Solicitadoria e Ação Executiva | Estudos #2

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CÂMARA DOS SOLICITADORES

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #2 OUTUBRO 2014

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CÂMARA DOS SOLICITADORES

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #2 OUTUBRO 2014


LABOR IMPROBUS

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OMNIA VINCIT

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NOTA INTRODUTÓRIA

É

grande o orgulho que pontua esta nota introdutória. A coletânea “Solici­ tadoria e Ação Executiva – Estudos” nasceu, no ano passado, de uma neces­sidade­óbvia: conservar os alicerces do futuro. A primeira edição ficou marcada pelo entusiasmo espelhado no nível de adesão. 2014 traz uma nova edição, a qual chega aos associados na mais simbólica das datas: o VI Congresso. Enquanto diretor deste projeto, assumo que é imensa a satisfação que sinto ao poder afirmar que, mais uma vez, foram muitos os trabalhos que recebemos, todos eles com um elevado nível de qualidade, rigor e identidade. Solicitadores e Agentes de Execução não se limitam a reivindicar novas competências. Aliando a experiência e o perfil de mediador a uma formação cada vez mais exigente, têm vindo a justificar a intervenção reforçada num número crescente de áreas. Estamos perante a prova evidente do dinamismo, da vivacidade, da capacidade de reinvenção e readaptação de uma profissão que não parou de questionar e, mui­ to menos, de procurar respostas. Professores, estudantes, formadores, estagiários, associados ­– todos abraçaram o desafio e, graças a isso, voltamos a ter um índice que desfila entre temas tão diversos mas todos eles inquestionavelmente relevantes para a nossa profissão. Uma profissão com um futuro tão gran­ de quanto a própria História. Paulo Teixeira

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Diretor Paulo Teixeira Editora Edite Gaspar Colaboram nesta edição Carla Vieira, Cármen Fernanda Pereira, Diana Leiras, Manuel Almeida, Rui Pinto, Sérgio Alexandre Espanhol Mira, Susana Amaro Velho, Tania Padilla Conselho Geral Tel. 213 894 200 | Fax 213 534 870 c.geral@solicitador.net Conselho Regional do Norte Tel. 222 074 700 | Fax 222 054 140 c.r.norte@solicitador.net Conselho Regional do Sul Tel. 213 800 030 | Fax 213 534 834 c.r.sul@solicitador.net Design Atelier Gráficos à Lapa www.graficosalapa.pt Impressão ACD Print, S.A. Tiragem 1 500 Exemplares Periodicidade Anual Reimpressão ISSN 2182-9225 Registo na ERC com o n.º 126587 Depósito legal 358745/13 Preço €9 Propriedade Câmara dos Solicitadores Rua Artilharia 1, n.º 63 1250-038 Lisboa Tel. 213 894 200 Fax 213 534 870 E-mail: c.geral@solicitador.net www.solicitador.net

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ÍNDICE

A NÃO EXEQUIBILIDADE DOS DOCUMENTOS PARTICULARES NO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Cármen Fernanda Pereira

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UM OLHAR SOBRE… AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES AO REGIME DO PROCESSO DE INVENTÁRIO Diana Leiras

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SANÇÕES ACESSÓRIAS Manuel de Almeida

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NOTAS AO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL PRÉ-EXECUTIVO (PEPEX) A EXPANSÃO DA COMPETÊNCIA DO AGENTE DE EXECUÇÃO NO ATUAL PARADIGMA DA AÇÃO EXECUTIVA Rui Pinto

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A REFORMA DA ACÇÃO EXECUTIVA DE 2013, NCPC, DOS MOTIVOS À TRAMITAÇÃO, COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES DOS SOLICITADORES NA ACÇÃO EXECUTIVA Sérgio Alexandre Espanhol Mira

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INTEGRAÇÃO DE LACUNAS ANÁLISE DO ARTIGO 10.º DO CÓDIGO CIVIL Susana Amaro Velho

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ANÁLISE DA SENTENÇA DE PORTALEGRE DE 04/01/2012 E AS GARANTIAS DO CREDOR HIPOTECÁRIO Tania Padilla e Carla Vieira

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A NÃO EXEQUIBILIDADE DOS DOCUMENTOS PARTICULARES NO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

CÁRMEN FERNANDA PEREIRA Secretária forense e Solicitadora estagiária

INTRODUÇÃO – DO “NOVO MODELO DE PROCESSO CIVIL”

O

atual Código de Processo Civil (CPC) aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que entrou em vigor em 1 de setembro de 2013, introduziu algumas alterações bastante significativas, norteado pelos conceitos de flexibilidade, simplificação e celeridade, pela redução das formas de pro­ cesso e pela simplificação dos regimes declarativo e executivo. Tal como apresentado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/ XII, enfatiza-se “a celeridade processual, indispensável à legitimação dos tribunais perante a comunidade e instrumento indispensável à realização de uma das fundamen­ tais dimensões do direito fundamental de acesso à justiça, (…) um novo modelo de processo civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos (…)” Pretende-se criar um novo modelo de cultura judiciária que permita “inviabilizar e desvalorizar (…) a velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito”. No âmbito do processo executivo, estes novos princípios enformadores incidem, entre outros aspetos, no elenco dos títulos executivos.

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RESUMO O novo Código de Processo Civil que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2013, veio introduzir mudanças significativas em prol de uma justiça mais célere, flexível e desformalizada. No processo executivo, uma das alterações consistiu na perda do caráter executivo para os documentos particulares, onde se incluem documentos previamente existentes e validamente constituídos, caso a ação seja intentada após a entrada em vigor da lei. A aplicação retroativa da lei gerou uma alteração imprevisível no ordenamento jurídico que levanta questões de constitucionalidade, à luz do princípio da confiança do cidadão. Nesta equação temos, de um lado, as legítimas expetativas e os interesses jurídicos afetados dos credores, e do outro, as finalidades que o legislador se propõe prosseguir para o que considera o melhor interesse público. Perante as atuais disposições normativas, caberá ao cidadão questionar esta constitucionalidade e/ ou recorrer a outros expedientes legais como a ação declarativa prévia, os documentos autênticos ou autenticados, os títulos de crédito ou as injunções.

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Cármen Fernanda Pereira

Comparando o anterior artigo 46.º e o atual equivalente artigo 703.º das espécies de títulos executivos, verificamos que deixam de ter força executiva os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto1. Em contrapartida, passa a reconhecer-se expressamente a força executiva dos títulos de crédi­ to (como as letras, as livranças e os cheques), ainda que meros quirógrafos, bastando para tal que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

I. A INEXEQUIBILIDADE DOS DOCUMENTOS PARTICULARES O legislador questiona os efeitos da tendência nas últimas décadas para flexibilizar os requisi­ tos de exequibilidade dos documentos particulares, que permitiu que entrassem imediatamente em processo executivo, com o objetivo de reduzir as pendências nas ações declarativas. Esta opção normativa, conjugada com o fácil acesso ao crédito para consumo que se verificou em recentes anos, e com a atual crise que o nosso país tem atravessado, veio a traduzir-se no aumen­ to exponencial dos processos executivos. Com a nova reforma do CPC, parece-nos claro que foi intenção do legislador apostar numa nova orientação e limitar o elenco de títulos executivos. “Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedidas de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório (…)” (in Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII). Apelando à necessidade de maior segurança jurídica para justificar as alterações introduzidas, nomeadamente a supressão dos documentos particulares das espécies de títulos executivos, resulta claro que passou a preferir aqueles títulos executivos que preencham determinadas carac­ terísticas formais que os tornem (no seu entender) mais eficazes: as injunções, os documentos autênticos ou autenticados e os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos. Na prática, no que se refere aos títulos executivos, reduz-se por um lado a flexibilidade e, por outro, procura-se ganhar em simplicidade e celeridade para o sistema (o que será questionável, como veremos mais à frente). Vozes discordantes sustentam que seria preferível ter mantido os documentos particulares como títulos executivos, até porque não se conhecem estudos estatísticos que permitam asso­ ciar à execução destes títulos uma maior percentagem de procedência de oposições, em compa­ ração com outros que o legislador manteve. De facto, se o objetivo seria tornar os títulos executi­ vos mais eficazes e providos de maior segurança jurídica, porque não optar por impor aos documentos particulares requisitos mais apertados, em vez do corte drástico? Vários pareceres à proposta de lei2 haviam já referido a possibilidade de, além dos requisitos estabelecidos para os documentos particulares: i) formalizar a constituição ou reconhecimento de uma obrigação; ii) estar assinado pelo devedor; iii) dele constar uma obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou obrigação de entrega de coisas ou de prestação de facto; se acrescentasse talvez iv) que resultasse de forma expressa e inequívoca a constituição ou o reconhecimento da obrigação exequenda. Este último ponto seria, no fundo semelhante ao estabelecido para os documentos autênticos ou autenticados, que obriga a que o documento esteja revestido de força executiva própria ou a confirmar por documento que prove a existência de prestação para a conclusão do negócio ou a constituição de uma obrigação (artigo 50.º, atual artigo 707.º do CPC).

Com a nova reforma do CPC, parece-nos claro que foi intenção do legislador apostar numa nova orientação e limitar o elenco de títulos executivos. Resulta claro que passou a preferir aqueles títulos executivos que preencham determinadas características formais que os tornem (no seu entender) mais eficazes. De facto, se o objetivo seria tornar os títulos executivos mais eficazes e providos de maior segurança jurídica, porque não optar por impor aos documentos particulares requisitos mais apertados, em vez do corte drástico?

Note-se que nem todos os documentos particulares deixaram de ser títulos executivos [ex vi alínea d)] do n.º 1 do artigo 703.º do CPC), onde se incluem as atas de assembleia de condomínio (artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94 de 25 de Outubro) ou o título obtido através do procedimento de injunção (Decreto-Lei n.º 269/98 de 1 de Setembro). 2 Referenciados na bibliografia deste artigo. 1

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A segurança jurídica poderia ser ainda maior se o documento particular fosse incluído no elen­ co das execuções por forma de processo ordinário (atual artigo 550.º n.º 1 e 3 do CPC), indepen­ dentemente do valor em causa, que obrigaria ao despacho liminar do juiz e citação prévia do executado (atual artigo 726.º do CPC), garantindo assim ao exequente o direito ao contraditório, prévio à penhora.

O credor, em posse de documento particular anteriormente constituído, se apenas (necessitar de) intentar ação após a entrada em vigor da lei, já não se poderá valer deste como título executivo válido. Para defender a tese da inconstitucionalidade da aplicação retroativa da lei, caberá decidir dois critérios: i) que esta alteração na ordem jurídica afetou a confiança dos cidadãos de forma inadmissível e arbitrária e ii) que a finalidade prosseguida pelo legislador não justificará devidamente tal medida.

II. DA APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEI Perante a supressão dos documentos particulares do rol dos títulos executivos, para os credo­ res que se haviam munido de tal documento quando este era válido, levanta-se a questão: Pode a lei nova ter aplicação retroativa sobre os documentos particulares validamente constituídos como títulos executivos antes da sua entrada em vigor? Nas disposições transitórias da Lei n.º 41/2013, o artigo 6.º n.º 1, relativo à ação executiva, consagra a regra geral da aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor; ressalvando contudo, no n.º 3, que as alterações referentes aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdu­ tória só se aplicarão às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor. Daqui se entende que as alterações referentes aos títulos executivos só se aplicarão às execu­ ções iniciadas após 1 de setembro de 2013. Ou seja, o credor, em posse de documento particular anteriormente constituído, se apenas (necessitar de) intentar ação após a entrada em vigor da lei, já não se poderá valer deste como título executivo válido. Terá necessariamente de o autenticar ou intentar (prévia) ação declarativa ou, se possível pela quantia em questão, apresentar requeri­ mento de injunção. No que concerne à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra mostra-se consagrada no n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil: a lei dispõe para o futuro. Todavia, admite-se a eficácia retroa­ tiva da lei processual, por via, por exemplo, da consagração de disposições transitórias. Neste caso, “a lei nova estará a ser aplicada a factos jurídicos pré-existentes ou, (…) a efeitos jurídicos pendentes que resultam de tal facto jurídico: os títulos executivos” (Teles: 2013, 2). A este propósito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de fevereiro de 20143, que constitui um marco da jurisprudência sobre a aplicação desta norma que elimina do elenco dos títulos executivos um documento particular assinado pelas partes. No caso concreto, consubstancia um acordo extrajudicial4 validamente constituído na presença do Procurador da República, em 21 de maio de 2012. É apresentado à execução em 16 de outubro de 2013 pela falta de pagamento da segunda prestação acordada, vindo a ser indeferido por despacho em 30 de outubro de 2013, com o fundamento da entrada em vigor do novo CPC, onde, por via do artigo 703.º, o documento deixara de ser título executivo. A decisão foi objeto de recurso, julgado procedente pela Relação, que decidiu não aplicar o artigo 703.º do Código de Processo Civil, conjugada com o artigo 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013, considerando-o inconstitucional por violação dos princípios da segurança e proteção da confian­ ça, integradores do Estado de Direito Democrático.

III. DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEGURANÇA JURÍDICA De facto, se a recusa de documento particular como título executivo poderá ser permitida em termos de aplicação retroativa da lei, outra questão se levanta: Pode a lei nova levantar sérias questões de constitucionalidade por afetar os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão? Processo 374/13.3TUEVR.E1. O acordo extrajudicial só por si não tem força executiva, por disposição especial no âmbito do Direito do Traba­ lho, por não se tratar de um auto de conciliação. 3 4

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Como se disse, o artigo 12.º do Código Civil consagra o princípio da irretroatividade da lei, permitindo em certos casos a eficácia retroativa – desde que respeitando as regras do próprio artigo e os princípios de ordem constitucional, nomeadamente o estipulado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, que admite as restrições pela lei quando se limitem ao “necessário para sal­ vaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Além desta restrição expressa na Constituição, importa ter em consideração os princípios ine­ rentes ao artigo 2.º, que fundamentam o Estado de Direito Democrático, “como o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança do cidadão […] [que] servem de pressuposto mate­ rial à proibição da retroatividade das leis” (Canotilho referido em Teles: 2013, 4). Como exposto no referido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário considerar quatro requisitos: i) que o Estado (o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expecta­ tivas» de continuidade; ii) que estas expectativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; iii) que os privados tenham feito planos de vida com base na perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; iv) que não ocorram razões de interesse público que justifiquem a não continuidade desse comportamento que gerou tal expectativa. “É que pesando as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim, diremos que o sacrifício das expectativas jurídicas criadas é demasiado oneroso para justificar os fins pretendidos com a alteração da ordem jurídica” (in acórdão). No mesmo sentido dispõe o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 287/90 que, para avaliar da violação do princípio da confiança, é necessário ponderar entre, por um lado, a confiança do indivíduo na manutenção de um certo regime jurídico, e por outro, a importância do interesse visado pelo legislador na prossecução de um elevado interesse público. Assim, para defender a tese da inconstitucionalidade da aplicação retroativa da lei, caberá decidir dois critérios: i) que esta alteração na ordem jurídica afetou a confiança dos cidadãos de forma inadmissível e arbitrária e ii) que a finalidade prosseguida pelo legislador não justificará devidamente tal medida. Quanto à alteração da confiança dos cidadãos de forma inadmissível e arbitrária, é importante relembrar que a tendência dos últimos anos do legislador seguia para a flexibilização dos docu­ mentos particulares como títulos executivos, e que tal facto pode ter sido essencial para a forma­ ção da vontade dos credores aquando da celebração daquele negócio jurídico ou da constitui­ ção daquela relação jurídica em particular. É uma alteração com a qual os destinatários não poderiam razoavelmente contar. “Se, à data da celebração do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestis­ se a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo”, como bem frisa Maria João Teles (2013, 7). Esta alteração da lei, constitui uma modificação no ordenamento jurídico que não era previsí­ vel e que ofende, não só os direitos legalmente constituídos, dignos de tutela, como também as legítimas expetativas dos credores que constituíram aqueles títulos executivos ao abrigo da lei anterior e cujo conteúdo e efeitos ainda subsistem. “Quantas centenas ou milhares de acordos foram formalizados por via de um escrito assinado pelas partes, nomeadamente acordos extraju­ diciais (…) e mesmo, acordos de revogação de contratos de trabalho diretamente celebrados entre os trabalhadores e os empregadores” (in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27 de fevereiro de 2014). Veja-se o exemplo de um credor, munido de um documento particular, válido à data da sua constituição, que fixava o cumprimento da obrigação para um momento posterior à data de entrada em vigor da nova lei. Atualmente, já não o poderá utilizar para intentar a respetiva ação executiva. Ou então o exemplo do credor que, perante o incumprimento do devedor, mesmo antes da entrada em vigor do novo CPC, só reunir atualmente condições de intentar a ação exe­ cutiva, por motivos de ordem pessoal. Quanto à aferição das causas que justifiquem a finalidade prosseguida pelo legislador, é referida na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, i) a intenção de reduzir as “execuções injustas (… ) potenciado pela circunstância de (…) a execução se iniciar pela penhora de bens do

Ofende, não só os direitos legalmente constituídos, dignos de tutela, como também as legítimas expetativas dos credores que constituíram aqueles títulos executivos ao abrigo da lei anterior e cujo conteúdo e efeitos ainda subsistem.

