a obter a finalidade pretendida. Por seu turno as teorias mistas trazem como conceção que a obrigação abarca tanto a prestação como o património do devedor, sendo que o débito é o elo principal da obrigação e a responsabilidade é o vínculo de garantia. Deste modo, o credor teria direito à prestação, enquanto direito pessoal, e o direito sobre o património do devedor, enquanto direito real de garantia. O primeiro seria atingido contra o cumprimento voluntário por parte do devedor, e o segundo seria exercido através de um processo executivo. Estas teorias são habitualmente apelidadas de Schuld und Haftung654, as quais com origem na Alemanha tiveram seguidores em diferentes países e nomeadamente em Portugal, com Galvão Telles e Gomes da Silva, conforme sublinhado por Menezes Leitão. O autor não deixa de apontar que as teorias mistas, apesar de apresentarem uma argumentação sólida, não deixam de ter como base alguns pressupostos falsos. Por exemplo, a afirmação de que pode constatar em momentos diferentes a constituição e extinção da responsabilidade, é incorreta. Dando mais exemplos, o que se faz notar é que acaba por existir algumas divergências quanto à natureza da responsabilidade, uma vez que poderá ser vista como um direito real de garantia sobre os bens do devedor, ou então, como um direito de natureza processual dirigido contra o Estado.655 Finalmente, as doutrinas da complexidade obrigacional visam superar a contradição entre a prestação e o património do devedor, olhando para a obrigação como uma realidade complexa, abrangendo por exemplo um conjunto de créditos individuais, que correspondem aos deveres de prestação principais e acessórios assim como direitos prestativos os quais correspondem a sujeições. Para estas teorias o vínculo obrigacional é visto como uma estrutura ou como um processo, passando a relação obrigacional por uma relação jurídica global, a qual pode abranger um conjunto de deveres de prestação, de conduta, poderes potestativos e situações de sujeição. Assim, a ligação entre estas diferentes realidades faz com que a obrigação seja mais do que a soma de situações jurídicas, traduzindo-se numa estrutura jurídica complexa656. 654Cit.
por LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… p. 81: “expressão alemã que significa dívida e responsabilidade. Para estas doutrinas, a obrigação tanto tem por objeto a prestação como o património do devedor, posição que se considera corresponder ao antigo direito romano, que distinguia entre a vinculação pessoal do devedor (debitum) e a sua responsabilidade (obligatio), bem como ao antigo direito germânico que estabelecia uma distinção entre a dívida (Schuld) e a responsabilidade (Haftung)”. 655 Cit. por LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I… p. 84 656 Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direito das Obrigações I…
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Será de salientar que na sua análise, Menezes de Leitão acaba por elencar as relações lógicas dos argumentos apresentados, sublinhando a importância atribuída a cada uma das correntes teóricas, mas não deixa também de enumerar os erros que cada uma delas apresenta no que concerne a pressupostos que estão na base da argumentação, ou então na aplicabilidade do direito de crédito. Verificando agora do ponto de vista prático e económico, o crédito enquanto um fenómeno multifacetado e sempre em evolução, traduz-se na maioria das vezes num contrato de empréstimo, como já referido anteriormente, reforçando a ideia de negócio de crédito. Assim, e considerando que da relação jurídica que releva o crédito subjaz o negócio de crédito, poderá ser feita uma análise mista do mesmo, onde o conceito económico de crédito se apresenta com uma face jurídica. E desta forma os elementos elencados, tempo, confiança, promessa e remuneração, poderão ser reelaborados numa perspetiva jurídica em três pontos principais: direito de crédito, relação fiduciária, aprazamento657. Na análise efetuada sobre o direito de crédito, é importante sublinhar a relação entre o beneficiário e o prestador de crédito, ou seja, para o primeiro o seu património é antecipadamente aumentado através de fundos e o segundo goza de uma promessa de futura restituição. Esta é e constitui juridicamente um direito de crédito, atual, de exigir a restituição no futuro. Ambos, património do credor e o dinheiro transmitido em propriedade ao devedor têm o mesmo valor e, consequentemente não existe nem empobrecimento do credor, nem enriquecimento do beneficiário do crédito658. Outro elemento a referir é a relação fiduciária, que poderia induzir em erro a conceção de que os negócios de crédito têm uma natureza de negócios fiduciários, considerando a confiança. Nomeadamente, o negócio fiduciário consiste numa das partes conferir poderes jurídicos a outra tendo em vista um determinado objetivo, ficando a outra parte dependente da obrigação pessoal de usar a posição jurídica atribuída dentro dos limites para aquele objetivo. Assim, poderá se afirmar que nos negócios de crédito existe uma confiança recíproca, tornando-se num pressuposto do crédito, mas não o caracteriza juridicamente, daí afirmar-se que a confiança é um elemento natural, não essencial, do negócio de crédito659. Por seu turno o tempo, mais um elemento essencial no direito de crédito, que surge associado ao prazo e aos juros, uma vez que, ao considerar a convenção de aprazamento, que é primordial na caracterização da outorga de crédito, considera-se também o elemento restituição; por outro lado, consta o elemento da remuneração, ou seja, os juros, que são integrados naturalmente na prestação do devedor. Cf. PATRÍCIO, José Simões – Direito do Crédito… Cf. JARDIM, Mónica – Escritos de direito notarial e direito registal. Coimbra: Almedina, 2015. 659 Cf. PATRÍCIO, José Simões – Direito do Crédito… p. 55 657 658
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2. Contrato de mútuo para aquisição de habitação
Com efeito, é evidente que o crédito desempenha um papel de destaque nas economias contemporâneas, quer na sua vertente de crédito a empresas quer na sua vertente de crédito a particulares. Em qualquer uma das situações o crédito potencia o crescimento e desenvolvimento económico, nomeadamente através da criação de emprego, da criação de riqueza, da distribuição da mesma e do aumento da receita fiscal. Destaca-se entre o crédito concedido aos particulares o crédito ao consumo, que permite um aumento do bem-estar através do acesso a bens que, de outra forma, estariam fora do alcance das pessoas. Designadamente o crédito habitação tornou-se nos dias de hoje, parte dum projeto pessoal e familiar de aquisição de habitação, só possível através do recurso ao crédito, pago com receitas e rendimentos futuros. Atualmente, com o recurso ao crédito bancário, as pessoas podem financiar consumos presentes e antecipar receitas futuras. Ao mesmo tempo, a concessão de crédito para habitação manifestou-se também numa importante fonte de negócios e receitas para os Bancos, através dos juros associados aos créditos pedidos e através das ações promocionais. O contrato de crédito à habitação permite deste modo a concretização de um projeto, que doutra forma não seria possível. a. O mútuo Enquanto um contrato de mútuo bancário660, que, assim como o mútuo comercial, constitui uma modalidade especial de mútuo que converge no mútuo civil, importa analisar o mútuo bancário, passando de forma breve pelo mútuo civil e mútuo comercial. O mútuo civil surge definido na lei como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade” (artigo 1142º do CC661). Pode-se elencar no ordenamento jurídico português, três elementos fundamentais do contrato de mútuo: a natureza fungível da coisa mutuada; a entrega da coisa por parte do mutuante; e a obrigação do mutuário de restituição de coisa do mesmo género, quantidade e qualidade. O mútuo comercial está regulamentado nos artigos 394º a 396º do CCom., e para que possa acontecer, “…a cousa cedida seja destinada a qualquer acto mercantil”662. A natureza comercial do mútuo pode resultar de um elemento objetivo, o destino
Cf. CORDEIRO, António Menezes – Manual do Direito Bancário. Coimbra: Almedina, 2008. Cit. in Código Civil Português… p. 278. 662 Cit. in Código Comercial, Carta de Lei de 28 de Junho de 1888. verbojuridico.net, 2003, p. 31 660 661
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comercial da coisa cedida, ou subjetivo, por força da qualidade de comerciante de uma das partes. Finalmente, o mútuo bancário, consolida uma das operações bancárias previstas no artigo 362º CCom., que dispõe que “são comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis e, em especial as de câmbio, os arbítrios, os empréstimos, descontos, cobranças, aberturas de crédito, emissão e circulação de notas ou títulos fiduciários pagáveis à vista e ao portador”663. Conforme se verifica, o mútuo bancário é classificado como um ato comercial e, deste modo oneroso, pelo que, a obrigação de o mutuário restituir o mesmo é acrescida do pagamento de juros. Além disto, distingue-se dos outros mútuos porque é celebrado por um mutuante, o Banco, ou instituição de crédito. O mútuo bancário tem uma particularidade na sua forma em relação ao mútuo civil e ao mútuo mercantil, porque “os contratos de mútuo ou de usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante”.664 b. O mútuo de escopo O mútuo bancário também pode ser um mútuo de escopo, porque os empréstimos bancários habitualmente são realizados tendo como propósito um fim específico que o mutuário, além de se comprometer à restituição do capital e juros mutuados, compromete-se também a aplicar as quantias mutuadas. Enquanto uma modalidade atípica do mútuo, porque na sua configuração típica o mutuante fica somente com o direito à restituição do capital e juros, fica o mutuário para dispor livremente da coisa, como entender.665 Segundo Menezes Leitão existem três categorias de mútuo de escopo: o mútuo de escopo legal, o mútuo de escopo legal facilitado e o mútuo de escopo voluntário, consoante o escopo do empréstimo tome em consideração interesses públicos ou meramente privados.666 O mútuo de escopo legal corresponde a financiamentos legalmente estabelecidos para determinados fins, em que o mutuante é uma instituição financeira e o mutuário uma entidade com requisitos legalmente estabelecidos, que fica dependente a utilizar a quantia mutuada para os fins legalmente previstos, segundo uma cláusula de destinação. O mútuo de escopo legal facilitado significa que existem empréstimos concedidos devido à intervenção do Estado ou de outra entidade pública, que confere certas subvenções no
Cit. in Código Comercial… p. 27 Artigo único do DL n.º 32.765, de 29 de Abril de 1943 cit. in CORDEIRO, António Menezes – Manual do Direito Bancário… p. 538. 665Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direito das obrigações, III… 666Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direito das obrigações, III… p.420. 663 664
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sentido de facilitar a concessão de crédito, ou concede ele próprio, o referido crédito com taxas mais baixas do que as praticadas no mercado, sujeitando-se o mutuário à utilização do financiamento para um determinado fim, que é assim alvo de incentivo público667. Por último, no mútuo de escopo convencional não existe imposição legal de aplicação das quantias mutuadas a um fim convencionado, mas limites à utilização das quantias mutuadas, que foram resultado da estipulação das partes. Com a liberalização da economia, as necessidades de um escopo têm vindo a diminuir, no que concerne o seu respeito absoluto, sob pena de resolução. No caso de créditos a médio e longo prazo, com bonificação de juros ou vantagens fiscais, o escopo volta a ter o seu papel principal e decisivo que consiste em ser respeitado quando contratualmente consignado668. Entre os vários casos de mútuo de escopo contemplados em legislação especial, destacase o crédito à habitação, que é regulado pelo DL n.º 349/98, de 11 de novembro, alterado pelo DL n.º 137-B/99, de 22de Abril, pelo DL n.º 1-A/2000, de 22 de janeiro, pelo DL n.º 320/2000, de 15 de dezembro (que procede à sua republicação), pelo DL n.º 231/2002, de 2 de novembro, pelo DL n.º 305/2003, de 9 de dezembro, pela Lei n.º 60A/2005, de 30 de dezembro, pelo DL n.º 107/2007, de 10 de Abril, pelo DL n.º 222/2009, de 11 de setembro e pela Lei nº 59/2012, de 9 de novembro.669 O contrato de crédito à habitação tem um escopo determinado: a aquisição da habitação. Contudo, o objetivo do mútuo concretiza-se imediatamente após a celebração do negócio, ou seja o imóvel é imediatamente adquirido pelos mutuários, e não ao longo da vida do contrato de mútuo. Como será explorado mais à frente, em caso de incumprimento, dá-se a execução da hipoteca e a consequente perda da casa pelos mutuários o que não significa que o resultado se tenha frustrado. Deste modo, conforme Menezes Leitão, o contrato de mútuo com escopo para obtenção de habitação significa uma obrigação do mutuário na aplicação da quantia mutuada e não numa forma de restrição da sua responsabilidade.670 3. A hipoteca
É o caso de empréstimos à aquisição de habitação que, até ao DL n.º 305/2003, de 9 de Dezembro, eram objeto de bonificação de juros, sendo que agora são objeto de subvenção pelo Estado, através da possibilidade de dedução à coleta no IRS de parte do capital amortizado conforme o artigo 85º, nº 1 a) do CIRS – Ci.t in LEITÃO, Luís Menezes – Direito das obrigações, III…p.420. 668 Cf. CORDEIRO, António Menezes – Manual do Direito Bancário… 669 Cf. https://www.bportugal.pt/pt-PT/Legislacaoenormas/Documents/Lei59ano2012.pdf 670 Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direito das obrigações, III… p.420. 667
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Veja-se por exemplo que segundo o Banco de Portugal671, o crédito hipotecário é um contrato de crédito garantido por hipoteca, que recai sobre um imóvel, habitualmente a habitação do mutuário, sendo que também pode ser designado de crédito hipotecário, o contrato de crédito garantido por outro direito sobre coisa imóvel. Conforme referido anteriormente, o exemplo mais conhecido é o crédito à habitação regulamentado pelo DL n.º 349/98, mas também existem como créditos hipotecários, os contratos de crédito conexo, regulamentados pelo DL n.º 192/2009, de 17 de agosto, normalmente apelidados por “multiusos” ou “multiopções”, realizados com a mesma instituição com a qual é contraído o crédito à habitação e garantidos por hipoteca que recai, total ou parcialmente, sobre o imóvel que também serve de garantia ao contrato de crédito à habitação; e os contratos de crédito consolidado quando garantidos por hipoteca sobre um imóvel, os quais estão previstos no DL n.º 226/2012, de 18 de outubro e são os que decorrem da junção de diversos empréstimos anteriormente contratados pelo cliente bancário.672 Torna-se, deste modo, fundamental definir o conceito de hipoteca. a. História do conceito A hipoteca enquanto um direito real de garantia não foi sempre regulada de forma isolada no Direito Romano. Deste modo, a hipoteca e o penhor tiveram origem de uma forma mais vasta de direito real de garantia – a fiducia cum creditore – que incluía a transferência para o credor da propriedade do bem, do devedor ou de terceiros, sobre o qual recaía, mas realizando-se essa transmissão de domínio sob condição de que o credor o repusesse quando a dívida fosse satisfeita673. A hipoteca foi introduzida no direito romano, inicialmente como conventio pignoris e depois como hypotheca, e enquanto uma figura considerada e regulada isoladamente, de forma a garantir o pagamento da renda de prédios rústicos. A partir do século I a. C. a hypotheca alargou o seu universo, passando a garantir todas as coisas materiais, direitos e até patrimónios inteiros674, sendo que podia ser composta por disposição legal ou por negócio inter vivos ou mortis causa. A hipoteca era à semelhança do penhor, uma garantia real e acessória, e o hipotecário era protegido pela actio Serviana e, depois, pela actio quasi Serviana675que permitia reivindicar a coisa hipotecada a qualquer possuidor.676 A hipoteca extinguia-se por venda ou destruição da coisa, renúncia, confusão, extinção da dívida garantida e por usucapião a favor de terceiro que possuísse a coisa hipotecada Portal do Cliente Bancário: http://clientebancario.bportugal.pt/pt-PT/Paginas/inicio.aspx http://clientebancario.bportugal.pt/pt-PT/Credito/Paginas/CreditoHipotecario.aspx 673 Cf. DUARTE, Rui Pinto - Curso de Direitos Reais… p. 217 674 Cf. LEITÃO, Luís Menezes - Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2015. 675 Também denominada Serviana pigneraticia in rem ou hypothecaria cf. JUSTO, A. Santos - Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2012, p. 470. 676 CRUZ, Sebastião – Direito Romano (Ius Romanum). Coimbra: DisLivro, 1994. 671 672
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de boa-fé e com justo título durante dez (inter praesentes) ou vinte anos (contra absentes)677. Somente em França, na sequência da Revolução Francesa, é que se vem a instituir o registo das hipotecas, permitindo a sua plena consagração no Code Civil (de 1804). Em consequência, a hipoteca veio a ser consagrada também nas restantes codificações europeias, como o BGB (German Civil Code) e o Código Italiano.678 b. Enquadramento legal Conforme o artigo 686º do CC679, a hipoteca é um direito real de garantia (rectius garantia real) que confere ao credor o direito de desencadear a venda judicial de coisa certa680imóvel ou móvel registável pertencente ao devedor, ou a terceiro e, assim, ser pago pelo valor da sua venda, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo. Os direitos suscetíveis de oneração por hipoteca são todos aqueles suscetíveis de alienação, conforme artigo 715º do CC681, sendo que se deverá considerar o que está disposto na lei (artigos 688º a 690º). Mas será fundamental o registo do respetivo ato constitutivo, para serem considerados outros direitos que não estejam descriminados na lei, desde que sejam suscetíveis de inscrição registal682. Normalmente utilizada na vida económica e social, a hipoteca possibilita aos proprietários de bens imobiliários o acesso rápido ao crédito que lhes faculte, conseguir os capitais de que necessitam pelo prazo útil e com um mínimo de responsabilidades e, simultaneamente, atribui ao credor um risco diminuído de ver frustrado o seu crédito 683. A hipoteca reveste em todas as operações de crédito uma importância prática extraordinária que é explicada pela natureza imobiliária dos bens por ela abrangidos, natureza esta que também justifica a solução excecional de a eficácia da hipoteca depender do seu registo684, mesmo em relação às partes, conforme o artigo 687º CC, que refere “a hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes”685. Atualmente, o conceito de hipoteca ainda sofre um pouco por causa da evolução dos vários sistemas do Direito português, o que se verifica, segundo Rui Pinto Duarte686, quando se constata que no Direito português, por detrás da linha distintiva aparente Cf. JUSTO, A. Santos - Direitos Reais… 2012 Cf. LEITÃO, Luís Menezes - Direitos Reais… 2015 679 Código Civil Português… p. 179-180 680 A hipoteca pressupõe, como decorrência do princípio da especialidade, a determinação da coisa sobre que recai, do montante do crédito assegurado, dos seus acessórios, conforme artigo 693º do CC. 681 Código Civil Português… p. 187 682 Cf. GONZÁLEZ, José Alberto – Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário. Lisboa: Quid Juris sociedade Editorial, 2009. 683 Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direito das obrigações, I… 684 Cf. JARDIM, Mónica – Escritos de direito notarial... 685 Código Civil Português… p. 180 686 DUARTE, Rui Pinto – Curso de Direitos Reais… 677 678