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executado, postergando-se o contraditório” e ii) a intenção de descongestionamento dos tribu­ nais, pois “a discussão não havida na ação declarativa (…) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução” (pp. 19 e 20). Parece-nos que as razões invocadas não justificam razoavelmente a opção do legislador. Senão veja-se, quanto à questão da execução injusta, é permitida a defesa aos executados por via da oposição à execução e à penhora. Quanto à questão do descongestionamento dos tribu­ nais de processos pendentes, afigura-se-nos precisamente o oposto: o aumento das injunções e das ações declarativas para obter um título executivo, assim como dos custos de acesso à justiça e da frustração das legítimas expetativas dos credores. Corre-se o risco de gerar um efeito perver­ so no sistema, que afetará a tão desejada simplicidade e celeridade, devido aos entraves coloca­ dos aos cidadãos. A segurança jurídica e a finalidade prosseguida pelo legislador na prossecução do melhor inte­ resse público ficariam devidamente acauteladas se optasse pela reformulação dos requisitos dos documentos particulares, incluindo nestes a referência expressa e inequívoca à constituição ou ao reconhecimento da obrigação exequenda, bem como pela obrigação de despacho liminar e citação prévia do executado, independentemente do valor em causa (sugestões já avançadas no ponto I deste artigo, inspiradas por pareceres de entidades diversas). Bastaria mesmo uma disposição transitória que estabelecesse estes requisitos para os docu­ mentos particulares constituídos antes da entrada em vigor da nova lei.

IV. ALTERNATIVAS AOS DOCUMENTOS PARTICULARES À falta de título de reconhecida exequibilidade, outras alternativas se poderão apresentar ao particular para além do recurso à ação declarativa a fim de obter sentença condenatória: OS DOCUMENTOS AUTÊNTICOS OU AUTENTICADOS Uma solução possível para o detentor de um documento particular que importe a constitui­ ção ou reconhecimento de uma obrigação, poderá passar por autenticá-lo ou exarar documento autêntico (ex. escritura pública). Em caso de prestações futuras, para servir de base à execução é requisito que esteja revestido de força executiva própria ou que prove, por documento passado em conformidade com as suas cláusulas, a existência de prestação para a conclusão do negócio ou a constituição de uma obrigação (ex vi artigo 707.º do CPC). Destaque-se que não é suficiente o reconhecimento notarial da letra e assinatura, mas sim o termo de autenticação onde as partes confirmam o seu conteúdo e a sua vontade perante notá­ rio ou entidade profissional com competência para tal (como os solicitadores ou advogados). Em termos práticos, poderão levantar-se obstáculos ao credor que, já munido de documento particular previamente aceite como título válido entre as partes, se vê agora na necessidade de requerer ao devedor que confirme a sua obrigação com outra formalidade. Ou ainda o exequen­ te em processo executivo, munido de acordo de pagamento em prestações com inclusão de uma garantia de terceiro (fiança), que percebe que só poderá mover execução contra o fiador se o acordo for autêntico ou autenticado. OS TÍTULOS DE CRÉDITO Perante a constituição ou reconhecimento de uma obrigação, o particular poderá optar pelos títulos de crédito – letras, livranças e cheques – que mantêm a sua exequibilidade, inclusive os meros quirógrafos. Os títulos de crédito estão protegidos pelo direito comercial, em virtude das suas característi­ cas específicas de segurança e fiabilidade, existindo já uma certa prática dos tribunais em acei­ tá-los mesmo quando quirógrafos. Comparando-os com os documentos particulares – confissões de dívida, acordos de paga­ mento, contratos, faturas ou extratos de conta assinados pelo devedor, etc. – poder-se-á justificar a opção do legislador pelo facto destes últimos serem, a priori, títulos mais frágeis e sujeitos à

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oposição à execução, por via da interpretação das declarações neles contidos. Sendo certo, con­ tudo, que tanto os documentos particulares como os títulos de crédito têm inerente uma poten­ cial fragilidade: a possibilidade de impugnação da letra e assinatura, que poderá implicar prova demorada. AS INJUNÇÕES Uma alternativa aos documentos particulares, ou como forma de complemento destes, será a opção pelo procedimento de injunção, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro. A injunção é uma providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento desti­ nado a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000€, ou das obrigações emergentes de transações comerciais, independentemen­ te do valor da dívida, nos termos do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio. Mediante a apresen­ tação do requerimento de injunção pelo credor, o devedor é notificado para pagar ou opor-se. Se não pagar nem se opuser, é-lhe aposta fórmula executória, valendo como título executivo. Caso se opunha, o processo é remetido para tribunal, seguindo os trâmites do processo declarativo, que culminará numa sentença. É certo que este título também apresenta algumas fragilidades, desde logo, pela forma da notificação conjugada com a aposição da fórmula executiva em caso de ausência de oposição do requerido. Contudo, entende o legislador que, associando os documentos particulares ao proce­ dimento de injunção, dá-se uma “dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado” (in Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, p.19).

V. CONCLUSÕES Perante a tendência verificada nas últimas décadas, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares, o legislador do atual CPC entendeu suprimi-los do elenco dos títulos executivos, alegando razões de segurança jurídica. Esta disposição afeta igual­ mente os títulos constituídos antes da entrada em vigor da lei. As razões invocadas são fortemente questionáveis e surpreenderam os cidadãos que se vêm forçados a recorrer a outros títulos executivos (em substituição ou complemento) quando possí­ vel ou a partir para a ação declarativa a fim de fazer valer um direito já lhes havia sido reconhecido. A doutrina e a jurisprudência têm levantado sérias questões sobre a constitucionalidade da aplicação retroativa da lei e será expectável o surgimento de outros exemplos como o do Acór­ dão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de fevereiro de 2014, em prol dos direitos básicos do cidadão da segurança jurídica e da confiança no Estado de Direito Democrático.

O artigo está escrito segundo o novo acordo ortográfico.

A segurança jurídica e a finalidade prosseguida pelo legislador na prossecução do melhor interesse público ficariam devidamente acauteladas se optasse pela reformulação dos requisitos dos documentos particulares, incluindo nestes a referência expressa e inequívoca à constituição ou ao reconhecimento da obrigação exequenda, bem como pela obrigação de despacho liminar e citação prévia do executado, independentemente do valor em causa (sugestões já avançadas no ponto I deste artigo, inspiradas por pareceres de entidades diversas).

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Bibliografia CARNEIRO, Campo Ferreira Sá (2013): Novas regras para a cobrança de dívidas, in http://www.csassociados.pt/ xms/files/DESTAQUES/NOVO_CODIGO_DE_PROCESSO_ CIVIL___PARTE_I_-_NOVAS_REGRAS_PARA_A_ COBRANCA_DE_DIVIDAS.pdf (consultado em 25.04.2014). FREITAS, José Lebre (2013): Sobre o novo Código de Processo Civil (Uma Visão de Fora), Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 Vol I. MACEDO, Vitorino e Associados (2012): Os limites de oposição à execução baseada em injunção, in http:// www.macedovitorino.com/xms/files/EstudoInconstitucionalidade_dos_Limites_de_ Oposicao_a_ Execucao_basead.pdf (consultado em 25.04.2014). PIMENTA, Paulo (2012): A Acção Executiva na revisão do Processo Civil, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72 Vol II III. PLMJ Associados (2013): A não exequibilidade de documentos particulares no novo CPC, in http://www. plmj.com/xms/files/newsletters/2013/Julho/A_Nao_ Exequibilidade_de_Documentos_Particulares _no_ Novo_CPC.pdf (consultado em 25.04.2014). TELES, Maria João (2013): A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, in http://www.cej.mj.pt/

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cej/recursos/formacao_jornadas.php (consultados em 21.04.2014) Pareceres Prévios: Proposta de Lei n.º 113/XII, Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior do Ministério Público, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e Ordem dos Advogados (todos in http://www. cej.mj.pt/cej/recursos/formacao_jornadas.php (consultados em 21.04.2014) Parecer da Câmara dos Solicitadores (in http:// solicitador.net/uploads/cms_page_media/598/Parecer %20da%20CS%20sobre%20o %20novo%20CPC.pdf, consultado em 21.04.2014) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 287/90 in http:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960786. html (consultado em 07.05.2014) Acórdão do Tribunal da Relação de, Processo 374/13.3TUEVR.E1 de 27-02-2014 in http://www.dgsi.pt/jtre.134973db 04f39bf2802579 bf005f080b/6705 daae8aae5bd480257c99005c4270?OpenDocument (consultado em 07.05.2014)


UM OLHAR SOBRE… AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES AO REGIME DO PROCESSO DE INVENTÁRIO LEI N.º 23/2013, DE 5 DE MARÇO

DIANA LEIRAS Licenciada e Mestre em Solicitadoria, Solicitadora, Docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave

I. INTRODUÇÃO

N

uma procura do descongestionamento dos tribunais e simultaneamente de maior celeridade e eficácia na tramitação dos processos de inventário, no dia 2 de setembro de 2013 entrou em vigor o novo regime jurídico do pro­ cesso de inventário. A opção legislativa não passou pela alteração do regime jurídico do pro­ cesso de inventário que se encontrava previsto e regulado no Código de Processo Civil (CPC), mas antes pela revogação desse regime e aprovação de um novo, que passou a constar de diploma avulso – do anexo da Lei n.º 23/2013, de 5 de março. Apesar de muitas das normas consagradas terem sido extraídas diretamente do regime do inventário tal como constava do CPC, a verdade é que face às alterações que este novo regime consagra, maxime em termos de competência para a sua tramitação, podemos sem qualquer hesitação, falar numa “Reforma do Processo de Inventário”. Com a realização deste trabalho, que se cingirá ao inventário destinado a pôr termo à comu­ nhão hereditária, pretende-se não um estudo exaustivo, mas antes analisar em traços genéricos as alterações, que entendemos serem as principais, introduzidas ao regime jurídico do processo de inventário. Face à importância que o papel dos solicitadores no processo de inventário reveste para a classe de solicitadores que desde sempre intervém nestes processos, e à sua ambicionada vonta­ de de uma alteração legislativa no âmbito do patrocínio judiciário obrigatório, a intervenção dos solicitadores nos processos de inventário será igualmente objeto de análise.

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RESUMO Com a Lei n.º 23/2013, de 5 de março foram introduzidas importantes alterações ao regime jurídico do processo de inventário, tal como o conhecíamos. Na verdade, e em termos rigorosos, tratou-se da implementação de um novo regime do processo de inventário, aprovado pela referida lei, e não de uma remodelação do já existente. Dessas alterações, a transferência de competência para efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário, que se verificou dos Juízes para os Notários é, do nosso ponto de vista, a principal. Não obstante, outras alterações se sobressaem e caracterizam o novo regime. O legislador manteve intacto o regime do patrocínio judiciário até então vigente, continuando a ser obrigatória a constituição de advogado para se suscitar ou discutir questões de direito. A análise desta obrigatoriedade permitenos analisar o papel do solicitador nesta espécie de processos.

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O que se espera e deseja é que algum proveito possa advir da leitura deste trabalho para os profissionais que intervêm nos processos de inventário, com vista a uma mais fácil integração no novo regime consagrado e já em vigor.

II. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES AO REGIME DO PROCESSO DE INVENTÁRIO A desjudicialização dos processos de inventário constituía um dos objetivos do legislador, pois através da mesma mataria dois coelhos numa cajadada só: o congestionamento dos tribunais e a morosidade na tramitação e extinção destes processos. Nesse sentido, numa primeira tentativa da visada desjudicialização, em 2009, foi aprovada a Lei n.º 29/2009, de 29.061, que atribuía competência para tramitar os processos de inventário aos cartórios notariais e aos serviços de registo. Esta lei não chegou, contudo, a produzir efeitos, o que se deveu à circunstância de se terem suscitado dificuldades quanto à sua aplicação prática. Nela se reservava ao juiz o controlo geral do processo, mas não se previa qualquer expediente ou faculdade processual suscetível de efetivar esse mesmo controlo porquanto não se concretizava com o necessário rigor, o direito de os interessados suscitarem a intervenção judicial2. Numa segunda tentativa de desjudicialização, foi aprovada a Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que, em anexo, aprova o Regime Jurídico do Processo de Inventário (doravante RJPI)3, que dela faz parte integrante – artigos 2.º da referida lei e 1.º , do RJPI4, a qual se encontra em vigor desde o primeiro dia útil do mês de setembro de 2013, ou seja, desde o dia 2 desse mês5. Com o RJPI, que apenas se aplica aos processos propostos após a sua entrada em vigor6, a desjudicialização do processo de inventário, concretizou-se, mas não através da transferência de competência para a sua tramitação dos tribunais para os cartórios notariais e serviços de registos, como se previa na referida Lei n.º 29/2009, de 29.06, mas tão só para aqueles primeiros. Apesar de não ser um juiz a tramitar os processos de inventário, o certo é que estes processos não perderam totalmente a sua natureza judicial, pois que a intervenção do tribunal não está afastada. A intervenção judicial consiste, no entanto, numa intervenção especificada, já que só se verifica nos casos em que é expressamente atribuída competência ao tribunal. Não obstante, o legislador pretendeu assegurar que o tribunal intervenha em todos os processos de inventário, através da atribuição ao juiz de competência exclusiva para homologação da partilha constante do mapa e das operações de sorteio. A transferência de competência operada é, no nosso entender, por concretizar a há muito desejada desjudicialização, a principal alteração introduzida ao regime jurídico do processo de inventário, mas outras se sobressaem, e serão igualmente objeto de análise: – a tramitação eletrónica dos processos, sempre que possível; – a cisão da conferência de interessados em duas, na conferência preparatória e na conferên­ cia de interessados, propriamente dita; 1 A Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de Novembro, que esteve na origem da Lei n.º 29/2009, previa, especificamente, no que ao inventário diz respeito a sua “(…) desjudicialização (…) considerando que o tratamento pela via judicial deste processo resulta particularmente moroso, assegurando sempre o acesso aos tribunais em caso de conflito(…)”. 2 Tal resulta da Proposta de Lei n.º 105-XII – Proposta de Lei do Regime Jurídico do Processo de Inventário. Na referida lei também se consagravam alterações de regime em termos de competência do cabeça de casal, já que este deixava de ter um papel fundamental no âmbito do processo, pois esse papel passava a incumbir ao requerente do inventário. No RJPI, o cabeça de casal continua a ter um papel fundamental, competindo-lhe for­ necer todos os elementos necessários ao prosseguimento do processo de inventário (artigo 23.º). Como o regime não se altera em relação ao anteriormente em vigor, a competência do cabeça de casal não será objeto de análise no presente trabalho. 3 A que respeitaram as referências legais mencionadas neste trabalho desacompanhadas de indicação expressa do respetivo diploma. 4 Esta lei revogou a supra referida Lei n.º 29/2009, de 29.06 no que respeita ao inventário e introduziu alterações ao Código Civil (CC), Código de Registo Predial, Código de Registo Civil, e revogou todas as disposições que no CPC versavam sobre o processo de inventário (artigos anteriores 1326.º a 1406.º, do CPC) – artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 23/2013, de 5.03. 5 Cfr. artigo 8.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março. 6 Cfr. artigo 7.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março

Numa segunda tentativa de desjudicialização, foi aprovada a Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que, em anexo, aprova o Regime Jurídico do Processo de Inventário (doravante RJPI), que dela faz parte integrante – artigos 2.º da referida lei e 1.º, do RJPI, a qual se encontra em vigor desde o primeiro dia útil do mesmo de setembro de 2013, ou seja, desde o dia 2 desse mês.