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surge a linha distintiva consistente na posse de bens, uma vez que a hipoteca não confere posse ao credor. Além disto, a hipoteca é sempre uma garantia de uma obrigação, conforme artigo 686º, nº 2 do CC, “a obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional”687. Pode-se afirmar que, por um lado a hipoteca é a garantia de uma obrigação e, por outro, um direito real de garantia. Existem três tipos de hipoteca conforme o artigo 703º do CC: legal, judicial e voluntária. As hipotecas legais são aquelas que “resultam imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes, e podem constituir-se desde que exista a obrigação a que servem de segurança” (artigo 704º do CC). Contudo, esta hipoteca deve ser registada, porque o registo é um ato constitutivo, isto é, o credor tem o direito potestativo de exigir o registo, o que significa que não resultam imediatamente da lei. Estas hipotecas podem recair sobre quaisquer bens hipotecáveis do devedor, conforme o artigo 708º do CC refere, outra coisa não resulte da lei. Os casos de hipoteca legal estão elencados no artigo 705º do CC688. Estas hipotecas constituem-se quando certo credor “requerer a inscrição registal correspondente nos termos, por exemplo, do artigo 50º do” CRPredial689. A hipoteca judicial tem igualmente a sua fonte na lei: enquanto um título constitutivo é uma decisão judicial que tanto pode ser uma sentença, ainda que não transitada em julgado, que condene alguém numa prestação em dinheiro, como pode ser um despacho saneador conforme artigo 710º, nº 1 do CC690. Tal como as hipotecas anteriores, estas também podem incidir sobre quaisquer bens dos devedores. Conforme o artigo 712º do CC691, a hipoteca voluntária depende do titular da coisa hipotecada que pode manifestar-se num contrato ou declaração unilateral. Conforme o artigo 714º do CC692, as hipotecas voluntárias recaem sobre o imóvel, devendo este constar de escritura pública, de testamento. Como se trata da maioria das situações praticadas, a hipoteca voluntária merece uma exploração maior. O objeto da hipoteca, pode ser sobre prédios rústicos e urbanos, direito de superfície, direito resultante de concessões em bens do domínio público, usufruto, as coisas móveis registáveis, as partes dum prédio suscetíveis de propriedade autónoma, sem perda da sua natureza imobiliária e a quota de coisa ou direito comum, podendo com o consentimento do credor, a divisão da coisa ou direito comum limitar a hipoteca à parte que for atribuída ao devedor.693 Código Civil Português… p. 180 Código Civil Português … p. 184-185 689 Cit. in GONZÁLEZ, José Alberto – Direitos Reais e Direito Registal… p. 61 690 Código Civil Português … p. 186 691 Código Civil Português … p. 186 692 Código Civil Português … p. 187 693Cf. JUSTO, A. Santos - Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2012 687 688
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O regime jurídico da hipoteca consiste em facultar ao credor hipotecário a competência de fazer executar o seu objeto no caso de incumprimento da obrigação garantida, preferindo em relação aos credores comuns e aos outros credores hipotecários cujo registo seja posterior. De facto, não haver a entrega da coisa sobre a qual incide a garantia, constitui um dos principais aspetos da hipoteca voluntária, uma vez que o aparecimento de novas garantias vieram pôr em causa a primazia anteriormente atribuída à hipoteca. Conforme o estudo de Cláudia Madaleno694essas garantias como os privilégios creditórios e o direito de retenção e arrendamento, em comparação com a hipoteca voluntária levou a autora questionar se a hipoteca é a mais segura das garantias, ou se pelo contrário, atribui apenas a segurança possível do ressarcimento do crédito. Conclui com o seu estudo, e com importância para os aspetos agora discutidos, que apesar de ter perdido o estatuto de “rainha das garantias”695, por não garantir totalmente o ressarcimento do crédito garantido, pelo que há uma certa fragilidade na garantia hipotecaria, uma vez que por exemplo não há lugar à entrega da coisa hipotecada, não deixa de constituir matéria essencial para o desenvolvimento económico e para o investimento em geral. Em síntese, verifica-se de facto que a hipoteca poderá ser preterida em caso de concurso com os privilégios creditórios e o direito de retenção que, apesar de prevalecerem sobre ela, não estão sujeitos a registo. Existem ainda alguns inconvenientes da hipoteca, uma vez que as formas utilizadas para a sua constituição adotam uma certa inflexibilidade, nomeadamente devido à grandeza económica dos bens abrangidos. Acresce ainda que a ação executiva, que é a única forma de o credor realizar o seu direito, pode revelar-se morosa, dado que não é admitida a venda extrajudicial de coisa hipotecária, como será explorado mais à frente. Por último, importa referir que toda a matéria da garantia hipotecária é orientada pela necessidade de harmonizar duas imposições económico-sociais, a tutela do crédito e a circulação dos bens, para as quais necessariamente se impõe normatividade que se encontra presente nas diferentes características da hipoteca a descrever abaixo. c. Regras e características da hipoteca Existem diferentes princípios e regras que são comuns às diferentes hipotecas. A necessidade de recurso a tribunal para a execução da hipoteca é judicial e, enquanto regra que resulta do sistema no seu conjunto, não resulta de nenhum preceito legal específico. Fundamental na hipoteca, seja qual for o seu título constitutivo, só passa a ser existente a partir do instante que que se realize a respetiva inscrição registal conforme os artigos MADALENO, Cláudia – A vulnerabilidade das garantias reais. A hipoteca voluntária face ao direito de retenção e ao direito de arrendamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2008 695 Cf. MADALENO, Cláudia – A vulnerabilidade das garantias reais… p. 330 694
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687º do CC (referido anteriormente) e o seu registo constitutivo, enquanto regra básica para que a hipoteca produza efeitos, conforme plasmado no CRPredial, artigo 4º, n.º 2 refere que são sujeitos a registo os factos constitutivos da hipoteca696. Outra regra importante é o âmbito físico, por exemplo da mutabilidade dos prédios enquanto uma fonte de potenciais dúvidas relativamente à ação humana e forças naturais. Não se pode deixar de referir as obrigações cobertas, isto é, a determinação, segundo o artigo 96º, n.º 1, alínea a) do CRPredial, do crédito e seus acessórios e o montante máximo assegurado. No que respeita aos juros, a hipoteca nunca abrange mais do que os três anos, conforme o artigo 93º, n.º 2 do mesmo diploma697. A propósito, poderá referir-se que é um meio indireto de limitar quantitativamente os juros, que visa proteger as expectativas de terceiros em relação ao máximo permitido pela hipoteca e, tem como objetivo estimular a diligência do credor exequente. Poderá questionar-se qual o período de tempo a considerar que não é abrangido pela hipoteca e parece que seja o dos últimos três anos. Uma das características mais relevantes da hipoteca é a sua indivisibilidade, determinada no artigo 696º do CC: “salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.”698 Outra, a da transmissibilidade e suscetibilidade de nova oneração dos bens, significa que a constituição de hipoteca não prejudica a transmissibilidade dos bens sobre quem incide. Segundo o artigo 695º do CC699, a lei proíbe a cláusula pela qual o dono se obrigaria a não alienar ou a não onerar os bens hipotecados, contudo, é possível estipular que o crédito hipotecário se vencerá logo que esses bens sejam alienados ou onerados. A transferência do direito de hipoteca para os créditos indemnizatórios significa que, em caso da coisa hipotecada se perder, deteriorar, ser expropriada ou acontecer outro facto análogo e existir lugar a indemnização, a hipoteca passa a incidir sobre a mesma. Depois de notificada a existência da hipoteca, o devedor da indemnização só se exonera da sua obrigação se os direitos do credor hipotecário forem respeitados, conforme o artigo 692º, nº 2 do CC700. Não deixa de ser importante perceber qual o destino dos arrendamentos feitos antes da penhora de imóveis hipotecados em caso de execução de hipoteca, verificando-se que,
Código do Registo Predial, disponível legislacao/codigo-do-registo-predial/ 697 Código do Registo Predial… 698 Código Civil Português… p. 182 699 Código Civil Português… p. 182 700 Código Civil Português… p. 181 696
em
http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/docs-
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segundo a lei portuguesa, e conforme o artigo 1057º do CC701, a locação não cessa por força da alienação do bem locado, ficando o adquirente do mesmo substituído na posição de locador. Já no caso de venda judicial apenas caducam direitos reais (artigo 824º, nº 2 do CC702). Outra característica da hipoteca, a credibilidade, obedece a determinadas regras como: se a coisa hipotecada pertencer a terceiro é necessário o consentimento deste; a transmissão da hipoteca só é lícita para garantia de crédito que pertence a outro credor do mesmo devedor; a cessão tem de respeitar as regras da cessão de créditos; quando a hipoteca incide sobre mais do que uma coisa, só pode ser cedida na sua totalidade. O credor pode exigir a substituição ou o reforço da hipoteca no caso do objeto da mesma perecer ou se tornar insuficiente para a segurança da divida. A hipoteca pode ainda ser expurgada no caso do adquirente de bens hipotecados querer se libertar da hipoteca, conforme os artigos 721º, 722º, 723º do CC703. d. Extinção da hipoteca No artigo 730º do CC704 estão elencadas as causas de extinção da obrigação. Enquanto garantia acessória, a hipoteca, tem associada automaticamente como primeira causa a extinção da obrigação a que serve de garantia. A prescrição aparece como a segunda causa da extinção da hipoteca a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação conforme o artigo 730º alínea b) do CC. A terceira causa de extinção da hipoteca é o perecimento total da coisa hipotecada e que leva também ao mesmo resultado, a não ser que se verifiquem os pressupostos do artigo 692º CC705, ou seja no caso em que a hipoteca passa a recair sobre o crédito indemnizatório. Aqui, a lei permite ainda (artigo 730º, alínea c) do CC) que o credor exija ao devedor a substituição da coisa hipotecada que tenha perecido por causa não imputável a si próprio ou ao devedor. Finalmente, surge a renúncia do credor (artigo 730º e 731º nº 1 do CC706). Conforme o artigo 863º, nº 1 do CC707 a renúncia à hipoteca implica apenas a abdicação da garantia e não a renúncia ao crédito garantido, cuja extinção se processa por remissão. Existem ainda as causas que resultam dos princípios gerais, tais como: o decurso do prazo acordado ou a condição resolutiva a que a hipoteca se encontrava sujeita, assim como outras causas de extinção dispersas como a extinção da hipoteca pela sua expurgação, Código Civil Português… p. 272 Código Civil Português… p. 214 703 Código Civil Português… p. 188-189 704 Código Civil Português… p. 190-191 705 Código Civil Português… p. 181 706 Código Civil Português… p. 190-191 707 Código Civil Português… p. 223 701 702
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como já referido (artigo 721º, alínea b) do CC708); o caso em que na extinção da hipoteca composta por terceiro quando, por facto positivo ou negativo do credor, não puder dar-se a sub-rogação do primeiro nos direitos deste (artigo 717º nº 1 do CC709) e o caso de extinção de hipoteca que tenha por objeto um usufruto que entretanto se extinguiu (artigo 699º nº 2 do CC710). 4. A transparência na divulgação e informação do crédito O acesso a todos os elementos necessários para um negócio de crédito assim como toda a informação associada para levar a uma condução adequada de todos os processos de crédito, implicam uma atuação eficaz por parte daqueles operadores que têm como finalidade o exercício do crédito. As instituições de crédito711, comummente apelidadas por “bancos”, representam em termos jurídicos a atividade creditícia, e as sociedades financeiras podem efetuar as operações de crédito. Com a lei bancária, regulamentada pelo DL nº 298/92 de 31 de dezembro as instituições de crédito “são expressamente definidas com referência, aliás não exclusiva, à função creditícia; não assim as sociedades financeiras.”712 Ao Banco de Portugal compete a monitorização das instituições de crédito, das sociedades financeiras, das entidades prestadoras de serviços de pagamento, em especial das instituições de moeda eletrónica e das instituições de pagamento. E no intuito de clarificar adequadamente o que se espera das instituições de crédito, verifica-se no artigo nº 2, alínea w) do DL n.º 298/92 de 31 de dezembro, que a instituição de crédito “é a empresa cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder crédito por conta própria”. Daqui advém duas ideias fundamentais: o receber depósitos ou outros fundos e aplicar esses fundos na concessão de crédito. Com esta afirmação não se pretende delimitar as funções de uma instituição de crédito, mas sim realçar as mesmas. Além disto, entendese pelo decreto de lei referido, que houve uma tentativa de transformar em obrigação
Código Civil Português… p. 188 Código Civil Português… p. 187 710 Código Civil Português… p. 183 711 Segundo o Banco de Portugal, “as instituições de crédito são empresas cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e em conceder crédito por conta própria. No grupo das instituições de crédito destacam-se os bancos, mas dele também fazem parte as caixas económicas, a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e as caixas de crédito agrícola mútuo, as instituições financeiras de crédito e as instituições de crédito hipotecário. Enquanto os bancos podem praticar todo o tipo de operações autorizadas às instituições de crédito, as restantes instituições de crédito só podem exercer as atividades e praticar as operações permitidas pelas normas legais e regulamentares que regem a sua atividade. Cit. in http://clientebancario.bportugal.pt/pt-PT/Instituicoes/Instituicoescredito/Paginas/default.aspx 712 Cit. in PATRÍCIO, José Simões – Direito do Crédito… p. 74 708 709
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um direito das instituições de crédito, ou seja, de disporem dos fundos recebidos, mas com o dever de os restituírem. No que concerne a exclusividade da concessão de crédito, verifica-se no artigo 8º, nº 2 do DL nº 298/92 de 31 de dezembro: “só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as atividades referidas nas alíneas b) a i), r) e s) do n.º 1 do artigo 4.º, com exceção da consultoria referida na alínea i).” 713 Na verdade, a lei não define de forma positiva concessão ou operação de crédito, mas atribui, entre outras operações, conforme artigo 4º, alínea b), concessão de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring. Verifica-se deste modo, que não são delimitadas as operações de crédito, ou o que elas são. A concessão de crédito efetuada pelas instituições financeiras obedece a uma série de regras estipuladas na lei, e que estão previstas, conforme já referido, no artigo 4º, mas por outro lado, os deveres das mesmas passam por estabelecer uma relação adequada com os clientes, a qual está regulamentada no artigo 77º, A à D do referido diploma. O dever por parte das instituições de crédito de facultar informação com clareza e de forma adequada, passa por o cliente avaliar antecipadamente as condições que lhe são apresentadas pelas instituições previamente à celebração de um contrato ou da aquisição de um produto ou serviço bancário, decompondo cuidadosamente os respetivos custos, remunerações e os riscos que podem eventualmente ocorrer, conforme previsto no artigo 77º - A, n.º 2. A informação facultada pelas instituições de crédito deve ser clara e completa (artigo 77º- A, nº 5) e respeitar princípios de transparência e rigor em todas as fases de acesso a operações de crédito ou aplicações de poupanças714. Existem normas regulamentadas pelo Banco de Portugal que respeitam o direito à informação no processo de escolha e de contratação, por exemplo, de crédito à habitação e, em simultâneo está prevista uma determinada informação pré-contratual prestada pelas instituições, através da entrega de Fichas de Informação Normalizadas (FIN)715 aos seus clientes, designando qual a informação fundamental a constar nos Decreto de Lei nº 298/92, 31 dezembro disponível em https://www.bportugal.pt/ptpt/legislacaoenormas/documents/regimegeral.pdf 714Da divulgação através de campanhas de publicidade à informação sobre as condições para a respetiva contratação (através do preçário da instituição), estendendo-se às fases pré-contratual, de celebração do contrato e durante a sua vigência. As campanhas de publicidade das instituições têm de obedecer aos princípios e regras explicitados no Aviso n.º 10/2008. Na informação que divulgam através do “Preçário” sobre as condições dos produtos e serviços bancários que comercializam -, as instituições cumprem as regras definidas no Aviso n.º 8/2009 quanto ao tipo de informação e ao formato em que a mesma é divulgada. Esta informação é, assim, apresentada de forma harmonizada por todas as instituições, assegurando ao cliente a comparação fácil dos Preçários das várias instituições. O Preçário inclui todas as comissões e principais despesas associadas aos produtos e serviços das instituições, bem como as taxas de juro representativas das operações que estas praticam habitualmente, estando disponível em todos os balcões e locais de atendimento ao público e também nos sítios da Internet das instituições. Cit. in http://clientebancario.bportugal.pt/pt-PT/Instituicoes/Instituicoescredito/Paginas/default.aspx 715 Ver Anexo I 713
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contratos, nomeadamente o cash flow, a variação da taxa de juro (se for variável), informação do mútuo aprovado e seus condicionalismos, bem como a minuta (respetivas cláusulas, e ler com especial atenção aquelas que fixam encargos e as que digam respeito ao direito de retratação ou de resolução do contrato) que transparece esses condicionalismos e outros deveres direitos imbuídos no próprio crédito.716 No âmago do direito bancário surge a concessão de crédito, enquanto uma atividade sujeita a vários riscos, os quais devem ser observados e prevenidos pelas instituições de crédito, procurando a sua própria proteção assim como da dos mutuários e evidentemente do próprio sistema financeiro. A possibilidade de insolvência é um dos possíveis riscos, com o maior destaque entre todos para o mutuário, uma vez que com a crise financeira vivida nos últimos anos, assiste-se a um fenómeno económico, com consequências sociais devastas e desestruturantes das famílias e empresas portuguesas. De facto, existem várias circunstâncias que podem afetar negativamente o grau de solvência de um mutuário e sujeitar o pagamento das prestações a que este se obrigou, como por exemplo, no divórcio, morte ou desemprego. No exercício da sua atividade os bancos gerem os riscos, exigindo a prestação de garantias do cumprimento das obrigações assumidas pelos mutuários, devendo facultar aos clientes um documento informativo onde estão descritos os seus direitos e deveres. Na
verdade
as
instituições
de
crédito
devem
acompanhar
continuamente
e
sistematicamente o cumprimento dos contratos de crédito dos clientes, para que seja possível assinalar possíveis sinais de risco de incumprimento. Devem igualmente possuir estruturas que permitam dar o apoio necessário aos clientes, nomeadamente, comunicar as dificuldades inerentes ao pagamento dos créditos estando deste modo aptas paras criar medidas de prevenção ao incumprimento. A avaliação da capacidade financeira do cliente deve ser feita sempre que houver algum sinal de risco de incumprimento, seja porque o Banco o constata ou seja porque o cliente informe dessa existência. Ao confirmar-se tal situação, deve ser proposta uma reestruturação das condições do contrato e, caso o cliente tenha capacidade financeira, poderá ser proposta a consolidação de créditos.