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– a possibilidade de, na conferência preparatória se deliberar na composição dos quinhões por uma maioria de dois terços dos titulares do direito à herança (independentemente da proporção de cada quota); e – a realização das licitações mediante propostas em carta fechada e a introdução da modali­ dade de adjudicação por negociação particular, quando os bens não forem adjudicados por meio de licitações mediante propostas em carta fechada.

O primeiro consiste na atribuição ao notário de competência para decidir todas as questões que sejam suscitadas no processo de inventário que se encontre a tramitar, apreciando e avaliando a prova produzida, inclusive, testemunhal, com vista a que o processo atinja a sua finalidade última, a partilha da herança. O segundo de que o legislador atribui competência para tramitar os processos de inventário, não a todos os cartórios notariais situados em território nacional, mas tão só aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão.

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Também no que no que respeita à competência do Ministério Público no âmbito do processo de inventário foram introduzidas alterações, estando previsto que quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta, a respetiva representação deve ser garantida por quem exerce as responsabilidades parentais, pelo tutor ou curador, consoante os casos. Ao Minis­ tério Público compete ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública, sem prejuízo das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei. No presente trabalho ficaremos com esta ideia de que a intervenção do Ministério Público nos processos de inventário passou a ser mais limitada, debruçando-nos, em especial, sobre a com­ petência dos cartórios notariais e do tribunal, pois que a transferência de competência se verifi­ cou deste último para aqueles primeiros.

III. COMPETÊNCIA DO CARTÓRIO NOTARIAL O legislador visando o descongestionamento dos tribunais transferiu a competência para a tramitação dos processos de inventário para os cartórios notariais, que podem assim, não só rea­ lizar partilhas em que há acordo entre os interessados quanto à composição dos quinhões, mas também partilhas por meio de inventário – as chamadas “partilhas judiciais” no regime anterior7. A competência do cartório notarial para tramitar os processos de inventário resulta sobretudo da conjugação de duas normas. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, estabelecendo o n.º 4 do mesmo preceito que ao notário compete dirigir todas as diligên­ cias do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns. Daqui extraímos dois importantes aspetos. O primeiro consiste na atribuição ao notário de competência para decidir todas as questões que sejam suscitadas no processo de inventário que se encontre a tramitar, apreciando e avalian­ do a prova produzida, inclusive, testemunhal, com vista a que o processo atinja a sua finalidade última, a partilha da herança. Tal apenas não deverá suceder se estiverem em causa questões sobre as quais se deva abster de decidir, atenta a sua natureza ou complexidade da matéria de facto ou de direito8, caso em que o notário deve remeter as partes para os meios judiciais comuns, suspendendo o processo até que ocorra decisão definitiva, conforme resulta do n.º 1 do artigo

O artigo 2012.º, do CC refere-se à forma da partilha, estipulando no seu n.º 1 que a partilha é realizada nas conservatórias ou por via notarial, e, em qualquer outro caso, por meio de inventário, nos termos previstos em lei especial. No n.º 2 do mesmo preceito, nas suas alíneas, referem-se os casos em que se procede a partilha por inven­ tário: quando não houver acordo de todos os interessados na partilha; quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária; e nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada nas conservatórias ou nos cartórios notariais. 8 A matéria de direito é considerada complexa quando for controvertida, isto é, quando sobre ela houver divergên­ cias na doutrina e na jurisprudência. O legislador refere-se à “complexidade da matéria de facto e de direito”, em termos cumulativos para a suspensão do processo de inventário e consequente remessa para os meios comuns, mas no artigo 36.º, n.º 1 por sua vez já se refere a “complexidade da matéria de facto ou de direito”, em alternativa, para a remessa dos interessados para os meios comuns. Entendemos que se trata no n.º 1 do artigo 16.º de uma redação pouco cuidada do legislador, por não ser a cumulação da complexidade de facto e de direito o seu objetivo, sendo por alternativas. Nesse sentido vai o Juiz de Direito Tomé d´Almeida Ramião em RAMIÃO, D´Almeida, O Novo Regime do Processo de Inventário, Quid Iuris, Lisboa, 2014, p. 59. 7

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16.º9. Esta remessa para os meios judiciais comuns, tal como resulta do mesmo preceito, tem de ser acompanhada de uma identificação das questões controvertidas e o notário deve justificar a sua complexidade, reforçando assim o legislador, o carácter de exceção que reveste esta remessa. O que se pretende é que a complexidade das questões suscitadas seja aferida com todo o rigor de modo a não fazer recair sobre os Tribunais a resolução de controvérsias que cabem na natural competência conferida aos notários10, como acontece com questões cuja prova é meramente documental. Constituem casos típicos de remessa para os meios comuns de questões que atenta a sua natureza não devem ser decididas no processo de inventário, a impugnação da paternidade ou perfilhação, as que determinem a impugnação de ato sujeito a registo (como a vendas a filhos, a impugnação pauliana, etc.); e de questões que atenta a complexidade da matéria de facto ou de direito não devem ser decididas no processo de inventário, a invocação da indignidade sucessó­ ria (cfr. artigo 2034.º, do CC), a cumulação de inventários que importe a apreciação de vários regimes sucessórios e de casamento; e a invocação da nulidade de um testamento11. O segundo de que o legislador atribui competência para tramitar os processos de inventário, não a todos os cartórios notariais situados em território nacional, mas tão só aos cartórios nota­ riais sediados no município do lugar da abertura da sucessão. Para se aferir dessa competência, torna-se necessário recorrer ao direito substantivo, nomeadamente aos artigos 2031.º e 82.º, do CC, pois que a primeira destas normas é que nos diz onde se abre a sucessão – “a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no último domicílio dele” – e a segunda é que nos dá o conceito de domicílio. Assim, serão competentes para tramitar o processo de inventário os cartó­ rios notariais sediados no município onde o inventariado residia habitualmente, residia alternada­ mente, onde tinha residência ocasional, ou no caso de esta não puder ser determinada, no lugar onde se encontrava. Vejamos um exemplo prático. ANACLETO faleceu na cidade do Porto, vítima de ataque cardíaco, quando estava a conduzir em direção a Vila do Conde, onde residia. Qual o cartório notarial competente? Para o processamento dos atos e termos do processo de inventário de ANACLETO são compe­ tentes os cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão de ANACLE­ TO, ou seja, no município do último domicílio deste, ou seja, Vila do Conde. Porém, a referida regra comporta duas exceções: uma relacionada com o impedimento dos notários de um cartório notarial competente, nos termos dos artigos 5.º e 6.º do Código do Nota­ riado; e outra com a inexistência de cartório notarial no município do lugar da abertura da suces­ são. Para o primeiro caso, que se verifica por exemplo, se o notário for interessado ou familiar de algum interessado no processo de inventário que lhe incumbe tramitar, consagra o artigo 3.º, n.º 2 que é competente qualquer dos outros cartórios sediados no município do lugar da abertu­ ra da sucessão. Para o segundo caso, prevê o n.º 3 da mesma norma que é competente qualquer cartório de um dos municípios confinantes. Se a sucessão se abrir fora do país, o que vale por dizer, que o último domicílio do inventariado foi no estrangeiro, há que distinguir consoante o falecido tenha deixado ou não bens em Portugal (artigo 3.º, n.º 5): na afirmativa, será competente para a habilitação (e para o processamento dos atos e termos do processo de inventário) o cartório notarial do município da situação dos imóveis ou da maior parte deles ou, na falta de imóveis, do município onde estiver a maior parte dos bens

Contudo, parece tal não suceder, uma vez que está assegurada a reserva do juiz e o respeito por tal garantia constitucional durante toda a tramitação do processo, pois certa questão pode sair da competência daquele, através da remessa das partes para os meios judiciais comuns, nos termos do artigo 16.º Além disso, a intervenção judicial tem imperativamente de se verificar pois que o legislador impõe, no artigo 66.º, n.º 1 que a decisão de partilha constante do mapa e das operações de sorteio seja homologada pelo juiz.

9 Nesta norma regula-se, em termos genéricos, a remessa para os meios judiciais comuns, sendo que nos artigos 12.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 57.º, n.º 3 se prevê casos específicos de matérias que devem ser resolvidas pelos meios judi­ ciais comuns. Alguns exemplos de jurisprudência em se discute a remessa para os meios comuns: acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29.06.2011, processo n.º 2041/08.0TBOER.L1-7, acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18.06.2008, processo n.º 1053/08-2), acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.06.2012, processo n.º 59/07.0TBCNT.C1 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.05.1978, processo n.º 067220. 10 CÂMARA, Carla e CASTELO BRANCO, Carlos, CORREIA, João, CASTANHEIRA, Sérgio, Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 8. 11 CÂMARA, Carla e CASTELO BRANCO, ob cit., p. 89.

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móveis; na negativa será competente para a habilitação o cartório notarial do domicílio do habi­ litando (e também os demais atos e termos do inventário). Na hipótese de o inventário ser proposto num cartório notarial territorialmente incompetente para a sua tramitação, o RJPI é omisso, tornando-se necessário recorrer ao regime previsto no CPC, que constitui o regime subsidiariamente aplicável, por força do artigo 82.º. Não sendo a incompetência territorial, por regra, de conhecimento oficioso, tem, portanto, de ser arguida (arti­ go 103.º, do CPC), não podendo o notário, oficiosamente, declarar a incompetência territorial do seu do seu cartório notarial, só o podendo, portanto, fazer, se a questão lhe for suscitada12. O RJPI é omisso também quanto à consequência da declaração de incompetência territorial pelo notá­ rio, pelo que rege o artigo 105.º, n.º 3, do CPC, devidamente adaptado: o notário deve remeter o processo para o cartório notarial territorialmente competente. Mas sendo vários os cartórios notariais competentes, deve previamente notificar o requerente do inventário para indicar para que cartório notarial pretende que o processo seja remetido.

IV. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL Não obstante a transferência de competência operada, o certo é que o tribunal não deixou de ter intervenção nos processos de inventário. Pode-se, todavia afirmar que a competência do tri­ bunal é uma competência excecional, já que apenas tem lugar nos casos especificamente consa­ grados na lei. Discute-se se esta transferência de competência viola o princípio constitucional de reserva do juiz, previsto no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e que impede que outra entidade, designadamente o notário, possa apreciar e decidir requerimentos das partes, que estejam em litígio sobre o objeto da decisão. Contudo, parece tal não suceder, uma vez que está assegurada a reserva do juiz e o respeito por tal garantia constitucional durante toda a trami­ tação do processo, pois certa questão pode sair da competência daquele, através da remessa das partes para os meios judiciais comuns, nos termos do artigo 16.º. Além disso, a intervenção judi­ cial tem imperativamente de se verificar pois que o legislador impõe, no artigo 66.º, n.º 1 que a decisão de partilha constante do mapa e das operações de sorteio seja homologada pelo juiz. O juiz tem assim competência exclusiva de homologação da partilha, e só depois desta é que os interessados ficam munidos de um título válido, com força executiva e vinculativa inter partes e em relação a terceiros, hábil para servir de base à realização de registos. Note-se que ainda que o inventário finde por acordo dos interessados na conferência preparatória, compete ao juiz profe­ rir decisão homologatória do acordo dos interessados, nos termos do supra citado artigo 66.º, n.º 1 aplicável por força do artigo 48.º, n.º 7. A competência do tribunal está demarcada à semelhança do que se verifica com a competên­ cia dos cartórios notariais. Com efeito, não é qualquer tribunal que tem competência para intervir no processo de inventário, prevendo-se, nos termos do artigo 3.º, n.º 7, que compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, praticar os atos que, nos termos do RJPI, sejam da competência do juiz. Desta norma, resulta aliás a competência excecional do tribunal. Importante será salientar que esta consagração de competência não abrange as questões que sejam apreciadas nos meios comuns, aplicando-se, para a determinação de competência para a análise destas, as regras sobre a competência previstas nos artigos 59.º e seguintes do CPC, pois

Neste sentido, NETO FERREIRINHA, Fernando, Processo de Inventário, Reflexões sobre o Novo Regime Jurídico – Lei nº 23/2013, de 5 de março, Coimbra, Almedina, 2014, p. 81, nota 34 e PAIVA, Eduardo e CABRITA, Helena, Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime à Luz da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, Coimbra, Coimbra Editora, p. 18. Em sentido diverso, CÂMARA, Carla e CASTELO BRANCO, ob. cit., p. 42, que defendem que a norma definidora de competência no artigo 3.º é uma norma imperativa, que deverá ser observada sob pena de ser defraudado o comando nela ínsito. Referem mais do que uma questão de competência territorial, a norma do artigo 3.º constitui uma atribuição funcional de competência a um órgão não judicial determinado, o do lugar do município do autor da sucessão, pelo que, a incompetência que, deste modo seja verificada, ainda que passível de se reconduzir a uma questão de incompetência territorial, transcende este âmbito, pelo que deve ser conhecida oficiosamente pelo notário, ainda que nenhum dos interessados tenha suscitado tal questão.

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que esta consagração não pode prevalecer sobre as regras de competência previstas na lei pro­ cessual civil13. Considerando o exemplo prático dado a propósito da competência dos cartórios notariais, supondo que efetivamente foi proposto e corre termos processo de inventário de ANACLETO num dos cartórios notariais sediados no município de Vila do Conde, se for suscitada a questão da definição da propriedade de um imóvel sito em Barcelos, havendo remessa para os meios comuns atenta a complexidade da matéria de facto em causa, a ação de reivindicação tem de ser proposta no Tribunal de Vila do Conde? A comarca do cartório notarial onde corre o processo de inventário de ANACLETO é de facto Vila do Conde e a aplicar-se o n.º 7 do artigo 3.º para a ação em que se discutirá a propriedade do imóvel seria efetivamente competente o Tribunal de Vila do Conde. Contudo, a lei processual civil, que deve prevalecer, no seu artigo 70.º, n.º 1 estabelece que as ações referentes a direitos reais sobre imóveis devem ser propostas no tribunal da situação dos bens, e logo no Tribunal de Barcelos. Das intervenções do tribunal no processo de inventário destacam-se, para além da homologa­ ção da decisão de partilha: – designar o cabeça de casal, quando todas as pessoas referidas no artigo 2080.º, do CC se escusarem ou forem removidas (artigo 2083.º, do CC); – decidir o recurso da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns (artigo 16.º, n.º 4); – decidir a impugnação do despacho determinativo da forma da partilha (artigo 57.º, n.º 4); – determinar quais os processos e incidentes que são de especial complexidade, para efeitos de aplicação dos honorários acrescidos previstos na coluna B dos Anexo I e II à Portaria n.º 278/2013, de 26.08, conforme previsto no seu artigo 18.º, n.º 4 e; – decidir a reclamação da nota final de honorários e despesas, caso o notário não proceda à revisão da nota nos exatos termos requeridos (artigo 24.º, n.º 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26.08).