716Antes
de assinar o contrato, o cliente deve rever o seu conteúdo, para analisar da necessidade de eventuais ajustamentos do contrato-tipo ao seu caso concreto. O cliente deve ter em atenção que o contrato poderá conter cláusulas que remetam para o Preçário da instituição, o que significa que alguns dos custos poderão ser revistos pela instituição ao longo do período de vigência desse contrato. As normas que regulam a transparência da informação prestada no âmbito da celebração, da renegociação e da transferência dos contratos de crédito à habitação aplicam-se aos: contratos de crédito conexo (DL n.º 192/2009, de 17 de agosto); e contratos de crédito hipotecário ou garantidos por outro direito sobre coisa imóvel (como, por exemplo, a consignação de rendimentos ou o direito de usufruto) (DL n.º 226/2012, de 18 de outubro).Cit. in http://clientebancario.bportugal.pt/pt-PT/Instituicoes/Instituicoescredito/Paginas/default.aspx
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Capítulo II - Subsidiariedade
1. História e conceito O conceito de subsidiariedade nos seus primórdios circunscrevia-se em torno de várias ciências sociais, motivo pelo qual levava designadamente a interpretá-la enquanto uma definição da atuação no espaço da pessoa humana numa determinada sociedade. Ora, considerando esta mesma atuação interpessoal, que naturalmente origina situações resultantes dessa correlação social, gera posições de superioridade e de inferioridade mediante a constatação do facto gerado. Aqui o clero detinha uma posição extremamente importante, através do seu papel protetor social, implementando a orgânica relacional entre a pessoa humana no seu papel social e familiar e da comunidade no seu todo, bem como na institucionalização dos diversos poderes detidos nas várias organizações existentes. Havia uma preocupação que a posição dominante devia cingir-se a regras de atuação controladas e limitadas sobre a posição dominada mantendo, desta forma um nível de equilíbrio social, facultando uma certa elasticidade de ação e reação, tendo também por base a premissa essencial à data, ligada à ajuda dos menos capazes e necessitados, resolvendo assim conflitos entre os vários degraus de ação dominante dotadas de ius imperium. Por tal, e insurgindo-se a uma solução de igualdade, existiu a necessidade de colocar um travão à superioridade, estabelecendo um perímetro de atuação e deixando transparente uma igualdade entre todos. Desta forma, estabeleceu-se um pilar principal da democracia, ao criar uma sinergia entre a classe social com menos capacidade económica e de inserção na vida político-social e um estado detentor de todo o poder institucionalizado. Assim, o conceito de subsidiariedade estabelece no seu campo de implementação um equilíbrio de justiça, adequado à prossecução de um fim coerente, consensual e de bom senso. Ora, não tardou, através de uma sábia visão, a expansão da aplicabilidade de um conceito agora formado como princípio credível no âmbito de grande parte das ciências sociais, nomeadamente, político e económico, vislumbrando a integração no campo jurídico. A subsidiariedade preconiza o envolvimento numa dinâmica717 de ações e reações estabelecidas dentro de certos parâmetros e regras mediante os acontecimentos em causa. A mesma advém, desta forma, imbuída de diversas atuações, em cenários diversos adaptando-se à realidade de cada um, consentindo desta forma uma absorção rica em experiências, consubstanciando-se como recurso da comunidade.
Cf. SARAIVA, Rute Gil - Sobre o princípio da subsidiariedade: génese, evolução, interpretação e aplicação. Lisboa: AAFDL, 2001 717
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Aparentemente pela sua imparcialidade, a subsidiariedade é vista e interpretada por alguns como um trampolim que permite e transporta para, a salvação, ou a magia envolta desta palavra que se traduz na resolução consensual e organizada de uma forma de distribuição de poderes inatacáveis e cheios de novidade, tendo como ponto de partida as necessidades da pessoa humana e da comunidade.718 Pode-se aferir o princípio da subsidiariedade da seguinte afirmação: “a entidade ou comunidade maior deve intervir quando a entidade ou comunidade mais pequena estiver na situação de não cumprir e, só neste caso, com as obrigações por si assumidas” 719. Durante o século XX e, manifestamente acompanhada por uma evolução sedenta de soluções pós-guerra, surgiu a importância da sua aplicabilidade no âmbito da política europeia, pois a sua adaptação multidisciplinar permite um enriquecimento elucidativo da cultura, economia, política internacional e educação. Este auxílio foi extremamente importante, pois revelou-se primordial nas ajudas às comunidades, seus grupos e indivíduos, uma vez que permitiu uma alavancagem a nível politico abrindo portas para novos horizontes inicialmente inatingíveis, nomeadamente a esfera económica. A integração do princípio da subsidiariedade no âmbito económico, proporcionou a criação de novos negócios, desenvolvidos no sentido de levar e manter uma simbiose de entreajuda internacional e subsequentemente, com as devidas adaptações a nível do ordenamento jurídico de cada país, visto estar-se assistir à existência de uma fórmula amplamente resolúvel de situações proeminentes do dia-adia. A exponente potencialidade da subsidiariedade foi categoricamente plasmada através do Tratado de Maastricht, elencado no tratado da Comunidade Europeia onde surge a inserção do preceito e aplicabilidade da subsidiariedade no âmbito das condições de vida ambientais. Antecedentemente, a subsidiariedade não se consubstanciava num princípio universal de direito, com subsistência capaz de ser mensurada a legitimidade das ações das Comunidades Europeias. O princípio da subsidiariedade inflige-se sobre todas as instituições da União Europeia e detém uma vertente prática, especificamente, na generalidade dos métodos legislativos. Referido no contexto da União Europeia, o princípio da subsidiariedade serve de índice estabilizador das práticas não exclusivas da União e deixa de fora o avanço da União Europeia quando um certo caso pode ser tipificado de modo eficiente pelos estados membros a nível central, regional e local. Deste modo, faculta legitimidade à União Europeia para exercer os seus poderes quando a prossecução de determinado fim não
Cf. MARTINS, Margarida Salema d'Oliveira - O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 19 718
Cit. in LACERDA, J. L. - O Federalismo em Portugal: uma reforma democrática. Herstellung & Verlag: BoDtm – Books on Demand, Norderstedt, 2013, p. 121 719
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seja possível ser realizado pelos estados membros com grande sucesso e a intervenção a nível da União Europeia fizer a diferença para ajuda de algo melhor. Desta forma, o Parlamento Europeu estabeleceu a conceção de subsidiariedade, na fase da elaboração do projeto do Tratado da União Europeia, que sugeriu um normativo estabelecendo regras. Assim, sempre que o Tratado atribua à União Europeia uma competência que confronte com as competências dos estados membros, estes agem na eventualidade da não aceção de uma ação regulamentar por parte da união. O respetivo projeto mantém a premissa de que, a União Europeia tem o dever de intervir especificamente para conduzir a bom porto os afazeres suscetíveis de serem realizados em comum, de forma mais eficiente do que por cada estado membro individualmente. O princípio da subsidiariedade e o princípio da proporcionalidade coordenam a atuação das valências da União Europeia. No campo do qual, esta não tem valência exclusiva, a subsidiariedade através do seu princípio tem como intenção facultar proteção à autonomia de decisão e de exercício das comunidades e credibilizar a ingerência da União Europeia. Naturalmente, se o propósito final de um exercício não tiver a oportunidade de ser perspetivado, isto é, consolidado pelas comunidades, havendo a capacidade de ser com sucesso obtido através da União Europeia, correspondente às proporções ou efetivamente à prossecução do exercício constatado. A inclusão dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade nos tratados europeus intenta, alcançar atuação das atribuições o mais próximo das pessoas, para que, desta forma, se contemple uma boa gestão equitativa e protetora. Nesta fase, o Tratado de Amesterdão insurgiu-se no seu conteúdo com implementação de diretrizes não tipificadas nos Tratados, mas constantemente e comummente assimiladas no campo de aproximação global. No que concerne à aplicação do princípio da subsidiariedade, estas converteram-se em regras vinculativas e suscetíveis de controlo. Tal implementação leva à ponderação e alteração do sistema legislativo, conforme se verifica no Tratado de Lisboa no artigo 5º, nº1, “A delimitação das competências da União rege-se pelo princípio da atribuição. O exercício das competências da União regese pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade”720. Iniciou-se deste modo, com o reforço das funções dos parlamentos nacionais e dos tribunais Judiciais, no controlo do respeito pela aplicabilidade do princípio da subsidiariedade através do tratado de Lisboa, ao inserir um ponto de partida claro mediante a vastidão da globalização que não vá para além do âmbito nacional da aplicabilidade de tal princípio. Este, por sua vez, reforçou também o papel do comité das regiões e facultou uma alternativa ao confiar nas atuações dos parlamentos nacionais, de participação dos
Cit. in Assembleia da República – Tratado de Lisboa, versão consolidada. Lisboa: Divisão de Edições da Assembleia da República, 2008 disponível em https://www.parlamento.pt/europa/Documents/Tratado_Versao_Consolidada.pdf, p. 19-20 720
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parlamentos regionais com faculdades de legislar preventivamente sob um sistema existente sob esta base. O Tratado de Lisboa plasmou o princípio da subsidiariedade no seu artigo 5.º n.º 3721, e foi mais além ao incluir um ponto explícito à extensão regional e local desse princípio e, aqui se verifica, tal confiança e inovação no que concerne ao papel praticado pelos parlamentos nacionais no controlo do cumprimento do princípio da subsidiariedade. Este, por sua vez, também reforça exponencialmente como base de tal princípio, uma via para o incentivo da cooperação dos parlamentos nacionais no exercício da tomada de decisão. Houve porém, a necessidade de inclusão de novas políticas, e entretanto outras obtiveram permissão para uma maior amplitude de atuação em vários cenários, surgindo desta forma, a oportunidade de realizar e apelar à solidariedade, à segurança, bem como aos direitos de propriedade intelectual. No cômputo geral, a intenção e a finalidade do princípio da subsidiariedade assenta na transferência de um certo nível de autonomia a uma autoridade subordinada a uma esfera hierarquicamente superior, logo, traduz-se numa distribuição de competências entre diversos níveis de poder. A subsidiariedade, por consequência foi trazida para o âmbito da esfera do direito, para poder amparar como princípio limitador de valências, pois tal anuência faz com que, para cada caso existente na correlação interpessoal, possa ser útil e eficaz na sua resolução, aquando do seu recurso por esta ciência jurídica. “Por direito subsidiário entende-se então que é um sistema de normas jurídicas chamadas a colmatar as lacunas de outro sistema, podendo distinguir-se o direito subsidiário geral, que tem em vista a ordem jurídica na totalidade, do direito subsidiário especial, que visa tão só um ramo do direito, uma instituição”722. Em Portugal, o princípio da subsidiariedade, não se encontrava plasmado na constituição de 1976, mas, à semelhança do que se verificava no âmbito da sua atuação por diversos estados europeus, naturalmente, Portugal não havia deixar-se ficar para trás, acompanhando a evolução europeia e aderindo à sua aplicabilidade. Por tal, e visando a comunidade Portuguesa, constata-se que foi fácil e aprazível a assimilação deste princípio, pelas raízes solidárias da nação e do seu próprio espírito de entreajuda. O princípio da subsidiariedade, encontra-se intimamente ligado com a linha de pensamentos e ações dos estados que tenham como sistema de governo a democracia, daí que, chegou a altura, da inserção do conceito no sistema jurídico, encontrando-se desta forma, acolhido e regulado nos princípios fundamentais da Constituição Portuguesa, sob o artigo 6º nº1, “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da
721 722
Cit. in Assembleia da República – Tratado de Lisboa… p. 20 Cit. in Cf. MARTINS, Margarida Salema d'Oliveira - O princípio da subsidiariedade… p. 19
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autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública”723. A partir desta premissa, se abre uma visão maior de horizontes, podendo consubstanciarse com mais clareza e segurança na boa prática da aplicabilidade do princípio da subsidiariedade, sobre as mais vastas e diversas vicissitudes emergentes da relação interpessoal e institucional das mais possíveis vertentes. 2. Formas de resolução de natureza jurídica no âmbito da subsidiariedade Assim, se pode desenvolver o proposto e, retomando os objetivos delineados, dando-se um exemplo de subsidiariedade existente no ordenamento jurídico português, que pode ser o motor para a disseminação do princípio da subsidiariedade nas restantes garantias, assim como nas competências institucionais, desde que devidamente regulamentadas. Tendo em consideração as enumeras visões sobre a natureza jurídica da responsabilidade do mutuário ou da instituição de crédito verifica-se o regime jurídico latente da fiança, tal como se encontra plasmada nos artigos 627º e ss do CC724. A figura da fiança integra uma garantia das obrigações, detida na esfera individual e específica, pela qual uma terceira pessoa denominada fiador sustenta a concretização de uma obrigação do potencial devedor, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património perante o credor. De sublinhar como característica e que constitui o âmago da fiança como garantia pessoal, é justamente a subsidiariedade da obrigação do fiador perante a obrigação o devedor originário da obrigação, o afiançado. Como, disposto no artigo 638º do CC725 o princípio da subsidiariedade acarreta que o credor unicamente possa impor o cumprimento por parte do fiador após a excussão do património do devedor afiançado, e, quando existem garantias reais sobre o património do devedor, o fiador poderá rejeitar o cumprimento da dívida antes da excussão dos bens sobre os quais incide a garantia real, conforme o artigo 639º do CC726. Contudo pode dar-se a omissão da subsidiariedade, como se pode verificar pelo artigo 640º do CC727. Fundamentalmente, a vontade do fiador é primordial para apartar o benefício da excussão, uma vez que a exclusão disposta na alínea b) do referido artigo atua de forma objetiva somente em circunstâncias específicas: “se o devedor ou o dono dos bens onerados com a garantia não puder, em virtude de facto posterior à constituição
Cit. in MIRANDA, Jorge; PEREIRA DA SILVA, Jorge - Constituição da República Portuguesa, VII revisão. Estoril: Princípia Editora Limitada, 2006 724 Código Civil Português… p. 165 725 Código Civil Português… p. 168 726 Código Civil Português… p. 168 727 Código Civil Português… p. 168 723
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da fiança, ser demandado ou executado no território continental ou das ilhas adjacentes”. Mesmo considerando o benefício da excussão de forma autónoma, é interessante verificar que o credor pode, requerer somente o fiador, conforme o artigo 641º do CC728, mas sempre com a hipótese de chamar o devedor no sentido de executar a excussão prévia do seu património. Desta forma, materializa-se a responsabilidade subsidiária que está implícita à relação entre o devedor e o fiador comparativamente ao credor. Como exemplo da atribuição da responsabilidade subsidiária verifica-se que a subsidiariedade está presente na responsabilidade dos membros dos órgãos sociais de uma sociedade, resultante do artigo 23º e 24º nº 1 da LGT729 e, considerando que a responsabilidade subsidiária é uma regra a nível fiscal, realiza-se por reversão fiscal que depende da “fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão” em correspondência com o previsto no artigo 638º do CC730. Contrariamente, a responsabilidade solidária através da qual o credor pode acionar a mesma, só se efetua se os bens do devedor inicial não forem bastantes para satisfazer a dívida, sendo responsáveis apenas no mediato, mantendo
a
responsabilidade
solidária
entre
os
devedores
subsidiários.731
Aqui, as responsabilidades do fiador e do responsável tributário subsidiário, ou seja, fiador legal caracterizam-se pela responsabilidade subsidiária: de forma objetiva para o primeiro, e de forma mais subjetiva para o segundo.732 De forma a concluir, se não renunciar ao benefício da excussão prévia verifica-se uma implementação da subsidiariedade, se renunciar ao mesmo pode-se considerar um devedor solidário, uma vez que a entidade pode ir diretamente ao património. 3. Responsabilidade subsidiária versus responsabilidade solidária Considerando o conceito tantas vezes enunciado de responsabilidade subsidiária, entende-se que se trata da responsabilidade daquele que tem por obrigação de completar o que o gerador da dívida ou débito não foi capaz de suportar sozinho. Assim, a entidade subsidiária só responde pela dívida ou débito, depois de verificado que os bens do devedor principal não são suficientes para a satisfação do débito, respondendo através das diferentes garantias obrigacionais existentes na lei já abordadas anteriormente. Código Civil Português… p. 168 Lei Geral Tributária Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/codigos_tributarios/lgt/ 730 Cit. in Código Civil Português… p. 168 731 Cf. AMORIM, José de Campos et al (coord) – Lei Geral Tributária, Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de dezembro, atualizado até à lei nº 13/2016 de 23 de maio. [Consult. 25 set 2016] Disponível em http://www.lexit.pt/ 732 Cf. AMORIM, José de Campos et al (coord) – Lei Geral Tributária… 728 729
305
Na verdade, e dentro da contextualização elaborada com base no Tratado da União Europeia, a responsabilidade subsidiária, no que concerne o crédito hipotecário é aquela que pressupõe no caso de incumprimento, a extinção da obrigação de um outro devedor, dito principal, atribuindo essa responsabilidade ao credor. Aliás, como já acontece na fiança, havendo a extinção ou impossibilidade de pagamento por parte do devedor, responde o devedor subsidiário, ou seja, ao fiador. Por responsabilidade solidária entende-se a responsabilidade equivalente, igual, da mesma natureza, obrigando-se em condições de igualdade, ao devedor principal. Segundo o artigo 497º, nºs 1 e 2 do CC733, “se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade” e “o direito de regresso entre os responsáveis existe na medida das respetivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis.” Considerando que existe uma obrigação solidária, verifica-se tratar-se duma obrigação conjunta principal e não de reserva. Mais, é uma obrigação que não se presume mas sim que resulta da vontade das partes, expressa em contrato, ou então da lei. Comparativamente, na responsabilidade solidária não há ordem de preferência entre os responsáveis, podendo ser interpelado um ou todos os envolvidos, enquanto na responsabilidade subsidiária deve ser respeitada a ordem de preferência entre os responsáveis, isto é, o devedor principal é o primeiro a ser chamado, e se houver o caso de incumprimento deste, apela-se aos devedores subsidiários.