V. INTERVENÇÃO DO SOLICITADOR No artigo 32.º do CPC, na redação anterior à lei n.º 41/2013, de 26 de junho, previa-se que nos inventários, independentemente da sua natureza ou valor apenas era obrigatória a intervenção de advogado para se suscitarem ou discutirem questões de direito. O legislador continua a atribuir competência aos solicitadores para exercer o mandato nos processos de inventário, independentemente do valor dos mesmos14. Contudo, continua a impor limitações no exercício desse mandato, pois que consagrou o patrocínio judiciário por advogado obrigatório em determinadas situações, as quais constam do artigo 13.º. Nos termos deste artigo 13.º é obrigatória a constituição de advogado quando no processo de inventário forem suscitadas ou discutidas questões de direito; e em caso de recurso das decisões nele proferidas. Sendo a razão de ser desta norma serem as questões de direito e o recurso discu­ tidos por intermédio de advogado abrange a mesma, no primeiro caso, tanto os interessados que suscitam a questão de direito, como os que a ele respondam, e no segundo caso, tanto os que que recorrem, como os que respondem ao recurso interposto. Assim, quando alguma parte, sem advogado constituído, suscite questão de direito, responda a questão suscitada, interponha recurso ou a ele responda, deve o notário (por aplicação do artigo 41.º, do CPC, devidamente adaptado e aplicável ex vi artigo 82.º), notificar a parte em causa para constituir advogado, deven­ do este ratificar o ato com a cominação de que, não o fazendo, aquele ficará sem efeito. Lopes Cardoso dá-nos alguns exemplos de questões de direito, considerando como tal a opo­ sição ao inventário baseada em não haver fundamento legal para a sua instauração; a impugna­ ção da competência do cabeça de casal; a impugnação da legitimidade das pessoas citadas como herdeiros, o exercício do direito de preferência; a interpretação de testamentos e escrituras

Na realidade, esperava-se uma alteração ao nível do patrocínio judiciário obrigatório, nomeadamente no que concerne à exigência de constituição de advogado para suscitar ou discutir questões de direito. Com efeito, o legislador faz diferentes imposições para apresentação do requerimento de inventário e das restantes peças processuais, consoante o interessado esteja ou não representado por mandatário, advogado ou solicitador.

Neste sentido, CÂMARA, Carla, CASTELO-BRANCO, Carlos, ob. cit., p. 43. Estabelece o artigo 302.º, n.º 3, do CPC, que para determinação do valor nos processos de inventário, atende-se à soma do valor dos bens a partilhar; quando não seja determinado o valor dos bens, atende-se ao valor constante da relação apresentada no serviço de finanças. 13

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e a forma da partilha15. Verifica-se que em nada se alterou o regime de intervenção dos solicitado­ res nos processos de inventário, já que à semelhança do regime anterior o solicitador pode ser constituído mandatário independentemente do valor do processo, mas em sede de questões de direito e de recurso não pode intervir. Na realidade, esperava-se uma alteração ao nível do patro­ cínio judiciário obrigatório, nomeadamente no que concerne à exigência de constituição de advogado para suscitar ou discutir questões de direito. Como se sabe, o solicitador tem de estar inscrito na câmara dos solicitadores para o ser efeti­ vamente (ou seja, para usar o título de solicitador), constituindo um dos requisitos de inscrição possuir uma licenciatura em direito (desde que não esteja inscrito na Ordem dos Advogados) ou uma licenciatura em solicitadoria (artigos 75.º e 99.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores). Assim sendo, o solicitador na sua formação académica estuda direito, tendo sido considerado apto. Para além disso, os conhecimentos por ele adquiridos são aprofundados no âmbito do Estágio da Câmara dos Solicitadores, cuja aptidão constitui outro dos requisitos para inscrição na Câmara dos Solicitadores. Como se pode, então compreender que o solicitador intervenha livre­ mente no processo de inventário mas, se por exemplo, o seu constituinte pretender impugnar a competência do cabeça de casal designado, pretender exercer o direito de preferência, já não o possa representar? O que vai dizer o solicitador ao seu constituinte? Que a sua competência no processo de inventário é ilimitada mas ao mesmo tempo bastante limitada? A resposta não esta­ rá certamente na ponta da língua e não restará ao solicitador outra opção senão solicitar a cola­ boração de um advogado quanto à matéria das questões de direito. O legislador continua assim a colocar os solicitadores numa situação muito ingrata e muito aquém das habilitações e competências destes profissionais, cuja área de formação e de profissão é precisamente o direito.

VI. TRAMITAÇÃO ELETRÓNICA A tramitação dos processos de inventário faz-se por meios eletrónicos através do sistema infor­ mático de tramitação de processo de inventário disponibilizado no sítio da internet, www.inventarios.pt – , sempre que possível de forma a tornar o processo mais fácil e célere. Verifica-se que o legislador privilegiou, à semelhança do que tem vindo a ocorrer em outras áreas processuais, a prática de atos por via eletrónica (em detrimento da apresentação de peças em papel ou via telecópia), designadamente através da plataforma Citius. O artigo 6.º, n.º 1 prevê que a apresentação do requerimento de inventário, da eventual oposi­ ção, bem como de todos os atos subsequentes deve realizar-se, sempre que possível, através de meios eletrónicos, em sítio na internet, nos termos regulamentados pela Portaria n.º 278/2013, de 26.08. Note-se que esta norma ressalva “sempre que possível”, querendo com isso contemplar os casos em que os interessados não estão representados por mandatário, sendo-lhes permitido entregar requerimentos em papel. Não se está aqui a falar da apresentação diretamente pelas partes de requerimentos em que se suscitem questões de direito, mas, por exemplo, da mera apresentação de um requerimento a requerer a justificação de falta a uma diligência. Com efeito, o legislador faz diferentes imposições para apresentação do requerimento de inventário e das restantes peças processuais, consoante o interessado esteja ou não representado por mandatário, advogado ou solicitador. Ora vejamos. A referida portaria regulamenta, no seu artigo 5.º, as formas de apresentação do requerimento de inventário, que obedece a modelo aprovado constante do anexo III da mesma. Esta norma impõe que a apresentação seja efetuada no sistema informático de tramitação do processo de inventário quando o requerente esteja representado por mandatário judicial, através da utilização do certificado digital que comprove a respetiva qualidade16, consistindo neste caso a ­apresentação LOPES CARDOSO, João António, Partilhas Judiciais, Vol. I, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, pp. 66 e 67. Sobre o acesso ao sistema informático de tramitação do processo de inventário, vide artigo 2.º da Portaria n.º 278/2013, de 26.08.

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no preenchimento do formulário eletrónico ali disponibilizado. No caso contrário, o interessado pode optar entre apresentar o requerimento de inventário através do referido sistema, através da utilização do certificado digital constante do cartão de cidadão ou em suporte físico no cartório notarial. Quanto às restantes peças processuais rege o disposto no artigo 6.º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, impondo igualmente o legislador que o mandatário apresente as mesmas atra­ vés do sistema informático de tramitação do processo de inventário e dando ao interessado que as apresenta sem qualquer representação a faculdade de opção entre a apresentação por via eletrónica e em papel (por remessa postal, sob registo, para o cartório ou entrega direta neste).

VII. CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA No regime vigente até à reforma do processo de inventário, previa-se a realização de apenas uma “conferência de interessados” destinada a todas as finalidades que o novo regime reparte entre a “conferência preparatória” e a “conferência de interessados”. Era na conferência única que se preparava a composição dos quinhões e se lhes atribuíam valores, se compunham os lotes e seus valores, se deliberava a realização de sorteios, a adjudica­ ção de bens, a venda ou a alienação de bens da herança e divisão do seu produto, a aprovação do passivo, a forma de cumprimento e o cumprimento dos restantes encargos da herança e se resolviam ainda questões pendentes suscetíveis de influir na partilha (anterior artigo 1353.º, do CPC). Era também na própria conferência que se tentava o acordo dos interessados, total ou par­ cial, para a partilha da herança e, na falta do mesmo, se possível realizavam-se logo as competen­ tes licitações (anteriores artigos 1353.º, n.º 6 e 1370.º do CPC). O legislador assumindo que uma parte das matérias a submeter à conferência tinha carácter meramente instrumental ou prejudicial da adjudicação dos bens, decidiu incidir em duas a primi­ tiva conferência de interessados, criando o que chamou de “conferência preparatória” e reservan­ do para a “conferência de interessados “em sentido estrito, no essencial, a adjudicação de bens17. a) Saneamento do processo e marcação da conferência preparatória A conferência preparatória só deve ser marcada quando o processo se encontre devidamente sanado, ou seja, estejam resolvidas as questões suscitadas suscetíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar, conforme resulta do n.º 1 do artigo 47.º. Entre as questões que devem estar resolvidas aquando da marcação pelo notário desta conferência, que podem influir na partilha, encontramos, por exemplo a oposição ao inventário [artigo 30.º, n.º 1, alínea a)]. O notário designa dia para a realização da conferência preparatória, notificando os interessa­ dos para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por mandatário com poderes especiais, podendo confiar o mandato a qualquer outro interessado (artigo 47.º, n.º 2). Note-se que devem ser notificados todos os interessados citados para os termos do inventário, nos termos do artigo 28.º, e não apenas os interessados diretos na partilha, e na notificação o notário deve fazer menção ao objeto da conferência (artigo 47.º, n.º 3). No caso de os interessados pretenderem fazer-se representar, torna-se necessário que na pro­ curação seja indicado o inventariado e os atos que podem ser praticados na conferência em nome e interesse do mandante (por ex. o modo por que deve realizar-se a composição do qui­ nhão hereditário do representado, aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados e demais encargos). Apesar de a lei apenas se referir à concessão de poderes especiais no caso de mandatários, parece evidente que o mesmo sucede quanto à confiança de mandato a outro interessado, devendo a procuração expressamente conferir poderes para representar o interessa­ do na conferência preparatória18. Prevê o n.º 4 do artigo 47.º que os interessados diretos na partilha que residam na área do município (e apenas estes) são notificados com a obrigação de comparência pessoal, ou de se 17 18

Atendendo estritamente à letra da lei, não há dúvida que o que interessa é a percentagem dos titulares presentes e não de qualquer proporção de quota que lhes compita na herança.

PAIVA, Eduardo Sousa; e CABRITA, Helena, ob. cit., pp. 121 e 122. PAIVA, Eduardo e CABRITA, Helena, ob. cit., p. 128.

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fazerem representar por mandatário com poderes especiais, sob cominação de pagamento de taxa suplementar, a qual se encontra prevista no artigo 28.º Portaria n.º 278/2013, de 26.08 e cor­ responde a meia unidade de conta processual (€ 51,00). Admite-se, excecionalmente o adiamento da conferência preparatória, por determinação do notário ou a requerimento de qualquer interessado, mas apenas por uma vez, se se verificarem cumulativamente dois requisitos. São eles, a falta de algum interessado e a existência de razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões (artigo 47.º, n.º 5). Deste modo, a falta de algum dos interessados, desde que regularmente notificado, não constitui, por si só, fundamento para o adiamento da conferência, sendo ainda necessário que não se tenha feito representar por procurador com poderes especiais e que haja concretas razões para se poder considerar viável o acordo quanto à partilha. b) Assuntos a submeter à conferência preparatória Na conferência preparatória tem lugar a deliberação sobre a composição dos quinhões dos interessados e, na falta de deliberação sobre esta matéria sobre quaisquer questões cuja resolu­ ção possa influir na partilha (artigo 48.º, n.os 1 e 4); o pedido de adjudicação de bens indivisíveis (artigo 34.º) e a aprovação do passivo e a forma de cumprimentos dos legados e encargos, caso existam (artigo 48.º, n.º 3). Como já o dissemos, a propósito da marcação da conferência preparatória, constitui exigência legal que o notário, ao convocar a conferência, indique o seu objeto concreto (artigo 47.º, n.º 3). Tal exigência existe, não só para que os intervenientes se preparem devidamente, mas também por forma a delimitar a ordem de trabalhos, em concretização dos princípios da boa-fé e da cele­ ridade processuais. Assim, a título meramente exemplificativo, num processo de inventário em que há apenas um bem imóvel a partilhar e não há passivo nem outros encargos da herança, apenas importará submeter à conferência preparatória a deliberação sobre se o bem será adjudi­ cado ou vendido e por que valor. Já quando estão em causa vários bens, fará todo o sentido que a conferência delibere sobre a formação de lotes e se os mesmos devem ser objeto de sorteio, de venda ou de licitação. Deduz-se do n.º 5 do artigo 48.º que as deliberações tomadas sobre assunto omitido não são obrigatórias para os que não tenham comparecido ou não as tenham votado e que existem deli­ berações que vinculam os que não comparecerem quando devidamente notificados – delibera­ ções sobre quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha, se não se chegar a acordo sobre a composição dos quinhões (artigo 48.º, n.º 4)19. O legislador consagra no novo regime a possibilidade de os interessados deliberarem, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por um dos seguintes modos (artigo 48.º, n.º1): a) Designando as verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados; b) Indicando as verbas ou lotes e respetivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objeto de sorteio pelos interessados; c) Acordando na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados. Estas deliberações podem ser precedidas de avaliação (realizada nos termos do artigo 33.º), requerida pelos interessados ou oficiosamente determinada pelo notário, destinada a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados, conforme resulta do n.º 2 do artigo 48.º. Verifica-se que o legislador abandonou o requisito da unanimidade a que se referia o artigo anterior 1353.º, n.º 1 do CPC, bastando agora a maioria de dois terços para a obtenção da Como as questões que possam influir na partilha já tinham de estar resolvidas antes da marcação da conferência preparatória, por imperativo do artigo 47.º, n.º 1, as questões a que se reporta do artigo 48.º, n.º 4 hão-de ter sido suscitadas na conferência e hão-de ser, necessariamente, diferentes daquelas. Também existem deliberações que só vinculam quem as vota – dívidas aprovadas unicamente por alguns dos interessados (artigo 42.º).

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composição dos quinhões. O legislador fê-lo com o desiderato de impedir a frustração de uma solução para eventual composição dos quinhões, frustração que um qualquer interessado, inde­ pendentemente do valor do seu quinhão, poderia obter. A maioria exigida não é determinada pela quota de cada interessado, mas sim pelo número de interessados, devendo ser aferida tendo em conta todos os titulares do direito à herança e não apenas os interessados presentes, uma vez que a lei refere expressamente que a deliberação é tomada por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, não especificando que ape­ nas são tomados em consideração os interessados presentes. Poderá colocar-se a questão de saber se para apuramento dos dois terços deverá ser atendida a quota de cada titular, ou se sendo o mesmo chamado à herança por via do direito de represen­ tação (artigo 2039.º, do CC), se deverá atender à quota que caberia ao herdeiro que não pôde ou não quis aceitar a herança. Atendendo estritamente à letra da lei, não há dúvida que o que inte­ ressa é a percentagem dos titulares presentes e não de qualquer proporção de quota que lhes compita na herança20. A intenção do legislador ao tornar irrelevante a proporção da quota dos titulares do direito à herança parece ser clara: foi proteger os titulares de menores quinhões, impedindo soluções alcançadas pelos que fossem portadores de direito que, por si só, formassem a maioria. Vejamos um exemplo prático ANACLETO faleceu em 2013 e deixou três filhos, BERNARDINO, CLÓVIS e DIONÍSIO. ANACLETO fez testamento em 2009 no qual deixou a seu filho CLÓVIS a sua quota disponível. Neste caso, CLÓVIS é detentor de uma quota de 5/9 que é substancialmente maior que à de BERNARDINO e à de DIONÍSIO, que são titulares de uma quota de 2/9 cada. Não obstante, BER­ NANDINO e DIONÍSIO podem deliberar por maioria de 2/3 contra CLÓVIS. Conforme referem os Juízes de Direito EDUARDO PAIVA e HELENA CABRITA esta possibilidade consagrada no novo regime pode concretizar uma inconstitucionalidade, por violação do princí­ pio da igualdade, prescrito no artigo 13.º, da CRP. Igualmente se pode colocar a questão sobre a violação do princípio da intangibilidade qualitativa da legítima, previsto no artigo 2163.º, do CC, que proíbe o autor da sucessão de designar os bens que devam preencher a legítima contra a vontade do herdeiro legitimário21. Vejamos, se três irmãos com direitos quantitativamente iguais na herança de um progenitor comum, dois deles podem selecionar para si, por acordo entre eles, os bens que lhes aprouver, destinando ao terceiro irmão, os bens que, também eles, decidirem por não lhes interessarem. E isto claramente contra a vontade de um deles, apesar de ser herdeiro legitimário como os demais. Saliente-se que esta maioria de dois terços poderá ser determinada fundamentalmente por herdeiros testamentários aliados a alguns herdeiros legitimários, pois que o legislador nem sequer exige que “maioria exigida” seja de herdeiros da mesma natureza. Note-se, que na eventualidade de na conferência preparatória os interessados acordarem completamente na partilha (seja por acordo de todos seja por deliberação de maioria de dois terços dos titulares do direito à herança), o inventário porque atingiu a sua finalidade, finda (artigo 48.º, n.º 6).