733
Cit. in Código Civil Português… p. 133
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Capítulo III - Ajudas existentes de resolução no incumprimento do crédito hipotecário
1. Enquadramento legal português A prevenção e gestão do incumprimento em Portugal caracteriza-se por uma obrigação para que as instituições de crédito elaborem e implementem um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI). Trata-se de um plano que tem como objetivo impor procedimentos que conduzam ao acompanhamento da execução dos contratos de crédito e criar uma obrigação de monitorização do risco de o cliente bancário vir a não cumprir. Este plano permite prevenir situações de incumprimento por parte dos seus clientes. O enquadramento legal está regulamentado quanto à prevenção e gestão de situações de incumprimento e é composto por vários diplomas, que são o resultado de diferentes intervenções legislativas que ocorreram em 2012.734 Primeiro identifica-se o DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro, o Regime Geral, o qual aprovou as medidas para a prevenção e regularização extrajudicial de situações de incumprimento dos contratos de crédito. Este diploma antevê o acompanhamento e gestão das situações de risco de incumprimento e regula extrajudicialmente as mesmas situações, estabelecendo os princípios e regras que as instituições de crédito devem cumprir para prevenção e regularização nos casos de incumprimento de contratos de crédito celebrados por clientes bancários. De acordo com o enquadramento legal descrito foi criado o Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) e o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), assim como a Rede de Apoio ao Consumidor Endividado (RACE). Como resultado do disposto no DL nº 227/2012, de 25 de outubro, sublinha-se o aviso nº 17/2012 que consubstancia os deveres que as instituições de crédito estão obrigadas a observar no âmbito da prevenção e da regularização extrajudicial de situações de incumprimento de contratos de crédito735. Foi igualmente criado, conforme a Lei nº 58/2012, de 9 de novembro, o Regime Extraordinário de proteção de devedores que se encontrem em situação económica muito difícil, de crédito destinado à aquisição, construção ou realização de obras de conservação e de beneficiação de habitação própria permanente. Posteriormente, este diploma foi alterado pela Lei n.º 58/2014, de 25 de agosto e publicada a Lei n.º 59/2012, de 9 de novembro, que trouxe reservas para os mutuários de crédito à habitação, assim
BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014, p. 9 e ss. 735 Cf. BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014, p. 75 734
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como, veio modificar o Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de novembro, que estabelece o novo Regime Jurídico da Concessão de Crédito à Habitação Própria.736 Ainda a este propósito, a Instrução n.º 44/2012, de 17 de dezembro prevê a obrigação de reporte ao Banco de Portugal da informação relativa aos contratos de crédito integrados no PERSI e aos contratos de crédito no âmbito do Regime Extraordinário e a CartaCircular n.º 93/2012/DSC, com orientações relativas à articulação entre o PERSI e o procedimento enunciado no Regime Extraordinário. Com relevo para este âmbito, a Carta-Circular n.º 98/2013/DSC, concretiza as boas práticas que devem delinear a aplicação do Regime Extraordinário por parte das Instituições de Crédito. Por último, o Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de maio, procede à classificação e contagem do prazo das operações de crédito, dos juros remuneratórios, da capitalização de juros e mora do devedor.737 2. Medidas do plano de reestruturação No âmbito de um plano de reestruturação, plano esse pensado pela instituição financeira, que, consoante as condições do cliente bancário, aplica uma das medidas complementares existentes. Não deixa contudo, de ser importante realçar que durante o empréstimo existem algumas medidas que permitem tanto à instituição de crédito como ao cliente bancário um “desafogo” no que concerne o bom desenrolar do crédito em causa. Por um lado, no que toca a instituição de crédito, a inclusão da fiança caso não tenha sido contratada ab initio funciona enquanto uma garantia adicional. Por outro lado, para o cliente bancário, o estabelecimento de um período de carência onde só se pague única e exclusivamente juros e não haja amortização do capital em dívida, permite uma diminuição da prestação mensal. Ainda tendo em consideração o que pode ser feito durante o empréstimo, poderá ser planeada a possibilidade de prolongamento do prazo, diminuindo igualmente a prestação mensal do pagamento, muito embora esta medida não seja benéfica porque irá aumentar a longo prazo os juros. Finalmente, e se possível, poderá ser estabelecida a contratação de um novo mútuo para reestruturação do crédito, isto é, uma renegociação. As medidas complementares, que fazem parte do plano de reestruturação e que estão previstas na lei, são apresentadas pela instituição de crédito ao mutuário numa proposta de plano de reestruturação da dívida decorrente do crédito à habitação. Essas medidas são, conforme artigo 10º da Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro (alterada pela Lei n.º Cf. BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014 737 Cf. BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014 736
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58/2014, de 25 de agosto) – Regime Extraordinário: a concessão de um período de carência, relativo ao pagamento das prestações mensais a cargo do mutuário ou estabelecimento de um valor residual no plano de amortizações; a prorrogação do prazo de amortização do empréstimo; a redução do spread aplicável durante o período de carência; e a concessão de um empréstimo adicional autónomo destinado a suportar temporariamente o pagamento das prestações do crédito à habitação738. No que concerne o tema aqui desenvolvido, interessa focalizar a atenção nas medidas que regulamentam situações que não são resolúveis com as medidas complementares. Neste caso, o cliente bancário terá direito à aplicação de medidas substitutivas da execução da hipoteca do imóvel em determinadas situações: a proposta do plano de reestruturação apresentado pelo banco é impraticável e a instituição de crédito decide não propor ao cliente bancário as medidas complementares; ou quando o cliente bancário tenha em incumprimento três prestações seguidas do plano de reestruturação e não consiga chegar a um acordo com a instituição de crédito sobre a adoção de medidas complementares. De realçar que, para que uma medida substitutiva seja aplicada, implica a extinção de processos judiciais que estejam a decorrer com o objetivo da execução da dívida do crédito à habitação. É função da instituição de crédito impulsionar a avaliação (custo suportado pelo cliente bancário) da habitação para que estas medidas sejam aplicadas. Assim, as medidas substitutivas previstas na Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro (alterada pela Lei n.º 58/2014, de 25 de agosto) – Regime Extraordinário739, artigo 21º, alíneas a), b) e c) e que poderão ser propostas ao cliente são as seguintes: a dação em cumprimento da habitação hipotecada, a alienação do imóvel a um Fundo de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (FIIAH) e a permuta da habitação por uma outra de valor inferior. Observando cada uma delas com mais pormenor, surge em primeiro lugar a dação em cumprimento (explorada mais à frente no âmbito dos modos de pagamento) do imóvel hipotecado a qual se concretiza com a entrega do imóvel à instituição de crédito para liquidação da dívida. Conforme o artigo 21º, alínea a), nº 1 e 2, Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro (alterada pela Lei n.º 58/2014, de 25 de agosto) – Regime Extraordinário740, a totalidade da dívida da dação em cumprimento só é extinta quando acontecem umas das seguintes situações: a soma do valor da avaliação do imóvel for, pelo menos, igual ao valor do empréstimo inicial, avaliação essa efetuada para efeitos de aplicação das medidas substitutivas, e das Cf. BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014, p. 45 739 Cf. BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014, p. 49 740 Cf. BANCO DE PORTUGAL - Prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito celebrados com clientes bancários particulares, 2014, p. 50 738
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quantias já entregues a título de reembolso de capital; ou o valor da avaliação do imóvel (efetuada para efeitos de aplicação das medidas substitutivas) se for igual ou superior ao capital que se encontre em dívida. Quando a dação em cumprimento não extingue a totalidade da dívida, o cliente permanece obrigado ao pagamento da importância igual à diferença entre o capital em dívida e o valor de avaliação do imóvel. Depois de ter sido acordada a dação em cumprimento, o cliente bancário pode continuar no imóvel por um período de seis meses, durante o qual beneficia de carência de capital, pagando apenas juros. De forma a conseguir esta situação o cliente tem de celebrar com a instituição de crédito um contrato de promessa de dação e se a instituição de crédito o solicitar, deve ser outorgada a favor desta uma procuração irrevogável para a celebração do contrato de dação. Se não aceitar a proposta de dação em cumprimento, o cliente bancário perde o direito à aplicação de outras medidas substitutivas. No caso da alienação do imóvel a um FIIAH, e como se pode verificar pelo artigo 21º, nº1, alínea b), referido anteriormente, a importância paga pelo Fundo é entregue diretamente à instituição de crédito que com a qual liquida toda ou parte da dívida do cliente. Deste modo, a totalidade da dívida só é extinta pela venda do imóvel a um FIIAH quando a soma da importância paga pelo FIIAH para obtenção do imóvel e das quantias entregues pelo cliente bancário a título de reembolso de capital for, pelo menos, igual ao total do empréstimo; ou então quando para a aquisição do imóvel o montante pago pelo FIIAH for igual ou superior ao capital que se encontre em dívida. Quando sucede que a alienação do imóvel ao FIIAH não anula a totalidade da dívida, o cliente permanece sujeito ao pagamento do montante igual à diferença entre o capital em dívida e o valor da venda do imóvel. Correndo o risco de perder o direito à aplicação de outra medida substitutiva, o cliente bancário não pode recusar a venda do imóvel ao FIIAH. Contudo, pode continuar na habitação adquirida pelo Fundo enquanto arrendatário, beneficiando assim de opção de compra do imóvel. No que concerne a medida de permuta do imóvel, e segundo artigo 21º, nº 1, alínea c) da lei referida, permite ao cliente trocar a sua habitação por outra de valor inferior. Com a permuta, o capital em dívida é reduzido no montante que corresponde à diferença de valor entre os imóveis. A habitação de valor inferior pode ser da instituição de crédito ou de terceiro interessado na transação. Evidentemente, o cliente bancário tem a hipótese de recusar a permuta de habitações e neste caso a instituição de crédito tem o dever de propor uma das restantes medidas substitutivas. 3. “Educação” financeira
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Em paralelo com as medidas preventivas e corretivas regulamentadas e referidas, existem em vários países europeus programas de educação financeira. Em Portugal existe nomeadamente o Plano Nacional de Formação Financeira que inclui um plano de atividades cuja informação se encontra no portal Todos Contam741. Entre os diferentes objetivos deste Plano podem observar-se diferentes objetivos, todos com o intuito de contribuir para incrementar os conhecimentos e comportamentos financeiros da população em geral, considerando as necessidades específicas de diversos segmentos da população. No que concerne a Europa, as recomendações vão de encontro à promoção e circunscrição das práticas extrajudiciais para recuperação de devedores, com o objetivo de mediar a proteção dos mesmos e os interesses legítimos dos credores. Apenas como uma breve nota neste estudo acerca do sobre-endividamento, e conforme o estudo de Catarina Fraga, “o sobre-endividamento é o risco inerente a uma sociedade que se abriu ao crédito e que densificou os seus estilos de vida e os seus padrões de consumo”.742 Sublinha-se contudo, que dada a extensão da análise do sobreendividamento, o objetivo não será o estudo aprofundado das soluções no âmbito do que em Portugal se denomina de insolvência, mas sim sobre os métodos escolhidos para acompanhar extrajudicialmente o sobre-endividamento dos consumidores. Verifica-se que os procedimentos criados por alguns Estados-Membros para a prevenção e a gestão das situações de incumprimento caracterizam-se pela sua heterogeneidade. Os diferentes Estados-Membros aprovaram medidas de tratamento do incumprimento em que o objetivo geral é gerir o incumprimento de modo a que seja possível apresentar uma solução para evitar a exclusão social e permitir aos devedores o reembolso das suas dívidas.743
http://www.todoscontam.pt/pt-PT/Principal/Paginas/Homepage.aspx FRADE, Catarina – “Sobreendividamento e soluções extrajudiciais: a mediação de dívidas”. In I Congresso de Direito da Insolvência. Coimbra: Almedina, 2013, p. 9 743 FRADE, Catarina – “Sobreendividamento e… 741 742
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Capítulo IV – O processo executivo e as garantias reais
1. Enquadramento da ação executiva no CPC A reforma de 1995/1996 do CPC edificou corretamente os princípios orientadores do moderno processo civil, contudo não trouxe consigo os instrumentos adequados para o tornar eficaz, objetivo que primava como ser o principal da reforma. O NCPC, no âmbito do seu artigo 548º 744, dispõe que o processo comum de declaração segue uma forma única, independentemente da causa ou da matéria ou do valor desta, a qual diga respeito ao processo. O processo executivo português até à reforma referida desenrolava-se em três momentos principais, a penhora, a venda e o pagamento. Enquanto garantia geral da obrigação, a procura do património do devedor era um problema dos credores que devia ser resolvido após o pedido judicial. Nesta reforma, o Estado e os tribunais foram constituídos em garantes dos créditos particulares, ou seja, o patr imónio púbico não foi oferecido como garantia, mas sim os tribunais. Por exemplo, mediante o enquadramento legal desta reforma de 1995/1996, a jurisprudência entendia que o requerimento feito pelo exequente servia como impulso processual, apesar de que nenhum procedimento habitual do processo executivo fosse praticado, ou seja nem a penhora, nem a venda nem o pagamento. Assim, com a aquisição do respetivo escopo, a execução não se extinguia perante a falta de bens para serem executados, prosseguindo com um processo de inquérito durante décadas para a descoberta de bens. 745 Consequentemente, como não seria espectável o Estado ter a tarefa de descobrir bens, algo que compete ao credor, o sistema foi levado pelas próprias contradições, dando origem ao agente de execução permitindo eliminar as insuficiências apresentadas. O agente de execução aparece assim plasmado na ação executiva, desde o DL nº 226/2008, de 20 de novembro, com uma imagem em que “o papel do agente de execução é reforçado, sem prejuízo de um efectivo controlo judicial, passando este a poder aceder ao registo de execuções, designadamente para introduzir e actualizar directamente dados sobre estas. Igualmente, o agente de execução passa a realizar todas as diligências relativas à extinção da execução, sendo esta arquivada através de um envio electrónico de informação ao tribunal, sem necessidade de intervenção judicial ou da secretaria”746.
Código de Processo Civil… p. 86 Cf. FARIA, Paulo Ramos; LOUREIRO, Ana Luísa – Primeiras notas ao novo código de processo civil. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2014 746 DIÁRIO DA REPÚBLICA – Decreto-Lei n.º 226, D.R. I Série (2008-11-20), p. 8186 744 745
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Em 2008 e, após cinco anos passados da reforma de 2003747, denotou-se pela prática alguma displicência no que concerne à celeridade dos processos em geral e ações executivas, que continuaram a mostrar-se morosos. Assim, foi objetivo de uma reforma, já esperada com alguma ansiedade clarificar e objetivar determinados aspetos que tornavam toda a ação executiva um conjunto de “entraves”. Percebe-se então, através das explicações apresentadas no preâmbulo do diploma de 2008 (DL nº 226/2008)748, que aparentemente esse objetivo estava pensado de forma a tornar as execuções mais simples e eliminar formalidades processuais desnecessárias. Torna-se importante perceber que, no que à ação executiva concerne, a reforma introduzida pela lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não aponta grandes alterações nos princípios estruturantes do processo, no âmbito do Novo Código do Processo Civil. No entanto, contém um novo modelo do processo civil mais simples, flexível e desprovido de formalismos excessivos, sem desconsiderar a expressão dos princípios, mas com profundas alterações na dinâmica do processo. E com o novo regime da ação executiva, o legislador reconduz o processo executivo à sua matriz impondo a sua extinção, perante a inexistência de património cuja liquidação permita o pagamento da dívida exequenda. 749 Após a publicação da Lei nº 41/2013 de 26 de junho, surge ainda a portaria 282/2013, de 29 de agosto, que visa regulamentar vários aspetos das ações executivas cíveis. Deste modo, a sua necessidade fez-se sentir, uma vez que constatou-se uma variedade de diplomas que regulamentam os aspetos da ação executiva, optando-se por condensar numa
portaria
as
disposições
constantes
de
grande
parte
desses
diplomas,
regulamentando numa só portaria os aspetos essenciais do processo executivo. Mais uma vez, o objetivo foi simplificar o processo normativo agilizando a ação executiva750. a. Titulo executivo Com o NCPC é alterado o elenco dos títulos executivos e conforme o artigo 703.º do CPC 751
, as espécies de títulos executivos agora classificados como tal no nº 1 do referido
artigo são: as sentenças condenatórias; os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. Conforme DIÁRIO DA REPÚBLICA – Decreto-Lei n.º 226… DIÁRIO DA REPÚBLICA – Decreto-Lei nº 38, D.R. I Série A, nº 58 (2003-03-08) 749 Cf. FARIA, Paulo Ramos; LOUREIRO, Ana Luísa – Primeiras notas… 750 Cf. Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto. http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1968&tabela=leis 751 Código do Processo Civil… p. 110 747 748
Disponível
em
313
descrito no nº 2, também são abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante. Deixam de ser classificados como tal os documentos particulares (não autenticados), isto é as confissões de dívida e todos os restantes documentos assinados pelo devedor, que impliquem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias. Desde a reforma de 2013, que estes documentos, menos formais, enquanto títulos de reconhecimento de dívida têm de passar pelo crivo da injunção ou ação. Contudo, não chega o reconhecimento de assinatura ou de letra e assinatura, ou seja a confissão de dívida terá que constar de documento autêntico ou autenticado752. O título executivo753 é o documento suporte de qualquer execução e, para a sua concretização, o requerimento executivo deve ter uma cópia ou original do título executivo, que seja entregue eletronicamente ou em papel, isto é, sem título executivo. Isto é da extrema importância, porque se essa cópia ou original do título executivo não for entregue, conforme o artigo 725º, nº 1 alínea d) do CPC754, a secretaria pode recusar receber o requerimento executivo. Assim, sem título executivo não há execução, como se verifica pelo artigo 10º, nº 5, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”755. Se for feita uma análise de incumprimento do contrato por parte do devedor hipotecário, no que concerne um empréstimo concedido pelo Banco garantido por hipoteca, verificase que numa situação destas a execução da hipoteca é sempre judicial. A solução que existe passa por o titular da hipoteca mover uma ação executiva contra o devedor. Esta, enquanto ação judicial que é, caracteriza-se por uma morosidade algo imprevisível, à qual o devedor terá de se sujeitar. Para além disto, realça-se que têm prioridade sobre o credor hipotecário os demais credores que gozem de privilégio especial, conforme artigo 733º e seguintes do CC756 sobre os privilégios creditórios, ou de prioridade de registo pela hipoteca (artigo 686º do CC757), assim como os que exerçam direito de retenção (artigo 754ºCC758). 2. As garantias reais no âmbito da execução
O agente de execução deve ter o cuidado de - sendo celebrado acordo de pagamento em prestações com inclusão de uma garantia de terceiro (fiança) - alertar o exequente que só pode ser movida execução contra o fiador se o acordo for autêntico ou autenticado, não devendo o próprio agente de execução subscrever o termo e autenticação (enquanto solicitador ou advogado) uma vez que cairia, posteriormente, no impedimento previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 121º do Estatuto dos Solicitadores (ES), por ter participado na obtenção do título executivo (no caso em relação ao fiador). Cf. http://www.novocpc.org/ 753 Ver Anexo II 754 Código do Processo Civil… p.119 755 Código do Processo Civil… p.6 756 Código Civil Português… p. 191-196 757 Código Civil Português… p. 179 758 Código Civil Português… p. 196 752
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a. Execução da hipoteca O credor pode executar a hipoteca quando se constata o incumprimento por parte do devedor, recorrendo para tal à ação executiva. O processo judicial, sem dúvida é o mecanismo de concretização da hipoteca, não podendo o credor apropriar-se de forma particular dos bens hipotecados. As formas de proteção do devedor contra os abusos que seriam possíveis se o credor pudesse alienar diretamente ou fazer sua a coisa onerada, passam pela obrigatoriedade do processo judicial e a proibição do pacto comissório759. A penhora deve iniciar-se pelos bens sob os quais incida a garantia, só podendo “recair sobre outros bens quando se reconheça a insuficiência desses para conseguir o fim da execução” conforme o artigo 752º nº 1, do CPC760. Deste modo, com a existência da hipoteca a penhora deve iniciar-se pelos bens a ela sujeitos. Tudo indica que, o primeiro a conseguir a concretização do seu crédito pelo produto da venda do bem objeto da garantia, será o credor hipotecário. No entanto, existem garantias reais que prevalecem sobre a hipoteca, nomeadamente os privilégios imobiliários especiais e o direito de retenção sobre coisas imóveis, conforme o artigo 759º nº 2, do CC761. A execução hipotecária, como referido divide-se em três momentos: penhora, venda judicial e pagamento aos credores. b. Penhora Para satisfação do direito do exequente através da venda, em processo executivo, do património do devedor ou de terceiro, é necessário que, previamente, se tenha procedido à apreensão dos bens em causa. Trata-se da penhora, aquele que pode ser considerado o ato executivo por excelência. Para além das garantias reais de direito, entre as quais, está a já abordada hipoteca, pode-se ainda incluir aqui as de natureza processual como a penhora. Conforme Menezes Leitão762 aponta, a natureza da penhora é discutível entre a Doutrina, porque por um lado a penhora é vista como constituindo um direito real de garantia, uma vez que atribui uma preferência no pagamento sobre os credores que não disponham de melhor garantia anterior, bem como a sequência, uma vez que o exequente continua a poder executar os bens penhorados, mesmo que eles tenham sido transmitidos para terceiro. Deste modo, a penhora atribui, ao exequente, um direito sobre coisa corpórea, Trata-se, conforme artigo 694º do CC, (p. 182) da convenção pela qual o credor fará sua a coisa hipotecada no caso de o devedor não cumprir, a qual será nula seja efetuada antes ou depois da constituição da hipoteca. Assim, e mediante o incumprimento do devedor, o credor hipotecário terá de proceder à venda judicial do bem, a não ser que o mesmo lhe for dado em dação, o que implica um novo acordo. 760 Código do Processo Civil… p. 125 761 Código Civil Português… p. 198 762 Cf. LEITÃO, Luís Menezes - Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2015, p. 509-510 759
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oponível erga omnes, que lhe confere preferência no pagamento sobre a venda desse mesmo bem. Por outro lado, o autor refere que pode tratar-se de um direito real de garantia imperfeito, uma vez que se extingue em caso de insolvência do devedor. Contudo, alguns autores discordam desta posição, considerando que em rigor não se trata de um direito real de garantia, mas de um ato processual que visa criar a indisponibilidade dos bens adstritos à execução, mediante a produção dos mesmos efeitos substantivos das garantias reais – a sequela e a preferência. Também Miguel Teixeira de Sousa763 entende que a penhora não é um direito real de garantia porque, embora seja inerente à coisa e afete a execução desta à satisfação do crédito do exequente, a sua função é conservatória, aparecendo somente como uma situação em que são colocados certos bens ou direitos. Segundo o artigo 735º do CPC764, os bens que podem ser penhorados e são objeto da execução, são todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda; nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele; penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20 %, 10 % e 5 % do valor da execução, consoante, respetivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor. Nos termos do disposto no artigo 835º nº 1, do CPC, a penhora deve iniciar-se pelos bens sob os quais incida a garantia, só podendo “recair sobre outros bens quando se reconheça a insuficiência desses para conseguir o fim da execução”765. Assim, existindo hipoteca a penhora deve iniciar-se pelos bens a ela sujeitos. c. Privilégios creditórios Conforme o artigo 733º do CC766, “privilégio creditório é a faculdade atribuída pela lei a um credor de ser pago independentemente de registo, com preferência a outros credores, atendendo à natureza do seu crédito”. Conforme se verifica neste artigo, os privilégios creditórios têm a sua ratio legis na natureza do crédito que garantem, ou seja, na causa da obrigação cuja garantia efetivam. A lei cria, deste modo, preferências de pagamento a favor de determinados credores e, a sua constituição, não poderá ser
Cf. LEITÃO, Luís Menezes - Direitos Reais… 510 Código do Processo Civil… p.119 765 Código do Processo Civil… p 140 766 Código Civil Português… p. 191 763 764
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feita através de negócio jurídico767 e mesmo que incidam sobre coisa imóvel, não está sujeita a registo. Os privilégios são acessórios do crédito que garantem, ou seja “a circunstância de o fundamento do privilégio residir na qualidade do crédito cujo cumprimento visa assegurar, realça ainda mais aquela relação de dependência ou acessoriedade”768 Os principais beneficiários de privilégios creditórios são entidades públicas, ou seja o Estado. Pode-se considerar que um dos motivos para justificar a existência dos privilégios creditórios é ter em conta um fim de interesse público. Quanto aos outros titulares, o legislador observa que a natureza do crédito destes é de algum modo mais frágil, sensível ou urgente relativamente à dos outros credores a quem preferem. Deste modo, o credor hipotecário está adstrito a que os detentores de privilégios creditórios possam reclamar os seus créditos, a qualquer momento, com preferência sobre os daquele, ainda mais quando sejam privilégios imobiliários especiais. Estes gozarão sempre de preferência, mesmo quando adquiridos após a constituição da hipoteca. Os privilégios creditórios podem ter dois critérios classificativos, conforme artigo 735º, nº 1e2
769770
: de natureza mobiliária ou imobiliária dos bens sobre que incidem; e maior ou
menor abrangência do mesmo. Assim os privilégios podem ser mobiliários ou imobiliários e podem ser especiais ou gerais. Os privilégios imobiliários existentes são sempre especiais,771 conforme artigo 751º “preferem à hipoteca, à consignação de rendimentos, ao direito de retenção constituídos anteriormente”. Os privilégios especiais são os que só abrangem o valor de determinados bens e os gerais são aqueles que incidam sobre todos os bens existentes no património do devedor772. Só numa breve anotação, cabe aqui demonstrar a importância dos privilégios creditórios no que concerne a execuções instauradas pelo credor privilegiado. Numa situação em que este não tenha obtido a satisfação do seu crédito poderá intentar uma ação executiva avançando para a penhora dos bens do devedor, e, no caso de o credor estar munido de
Cf. MADALENO, Cláudia – A vulnerabilidade das garantias reais… p. 13 Cit. in PIRES, Miguel Lucas – Dos privilégios creditórios: regime jurídico e sua influência no concurso de credores. Coimbra: Almedina, 2004, p. 39 769 Código Civil Português… p. 192 770 Cf. PIRES, Miguel Lucas – Dos privilégios creditórios… 771 Mas outros privilégios deste tipo são previstos por lei especial, como descritos de seguida: privilégio creditório geral imobiliário e mobiliário da Segurança Social por dívidas de contribuições sobre o património da entidade patronal (DL 103/80); privilégio imobiliário geral do Estado por créditos de IRS e de IRC (DL 198/01); privilégio mobiliário e imobiliário geral dos trabalhadores por conta de outrem relativo a prestações derivadas de acidente de trabalho ou doença profissional (artigo 35º da Lei 100/97, 13 setembro). 772 Conforme CC, p. 195 no artigo 749º com os privilégios creditórios mobiliários gerais, por exemplo a temporalidade; artigo 750º os privilégios creditórios mobiliários especiais, por exemplo temporalidade de aquisição. 767 768
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privilégios creditórios em simultâneo com privilégios de índole processual, como é o caso da Direção Geral de Contribuições e Impostos e a Segurança Social.773 d. Direito de Retenção O direito de retenção (artigo 754º do CC774) trata-se de uma garantia que se caracteriza pela sua suscetibilidade, nomeadamente o direito concedido pela lei a um credor que detém uma certa coisa do devedor consistente na faculdade de a reter enquanto não for pago, bem como na faculdade de se fazer pagar por força da sua venda judicial, sendo que essa dívida tem uma relação com a coisa retida. Assim, para que o credor usufrua desta garantia, é necessária a existência de três requisitos em simultâneo: a detenção legítima de uma coisa que o detentor deva entregar a outrem, a existência de um crédito a favor do retentor e a necessidade desse crédito resultar de despesas realizadas por causa de danos causados. Sublinha-se que este direito de retenção pode recair sobre coisas móveis ou imóveis, constituindo um verdadeiro direito real de garantia, uma vez que implica a venda de coisas móveis e a execução dos imóveis.775 É um direito oponível erga omnes, incluindo perante o próprio dono da coisa que não seja o titular do direito à entrega da coisa. O direito de retenção tem sempre preferência sobre a hipoteca (artigo 759º, nº 2 do CC776), como já referido anteriormente.777
Cf. PIRES, Miguel Lucas – Dos privilégios creditórios… p. 161 Código Civil Português… p. 196 775 Cf. PIRES, Miguel Lucas – Dos privilégios creditórios… p. 153 776 Código Civil Português… p. 198 777 Cf. DUARTE, Rui Pinto - Curso de Direitos Reais… 773 774
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Capítulo V – Resoluções para o incumprimento
Os modos de pagamento estão definidos nos artigos 795º e 796º do CPC. No que concerne os modos de o efetuar, a lei diz que “o pagamento pode ser feito pela entrega de dinheiro, pela adjudicação dos bens penhorados, pela consignação dos seus rendimentos ou pelo produto da respetiva venda”778 (estes quatro modos de pagamento irão ser explorados mais abaixo). Ainda no artigo 795º é enunciado que “é admitido o pagamento em prestações e o acordo global, nos termos previstos nos artigos 806.º a 810.º, devendo em qualquer caso prever-se o pagamento dos honorários e despesas do agente de execução.” O artigo 796º por seu turno define os termos em que pode ser efetuado o pagamento, destacando-se no que concerne o prazo, “as diligências necessárias para a realização do pagamento efetuam-se obrigatoriamente no prazo de três meses a contar da penhora, independentemente do prosseguimento do apenso da verificação e graduação de créditos, mas só depois de findo o prazo para a sua reclamação”779. 1. Adjudicação pelo valor em dívida A adjudicação surge plasmada no artigo 799º do CPC780 e destaca-se a importância de todos os pontos nele incluídos discutindo-se a importância dos mesmos. Assim, relativamente aos nºs 1 e 2 do referido artigo o exequente pode pretender que lhe sejam adjudicados bens penhorados, não compreendidos nos artigos 830º (bens vendidos em mercados regulamentados) e 831º (venda direta), para pagamento, total ou parcial, do crédito. O mesmo pode fazer qualquer credor reclamante, em relação aos bens sobre os quais tenha invocado garantia. Verifica-se então que qualquer credor reclamante, como o exequente, pode solicitar a adjudicação de bens penhorados relativamente aos quais tenha garantia. Assim, a adjudicação consiste em conceder ao credor a propriedade de bens penhorados que sejam satisfatórios para concretizar o pagamento. Na adjudicação a satisfação é alcançada mediante a entrega ao exequente de bens anteriormente penhorados, enquanto, por exemplo, na venda executiva a intenção é obter dinheiro para satisfazer o crédito do exequente. Conforme o artigo 815º, nº 1, aplicado por força do artigo 802º do CPC781, na adjudicação de bens o requerente é isento de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não ultrapasse o montante que recebe por Código de Processo Civil… p. 133 Código de Processo Civil… p. 134 780 Código de Processo Civil… p. 134 781 Código de Processo Civil… p. 135 e 137 778 779
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direito. Igualmente, verifica-se que se dá a compensação total ou parcial entre a dívida do preço e o crédito exequendo ou verificado. Conforme Lebre de Freitas782, refere, considerando a figura da adjudicação como um caso de venda executiva, a averiguação do preço desta com total independência do valor do crédito do adjudicatário e o regime vigente quanto à dispensa do depósito do preço, não se está tanto perante uma dação em cumprimento como dum negócio jurídico autónomo gerador de compensação. O autor indica ainda que é mais difícil falar em dação quando, em virtude da graduação de créditos, o exequente não deva ser pago em primeiro lugar. Relativamente ao nº 3 do artigo 799º do CPC, o requerente da adjudicação deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior a 85% do valor base dos bens, por remissão para o artigo 816º do CPC783, concernente à venda mediante propostas em carta fechada. De facto, esta exigência tem como objetivo impossibilitar o dano do executado, do exequente ou de outros credores, empenhados em que o adjudicatário não receba os bens por preço inferior ao que com aquela venda poderia ser conseguido. Conforme o nº 4 do artigo 799º do CPC, compete ao agente de execução fazer a adjudicação, “mas, se à data do requerimento já estiver anunciada a venda por propostas em carta fechada, esta não se susta e a pretensão só é considerada se não houver pretendentes que ofereçam preço superior”784. Adjudicar-se-á de imediato o bem ao requerente conforme o artigo 801º, nº3, do CPC785 quando não se apresentar qualquer proponente. Se surgirem proponentes que ofereçam um preço superior, realiza-se a abertura de propostas como se não tivesse sido feito o pedido de adjudicação, conforme o artigo 801º, n.º 2 do CPC786. É publicitada a adjudicação requerida com a menção do preço oferecido, quando a venda por propostas em carta fechada ainda não tiver sido anunciada conforme o artigo 800.º, n.º 1 do CPC. E segundo o artigo 800, nº2 do CPC “o dia, a hora e o local para a abertura das propostas são notificados ao executado, àqueles que podiam requerer a adjudicação e bem assim aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens”787. De forma que exista a possibilidade de oferta do preço superior ao indicado pelo requerente é emitida uma notificação das pessoas que podiam requerer a adjudicação, para que se evite que a adjudicação se faça por preço inconveniente ao valor real dos bens.