VIII. LICITAÇÕES MEDIANTE PROPOSTAS EM CARTA FECHADA E ADJUDICAÇÃO POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR O artigo 49.º aponta como finalidade da conferência de interessados a adjudicação dos bens, pelo que o processo apenas prossegue com a realização desta diligência quando ainda existam bens a adjudicar. O artigo 50.º preceitua que a adjudicação é efetuada mediante propostas em carta fechada e o artigo 56.º prevê que todas as licitações previstas no âmbito do processo de inventário são efetuadas mediante propostas em carta fechada. Assim, lógico será considerar que 20 21

Neste sentido, CÂMARA, Carla, ob. cit. pp. 214 e 215. Neste sentido, RAMIÃO, Tomé D´Almeida, ob. cit., p. 130.

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o que se pretende é submeter os bens da herança a licitação entre os interessados, embora sujei­ ta àquela forma: mediante propostas em carta fechada. O atual regime difere do modelo anterior, previsto no CPC, bem como do introduzido pela Lei n.º 29/2009, de 29.06 (artigos 1363.º e 44.º respetivamente): a licitação consistia numa arremata­ ção22. Com esta alteração de regime pretendeu-se sobretudo responder às críticas daqueles que defendiam que as licitações representavam uma forma de favorecer os interessados mais pode­ rosos economicamente, não permitindo uma partilha equitativa dos bens da herança23. Mas o certo, é que a licitação através da arrematação tinha a suas vantagens: permitia de forma clara e transparente, aumentar o valor dos bens, evitando a necessidade da sua avaliação. Com efeito, pela natural competição entre os interessados, o valor dos bens aumentava, e com isso todos os herdeiros saiam beneficiados, tanto mais que dessa licitação não podia resultar depre­ ciação do valor dos bens. As licitações mediante propostas em carta fechada consistem na apresentação de uma pro­ posta, fechada numa carta, com a indicação do valor que oferece, para cada bem (ou lote) cada pessoa que pretende que o bem lhe seja adjudicado, pressupondo-se um desconhecimento relativamente às propostas dos demais interessados proponentes. As propostas devem identifi­ car o proponente, o bem (ou lote) a que se destinam e o valor oferecido, não podendo ser inferior a 85 % do valor base do respetivo bem (artigo 50.º, n.º 2). Apresentadas as propostas, o notário procede, pessoalmente, à respetiva abertura, salvo nos casos em que aquela forma de alienação não seja admissível24 (artigo 50.º, n.º1), declarando a identidade do proponente, o bem a que se destina e o valor proposto. À adjudicação aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no CPC quanto à venda executiva mediante propostas em carta, conforme resulta do artigo 50.º, n.º 3. Assim: – Os bens são adjudicados a quem fizer a proposta de maior valor, mas, se o valor mais eleva­ do for oferecido por mais de um proponente abre-se logo licitação entre eles, salvo se declararem que pretendem adquirir os bens em compropriedade (artigo 820.º, n.º 2, do CPC). – Estando presente só um dos proponentes do maior valor, pode esse cobrir a proposta dos outros; se nenhum deles estiver presente ou nenhum quiser cobrir a proposta dos outros, procede-se a sorteio para determinar a proposta que deve prevalecer (artigo 820.º, n.º 3, do CPC). – As propostas, uma vez apresentadas, só podem ser retiradas se a abertura for adiada por mais de 90 dias depois do primeiro designado (artigo 820.º, n.º 4, do CPC). As irregularidades relativas à abertura, licitação, sorteio, apreciação e aceitação das propostas só podem ser arguidas no próprio ato (artigo 822.º, n.º 1, do CPC). – Da ata da conferência ficará a constar a abertura e a aceitação das propostas, mencionando­ -se, para cada proposta aceite, o nome do proponente, as verbas a que correspondem os bens e o seu valor (artigo 826.º, do CPC). O legislador tomou ainda a opção de trazer a negociação particular própria da ação executiva para o processo de inventário. Estipulou no artigo 51.º que os bens que não forem adjudicados mediante propostas em carta fechada são adjudicados por negociação particular, a realizar pelo notário, aplicando-se, com as devidas adaptações as mesmas regras previstas para essa modali­ dade de venda na ação executiva (artigo 51.º), nomeadamente o artigo 833.º, do CPC. Posto isto, o notário deve realizar a adjudicação, abrangendo nela os interessados no inventá­ rio (licitantes ou não), pois todos devem estar em pé de igualdade na nova tentativa de adjudica­ ção. Para tanto, o notário poderá conduzir pessoalmente a negociação, contactando individual­ mente cada interessado no sentido de apurar a melhor oferta, ou então designar, por acordo uma O legislador inspirou-se no modelo da ação executiva, na qual a arrematação em hasta pública foi substituída pela venda dos bens mediante propostas em carta fechada [artigos 811.º, n.º 1, alínea a) e 816.º e seguintes, do CPC]. 23 Concordamos com TOMÉ D´ALMEIDA RAMIÃO, Juiz de Direito, que neste sentido se pronuncia em RAMIÃO, Tomé d`Almeida, ob. cit., p. 135. 24 V. g. no caso de instrumentos financeiros e outras mercadorias que tenham cotação nos mercados financeiros que só aqui podem ser transacionados (artigo 830.º do CPC). 22

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pessoa para ficar incumbida, como mandatário, de efetuar a adjudicação, a qual pode ser o agen­ te de execução nomeado pelo cabeça de casal (artigo 833.º, n.os 1 e 2, do CPC). Na falta de acordo ou havendo oposição, o notário procederá a essa designação, preferencialmente um mediador oficial, tratando-se de imóveis (artigo 833.º, n.º 3, do CPC).

IX. CONCLUSÕES Desde 2 de setembro de 2013 que os processos de inventário estão nas mãos dos notários. Desde então, os juízes não são competentes para tramitar estes processos, com exceção dos que aquela data já se encontravam pendentes nos tribunais. Mas os juízes não deixaram de intervir nos processos de inventário, sendo-lhes atribuídas determinadas competências, desde logo a homologação da decisão de partilha. Os processos de inventário parecem ir num bom caminho, sendo, contudo ainda insuficiente o período de aplicação do RJPI para se concluir sobre a concretização dos objetivos visados com a sua aprovação. Importante para essa concretização será, sem dúvida, que os notários tenham a sensibilidade de determinar se certa questão deve ser por eles decidida ou nos meios comuns, pois que a remessa dos interessados para os tribunais só excecionalmente se deve verificar. Esperava-se que o legislador aproveita-se o momento para suprimir as limitações impostas aos solicitadores em matéria de discussão e suscitação de questões de direito, já que estas não vão de encontro com as habilitações e competências destes profissionais. Com vista a imprimir maior celeridade aos processos de inventário, o legislador instituiu a sua tramitação eletrónica, tendo para isso criado o sistema informático de tramitação do processo de inventário e regulamentado esta matéria em portaria, da qual resulta o uso obrigatório daquele sistema pelos mandatários dos interessados. A conferência preparatória consistiu também numa principais alterações ao regime do proces­ so de inventário. Nela está prevista a possibilidade de os interessados deliberem na composição dos quinhões sem ser necessária a unanimidade. Por outro lado, na conferência de interessados, que poderá não ter lugar se na conferência preparatória forem adjudicados todos os bens da herança, numa clara inspiração no modelo da ação executiva, as licitações são efetuadas median­ te propostas em carta fechada, e em caso de frustração destas pela adjudicação por negociação particular. As alterações analisadas aparentam ser positivas, pois visam a celeridade destes processos, mas têm certos pontos fracos que foram aludidos e que só com o tempo se verificará se se sobre­ põem aos proveitos obtidos. A esperança de que a alteração legislativa em matéria de interven­ ção do solicitador surgirá no futuro, ainda existe, mas para já resta respeitar a lei tal como está prevista.

O artigo está escrito segundo o novo acordo ortográfico.

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SANÇÕES ACESSÓRIAS

MANUEL DE ALMEIDA Mestre em Solicitadoria

PREÂMBULO

O

Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89 de 17 de Outubro, Decreto-Lei n.º 244/95 de 14 de Setembro e Lei n.º 109/2001 de 24 de Dezembro, institui o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo. O aparecimento do direito das contraordenações, especialmente orientado para o efetivo reforço das garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração, ficou a dever-se à tendência crescente da intervenção do Estado, que progressivamente vem alargando a sua ação de harmonização aos domínios da eco­ nomia, saúde, educação, cultura, etc. Perante tal facto, tornou-se urgente que entre o direito de ordenação social e o direito penal houvesse uma distinção e autonomia clara entre estas duas vertentes. Pretende-se com o referido Decreto-Lei uma política equilibrada, naquelas áreas em que as condutas, apesar de socialmente intoleráveis, não atingem a dignidade penal.

SANÇÕES ACESSÓRIAS Prevista nos termos do artigo 21.º do RGCO, uma sanção acessória, como o próprio nome indica, é uma sanção que poderá ser aplicada acessoriamente a uma sanção principal, sendo certo que esta sanção será aplicada em função da gravidade da infração e culpa do agente. Segundo o n.º 1 do artigo 21.º, esta poderá ir desde: a) Perda de objetos pertencentes ao agente; b) Interdição do exercício de profissões ou atividades cujo desempenho dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública; c) Privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidades ou serviços públicos; d) Privação do direito de participar em feiras ou mercados; e) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos que tenham por objeto a empreitada ou a concessão de obras públicas, o fornecimento de bens ou serviços, a concessão de serviços públicos e a atribuição de licenças e alvarás; f ) Encerramento de estabelecimento cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença de autoridade administrativa; g) Suspensão de autorizações, licenças e alvarás.

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Sanções Acessórias

RESUMO As sanções acessórias são sanções que poderão ser aplicadas acessoriamente a uma sanção principal, sendo que, deverá ser aplicada em função da gravidade da infração e culpa do agente, sendo certo que, esta sanção será aplicada em função da gravidade da infração e culpa do agente. Contudo, casos há em que não é permitida a dispensa da aplicação da sanção acessória. Pretende-se desta forma salvaguardar que a aplicação das sanções acessórias não seja feita de uma forma automática, uma vez que poderíamos estar perante a perda de direitos civis, profissionais e políticos. Se assim não fosse, poderíamos estar perante uma inconstitucionalidade. Assim, desta forma, para além de se ter que preencher todos os requisitos legais previstos, seja também formulado um juízo fundamentado sobre as razões ligadas à gravidade da infração e à culpa do agente, que justifiquem a aplicação da sanção.

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Manuel De Almeida

Contudo, para a aplicação destas sanções acessórias, que são pressupostos gerais, como a gravidade da infração e a culpa do agente, indica-nos o artigo 21.º A do RGCO os pressupostos específicos para cada um dos tipos de sanções aplicados nas alíneas a) a g) do n.º 1 do artigo 21.º do RGCO, que passaremos a abordar. A referência feita à gravidade da infração e à culpa do agente no n.º 1 do artigo 21.º do RGCO, pretende salvaguardar que a aplicação das sanções acessórias não seja feita de uma forma automática, mas sim, através de uma apreciação minuciosa e proporcional, pela autoridade res­ ponsável a quem compete aplicar as sanções (cfr. artigo 33.º do RGCO), caso contrário, estaríamos perante uma inconstitucionalidade, uma vez que se assim não fosse, poderia envolver a perda de direitos civis, profissionais e políticos (cfr. n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portu­ guesa). Pretende-se desta forma que, para a aplicação das sanções, para além de ter que preen­ cher todos os requisitos legais previstos, deverá também ser formulado um juízo fundamentado sobre as razões ligadas à gravidade da infração e à culpa do agente, que justifiquem a aplicação da sanção. Sobre este assunto, reproduzimos aqui excerto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 327/99, de 26-05-1999, para uma melhor compreensão. Na verdade, o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição dispõe que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”. Esta norma não proíbe que as penas possam traduzir-se, elas próprias, na perda de direitos civis, profissionais ou políticos (por exemplo, na interdição do exercício de uma profissão por determinado período de tempo ou na demissão da função públi­ ca). A questão é que tal pena deve ser aplicada pelo juiz de acordo com as regras competentes (princípio da culpa, regra da tipificação, adequação da pena à gravidade da infração, etc.). A nor­ ma em causa proíbe, isso sim, que essa perda de direitos conduza, automaticamente (i. e. por mero efeito da lei e independentemente de decisão judicial), à condenação em certas penas ou pela prática de certos crimes. Feito o esclarecimento do n.º 1 do artigo 21.º do RGCO, estamos agora em condições de entender em que circunstâncias se podem/devem aplicar as sanções acessórias, previstas nas alíneas a) a g). Assim, a perda de objetos pertencentes ao agente, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do RGCO como sanção acessória, poderá ser aplicada se esse objeto ou objetos serviram ou estavam destinados a servir a prática de uma contraordenação ou foram produzidos por meio da prática desta, conforme determinado no n.º 1 do artigo 21.º-A do RGCO. Situação diferente, e que pode gerar confusão, é a prevista no artigo 22.º do RGCO, onde a perda de objetos tem um carácter de medida de segurança. No caso do artigo 21.º n.º 1 a) RGCO, este, tem um carácter punitivo, dirigindo-se contra o autor. Não deveremos assim esquecer, que sendo uma sanção, a sua aplicação estará sempre dependente da gravidade da infração e da culpa do agente, e deve­ rá ser sempre afastada se ela importar uma lesão superior àquela que resulta da própria sanção principal ou quando a prática da infração for por negligência. Por fim, os objetos que podem ser declarados perdidos, nos termos do artigo 21.º e 21.º-A, podem ser apreendidos provisoriamen­ te, sendo restituídos logo que a decisão condenatória se torne definitiva (cfr. artigo 48.º-A do RGCO). A interdição do exercício de profissões ou atividades cujo desempenho dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública nos termos do artigo 21.º alí­ nea b) do RGCO, só pode ser decretada quando há uma relação entre a contraordenação e a função ou atividade exercida, mas também tem que ser demonstrado, pela autoridade responsá­ vel a quem compete aplicar as sanções, que há inequivocamente um grave abuso da função ou violação grave dos deveres que o exercício impõem. Repare-se pois no texto do artigo 21.º-A n.º 2 do RGCO “flagrante e grave abuso da função que exerce ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes”. Uma vez mais, estamos perante um direito protegido consti­ tucionalmente, pelo que o legislador deu uma ênfase especial a quatro pontos: 1. Flagrante, que tem como sinónimos evidente e manifesto; 2. Grave abuso. Este comportamento deverá produzir ou acarretar prejuízos para o serviço; 3. Manifesta e grave violação. Deve ser clara, expressa, inequívoca e evidente relativamen­ te aos deveres que o exercício lhe impõe; 4. Inerentes. Significa que são os deveres próprios da sua função e não os deveres gerais, como a hombridade, respeito, correção, isenção, etc.

“(…) uma sanção acessória é uma sanção que poderá ser aplicada acessoriamente a uma sanção principal (…)” “Pretende-se salvaguardar que a aplicação das sanções acessórias não seja feita de uma forma automática (…).” “(…) deverá também ser formulado um juízo fundamentado sobre as razões ligadas à gravidade da infração e à culpa do agente (…)” “(…) a sua aplicação estará sempre dependente da gravidade da infração e da culpa do agente (…)”

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Sanções Acessórias

Quando seja de aplicar esta sanção acessória, o procedimento a seguir é a comunicação, por parte do tribunal da decisão que decreta esta proibição ao dirigente do serviço ou organismo, nos termos do artigo 499.º n.º 1 e 2 do CPP. As sanções acessórias previstas nas normas n.º 3, 4, 5 e 6 do artigo 21.º-A do RGCO só poderão ser aplicadas e decretadas quando as contraordenações tiverem sido praticadas no exercício ou por causa das atividades com que se relacionem as sanções, ou seja, terá que haver uma conexão, uma relação objetiva e íntima entre as atividades e as contraordenações. O n.º 2 do artigo 21.º do RGCO menciona que “As sanções referidas nas alíneas b) a g) do número anterior (n.º 1) têm a duração máxima de dois anos, contados a partir da decisão condenatória definitiva”. Ora, esta decisão condenatória definitiva deve ser interpretada como remetendo ao momento em que a decisão final se torna efetivamente definitiva. Na realidade, são vários os organismos com poder para aplicar estas decisões, assim: – Decisão administrativa: tornam-se definitivas se não forem impugnadas judicialmente no prazo de 20 dias a contar do conhecimento do arguido (cfr. artigo 59.º n.º 3 do RGCO); – Decisões tributárias: tornam-se definitivas se não forem objeto de recurso para o tribunal de 1.ª Instância, no prazo de 20 dias após a sua notificação (cfr. artigo 80.º n.º 1 do RGIT), contados nos termos do artigo 60.º do RGCO, ou seja, suspende-se aos sábados, domingos e feriados;

“(…) estamos perante um direito protegido constitucionalmente, pelo que, o legislador deu uma ênfase especial (…)”.

– Decisões judiciais de Tribunais de 1.ª Instância: tornam-se definitivas se não forem impugnadas no prazo de 10 dias (cfr. artigo 74.º n.º 1 do RGCO), contados com as regras estabelecidas no artigo 144.º do CPC, ou seja é contínuo, suspendendo-se no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes; – Decisões dos Tribunais da Relação: tornam-se definitivas a partir do momento em que não pode ser requerida a sua anulação, que coincide com o termo do prazo para interposi­ ção de recurso, ou seja, 15 dias (cfr. artigo 411.º n.º 1 do CPP); – Decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância: tornam-se definitivas se não forem impugnadas no prazo de 20 dias a contar da notificação do despacho judicial de condena­ ção, ou da audiência do julgamento se o arguido a ela tiver comparecido, ou da notificação da sentença, no caso de não ter comparecido (cfr. artigo 83.º n.º 3 do RGIT); – Acórdãos condenatórios do STA e dos Tribunais Centrais Administrativos: tornam-se definitivos se não for arguida a sua nulidade ou pedida a respetiva reforma no prazo de 10 dias (cfr. artigo 153.º do CPC) ou não for interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Por fim, o n.º 3 do artigo 21.º do RGCO prevê a possibilidade de determinar dar publicidade à punição por contraordenação. Esta publicidade da decisão condenatória a pessoas cole­ tivas ou entidades equiparadas é publicada, sempre, quando sejam aplicadas as penas de admoestação, interdição do exercício de atividade e de encerramento de estabelecimento, sendo facultativo nos restantes casos, nos termos do artigo 90.º-M do Código Penal. Esta sentença de publicidade da decisão condenatória efetiva-se: – A expensas do condenado; – Em meio de comunicação social a determinar pelo tribunal; – Através da afixação de edital, por um período não inferior a 30 dias. Na prescrição das sanções acessórias, artigo 31.º do RGCO, aplica-se o regime previsto para a prescrição da coima, ou seja, artigo 29.º e 30.º do RGCO. Assim, para os casos previstos no artigo 17.º n.º 1 do RGCO (montante das coimas para pessoas singulares) o prazo é de três anos (artigo 29.º n.º 1 a) do RGCO, sendo de um ano [artigo 29.º n.º 1 b) do RGCO, para os restantes casos do artigo 17.º n.º 2 e 3 do RGCO (montante das coimas para pessoas colectivas e negligência). Estes

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Manuel De Almeida

prazos contam-se a partir do carácter definitivo ou do trânsito em julgado, conforme já foi dito anteriormente, artigo 29.º n.º 2 do RGCO]. Quanto à prescrição das sanções acessórias previstas nas alíneas a), b) e c) do artigo 30.º do RGCO, esta pode ser suspensa ou interrompida. Artigo 30.º Suspensão da prescrição da coima A prescrição da coima suspende-se durante o tempo em que: a) Por força da lei a execução não pode começar ou não pode continuar a ter lugar; b) A execução foi interrompida; c) Foram concedidas facilidades de pagamento. Assim, existe suspensão quando o tempo decorrido antes da verificação da respetiva causa conta para a prescrição, juntando-se ao tempo decorrido após a causa ter desaparecido. Já no que diz respeito a interrupção, esta é uma situação bem diferente, uma vez que o tempo decorrido antes da causa interruptiva fica sem efeito, devendo assim iniciar-se novo período, logo que ela (causa) desapareça.

O artigo está escrito segundo o novo acordo ortográfico.

ABREVIATURAS RGCO – Regime Geral das Contra-Ordenações RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias CRP – Constituição da República Portuguesa CP – Código Penal CPC – Código do Processo Civil CPP – Código de Processo Penal CE – Código da Estrada CT – Código do Trabalho

Bibliografia

Webgrafia

CÓDIGO PENAL, 2009. 4.ª Edição. Almedina. CÓDIGO DO PROCESSO PENAL, 2009. Almedina. NETO, A., 2009. Novo Código do Trabalho e Legislação Complementar – Anotados. Ed. Ediforum REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS, 2009. Ministério das Finanças e da Administração Pública. SANTOS, M., S., 2009. Contra-Ordenações, anotações ao regime geral. 5.ª ed. Vislis Editores

www.pgdlisboa.pt www.stj.pt www.igf.min-financas.pt http://pt.wikipedia.org

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NOTAS AO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL PRÉ-EXECUTIVO (PEPEX) A EXPANSÃO DA COMPETÊNCIA DO AGENTE DE EXECUÇÃO NO ATUAL PARADIGMA DA AÇÃO EXECUTIVA RUI PINTO Professor Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa

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Notas Ao Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (pepex)

RESUMO Aprovada a 17 de Abril, a Proposta de Lei n.º 204/ XII de Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (PEPEX), ganhou forma em diploma como Lei n.º 32/2014, de 30 de maio. Com o PEPEX a execução puramente administrativa de dívidas em Portugal saiu da clandestinidade. O PePEX é na sua aparência um procedimento autonomizado de clarificação da situação patrimonial do devedor antes da ação executiva e que vem reunir sob uma solução unitária vários instrumentos que já existiam no seio da ação executiva na forma sumária. Na pratica, do lado do devedor, trata-se de medida de constrição do devedor ao cumprimento, uma soft measure executiva: o credor não precisa de pedir que o deve pague; basta pedir que todos fiquem a saber que este é um devedor. O que se pode, no entanto, perguntar é se, em especial, há suficiente aparência de direito do credor, para ela ter lugar, e se, em geral, e seja qual for o diploma, se esta pressão sobre o devedor é constitucional. Do lado do credor é também uma via rápida para a obtenção de certidão de incobrabilidade da dívida.

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Rui Pinto

§ 1.º REGIME LEGAL 1. NOÇÃO, OBJETO E CONDIÇÕES I. Aprovada a 17 de Abril, a Proposta de Lei n.º 204/XII de Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (PEPEX), ganhou forma em diploma como Lei n.º 32/2014, de 30 de maio. O dito regime entrará em vigo a 1 de Setembro de 2014, conforme o seu artigo 34.º. Na versão de projeto de 2013 o Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (PEPEX) era um “proce­ dimento extrajudicial e pré-executivo, tendente à avaliação prévia do património do devedor e a sua inclusão na lista pública prevista no Decreto-lei n.º 201/2003, de 10 de Setembro”. O adjetivo “extrajudicial” é importante: não estamos perante o exercício do direito de ação, não estamos na função jurisdicional, nem no plano orgânico (não há tribunal), nem no plano procedimental (não se pede sentença), nem no plano do objeto (não se dirime um litígio, declarando o direito). Nenhum despacho nele seja proferido certifica um direito ou facto com valor de caso julgado. Ora, tendo em conta que o processo executivo também tem natureza não jurisdicional, trata­ -se de um procedimento administrativo com um função eventualmente preparatória de uma execução. II. No Decreto-lei n.º 225/2014, de 10 de Setembro, a natureza e fins, são, aparentemente, mais amplos, segundo o artigo 2.º “O procedimento extrajudicial pré-executivo é um procedimen­ to de natureza facultativa que se destina, [a] entre outras finalidades expressamente previstas na presente lei, [b] à identificação de bens penhoráveis através da disponibilização de informação e consulta às bases de dados de acesso direto eletrónico previstas no Código de Processo Civil, (…) para os processos de execução cuja disponibilização ou consulta não dependa de prévio des­ pacho judicial”. Portanto, a lei dá-lhe um campo potencial de uso significativo, como teremos oportunidade de ver. Na realidade, trata-se de uma soft measure executiva pois pode promover que o execu­ tado pague a dívida, ainda que a prestações, mas, sobretudo, que o seu nome possa ficar na lista pública de devedores. III. O recurso ao PePEx é meramente facultativo: já no Projeto se lia “não é obrigatório” (artigo 1.º n.º 2) e agora se apresenta com “procedimento de natureza facultativa”. Citando a justificação da proposta do Verão de 2013 “A fase pré-executiva é opcional, o credor pode desde logo optar por intentar a execução, sempre que entenda que não se torna neces­ sário promover a fase pré-executiva (por exemplo quando detém de garantia real sobre os bens a penhorar)”. Neste sentido, encontramos aqui uma expressão pré-judicial do princípio dispositivo. Já no Projeto se lia algo desnecessário: este procedimento “depende do cumprimento dos requisitos legalmente estabelecidos” (artigo 1.º n.º 2), o que, por outras palavras, está agora dito no corpo do n.º 3. IV. Quais são os requisitos e âmbito objetivo agora? São os que se acham no artigo 2.º in fine e no artigo 3.º A saber: a) O requerente esteja munido de título executivo que reúna as condições para aplicação da forma sumária do processo comum de execução para pagamento de quantia certa, nos termos do artigo 550.º do Código de Processo Civil; b) A dívida seja certa, exigível e líquida; c) O requerente indique o seu número de identificação fiscal em Portugal, bem como o do requerido.

Com o PEPEX a execução puramente administrativa de dívidas em Portugal saiu da clandestinidade. O PePEX é na sua aparência um procedimento autonomizado de clarificação da situação patrimonial do devedor antes da ação executiva e que vem reunir sob uma solução unitária vários instrumentos que já existiam no seio da ação executiva na forma sumária.

Quanto ao primeiro pressuposto há que notar desde já que na realidade ele entrega dois pressupostos.

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Notas Ao Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (pepex)

O primeiro é apresentação de título executivo, enquanto condição formal dos actos executi­ vos. Portanto, remete-se para o artigo 703.º e 704.º nCPC, nomeadamente. O segundo é meramente processual: o âmbito objetivo do PePEX não é dado pelo valor ou causa da dívida, mas pela forma de uma eventual execução: deve estar-se em sede de atos preparatórios de processo executivo na forma sumária e conforme o âmbito definido pelo artigo 550.º n.º 2 nCPC. a) Em decisão arbitral ou judicial nos casos em que esta não deva ser executada no próprio processo; b) Em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória; c) Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor; Exemplo: mútuo bancário com hipoteca. d) Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância. Exemplo: título de crédito, documento autêntico ou autenticado constitutivo ou recogni­ tivo, ata de condomínio, mútuo bancário com hipoteca. Algumas notas. A primeira nota é a de que não releva o n.º 3 do mesmo artigo, pois essas circunstências deter­ minantes de garantia de forma ordinária, relevam na execução – salvo a falta de certeza, exi­ gibilidade ou iliquidez, que são também condição deste PePEX. A segunda nota, é a de que naturalmente está-se fora das situações de dispensa judicial e citação prévia – mera variante eventual da forma ordinária, prevista no artigo 727.º nCPC. A terceira nota é a de que há mais forma sumária fora do artigo 550 n.º 2. Em especial, há for­ ma sumária para a sentença que deva ser executada no próprio processo declarativo, nos termos do n.º 2 do artigo 626.º. Está, assim, excluída a sentença nacional, conforme o artigo 85.º n.º 1 nCPC?. Não, não está: o artigo 18.º n.º 1 prevê a convolação do PePEX em processo de execução condicionada à apresentação de requerimento executivo ou de “requerimento de execução de decisão judicial condenatória”. Seja como for esta identificação de âmbito com a forma processual sumária mostra a ratio última da própria criação de um processo extrajudicial: se podem ser pesquisados e penhorados bens pelo agente de execução sem despacho liminar, então esses atos materiais podem ser feitos sem, sequer, a atribuição de um juiz competente.

V. Os segundos e terceiros pressupostos não carecem de mais notas por ora, sendo que o primeiro coincide com uma condição material dos actos executivos e o segundo é uma mera formalidade burocrática1. Seja, como for, note-se que se deve tratar de obrigação de pagamento de quantia certa [como decorre da alínea a) do n.º 3 2] . Note-se ainda a inexistência de limite de valor para a dívida, salvo aquele que está subjacente à limitação à forma sumária. Não menos importante, não se pode dar ao PePEX uma obrigação que ainda careça de liqui­ dação, mesmo que ainda por simples cálculo aritmético. A exceção são os juros compulsórios e os juros vincendos [cfr. artigo 5.º n.º 1 alínea c) iii e e), respetivamente] VI. Em suma: merecem PePEX a execução de obrigações para pagamento de quantia certa cer­ tas, líquidas e exigíveis constantes de títulos executivos cuja a execução siga a forma sumária nos termos dos artigos 550.º e 626.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

No artigo 2.º do Projeto impunha-se um requisito burocrático adicionarl: “O requerimento e os documentos que o acompanham não ultrapassam vinte páginas”. 2 Justamente no Projeto de PePEX lia-se que “a fase pré-executiva não é admitida nas execuções para prestação de facto, entrega de coisa certa ou, sendo de pagamento de quantia certa, a dívida não seja passível de ser calculada por simples cálculo aritmético, quando seja movida exclusivamente contra o devedor subsidiário, esteja depen­ dente de condição, etc (…).” 1