FREITAS, José Lebre de – A Ação Executiva: depois da reforma. 5ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2009 Código de Processo Civil… p. 137 784 Cit. in Código de Processo Civil… p. 134 785 Código de Processo Civil… p. 135 786 Código de Processo Civil… p. 134 787 Código de Processo Civil… p. 134 782 783
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No dia designado para a abertura de propostas e como se observa pelo artigo 801º do CPC788, podem ocorrer duas situações: “se não aparecer qualquer proposta e ninguém se apresentar a exercer o direito de preferência, aceita-se o preço oferecido pelo requerente; havendo proposta de maior preço, observa-se o disposto nos artigos 820.º e 821.º”. Na primeira situação concorda-se com a proposta do requerente da adjudicação e pelo preço por ele oferecido, devendo este depositar numa instituição de crédito a parte do preço excedente ao seu crédito, se os créditos ainda não estiverem graduados, ou também a necessária para pagar os credores graduados antes dele, se a graduação já tiver acontecido (artigos 815º e 824º, nº 2, aplicáveis por força do artigo 802º, todos do CPC). Em qualquer uma das situações deve ser depositado o montante correspondente às custas prováveis da execução, conforme o cálculo prévio elaborado pelo agente de execução. Na segunda situação apresentada, isto é, havendo proposta de maior preço, não haverá lugar a adjudicação, mas sim a venda, a realizar em conformidade com o disposto nos artigos 820º e 821º do CPC789 (conforme 801º nº 2, do CPC), isto é, segundo as regras da venda por meio de propostas em carta fechada. Como se verifica no nº 5 do referido artigo 820º poderá ainda “o exequente, se estiver presente no ato de abertura das propostas, pode manifestar vontade de adquirir os bens a vender, abrindo-se logo licitação entre si e proponente do maior preço; se o proponente do maior preço não estiver presente, o exequente pode cobrir a proposta daquele”790. Igualmente, não existe lugar à adjudicação, sempre que o titular de um direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, se apresente a exercê-lo. Verifica-se ainda que, segundo o nº 6 e 7 do artigo 799º “a adjudicação de direito de crédito é feita a título de dação pro solvendo, se o requerente o pretender e os restantes credores não se opuserem, extinguindo-se a execução quando não deva prosseguir sobre outros bens”791 E “sendo próxima a data do vencimento, podem os credores acordar, ou o agente de execução determinar, a suspensão da execução sobre o crédito penhorado até ao vencimento”. Considerando a descrição efetuada da lei portuguesa, será possível que a adjudicação ao exequente da casa hipotecada, isto é, a instituição de crédito, numa situação de crédito à habitação em incumprimento, é suficiente para regularizar a respetiva dívida, sem considerar o valor da adjudicação, ou seja, mesmo quando o valor da adjudicação for inferior à quantia exequenda.
Código de Processo Civil… p. 134 Código de Processo Civil… p. 138 790 Cit. in Código de Processo Civil… p. 138 791 Cit. in Código de Processo Civil… p. 134 788 789
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De facto, tendo em conta o enquadramento legal português, entende-se que o mutuário fica obrigado ao pagamento da dívida remanescente quando o prédio ou fração hipotecada é adjudicado ou é vendido, no âmbito do processo executivo, por valor insuficiente para o pagamento total da quantia em causa. Será, contudo, difícil impedir, ao exequente, o prosseguimento da execução depois da adjudicação, do bem hipotecado, quando a dívida exequenda não se encontre totalmente paga. 2. A dação em cumprimento da habitação hipotecada pelo valor da divida A dação em cumprimento regulamentada no artigo 837º e ss do CC, refere que “a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento”792. Assim, determina em primeiro lugar, a extinção da obrigação que a dação em cumprimento visou satisfazer, com a exoneração do devedor. Como se trata de uma obrigação solidária, a dação em cumprimento realizada por um dos devedores solidários também tem como consequência a extinção da obrigação dos outros devedores. Enquanto uma medida substitutiva da execução hipotecária, como visto anteriormente e, sendo que o fim da dação em cumprimento é a extinção da obrigação, terá de ser uma opção a considerar pelas instituições de crédito ou da Banca, nas situações de incumprimento. Verifica-se que efetivamente, com a dação em cumprimento o devedor extingue a dívida, transferindo a propriedade do imóvel para a instituição de crédito, mas apenas com o consentimento do credor. De realçar que, a dação em cumprimento só extingue a dívida na sua totalidade se o valor do imóvel for igual ou superior ao valor total em dívida à instituição de crédito. Verifica-se, no entanto, que atualmente, muito dificilmente as instituições de crédito optam pela dação em cumprimento, uma vez que a maioria dos créditos à habitação existentes foram contraídos antes do período de crise que se faz sentir na metade da primeira década dos anos 2000, levando a uma quebra muito acentuada do mercado imobiliário, uma vez que houve uma crescente desvalorização do mercado imobiliário. Assim, verifica-se que só muito excecionalmente a dação em cumprimento extinguirá a dívida. Como já observado, no caso de o devedor intentar junto da instituição de crédito proceder à dação em cumprimento, a mesma irá avançar com uma avaliação do valor do imóvel em causa. Ora, a dação em cumprimento só acontece se o credor concordar. Considerando que o objeto social das instituições de crédito é essencialmente a concessão de créditos e a prestação de serviços bancários, existe pouca recetividade por parte das mesmas uma 792
Código Civil Português… p. 218
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vez que, passam a ficar com a propriedade dos seus imóveis nos seus balanços contabilísticos. Deste modo, a dação em cumprimento nos contratos de crédito à habitação tem tido pouco importância prática. Ao invés, preferem optar pela penhora dos imóveis hipotecados, objeto dos contratos de crédito à habitação, atingindo a satisfação do empréstimo de forma coerciva. Se as instituições de crédito assumirem o princípio da subsidiariedade poderão assumir o risco e, simultaneamente, a responsabilidade subsidiária da situação de dívida encontrada, e optarem pela dação em cumprimento. 3. Consignação de rendimentos Outra garantia, que concede ao seu titular o direito, oponível a terceiros, de se pagar pelas forças dos rendimentos ou do uso de uma coisa (e não pelo seu valor) é a consignação de rendimentos. Assim, neste caso, não se verifica a penhora e posterior venda, em processo executivo, da coisa dada em garantia, e também não é necessário que se verifique o incumprimento da obrigação para que ela aconteça e, pelo menos, a consignação voluntária funciona sem necessidade de intervenção judicial. A consignação de rendimentos encontra-se consagrada no artigo 803º do CPC e entre os termos em que pode ser requerida e efetuada sublinham-se o nº1, 2 e 5: enquanto os bens penhorados não forem vendidos ou adjudicados, o exequente pode requerer ao agente de execução que lhe sejam consignados os rendimentos de imóveis ou de móveis sujeitos a registo, em pagamento do seu crédito; sobre o pedido é ouvido o executado, sendo a consignação de rendimentos efetuada, se ele não requerer que se proceda à venda dos bens; o registo da consignação é feito por averbamento ao registo da penhora793. A consignação de rendimentos, considerada a terceira das garantias reais previstas e reguladas na lei civil artigo 656º e 665º do CC794, consiste na estipulação pela qual o cumprimento da obrigação é assegurado mediante a atribuição ao credor dos rendimentos de certos imóveis ou de certos móveis sujeitos a registo, pertencentes ao devedor ou a terceiro. À semelhança da dação em cumprimento, a figura não parece ser muito comum na atual prática negocial portuguesa. Conforme o artigo 658º do CC795, a consignação de rendimentos tanto pode ter por fonte um negócio jurídico, como uma decisão judicial. No que toca a consignação de rendimentos judicial, que como o próprio nome indica é o resultado de uma decisão
Código do Processo Civil… p. 135 Código Civil Português… p. 172 e 174 795 Código Civil Português… p. 173 793 794
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decretada em juízo, sendo um meio de pagamento no âmbito da ação executiva e destina-se a evitar uma venda ruinosa dos bens penhorados (artigos 806º e ss do CPC796). No caso de uma locação e, segundo o artigo 804º do CPC, “a consignação de rendimentos de bens que estejam locados é notificada aos locatários. Não havendo ainda locação ou havendo de celebrar-se novo contrato, os bens são locados pelo agente de execução, mediante propostas ou por meio de negociação particular, observando-se, com as modificações necessárias, as formalidades prescritas para a venda de bens penhorados. Pagas as custas da execução, as rendas são recebidas pelo consignatário até que esteja embolsado da importância do seu crédito”797. Na leitura do artigo 805º, verifica-se como efeitos da consignação de rendimentos “que efetuada a consignação e pagas as custas da execução, a execução extingue-se, levantando-se as penhoras que incidam em outros bens. Se os bens vierem a ser vendidos ou adjudicados, livres do ónus da consignação, o consignatário é pago do saldo do seu crédito pelo produto da venda ou adjudicação, com a prioridade da penhora a cujo registo a consignação foi averbada”798. a. O penhor Uma breve nota sobre o penhor, que é igualmente uma garantia real e que difere da consignação de rendimentos, no que concerne a incidência, uma vez que esta incide somente sobre os rendimentos da coisa onerada e o penhor abrange toda a coisa, constituindo deste modo uma garantia real plena. O penhor é também uma garantia que conflui num direito de preferência, isto é, sobre o produto da venda da coisa empenhada e por sua vez a consignação trata-se de uma forma de satisfação privilegiada do crédito. O penhor concede ao seu titular uma preferência na satisfação do seu crédito pelo produto da alienação de coisa móvel, direito ou outro bem sobre que incida. Conforme o artigo 669º do CC799, o penhor exige o desapossamento do autor da garantia (penhor de coisas), que entrega ao credor ou a terceiro, o depositário, a coisa móvel dada em garantia.
Enquanto
uma
garantia
real,
concede
uma
preferência
sobre
bens
determinados, cuja especificidade consiste em ter por objeto bens móveis, ou créditos ou outros direitos, do devedor ou de terceiro, não suscetíveis de hipoteca800. 4. Extinção do valor da dívida apesar da venda realizada abaixo do valor da dívida
Código de Processo Civil… p. 135 Código de Processo Civil… p. 135 798 Código de Processo Civil… p. 135 799 Código Civil Português… p. 175 800 Cf. LEITÃO, Luís Menezes – Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2015 796 797
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É relevante para uma compreensão mais ampla da venda, realizada abaixo do valor do crédito, explorar as características, como modalidades, efeitos e extinção da mesma. Relativamente às modalidades da venda, encontram-se definidas no artigo 811º nº1 CPC801: a venda mediante proposta por carta fechada, a venda em mercados regulamentados, a venda direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens penhorados, a venda por negociação particular, venda em estabelecimentos de leilões e venda em depósito público. Por sua vez, os efeitos da venda executiva estão dispostos nos artigos 824º do CC802, 827º, 828º e 833º nº 4 do CPC803. Contudo, verifica-se, que os efeitos da venda executiva vão para lá dos efeitos essenciais da compra e venda em geral, os quais são o efeito real da transmissão e efeitos obrigacionais de entrega da coisa e pagamento do preço (artigo 879º CC804). Se for feita uma análise mais pormenorizada do artigo que nesta matéria apresenta maior relevância, constata-se no artigo 824º nº1 do CC, que a venda executiva transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Verifica-se deste modo, que tal como na compra e venda, também aqui existe uma transferência de domínio. Acrescenta-se ainda que a venda executiva comporta efeitos obrigacionais, como por exemplo a entrega da coisa e o pagamento do preço. Relativamente ao efeito real, este não se passa por mero efeito da venda, à semelhança do que acontece no regime da compra e venda conforme o artigo 874º do CC, “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”805. Só existe prossecução, em relação a esta matéria quando o comprador pagar o preço devido e consequentemente as obrigações fiscais relativas à transmissão (artigos 827º nº1 e 833º nº4 do CPC806). A propriedade só é transmitida a partir desse momento, ficando também o comprador com o direito de receber o bem (entrega da coisa) se este se encontrar na posse de um detentor que não o entregue voluntariamente, conforme o artigo 828º do CPC807. Aqui, o comprador pode requerer o prosseguimento da execução contra aquele detentor. Conforme o artigo 796.º, n.º 1 do CPC, “As diligências necessárias para a realização do pagamento efetuam-se obrigatoriamente no prazo de três meses a contar da penhora, Código de Processo Civil… p. 136 Código Civil Português… p. 214 803 Código de Processo Civil… p. 139-140 804 Código Civil Português… p. 227 805 Código Civil Português… p. 226. Deste modo, seja na venda por proposta em carta fechada, como por exemplo na venda por negociação particular, seja em bens sujeitos a registo, a transmissão da titularidade só acontece com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, isto no primeiro caso, e com a outorga do instrumento da venda no que respeita ao segundo. 806 Código de Processo Civil… p. 215 e 217 807 Código de Processo Civil… p. 215 801 802
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independentemente do prosseguimento do apenso da verificação e graduação de créditos, mas só depois de findo o prazo para a sua reclamação; excetua-se a consignação de rendimentos, que pode ser requerida pelo exequente e deferida logo a seguir à penhora “808. Em regra, neste momento dá-se a venda dos bens penhorados, para com o produto da venda, efetua-se o pagamento da obrigação exequenda e das verificadas no apenso de verificação e a graduação de créditos. Segundo o artigo 824.º do CC, os efeitos da venda são: a transferência de direitos para o adquirente (o enunciado legal809), a caducidade dos direitos reais de garantia e dos direitos reais de gozo, a transferência dos direitos de terceiro para o produto da venda, e por último, o cancelamento de registos. Em consequência da venda executiva, independentemente da modalidade adotada, os direitos do executado transferem-se para o adquirente, seja qual for a sua natureza. Deste modo, tanto podem ser transferidos direitos reais como obrigacionais. Assim, os direitos que não são transmitidos pela venda executiva são, nos termos da lei, caducos, transmitidos para o produto da venda. No processo executivo o direito do adquirente tem como base o direito do executado, dependendo do mesmo tanto quanto à sua existência assim como à sua extensão. Considerando que a transferência de bens tem como compensação o pagamento do preço, emprega-se à venda executiva, com as devidas adaptações, o regime do contrato de compra e venda conforme o artigo 874º e seguintes do CC810.811 Considerando que, nem sempre, a transmissão da propriedade envolve a transmissão da posse, conforme artigo 1263º do CC, em concreto, a "tradição material ou simbólica da coisa"812, o comprador pode no caso de venda executiva com base no instrumento de venda ou do título de transmissão, solicitar contra o titular, na própria execução, a entrega dos bens pela forma fixada no artigo 861º do CPC813. No caso, e considerando a doutrina de Lebre de Freitas814, no que concerne os direitos reais, deverão ser considerados os artigos do CC, 692º, 823º, 1478º a 1481.º e 1539º. Em primeiro lugar, a caducidade dos direitos reais de garantia dá-se em consequência da Código de Processo Civil… p.134 Cf. FREITAS, José Lebre de - A ação executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 6ª edição, 2014 810 Código Civil Português… p. 226 811 Quando a venda é por proposta em carta fechada (artigo 827º CPC), ou como consta no nº 4 do artigo 833º do CPC, no caso de venda por negociação particular, a propriedade da coisa ou do direito não se transmite por mero efeito da venda, como se pode verificar pelos princípios do CC, por causa da natureza real e não obrigacional [artigos 408º nº1, 874º, 879º a) e 578º nº1 do CC]. Nas duas situações, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito sucederá com a emissão, feita pelo agente de execução, para a venda por proposta em carta fechada e com a outorga do título de suporte à venda, em relação à venda por negociação particular. Contudo, antes de passado a título de transmissão, o registo provisório da aquisição por venda poderá ser solicitado pelo interessado [artigo 92º nº 1 alínea h) do CRPredial]. 812 Código Civil Português… p. 308 813 Código do Processo Civil… p. 145 814 Cf. FREITAS, José Lebre de - A ação executiva… p.388 e ss 808 809
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venda executiva do bem penhorado. Os bens são transmitidos sem estes, tenham sido constituídos antes ou depois da penhora, tendo, ou não, havido reclamação na execução dos créditos que garantem (artigo 824º nº2 do CC). Deste modo, não se transmitem para o produto da venda dos bens penhorados. Neste caso é preciso que os direitos de garantia de todos os credores sejam posteriores ao direito real de gozo erga omnes. Em segundo lugar e em relação aos direitos reais de gozo distingue-se entre os de constituição anterior ao registo, caso se trate de coisas imóveis ou móveis sujeitos a este, de todo e qualquer dos direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução e os de constituição posterior ao registo de qualquer deles. Segundo Lebre de Freitas, verifica-se que no artigo 824º, n.º 2 do CC está disposto "qualquer arresto, penhora ou garantia", o que abarca tanto o direito real estabelecido fora do processo de execução por um credor reclamante, como o direito real do exequente, quer seja anterior à execução quer seja constituído na própria execução. Neste caso, o direito real de gozo de terceiro continua a existir. Ainda relativamente à segunda situação, do direito real de gozo ser de constituição posterior à constituição, ou registo, de qualquer direito real de garantia, verificam-se as seguintes situações possíveis em que o direito real de gozo seja: posterior ao registo da penhora; anterior ao registo da penhora mas, depois da constituição de um direito real como a hipoteca voluntária ou judicial, arresto do exequente; anterior ao registo de qualquer direito real do exequente, mas depois da constituição do direito real de garantia invocado por um dos credores reclamantes. Para qualquer uma destas possibilidades, verifica-se que o disposto no nº2 do artigo 824º afirma que os bens transmitem-se livres do direito real de terceiro. Pode-se concluir que, para qualquer uma destas hipóteses os bens transmitem-se livres do direito real de terceiro, ou seja, transmite-se a propriedade plena e não somente o direito real menor de gozo do executado, uma vez que o direito do exequente não pode ser limitado por um direito posterior, conforme o artigo 819º do CC815. O motivo da caducidade dos direitos reais que oneram os bens, apoia-se na necessidade de valorizar os bens a alienar em prol, tanto dos titulares dos direitos como do exequente e do executado e também, para que os direitos se transfiram para o produto da venda816. Conforme disposto, no nº 3 do artigo 824º do CC, caducam os direitos que não acompanham a transmissão pela venda executiva e estes transferem-se para o produto da venda817. Transfere-se, para o produto da venda, os direitos reais de garantia sobre os bens penhorados e direitos reais de gozo de terceiros sobre esses mesmos bens.