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2. PRINCÍPIOS GERAIS I. Antes de se apresentar o procedimento, queríamos delinear alguns traços gerais do regime dos atos que compõem o PePEx. Antes de mais trata-se de um procedimento tendencialmente desmaterializado: requeri­ mento, notificações ao requerente, segundas notificações ao executado, consultas, pagamen­ tos ao agente de execução. Justamente, o artigo 33.º n.º 3 enuncia o princípio de que todo o procedimento é tramitado exclusivamente por via eletrónica, através do SISAAE. Ademais, o mesmo SISAAE será utilizado seja para atribuição de número ao procedimento, seja para sorteio do agente de execução, seja para registo dos atos praticados pelo agente de execução. Prevê-se, por outro lado, no artigo 4.º criação de plataforma informática do Ministério da Jus­ tiça para envio do requerimento e acesso ao processo por via eletrónica, mediante autentica­ ção na plataforma informática e, a título eventual, a notificação do requerido através de plataforma informática de notificações eletrónicas protocolada entre o membro do Governo responsável pela área da justiça e a CS3. Mas, admite-se o uso do suporte de papel, no artigo 5.º n.º 10 (o que o referido artigo 33.º n.º 3 ressalva), além, naturalmente, da notificação por contacto pessoal, como regra. II. Em segundo lugar, e conexamente, atente-se ao artigo 28.º relativo à conservação e trata­ mento dos dados pessoais, ao artigo 29.º quanto ao dever de sigilo e ao artigo 30.º quanto à proteção de dados pessoais. Veja-se, em especial a regra de que os dados pessoais constantes da plataforma informática e dos registos de consulta e de disponibilização de informação constantes do SISAAE são con­ servados apenas durante o período necessário para a prossecução dos fins a que se destinam, sendo obrigatoriamente destruídos de forma automática decorrido o prazo de 10 anos após a sua recolha. Veja-se ainda a regra de que as entidades responsáveis pelo tratamento dos dados, bem como todas as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados ao abrigo da presente lei, ficam obrigadas aos deveres de sigilo e confiden­ cialidade, mesmo após a cessação daquelas funções. Finalmente, os agentes de execução devem observar o regime da Lei n.º 67/98, de 26 de outu­ bro, nomeadamente respeitar a finalidade da consulta, limitando o acesso ao estritamente necessário e não utilizando a informação para fim diferente do permitido; e ão transmitir a infor­ mação a terceiros. III. Em terceiro lugar, os atos do agente de execução são praticados exclusivamente através do SISAAE, ficando a constar do sistema um registo dos mesmos (artigo 22.º). E mesmo os atos externos realizados pelo agente de execução, designadamente a notificação do requerido por contacto pessoal, devem ser documentados e constar do respetivo proces­ so, no prazo máximo de dois dias úteis contados a partir da data da sua realização4, sob pena de o agente de execução ter de restituir os honorários pagos relativos ao ato realizado . IV. Dito isto, como funciona o acesso ao processo? Veja-se o artigo 29.º Assim, qualquer das partes intervenientes no procedimento pode aceder ao processo por via eletrónica, mediante autenticação na plataforma informática com base em: a) certificado de assinatura digital qualificada, integrado no cartão do cidadão; b) certificado digital de assinatura e autenticação emitido pela Ordem dos Advogados; c) certificado digital de assinatura e autenticação emitido pela associação pública profissio­ nal representativa dos agentes de execução. E também no artigo 22.º é admitida a assinatura autógrafa de documentos com recurso a equipamentos eletró­ nicos e mesmo de utilização de plataforma eletrónica móvel integrada no SISAAE que registe data, hora e local da realização dos atos. 4 Eventualmente sujeita utilização de plataforma eletrónica móvel integrada no SISAAE que registe data, hora e local da realização dos atos externos. 3

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Notas Ao Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (pepex)

Mas também qualquer das partes intervenientes no procedimento pode ainda aceder ao processo através da plataforma de autenticação da administração fiscal. No caso especial do requerido o processo fica disponível para consulta verificados após seguintes atos a) primeira notificação do requerido efetuada no âmbito do PePEX; b) citação do requerido no âmbito de processo de execução em que este figure como executado e que se tenha iniciado em decorrência de procedimento contra si instaurado. Mas não se verificando nenhuma das hipóteses anteriores, o processo fica disponível para consulta do reque­ rido 30 dias após a extinção do PePEX

V. Finalmente, o regime dos atos PePEX sujeita-se ao princípio da subsidariedade da aplicação do Código de Processo Civil em tudo o que não esteja expressamente previsto na lei 32/2014, de 30 de maio. Tal regra está enunciada no artigo 31.º do diploma. Naturalmente que não se deve ignorar as regras especiais do PePEX, incluindo as de direito final. O mesmo princípio vale para o apoio judiciário: ao abrigo do artigo 32.º ao PePEX é aplicável, com as necessá­ rias adaptações, o regime jurídico do apoio judiciário. Na realidade, a única regra especial é a de que a dispen­ sa de taxa de justiça e demais encargos com o processo abrange o pagamento dos honorários que sejam devidos ao agente de execução, bem como, sendo o caso, a designação de agente de execução, a qual é efetua­ da nos termos do n.º 3 do artigo 6.º (i. e., alietoria e automaticamente por meio do SISAAE). Mas serão regula­ dos por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça o regime de pagamento dos hono­ rários devidos, bem como a responsabilidade pelos mesmos.

3. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS I. Dada a regra da subsidariedade, a legitimidade para o PePEX afere-se pelo título anexo, nos termos do artigo 53.º nCPC. Portanto, o credor será o requerente e o devedor será o requerido, identificados no requerimento, conforme o artigo 5.º n.º 1 alíneas a) e b). Mas o artigo 5.º n.º 10 admite que “O formulário do requerimento inicial pode ser preenchido em suporte de papel pelo próprio credor, ou em formato eletrónico por advogado ou solicitador que, não sendo constituído mandatário daquele, digitaliza o mesmo, bem como os demais documentos que o devem acompanhar, e procede à aposição da respetiva assinatura eletrónica, através da qual certifica a conformidade dos documentos com os originais O Projeto o n.º 2 do artigo 2.º admitia “cumulação de títulos só é admissível se estes forem da mesma natureza e credores e devedores coincidam”; o n.º 6 do artigo 5.º admite que “apenas podem ser cumulados pedidos fundados em vários títulos se todos se destinarem ao pagamento de quantia certa e as partes forem as mes­ mas”. As partes, por seu turno, podem ser plurais, ou seja pode haver cumulação subjetiva, i. e., litisconsórcio ou coligação: veja-se o n.º 2 do artigo 5.º que admite “pluralidade de credores ou devedores”. Por isso, segundo a alínea b) do mesmo n.º 2, devem discriminar-se “as responsabilidades de cada requerido perante os requeren­ tes, bem como a natureza solidária, conjunta ou subsidiária das mesmas”. II. Não parece fazer depender-se a admissibilidade do procedimento da constituição obrigatória mandatário judicial, como decorre da letra do referido n.º 10 e, sobretudo, do artigo 5.º n.º 1 alínea g).

4. PROCEDIMENTO A) SEQUÊNCIA GERAL. FASE PREPARATÓRIA: APRESENTAÇÃO DO REQUERIMENTO, DISTRIBUIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO. I. O PEPEX TEM A SEGUINTE TRAMITAÇÃO:

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Fase preparatória a) Apresentação do requerimento, distribuição e recebimento/recusa (artigos 4.º a 8.º); b) Consultas e elaboração de relatório sumário (artigos 9.º e 10.º); c) Notificação ao credor requerente (artigo 11.º);

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d) convolação e remessa à distribuição para processo de execução, para penhora dos bens (artigo 18.º). Fase pré-executiva: requerimento do credor em 30 dias para a) notificação do requerido para i. dedução de oposição (artigo 16.º) ii. pagamento, incluído por celebração de acordo de pagamento (artigo 17.º), eventual. iii. indicar bens penhoráveis b) procedimento de inserção na lista pública, por falta de bens (artigo 12.º a 15.º); Como exercício do princípio dispositivo, o procedimento inicia-se com um requerimento, apresentado apenas e só por via electrónica, “efetuada em plataforma informática do Minis­ tério da Justiça” (artigo 4.º) com o conteúdo fixado no artigo 5.º – maxime, a identificação do credor(es) (incluindo o número de identificação bancária (NIB) do requerente referente a con­ ta aberta junto de instituição de crédito na qual devam ser depositados quaisquer montan­ tes), devedor(es), exposição sumária dos factos, indicação do valor em divida à data do pedi­ do, incluindo a liquidação de juros, moratórios, remuneratórios ou compulsórios. Pretendendo-se a identificação de bens comuns, o requerente indica ainda o nome e o número de identificação fiscal do cônjuge do requerido e o respetivo regime de bens do casamento. Já não pode ser alegada a comunicabilidade da dívida como antes se pretendia para a alínea g) do n.º 2 do artigo 3.º. Isto significa que a questão da natureza da divida fica, pelo menos diretamente, afastada do procedimento. O que se pode é procurar bens comuns, seja para dívida própria, seja para dívida comum. A comunicação da dívida terá de ser feita na ação executiva, nos termos do artigo 741.º

II. O requerimento deve ser acompanhado de vários documentos: a) cópia digitalizada do título executivo, em formato «pdf.», podendo esta ser substituída pela indicação da referência de acesso ao documento eletrónico; b) pretendendo-se a identificação de bens comuns, fotocópia não certificada do registo atualizado de casamento do requerido, que ateste que o mesmo é casado sob o regime de bens da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral, salvo se do título executivo constar o nome do cônjuge e o regime de bens do casamento.

Note-se que o requerente deve conservar o original do título executivo até à prescrição do direito de crédito que o mesmo titula, o qual pode ser solicitado, a todo o tempo, pelo agente de execução no âmbito do procedimento em causa.

III. Já dissemos que o formulário do requerimento inicial pode ser preenchido na plataforma informática a que se refere o artigo 4.º ou em suporte de papel. Quanto ao envio em plataforma eletrónica, enuncia o n.º 1 do artigo 5.º que o procedimen­ to inicia-se com a entrega do requerimento, por via eletrónica, através da plataforma informá­ tica, sendo de notar que segundo o n.º 8 a plataforma informática impede a submissão com sucesso do requerimento quando esteja em falta qualquer dos elementos referidos nos números anteriores – i. e., identificação das partes, exposição dos factos indicação da dívida, anexação do título – ou não se encontre efetuado o pagamento das quantias referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 20.º, a títulos de honorários do agente de execução. Depois de entregue o requerimento, não é possível aditar ou alterar os elementos dele constantes e dos respetivos anexos. Quanto ao envio fora da plataforma eletrónica, o n.º 10 enuncia que o formulário do reque­ rimento inicial pode ser preenchido em suporte de papel pelo próprio credor, ou em formato eletrónico por advogado ou solicitador que, não sendo constituído mandatário daquele, digi­ taliza o mesmo, bem como os demais documentos que o devem acompanhar, e procede à aposição da respetiva assinatura eletrónica, através da qual certifica a conformidade dos documentos com os originais. Nestes casos as notificações ao requerente são efetuadas em suporte de papel para o domicílio indicado no requerimento, salvo se for indicado endereço de correio eletrónico, caso em que as notificações são remetidas para este.

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Notas Ao Procedimento Extrajudicial Pré-executivo (pepex)

IV. Após o envio do requerimento, tem lugar a distribuição, nos termos dos artigos 6.º e 7.º da Lei em apreço. Assim, a plataforma informática atribui um número provisório de pedido, devolvendo ao credor uma única referência de pagamento que inclui todos os custos devidos pelo início do proce­ dimento. Esses valores são os constantes das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 20.º, devendo ser pagos, pelo requerente, em simultâneo e antecipadamente face à entrega do requerimento. A saber: a) 0,25 UC para remuneração das entidades envolvidas na gestão e manutenção da platafor­ ma informática e serviços diretos eletrónicos de consultas sobre os bens ou localização dos requeridos, quando essa remuneração for devida no âmbito do processo de execução; b) 0,50 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela análise do título executivo, pela realização das consultas e elaboração do relatório. Acresce-lhes à taxa legal em vigor, quando aplicável. O pagamento dever ser efetuado até ao 5.º dia útil seguinte ao da disponibilização do DUC, sob pena de o requerimento ficar automaticamente sem efeito. IV. Efectuado o pagamento, requerimento considera-se entregue, e o SISAAE atribui de forma automática o requerimento a um dos agentes de execução que constem da lista de distribuição sendo disponibilizados ao requerente os elementos de identificação e o contacto do agente de execução designado. Segundo o artigo 7.º os critérios de distribuição automática a definir em Portaria devem garantir “equidade na distribuição dos requerimentos e proximidade geo­ gráfica entre agente de execução e requerido”. Portanto, o agente de execução não é designado pelo credor, como sucede em sede de ação executiva (cfr. artigo 720.º n.º 1 nCPC). Mas em caso de incumprimento pelo agente de execução do prazo de realização das diligên­ cias previstas na lei, o requerente pode substituir o agente de execução originalmente desig­ nado decorridos que sejam 15 dias após o termo daqule prazo. Sendo requerida a substitui­ ção, é designado automaticamente novo agente de execução. Naquela eventualidade, para além de responsabilidade disciplinar, pode ser aplicada, a título cautelar, a medida de suspensão de distribuição de novos procedimentos até que se mos­ trem realizadas as diligências em falta. V. Segundo o artigo 8.º remetido o requerimento ao agente de execução, este tem cinco dias úteis para o recusar ou para realizar as consultas previstas no artigo seguinte e elaborar relatório com base no resultado das mesmas. Despacho de recusa deve ter lugar nas seguintes situações: a) não estejam reunidos os requisitos previstos no artigo 3.º; Exemplo: o título é um cheque no valor de 12 000 euros. b) esteja em falta algum dos elementos referidos nos n.os 1 e 2 do artigo 5.º; Exemplo: não se identifica total ou parcialmente o credor e /ou devedor. c) não tenha sido apresentado qualquer título executivo ou o documento como tal apresen­ tado não constitua título executivo idóneo, na aceção da alínea a) do artigo 3.º; d) as partes indicadas não constem do título executivo, salvo o disposto no n.º 3 e na alínea b) do n.º 5 do artigo 5.º; e) não tenham sido indicados os elementos previstos no n.º 3 do artigo 5.º ou não tenha sido apresentada fotocópia não certificada do registo atualizado de casamento, que ateste que o requerido é casado sob o regime de bens da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral. Exemplo: havendo pluralidade de devedores não se discrimina se a dívida é solidária, conjunta ou subsidiária.

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Pode ter lugar despacho de aperfeiçoamento nos casos previstos nas referidas alíneas b), c) e d), desde que a falta seja suscetível de sanação. Ai o agente de execução notifica o requerente para a suprir no prazo de cinco dias, sob pena de recusa.

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VI. A recusa do requerimento é notificada ao requerente, podendo este, no prazo de 30 dias, requerer a convolação do procedimento extrajudicial pré -executivo em processo de execu­ ção, sob pena de o procedimento ser automaticamente extinto. Essa convolação é feita segundo o disposto no artigo 18.º, a que voltaremos mais adiante.

B) CONTINUAÇÃO: CONSULTAS, ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO E NOTIFICAÇÃO DO REQUERENTE. EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO. I. Não cabendo recusa de recebimento, têm lugar as consulta Recorde-se, antes de mais, que decorre do artigo 2.º um importante princípio: o objeto das consultas pelo agente de execução são “bases de dados de acesso direto eletrónico previstas no Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (…) cuja disponibilização ou consulta não dependa de prévio despacho judicial”. Ora, em sede de artigo 749.º nCPC o agente de execução teria 20 dias para a conclusão dessas diligências de consulta, podendo ser directas e sem autorização judicial às bases de dados da administração tributária, da segurança social, das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes, em acesso electronico (cfr. ainda artigos 2.º a 8.º da Portaria n.º 331-A, de 20 de Março, na versão da Portaria n.º 350/2013 de 3 de dezembro); Excluído está, por conseguinte, o acesso aos elementos sujeitos a sigilo, fiscal ou sob outro regime de confidencialidade, regulado pelo n.º 7 do artigo 749.º, o qual garante que a consulta dependerá de despacho judicial e remete para o artigo 418.º n.º 2 nCPC. Mas já parece que esta autorização judicial fica dispensada para efeitos de penhora de depósitos bancários, pois o n.º 6 do artigo 749.º determina que “o Banco de Portugal disponibiliza por via eletrónica ao agente de execução informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o executado detém contas ou depósitos bancários”. A ser assim, o PePEX permite o acesso prévio a contas bancárias. O teor do n.º 6 do artigo 9.º confirma esta nossa conclusão: “Para identificação e localização dos bens penhoráveis de que o requerido seja titular, o Banco de Portugal disponibiliza por via eletrónica ao agente de exe­ cução informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o requerido detém contas ou depósitos bancários, em termos análogos aos previstos no n.º 6 do artigo 749.º do Código de Processo Civil, e de acordo com protocolo celebrado entre o Ministério da Justiça, a associação pública profissional representativa dos agentes de execu­ ção e o Banco de Portugal”. II. Ora, tendo em conta este objeto, dispõe o artigo 9.º n.º 1, em termos quase idênticos aos do do n.º 1 do referido artigo 749.º nCPC.

O agente de execução realiza as consultas às bases de dados da administração tributária, da segurança social, do registo civil, do registo nacional de pessoas etivas, do registo predial, do registo comercial e do registo de veículos e de outros registos ou arquivos semelhantes, para obtenção de informação referente à identificação e localização do requerido, bem como dos bens penhoráveis de que seja titular, nos termos a definir por portaria5

Pode, se necessário, consultar ainda o registo informático de execuções, bem como o SISAAE, este último apenas para obtenção de informação referente aos processos de execução em curso em que o requerido conste como exequente.