Código Civil Português… p. 213 Cf. FERREIRA, Fernando Amâncio – Curso de processo de execução. Coimbra: Edições Almedina, 2003. 817 A este efeito chama TEIXEIRA DE SOUSA , efeito sub-rogatório. Diz este autor que há, então, subrogação objetiva, uma vez que o direito passa a ter como objeto o produto apurado com a venda daqueles bens. Cit. in FREITAS, José Lebre de - A ação executiva… 815 816
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O produto da venda satisfaz uma função indemnizatória relativamente aos direitos reais e pessoais de gozo que se extinguem com a venda executiva. Esse produto deverá ser distribuído pelos titulares dos direitos reais que oneram os bens, depois de pagas as custas. Neste sentido, é possível de ser colocada a hipótese em que haja um proveito registado depois de uma hipoteca de terceiro (que não seja do exequente), mas anterior à penhora. Deste modo, o produto da venda será distribuído, em primeiro lugar para o benemérito com registo de hipoteca pelo produto da venda do usufruto, na respetiva proporção; em segundo lugar, será pago o titular do direito de usufruto pelo excedente do valor que condiz ao seu direito e, em terceiro lugar, o exequente e os outros beneméritos com garantias posteriores ao direito real818. Verifica-se que a venda realizada abaixo do valor do crédito poderá extinguir o valor da dívida nas diferentes situações exploradas. 5. Pagamento em dinheiro ou voluntário O pagamento por entrega de dinheiro conforme o artigo 798º do CPC819 efetua-se quando: tendo a penhora recaído em moeda corrente, depósito bancário em dinheiro ou outro direito de crédito pecuniário cuja importância tenha sido depositada, o exequente ou qualquer credor que deva preteri-lo é pago do seu crédito pelo dinheiro existente; sendo que constitui entrega de dinheiro o pagamento por cheque ou transferência bancária. O pagamento em prestações deverá ser feito, conforme o artigo 806º do CPC820: o exequente e o executado podem acordar no pagamento em prestações da dívida exequenda, definindo um plano de pagamento e comunicando tal acordo ao agente de execução. A comunicação prevista pode ser apresentada até à transmissão do bem penhorado ou, no caso de venda mediante proposta em carta fechada, até à aceitação de proposta apresentada e determina a extinção da execução. O pagamento poderá ainda ser efetuado por remição conforme o artigo 842º do CPC821, competindo ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado, é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda. O direito destes últimos incide, apenas, sobre o produto da nua propriedade, " na parte em que não seja absorvido pelo pagamento, na parte proporcional, ao credor hipotecário”. Isto apenas acontecerá no caso de a penhora se ter estendido ao usufruto, caso contrário, o usufruto não caducará por não ter sido penhorado e o benemérito hipotecário terá a oportunidade de ver o seu direito realizado na execução na parte correspondente, através da nua propriedade, sem prejuízo de manter a sua garantia pelo remanescente quanto ao usufruto. Cf. FREITAS, José Lebre de – A ação executiva… 819 Código de Processo Civil… p. 134 820 Código de Processo Civil… p. 135 821 Código do Processo Civil… p. 141 818
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Pode existir a extinção e anulação da execução (artigo 846º do CPC822) com a cessação da execução pelo pagamento voluntário nas seguintes situações: em qualquer estado do processo pode o executado, ou qualquer outra pessoa, fazer cessar a execução, pagando as custas e a dívida; o pagamento é feito mediante entrega direta ou depósito em instituição de crédito à ordem do agente de execução; nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, quem pretenda usar da faculdade prevista no n.º 1 solicita na secretaria, ainda que verbalmente, guias para depósito da parte líquida ou já liquidada do crédito do exequente que não esteja solvida pelo produto da venda ou adjudicação de bens; efetuado o depósito referido no número anterior, susta-se a execução, a menos que ele seja manifestamente insuficiente, e tem lugar a liquidação de toda a responsabilidade do executado; quando o requerente junte documento comprovativo de quitação, perdão ou renúncia por parte do exequente ou qualquer outro título extintivo, suspende-se logo a execução e liquida-se a responsabilidade do executado.
822
Código de Processo Civil… p. 142
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Capítulo VI – O caso de Portalegre
Partindo da pretensão de demonstrar neste estudo que o processo executivo relativo à dívida dum crédito hipotecário, pode ser realizado com mais êxito e mais eficácia no que concerne à sua economia processual, quando o que advém do produto da venda apesar de não ser suficiente para satisfazer a dívida, pode ser o suficiente para extinguir esse processo executivo que decorre pelo incumprimento, optou-se pela análise de um caso português que foi importante pela sua singularidade como num certo sentido de equidade em termos de risco ou uma via, como já abordado acima (“justiça”). Tornou-se assim de importância fulcral uma abordagem dum caso que muito se discutiu em 2012, resultante da decisão823 de 4 de janeiro do referido ano, do Tribunal de Portalegre, o qual, à semelhança doutros casos ocorridos no país vizinho824, rompeu com a tradição e prática no campo jurídico português, uma vez que considerou que a adjudicação do bem hipotecado em processo executivo, pela instituição de crédito mutuante do imóvel dado em garantia, extinguia a dívida exequenda. Isto foi contra o habitual praticado no campo jurídico português, que a adjudicação do bem hipotecado pelo exequente, por um valor inferior ao da dívida exequenda, originaria a prossecução da execução para cobrança do restante em dívida. Depois da abordagem feita sobre a hipoteca e outras garantias reais, assim como das diferentes medidas existentes, sejam de prevenção ou de resolução para o incumprimento e ainda resoluções para o incumprimento como base no princípio da subsidiariedade, e considerando o caso do Tribunal de Portalegre, levantam-se as seguintes questões:
Até que ponto se poderá ter na responsabilidade da instituição de crédito um princípio de subsidiariedade inerente aquando uma decisão semelhante à proferida em 2012 pelo Tribunal de Portalegre.
Na eventualidade da instituição de crédito ficar com o imóvel, perceber se há extinção da dívida.
Decisão Disponível em http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casa-banco Decisão da Audiencia Provincial de Navarra disponível em http://observatoridesc.org/sites/default/files/Interlocutoria_Navarra_17122010.pdf; Tribunal de Primeira Instância 44 de Barcelona de 14 de Fevereiro de 2011; decisão do Tribunal de Primeira Instância de Arenys de Mar de 29 de Fevereiro de 2012 disponível em http://www.afectadosporlahipoteca.com/wpcontent/uploads/2012/01/Sentencia-jutjat-44-bcndacioen-pagament.pdf. As decisões dos casos de Espanha tiveram como base o princípio de que a adjudicação em processo executivo, pela instituição de crédito mutuante do imóvel dado em garantia, extinguia a dívida exequenda. 823 824
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Resumindo os factos ocorridos825, em abril de 2012, o Tribunal de Portalegre decidiu perante uma situação de incumprimento do crédito à habitação, que com a entrega coerciva da casa, a dívida considerava-se liquidada. Estava em causa dois aspetos importantes: a entrega do imóvel para liquidação do valor em dívida e a venda judicial. A instituição de crédito envolvida adquiriu esse mesmo imóvel por valor inferior ao valor da dívida total dos devedores, ou seja, estava em causa que o credor adquiriu o bem executado por valor inferior ao atribuído inicialmente aquando o empréstimo. Constata-se que foi atribuído um empréstimo por parte da entidade credora para habitação aos devedores, por determinado valor, hipotecando para esse efeito o imóvel, como garantia do contrato de crédito. Durante a venda executiva, como o resultado do incumprimento do contrato de crédito, o imóvel foi posto à venda “por meio de proposta em carta fechada, com valor base de 117.500,00€ e preço a anunciar de 70% desse mesmo”826. A compra do imóvel foi efetuada pelo credor que estava a executar a dívida, através da adjudicação, pelo valor estabelecido durante a venda executiva, consequentemente, por montante inferior ao da dívida total827, permanecendo como credor do restante. Com base no instituto do Abuso de Direito (artigo 334º do CC828), o Tribunal de Portalegre considerou a dívida extinta, conforme o descrito: “é nosso entendimento que a total procedência da pretensão do credor Banco …, S.A. – obrigação de pagamento do simples remanescente da dívida após valor da adjudicação, configuraria uma situação de abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de direito porquanto, sendo titular de um direito de crédito, formal e aparentemente exigível por incumprimento contratual, a sua executoriedade e reconhecimento judicial em consequência do seu normal e regular exercício.”829 Observando ainda alguns factos ocorridos apraz comentá-los, lançando desde já algumas ideias a concretizar no final deste estudo enquanto propostas de melhoria em situações análogas. Deste modo, e tendo em conta que existia naturalmente, dadas as oscilações de mercado imobiliário, um risco da desvalorização do imóvel adquirido, o qual corria por conta do devedor, pode-se questionar porque corre só para o devedor e não para ambas as partes envolvidas, isto é, mutuante e mutuário? Se a instituição de crédito não vai usufruir do
Cf. Decisão Disponível em http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casabanco 826 Cit. in http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casa-banco. P. 1 827 Que era de 129.521,52€, sendo que a compra efetuada foi no valor de 82.250,00€ cf. http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casa-banco. p. 2 828 “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” Cit. in Código Civil Português… p. 93 829 Cit. in Decisão Disponível em http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casabanco, p. 6 825
331
excedente legal e, desde que se confirmasse que o mutuário ficasse com a habitação após o pagamento da divida, a instituição de crédito entretanto está a ser ressarcida através do empréstimo contraído, e como tal, não é coerente que durante o processo executivo se atribua o valor dado ao imóvel inicialmente aquando a celebração do crédito. Deve-se considerar que a avaliação do imóvel tem como objetivo a justificação da análise de risco que a entidade credora tem implícita para conceder um crédito à habitação. Assim, não é aconselhável que se crie uma certeza ao mutuário que a avaliação do imóvel será sempre pelo mesmo valor, uma vez que se trata de um risco inerente ao mesmo. Pode-se aferir, desde já, que se o risco correr para ambas as partes será mais justo. Assim, o que se verifica, normalmente, é que se o mutuário chegar a concluir a totalidade do empréstimo, é dono do seu imóvel e a instituição de crédito é ressarcida dos juros; contudo, se o mutuário se tornar incumpridor, aqui o imóvel não é seu, mas os valores são dados à banca na mesma, o que não é sinónimo de uma relação de equidade. Relativamente ao abuso de direito, sublinha-se novamente que o Tribunal da Relação de Portalegre considerou não existir qualquer abuso por parte da instituição de crédito em querer, após compra do imóvel, continuar com a execução, mesmo tendo-se verificado que o valor não foi suficiente para pagamento do empréstimo total. A doutrina também teve os seus contributos a partir do caso apresentado, nomeadamente, e com particular interesse para esta discussão, optou-se pela análise de Isabel Menéres Campos. Esta opção não foi tanto pela concordância da posição adotada, mas pelas questões levantadas que cruzam de alguma forma com os objetivos estabelecidos no âmbito do crédito hipotecário. Apresentando uma perspetiva tradicional, dado o rompimento com a prática jurídica habitual, teceu críticas sobre as decisões tomadas pelo Tribunal de Portalegre por não conformidade com a lei em vigor. A autora apresentou um ponto de vista legalista e processualista, chegando mesmo a considerar que “o Tribunal desconsiderou que o julgador não é legislador” e chegou mesmo a concluir que se tratava de decisões contra legem
830
. Aqui apraz sublinhar o
comentário da autora, questionado, porque não fazer ver ao próprio legislador agir em conformidade com tudo que tem vindo a ser constatado nas decisões proferidas. Para autora, a decisão suscitou as maiores perplexidades pela insegurança legal e pelo abalo da confiança nas instituições que poderia acarretar. Sublinha como um dos direitos constitucionalmente protegidos o direito à segurança e certeza jurídicas como princípios inatos na noção de Estado de Direito.831 Poderá então questionar-se como se aplicam estes direitos, ou seja, tem de haver certeza jurídica na legislação e não pela prática associada.
Mas,
na
realidade,
e
em
prole
dessa
mesma segurança
legal e
830Comentário
disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80-147394b82313%7D.pdf Cf. Comentário disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80147394b82313%7D.pdf 831
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subsequentemente na confiança das instituições, em estabelecer uma credibilidade nessa certeza jurídica, como tal, sugere-se a reformulação da legislação, carente de soluções mais realistas na medida do que se verifica na conjuntura dos dias de hoje. Deste modo, as instituições não deixariam de ser ressarcidas do que é seu, mas de uma forma não tão evasiva para as famílias. A autora refere que, no âmbito de uma execução para o exercício da garantia hipotecária, o devedor goza do direito a opor‐se a que sejam penhorados outros bens, enquanto não for excutido o objeto da garantia (conforme o artigo 697º do CC832), ficando assim o imóvel hipotecado numa posição de afetação prioritária ao pagamento da dívida.833 Poderá aqui apelar-se à equidade, uma vez que na perspetiva da autora e segundo a lei, terá de se considerar outros bens, mas se for pensado aquando a celebração do contrato estabelecendo um limite para a extinção da dívida, existindo provavelmente mais património, a averiguação deste deverá ter lugar logo no início de forma precaver, também, o incumprimento. Relativamente ao valor da venda do imóvel a autora refere que se o Banco, como credor, sugeriu que fosse fixado um determinado valor, como valor base, ao qual os executados não mostraram oposição e foi aceite pelo tribunal. Assim, e segundo a lei em vigor à data da celebração do contrato e respetivo empréstimo, as propostas a aceitar teriam de corresponder a, no mínimo, 70% do valor fosse pelo credor ou por terceiros. Como a autora constata, ao considerar “que é ao valor base e não aos 70% desse valor que deve atender‐se, para efeitos de imputação do valor da adjudicação à dívida, o tribunal ficciona que a venda ocorreu por um valor superior ao que efetivamente foi oferecido e aceite (e que era o valor que o banco, enquanto proponente, estava disposto a dar pelo imóvel)”. Para a autora esta decisão foi “incompreensível e representa um abuso do poder judicial inaceitável”.834 Apesar da atualização em 2012835 ao do valor de base da venda de imóveis em processo de execução, que passa de 70% para 85%, pode-se lançar a hipótese que devia ser contornado esta norma, através da dedução de todas as custas, inerentes ao processo executivo, ao valor total, sendo que o imóvel deveria ser vendido ou adjudicado pelo valor da dívida. Considera-se, que uma vez que houve incumprimento, existe a obrigatoriedade de pagar. A norma (artigo 816º do CC) que estatui o valor de base dos 85% deveria ser regulamentada por uma Portaria de Estado, no que toca à avaliação dos imóveis, considerando através do bom senso e equidade, ou se quiser ir mais longe, Código Civil Português… p. 181 Cf. Comentário disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80147394b82313%7D.pdf 834 Cit. in Comentário disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80147394b82313%7D.pdf, p. 2 835 LEI nº 60/2012. (2012-11-09) [Consult. set 2016] disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1827&tabela=leis 832 833
333
recorrendo aos direitos da igualdade (artigo 13º) e da segurança (artigo 27º) consagrados na CRP836. Ainda na linha de análise de Isabel Menéres Campos, importa referir o comentário da autora ao argumento do enriquecimento injustificado do banco quando adjudica o imóvel por valor abaixo do valor base. A autora relembra que a lei da oferta e da procura estabelece o valor de mercado, “e se não há quem esteja disposto a oferecer um valor por determinada coisa, essa coisa nada vale. Para se verificar uma situação de enriquecimento injustificado é necessário que exista empobrecimento de outrem.”837 O imóvel apresentava um determinado valor de mercado que, em venda judicial não rendeu mais do que 82.250.00€838, imediatamente é esse valor que entra no património do Banco e não outro. Refere a autora e de facto verifica-se que, o Banco não enriquece injustificadamente com a aquisição. Verifica-se efetivamente que houve uma ação em conformidade com a lei, daí a urgência do legislador intervir urgentemente pela necessidade de preencher o vasto campo de lacunas que têm vindo a existir na prática comum da inter-relação das instituições de crédito com os mutuários, de certa forma impulsionadas pela conjuntura atual, no que concerne à situação apresentada. Desta forma, constata-se que existe uma prática recorrente ao longo destes anos na aplicabilidade da legislação em causa. Ora, veja-se em casos semelhantes de incumprimento do crédito hipotecário, como procedem alguns países, que se apresentam na prática. Como algo inovador em relação ao caso europeu, e sem diminuir o valor atribuído por outros autores, aos casos ocorridos em Espanha, cabe aqui dar algum destaque aos modelos de hipoteca existentes nos EUA. Nos EUA, e com a reforma do direito hipotecário, foi criada a divisão dos estados, em Title States, que têm como garantia a propriedade e os Lien States, que adotaram a forma de hipoteca como direito real sobre o bem do devedor – lien
839
. Assim esta divisão
deu origem a teorias sobre a garantia hipotecária: a “title theory” e a “lien theory”, existindo uma terceira teoria a “intermediate theory”, como uma combinação das duas840. Observe-se cada uma delas no que concerne o incumprimento do crédito hipotecário. A “title theory” foi a primeira teoria a ser praticada nos EUA, uma vez que era a prática no Reino Unido. Neste caso de crédito hipotecário, apesar de existir um direito de posse
MIRANDA, Jorge; PEREIRA DA SILVA, Jorge - Constituição da República Portuguesa, VII revisão. Estoril: Princípia Editora Limitada, 2006 837 Cit. in Comentário disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80147394b82313%7D.pdf, p. 2 838 Cf Decisão Disponível em http://www.inverbis.pt/2012/tribunais/tribunal-portalegre-entrega-casabanco, p. 1 839 SILVA, Fábio Rocha Pinto e – Garantias imobiliárias em contratos empresariais: hipoteca e alienação fiduciária. São Paulo: Almedina, 2014 840 Cf. JENNINGS, Marianne M. – Real Estate Law. Tenth Edition. South-Western, Cengage Learning. 2014, p. 398 836
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sobre a propriedade, existe normalmente um acordo expresso, atribuindo o direito de posse à instituição de crédito. No caso de incumprimento do crédito anteriormente acordado, o credor poderá promover a venda do bem, sendo que existe um limite da responsabilidade do devedor ao valor do bem. Já com a “lien theory”, cujo modelo se aproxima dos modelos europeus, no caso de incumprimento do crédito garantido por hipoteca, o credor pode avançar com a execução patrimonial e com a venda judicial do imóvel, obtendo deste modo a responsabilidade real do devedor quanto ao bem objeto da hipoteca, isto é, a propriedade, e pessoal do bem remanescente. A diferença entre as duas teorias reside no facto de na title theory o credor hipotecário ter o direito de posse antes do processo executivo terminar. A terceira teoria surge como uma combinação da teoria title e lien, e no caso de incumprimento dá-se o direito de posse sobre rendas e propriedades.
335
Conclusões
Propôs-se neste estudo abordar a questão da responsabilidade no crédito hipotecário, considerando o princípio da subsidiariedade, e para tal foram abordadas diversas questões relacionadas direta ou indiretamente com o crédito hipotecário para ir de encontro aos objetivos delineados. À semelhança doutros estudos efetuados, estabeleceu-se como convicção que a forma de ultrapassar os debates em torno dos trâmites relacionados com incumprimento do crédito à habitação, só será possível com uma reforma legislativa. Foi convicção, também, desde a delimitação do tema de estudo, que o direito do crédito, no que respeita ao crédito hipotecário, reclama de mais justiça tanto na sua aplicabilidade como no consequente tratamento dos diferentes atores envolvidos. Perante um cenário de euforia no mercado imobiliário no final do século XX e início dos anos 2000, constatou-se progressivamente num desmoronar o que implicou e implica graves consequências para quem assumiu essas responsabilidades, sejam instituições de crédito, sejam os mutuários. O risco inerente no que toca a eventual desvalorização do imóvel, num crédito hipotecário, é suportado pelo mutuário, sendo que em paridade as instituições de crédito deveriam suportar parte desse risco, justificado, querendo demonstrar com a aplicação do princípio da subsidiariedade. A instituição de crédito quando solicita as avaliações aos imóveis tem de assumir a posição adequada, no sentido de não as inflacionar, porque muitas vezes é em função desta inflação das avaliações que o valor de financiamento de garantia é atribuído num montante superior ao mutuário. Logo, desta forma, existe aqui uma não equidade, para evitar futuros incumprimentos, e consequentes processos executivos. Relembra-se que face ao incumprimento pelo mutuário da obrigação de restituição de capital mutuado e pagamento dos juros, a instituição de crédito recorre à ação executiva para obter o cumprimento dessa obrigação, através da execução do património daquele, designadamente através do montante do bem hipotecado. Como uma das propostas lançadas neste estudo, entende-se que se os empréstimos para crédito à habitação tivessem os mesmos moldes praticados noutros tempos, quando apenas se concedia financiamento única e exclusivamente para habitação própria permanente, evitaria uma série de problemas associados ao incumprimento, protegendo a longo prazo as famílias. Deveriam ser acrescidos limites aos deveres pré-contratuais, estabelecendo desta forma uma relação mais equilibrada entre o financiamento e a garantia, pelo que estivesse previsto por um lado a desvalorização dos imóveis, e por outro não inflacionar os empréstimos para outros fins conexos, multiopções, multifinalidades, etc.. Aqui poder-se-ia assistir a um certo impedimento da Banca
336
conceder empréstimos irresponsáveis, controlando de forma mais apertada os contratos celebrados e subsequentemente assistir-se-ia a menos incumprimento. Ora, propõe-se a aplicação do princípio da subsidiariedade no sentido em que a instituição de crédito assumiria simplesmente a adjudicação do imóvel pelo valor da dívida aquando da avaliação no momento do incumprimento, e não da avaliação efetuada à data que foi contraído o empréstimo. Importa referir também, que, haveria mais justiça e equidade, se, mediante apresentação de dados, comprovados por exemplo, como se procede atualmente através da consulta à centralização do Banco de Portugal no início da constituição do empréstimo hipotecário, a finalidade do contrato fosse ser financiado única e exclusivamente para habitação própria e permanente, através da proposta implícita, e subsequente avaliação do imóvel, e existisse deste modo, uma portaria ou de algo que regulamentasse e definisse a cota de mercado exclusivamente para esse fim. Aí o risco já era assumido justamente pelas partes, ou seja, quem compra detém a expectativa de ser titular do imóvel sem qualquer ónus, no final, já para não referir, que o incumprimento se encontra fora de questão. Contudo, as vicissitudes da vida e do tempo,
por
vezes
observam-se
indicadoras
do
contrário,
logo,
em
caso
de
incumprimento, quem empresta também quer ver ressarcido o seu valor. Tendo em conta que o risco tanto é assumido para um lado como para outro, isto é, a proporcionalidade do risco seria assumida em regra com a contribuição de cada um dos contraentes para a verificação das ocorrências impulsionadoras do insucesso do respetivo contrato. Como hipótese e em caso de venda executiva, o imóvel seria vendido segundo o regulamentado, a poder se aplicar da mesma forma neste âmbito, também relativamente à norma em que a casa é vendida a 85% do valor da dívida. Em ultima análise, extraindose do produto da venda, haveria lugar ao pagamento de todo o tipo de credores todas as despesas inerentes ao processo, ficando a cargo da instituição de crédito o remanescente do valor da dívida. Importa igualmente referir, a existência de um cadastro de aquisições permitiria perceber o que é o mutuário possui e de certa forma obter uma visão mais abrangente do padrão económico das famílias. A centralização dos empréstimos já existe, através da informação do Banco de Portugal, mas outras aquisições poderão ter algum peso no montante global que faz parte dos empréstimos, do agregado familiar. Uma ultima proposta de resolução do problema discutido, consistiria na possibilidade do casal ter um filho maior, e com o seu respetivo consentimento em concordância com banca, realizar um acordo, o qual transmitia a titularidade do imóvel e seus respetivos ónus hipotecários para nome daquele, obtendo uma forma de prolongar mais o prazo do respetivo contrato, inicialmente contraído pelos seus pais, dando assim lugar a uma prestação deveras mais baixa, podendo desta forma colmatar a impossibilidade de por
337
vezes não pagar os empréstimos. Uma vez que, a instituição de crédito, embora não reouvesse o valor naquele espaço-tempo, mas sim, num espaço mais longínquo, também nunca ficaria lesada, porque os juros iriam continuar a ser pagos. Não é a opção mais vantajosa para o devedor incumpridor porque iria suporta muito mais juros. Esta titularidade ficava condicionada à obrigação dos seus pais terem de cumprir com o pagamento. Porém, esta situação poderá causar algum entrave de uma futura constituição de um empréstimo ao filho, daí o seu consentimento ser expressamente reconhecido. Poderá ainda sugerir-se o acompanhamento por parte de um organismo das respetivas famílias; a criação de uma comissão de acompanhamento às famílias; ou então uma obrigação aos mutuários de créditos hipotecários, tendo assim a instituição de crédito como responsabilidade fazer esse acompanhamento. Conclui-se que a responsabilidade no crédito hipotecário passa por uma urgente revisão legislativa, aliada à boa prática do princípio da subsidiariedade.
338
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340
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d'Oliveira
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O
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do
Registo
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nº
60/2012.
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[Consult.
set
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http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1827&tabela=leis MIRANDA, Jorge; PEREIRA DA SILVA, Jorge – Constituição da República Portuguesa, VII revisão. Estoril: Princípia Editora Limitada, 2006. PORTARIA
n.º
282/2013.
(2016-08-29)
[Consult.
jun
2016]
Disponível
em
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1968&tabela=leis
342
ANEXOS Anexo I
Cf. http://clientebancario.bportugal.pt/ptPT/Credito/CreditoaHabitacao/fichaInformacaoNormalizada/Paginas/FINcreditohabitaca o.aspx A Ficha de Informação Normalizada (FIN) é um documento que as instituições de crédito devem disponibilizar aos clientes aquando da simulação de um empréstimo (crédito à habitação, crédito conexo ou outro crédito hipotecário), realizada aos balcões, através dos
seus
sítios
na
Internet
ou
por
qualquer
outro
meio
de
comunicação.
A FIN permite aos clientes comparar mais facilmente as diferentes opções de financiamento
apresentadas
pelas
instituições
de
crédito.
No momento da aprovação do empréstimo, a instituição de crédito deve também entregar ao cliente a FIN, que deve refletir as condições finais acordadas com os clientes. O formato único e normalizado da FIN foi definido pelo Banco de Portugal (Instrução n.º 45/2012). Elementos da FIN Na Parte I da FIN devem ser apresentadas as condições financeiras do empréstimo, designadamente o seu montante, prazo e modalidade de reembolso, as características das garantias exigidas e as condições para o seu reembolso antecipado, o detalhe dos seus custos, designadamente em termos de taxa de juro e comissões, bem como as eventuais condições promocionais e/ou de vendas associadas facultativas, características relevantes para efeitos de cálculo da TAE e da TAER. A. Elementos de identificação e observações B. Descrição das características do empréstimo: • Caracterização (designação comercial do produto, finalidade e regime do crédito) • Campanha promocional • Montante, prazo e modalidade de reembolso, regime e valor das prestações • Garantias exigidas • Seguros exigidos (incluídos na TAE) • Reembolso antecipado C. Custos do empréstimo: • TAN e sua decomposição (taxa fixa, indexante, spread) • TAE e TAER
343
• Vendas associadas facultativas • Condições promocionais (TAE's associadas) • Comissões (incluídas na TAE) • Outras situações suscetíveis de afetar o custo do empréstimo • Indicação da necessidade de abertura de conta de depósitos à ordem e encargos associados • Despesas (não incluídas na TAE) Na Parte II da FIN devem ser apresentados o plano financeiro do empréstimo (Plano Financeiro A) e os planos financeiros do empréstimo com taxa de juro acrescida de um (Plano Financeiro B) e de dois pontos percentuais (Plano Financeiro C), no caso dos empréstimos a taxa de juro variável, bem como o plano financeiro do «empréstimo padrão» (Plano Financeiro D). O «empréstimo padrão» corresponde ao tipo de empréstimo mais simples, disponibilizado sempre por todas as instituições de crédito, com taxa de juro variável indexada à Euribor, à qual acresce o spread base atribuído ao cliente, e cujo reembolso se processa, desde o início, em prestações constantes de capital e juros. Trata-se de um empréstimo que serve de referência, nomeadamente para avaliar o impacto, em termos de custo total e no perfil de reembolsos, da aquisição de outros produtos ou serviços financeiros em associação com o crédito à habitação. No caso de empréstimos com carência de capital e/ou de juros e/ou em que o reembolso de parte do capital seja diferido, a FIN deverá conter um plano financeiro adicional (Plano Financeiro A’) desse empréstimo, com reembolso, desde o início, em prestações constantes de capital e juros, assegurando ao cliente a comparação entre os custos totais do empréstimo no caso de carência de capital e/ou de juros e/ou diferimento de capital e os custos totais associados a um empréstimo reembolsado em prestações constantes de capital e juros, desde o momento inicial, bem como o distinto perfil temporal desses custos. Na Parte III da FIN devem ser apresentados, de forma sumária, os produtos de crédito à habitação comercializados pela instituição e a documentação necessária para a aprovação do empréstimo e celebração do contrato. A disponibilização desta informação só é rigorosamente obrigatória no momento da entrega da 1ª FIN (na fase de simulação).
344
Anexo II Disponível em http://www.novocpc.org/tiacutetulos-executivos.html TÍTULOS EXECUTIVOS E FORMA DE PROCESSO Situação
É título
Forma de
executivo?
processo
Confissão de dívida (documento particular), com simples aposição de assinatura do devedor,
Não
no valor de 20.000,00 € Cheque emitido em 01/01/2010 no valor de
Sim
15.000,00
alegada a relação
superior
01/09/2013
subjacente)
10.000,00 €)
Ata de condomínio, no valor de 8.000,00 €
Sim
€
em
execução
intentada
a
Confissão de dívida (documento autenticado) no valor de 12.000,00 € (sem garantia real)
Sim
Livrança no valor de 1000,00 €
Sim
Fatura assinada pelo devedor
Não
Notificação de NRAU acompanhada do contrato de arrendamento, no valor de 4.000,00 € Notificação de NRAU acompanhada do contrato de arrendamento, no valor de 16.000,00 €
Sim Sim
Cheque, no valor de 1000,00 € emitido em à
cobrança
em
Sim
5/07/2013, execução intentada a 01/09/2013 Sentença estrangeira Procedimento
europeu
de
injunção
de
pagamento - PEIP Documento
autêntico
ou
autenticado
garantia real (hipoteca ou penhor)
(valor a
Sumário – limitado (1) superior
(valor a
10.000,00 €) Sim
apresentado
Ordinário
Ordinário
Injunção
30/06/2013,
(quando
com
Sumário Sumário – limitado (1)
Sumário – limitado (1) Ordinário Sumário – limitado (1)
Sim
Sumário
Sim
Sumário
Sim
Sumário
345
EXEMPLOS DE TÍTULOS EXECUTIVOS POR NORMA ESPECIAL Descrição
Norma
Observações
Não sendo cumprida a obrigação de
Nº 3 do artigo 777º
Forma Sumária
pagamento, pode o exequente ou exigir,
do CPC
(deve
ser
feito
requerimento
de
prestação, servindo de título executivo a
cumulação
de
declaração
do
execução
devedor, a notificação efetuada e a falta
devedor).
nos
próprios
autos de
da execução,
reconhecimento
a
contra
o
de declaração ou o título de aquisição do crédito. Contrato
de
arrendamento,
quando
Artigo 14.º-A da Lei
acompanhado
do
comprovativo
de
6/2006,
comunicação
ao
arrendatário
do
Fevereiro
27
de
aditada
montante em dívida, é título executivo
pela
Lei
n.º
para a execução para pagamento de
31/2012, de 14 de
quantia certa correspondente às rendas,
Agosto
Forma (limitada)
Sumária ou
ordinária, em função do valor.
aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário A ata da reunião da assembleia de condóminos
que
tiver
deliberado
o
Nº 1 do artigo 6.º do
Forma
Decreto-Lei
(limitada)
n.º
Sumária ou
montante das contribuições devidas ao
268/94 de 25 de
ordinária, em função
condomínio
Outubro
do valor
ou
quaisquer
despesas
necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui
título
executivo
contra
o
proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte. Injunção
com
aposição
de
fórmula
Decreto-Lei
executória
269/98
Procedimento europeu de injunção de
Regulamento
pagamento - PEIP
n.º 1896/2006
Certidão
de
dívida
emitida
instituições de Segurança Social
pelas
nº
Forma Sumária
(CE)
Forma Sumária
Artigo 7º, nº 1 do DL
Forma
42/20012 de 9/02
(limitada)
Sumária ou
ordinária, em função do valor
346
Prestações ou indemnizações devidas no
Artigo
23º
do
âmbito de contratos de aquisição de
Dec.Lei nº 275/93
Forma (limitada)
direito real de habitação periódica
Sumária ou
ordinária, em função do valor
Nota
discriminativa
do
Agente
de
Nº 5 do 721º
Forma
Execução
(limitada)
Sumária ou
ordinária, em função do valor Nota de honorários do notário - O
Artigo
pagamento da conta pode ser exigido
Estatuto
judicialmente
Notariado - Dec.-Lei
ordinária, em função
n.º 26/2004
do valor
Quaisquer outras importâncias devidas à
Artigo 73º do Dec.-
Forma
Câmara dos Solicitadores pelos seus
Lei n.º 88/2003, de
(limitada)
associados.
26.04
ordinária, em função
quando
voluntariamente,
não
servindo
satisfeito de
título
19.º
do
Forma (limitada)
Sumária ou
executivo a conta assinada pelo notário no
que
respeita
aos
montantes
constantes da tabela e aos encargos legais. Sumária ou
do valor Multas fixadas pela Ordem dos Técnicos
Decreto-Lei
oficiais de contas, na falta de pagamento
310/2009 de 26 de
(limitada)
voluntário,
proceder-se-á
Outubro
ordinária, em função
coerciva
nos
à
tribunais
cobrança
n.º
comuns,
Forma
Sumária ou
do valor
constituindo título executivo bastante a decisão condenatória. Não sendo cumprida a obrigação de
nº 3 do artigo 777º
Forma Sumária
pagamento, pode o exequente exigir, nos próprios autos da execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de
reconhecimento
notificação
efetuada
do e
devedor, a
falta
a de
declaração ou o título de aquisição do crédito.
347
348
349