III. Estas consultas são realizadas pelo agente de execução através do SISAAE, ficando a constar do referido sistema, das bases de dados consultadas e da plataforma informática a que se Trata-se de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, sob parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados, nos termos do artigo 22.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, e, quando esteja em causa matéria relativa a bases de dados da administração tributária ou da segurança social, deve ser aprovada igual­ mente pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças ou da segurança social. 5

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refere o artigo 4.º, um registo de cada uma delas, para efeitos de consulta pelas partes e de auditoria6. Os resultados das consultas e a informação disponibilizada não podem ser divulgados ou utilizados para qualquer outro fim que não o previsto na Lei n.º 32/2014.

IV. Após a concretização das consultas o agente de execução elabora um relatório que “resume o resultado das mesmas, indicando quais os bens identificados ou a circunstância de não terem sido identificados bens penhoráveis”, segundo o artigo 10.º n.º 1. O seu teor consta do n.º 2 deste artigo, sendo nele ainda destacadas as eventuais seguintes informações: a) o requerido constar da lista pública de devedores; b) o requerido ter sido declarado insolvente; c) o requerido ter falecido ou, sendo pessoa coletiva, ter sido já dissolvido e liquidado; d) o requerido ser executado ou exequente em processos de execução pendentes. V. O relatório é notificado ao requerente, com indicação de que dispõe de 30 dias para reque­ rer uma das opções previstas no n.º 1 do artigo 11.º . a) convolação do procedimento extrajudicial pré-executivo em processo de execução; b) no caso de não terem sido identificados bens suscetíveis de penhora, a notificação do requerido para os termos previstos no artigo 12.º

Manda o n.º 1 do artigo 24 que o requerente é exclusivamente notificado por via eletrónica, salvo quando tenha de ser feito em papel por força do uso de suporte de papel para o reque­ rimento (cfr. artigo 5.º n.os 10 e 11). Já vimos nessa eventualidade as notificações ao requeren­ te são efetuadas em suporte de papel para o domicílio indicado no requerimento, salvo se for indicado endereço de correio eletrónico, caso em que as notificações são remetidas para este. A vontade do requerente manifesta-se mediante o pagamento, através de um dos identifica­ dores únicos de pagamento que lhe são disponibilizados para cada uma das opções, de mon­ tante correspondente aos honorários devidos ao agente de execução pelas diligências subse­ quentes. A saber: na convolação serão as despesas e provisão inicial, sem prejuízo das dispensas que o n.º 4 do artigo 18.º concede ao futuro exequente; na notificação, serão 0,25 UC para pagamento dos honorários do agente de execução pela notificação de cada requeri­ do, a que se refere o artigo 12.º, por força do artigo 20.º n.os 1 alínea c) e 3. Note-se o seguinte, disposto no n.º 6 do artigo 20.º: não sendo requerida a convolação do procedimento em processo de execução, nos casos em que tal seja admissível, não há lugar à restituição pelo agente de execução dos valores pagos pelo requerente.

VI. Decorrido o prazo de 30 dias sem que o requerente proceda ao pagamento previsto no número anterior, o procedimento é automaticamente extinto. No entanto, atente-se ao artigo 19.º n.º 1

Nos procedimentos que tenham terminado sem a identificação de quaisquer bens penhoráveis e que não tenham sido convolados em processos de execução, o requerente pode, no prazo de três anos após o termo do procedimento, solicitar a realização de novas consultas.

A realização de novas consultas pelo agente de execução fica condicionada ao pagamento pelo requerente do valor previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 20.º, i. e., de 0,15 UC, através de identificador único de pagamento. Quando se verifique que o agente de execução que origi­ nalmente realizou os atos não se encontra em pleno exercício de funções no momento em que são requeridas novas consultas, é automaticamente designado novo agente de execução.

6 Trata-se do registo da seguinte informação: a) Identificação do agente de execução que efetua a consulta; b) Iden­ tificação do procedimento no âmbito do qual a consulta é efetuada; c) Data e hora da consulta; d) Identificação das bases de dados consultadas.

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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #2


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Nesse procedimento reaberto valem novamente os artigos 9.º e 10.º e não há lugar à notifica­ ção do requerido quando o mesmo já se encontre inserido na lista pública de devedores.

C) CONTINUAÇÃO: CONVOLAÇÃO DO PROCEDIMENTO EM PROCESSO DE EXECUÇÃO I. A convolação do procedimento extrajudicial pré-executivo em processo de execução fica condicionada à verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) apresentação de requerimento executivo ou de requerimento de execução de decisão judicial condenatória, consoante o caso, nos termos previstos nos n.os 1 a 5 do artigo 724.º do Código de Processo Civil e respetivos diplomas regulamentares; b) junção do relatório previsto no artigo 10.º

Portanto, note-se eu não constitui requisito terem sido identificados bens suscetíveis de penhora. Na ulterior ação excutiva a) requerimento executivo considera -se apresentado nos termos previstos no artigo 144.º nCPC; b) não há lugar ao pagamento do valor devido a título de honorários e despesas do agente de execução pela fase inicial do processo executivo e do valor devido a título de consultas das bases de dados, quando exigido no âmbito do processo de execução; c) não se repetem as diligências para localização de bens penhoráveis, através das consultas às bases de dados, e a apresentação de relatório elaborado na sequência das mesmas.

II. Atenção ao n.º 6 do artigo 20.º: não sendo requerida a convolação do procedimento em pro­ cesso de execução, nos casos em que tal seja admissível, não há lugar à restituição pelo agente de execução dos valores pagos pelo requerente.

D) FASE PRÉ-EXECUTIVA: NOTIFICAÇÃO DO REQUERIDO; OMISSÃO DE RESPOSTA I. Quando tal haja sido a vontade do requerente, o agente de execução procede à notificação do requerido, regulada nos artigos 12.º a 15.º O requerido é notificado para, no prazo de 30 dias: a) pagar o valor em dívida, acrescido dos juros vencidos até à data limite de pagamento e dos impostos a que possa haver lugar, bem como dos honorários devidos ao agente de exe­ cução previstos no artigo 20.º; b) celebrar acordo de pagamento com o requerente; c) indicar bens penhoráveis; d) opor -se ao procedimento.

Na notificação, deve o agente de execução discriminar os vários montantes correspondentes a cada uma das componentes que integram o valor em dívida, os juros vencidos até à data limite de pagamento e os impostos a que possa haver lugar, e ainda os honorários devidos ao agente de execução previstos no artigo 20.º A notificação é acompanhada de cópia do título executivo e dos demais elementos e docu­ mentos que instruem o procedimento, devendo da mesma constar advertência de que, nada fazendo, o requerido passa a constar de lista pública de devedores.

II. Segundo o n.º 4 do artigo 12.º a notificação é realizada por contacto pessoal do agente de execução, o qual pode delegar a prática do ato noutro agente de execução, sendo, neste caso, daquele a responsabilidade pelo pagamento da remuneração deste. Os regimes que concretamente se aplicam a pessoas singulares e a pessoas coletivas constam dos artigos 13.º e 14.º, respetivamente. As primeiras são, tendencialmente, citadas por contac­ to pessoal na morada da sua residência ou do local de trabalho presumivelmente mais

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atualizada; as segundas por contacto pessoal do agente de execução na respetiva sede, pre­ sumindo-se que a mesma é a que se encontra inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas A análise da legalidade das respetivas soluções deixaremos para melhor oportunidade.

III. A consequência da omissão de resposta do requerido, em 30 dias sobre a data da notificação do requerido, está no artigo 15.º: inclusão do devedor na lista pública de devedores. Por ora, trata-se de matéria regulada pelos artigos 16.º-A a 16.º-C do Decreto-Lei n.º 201/2003, de 10 de setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, mas com as neces­ sárias adaptações. Efetivamente determina-se que o agente de execução proceda à inclusão do devedor na lista pública de devedores no prazo de 30 dias. Esta solução significa o seguinte: a falta de oposição do requerido vale como reconhecimento da titularidade e teor da divida, nos termos alegados no requerimento. Vale, para os estritos efeitos de inclusão na dita lista; não vale para mais nenhuns, maxime, de confissão de dívida. Sobre a constitucionalidade desta solução veja-se o que escrevemos mais adiante. IV. Após a inclusão do requerido na lista pública de devedores, o requerente pode obter certidão eletrónica de incobrabilidade da dívida a emitir pelo agente de execução, segundo o artigo 25.º n.º 1. A dívida referente à certidão é considerada incobrável para fins fiscais e comunicada à admi­ nistração fiscal por via eletrónica, para efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 78.º e no n.º 4 do artigo 78.º-A CIVA e no artigo 41.º CIRS. Após inclusão na lista pública de devedores, e remessa eletrónica da mesma à administração fiscal, é devido ao agente de execução o pagamento de 0, 25 UC a que acresce imposto sobre o valor acrescentado (IVA) à taxa legal em vigor, quando aplicável, conforme alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º V. O requerido pode ser excluído da lista de devedores, nos termos da legislação aplicável. Mas para tanto, o requerido terá de pagar 0,25 UC de honorários ao agente de execução, mais IVA, mas antecipadamente (cfr. n.º 3 do artigo 20.º). Se o requerido vier a ser excluído da lista pública de devedores por pagamento integral da dívida ao requerente, o agente de execução notificará, por via eletrónica, a administração fis­ cal de tal facto.

E) CONTINUAÇÃO: PAGAMENTO VOLUNTÁRIO IMEDIATO OU COM CELEBRAÇÃO DE ACORDO DE PAGAMENTOS I. Como se disse, o requerido tem a opção de pagar o valor em dívida, acrescido dos juros venci­ dos até à data limite de pagamento e dos impostos a que possa haver lugar, bem como dos honorários devidos ao agente de execução previstos no artigo 20.º. Esse pagamento é feito ao agente de execução. Mas pode pagar a dívida faseadamente, num quadro de um plano pagamentos. Todavia, se no projeto de há uma ano tratava-se de um plano de pagamentos com modalidades definidas na lei e a que o requerido poderia aderir, por contacto direto com o agente de execução, sem inter­ venção do credor, agora trata-se de um acordo de pagamentos clássico entre credor e devedor. Deste modo, um instrumento que poderia funcionar como meio de proteção do executado, torna-se um dos aspetos do PePEX como meio de coação legamente previsto do devedor. II. Efetivamente, no projeto anterior, previa-se no artigo 17.º que: 1. O devedor pode, sem necessidade de celebração de acordo com o credor, efectuar o pagamento da divida em prestações, evitando desta a forma a sua inserção na lista pública.

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2. Para obstar a inserção na lista pública o devedor deverá pagar o valor em divida em pres­ tações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao último dia útil do mês seguin­ te em que haja sido notificado nos termos do artigo 12.º:

Se o devedor quisesse pagar a prestações poderia aderir a um dos seguintes planos de pagamentos pré-definidos na lei a) Em 3 prestações iguais e sucessivas arredondas para o euro superior, sempre que o valor da divida seja igual ou inferior 6 Uc; b) Em 6 prestações iguais e sucessivas arredondas para o euro superior, sempre que o valor da divida seja igual ou inferior 12 Uc; c) Em 12 prestações iguais e sucessivas arredondas para o euro superior, sempre que o valor da divida seja igual ou inferior 24 Uc; d) Em 24 prestações iguais e sucessivas arredondas para o euro superior, sempre que o valor da divida seja igual ou inferior 60 Uc; e) Em 32 prestações iguais e sucessivas arredondas para o euro superior, sempre que o valor da divida seja igual ou inferior 120 Uc; f ) Em 48 prestações iguais e sucessivas arredondas para o euro superior, sempre que o valor da divida seja superior a 120 Uc.

Enquanto se mantivessem o pagamentos em prestações dentro dos prazos previstos no pre­ sente artigo, o devedor não seria inserido por força deste procedimento na lista púbica, mas o credor pode optar pela apresentação do processo executivo caso não se conforme com a forma de pagamento.

III. Agora, na Lei n.º 32/2014 estabelece o artigo 17.º que: 1. Requerente e requerido podem acordar, por escrito, o pagamento do valor em dívida, acrescido dos juros vencidos até à data limite de pagamento e dos impostos a que possa haver lugar, bem como dos honorários devidos ao agente de execução previstos no artigo 20.º, em prestações mensais e sucessivas, devendo o acordo e o plano de pagamento ser comunicados ao agente de execução, para efeitos de registo no procedimento. 2. Para efeitos da celebração do acordo e da elaboração do plano de pagamento da dívida a que se refere o número anterior, o requerido pode recorrer ao auxílio das entidades reco­ nhecidas, nos termos da Portaria n.º 312/2009, de 30 de março, alterada pela Portaria n.º 279/2013, de 26 de agosto, pelo Ministério da Justiça, que prestam apoio a situações de sobre -endividamento. 3. Com a junção do acordo o processo é extinto, com expressa indicação do fundamento, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 4. O não pagamento atempado de qualquer das prestações devidas determina o vencimen­ to das demais, devendo o requerente, no prazo de 30 dias contados da data do incumpri­ mento, requerer ao agente de execução a convolação do procedimento em processo de execução, sob pena de o procedimento ser automaticamente extinto.

Onde estão essas entidades de forma real no território nacional e no tecido económico-social de Portugal? Aspeto positivo, em qualquer caso, é deixar de prever uma ameaça de inserção na lista públi­ ca de devedores. Todavia, já sabemos que, para tal, terá o nosso requerido de, ao menos, deduzir oposição, em 30 dias sobre a data da notificação do requerido, como imposto no artigo 15.º

IV. Quanto recebe o agente de execução quando o pagamento é voluntário? Segundo o n.º 5 do artigo 20.º “Havendo pagamento voluntário ao agente de execução, este tem direito a uma remuneração adicional calculada nos termos previstos para situações de pagamento em prestações no âmbito do processo de execução” constante da Portaria

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n.º 282/2013, de 29 de agosto. Remete-se, pois, para os artigo 50.º n.º 5 alínea a) in fine e 6 alínea b) desse diploma e, bem assim, para a tabela constante do seu anexo VIII. Deste modo, a solução passa por se calcular o adicional sobre a totalidade do valor pago ou a pagar a prestações.

F) CONTINUAÇÃO: INDICAÇÃO DE BENS PENHORÁVEIS Numa outra eventualidade, se o requerido proceder à indicação de bens passíveis de penho­ ra o requerente é notificado para, no prazo de 30 dias, requerer a convolação do procedimen­ to extrajudicial pré executivo em processo de execução, sob pena de o procedimento ser automaticamente extinto.

G) CONTINUAÇÃO: OPOSIÇÃO I. Determina o artigo 16.º que o requerido pode apresentar oposição ao procedimento extraju­ dicial pré -executivo, com base nos fundamentos previstos no Código de Processo Civil para a oposição à execução, de acordo com o título executivo em causa. Portanto, e consoante os títulos, poderão ser os fundamentos previstos nos artigos 729.º a 731.º nCPC. A oposição será apresentada, preferencialmente por via eletrónica, pelo CITIUS. Já sabemos que tendo sido apresentada oposição, o agente de execução não faz incluir o devedor na lista pública de devedores. À oposição apresentada pelo requerido aplica -se, com as necessárias adaptações, o regime da oposição à execução previsto no Código de Processo Civil, bem como no Regulamento das Custas Processuais, com especificidades. Isto quer dizer, entre outras coisas, que a oposição será enviada a um juiz, para despacho limi­ nar, seguindo-se a tramitação prevista nos artigos 732.º: contestação, saneamento, audiência prévia, audiência final e sentença. Justamente, no artigo 16.º do Projeto referia-se expressa­ mente a remessa do processo à distribuição. Pela apresentação da oposição é devido o pagamento de taxa de justiça no montante de 1,5 ou 3 unidades de conta processuais (UC) consoante o valor do procedimento seja inferior ou igual à alçada do tribunal da Relação ou seja superior a esse valor, respetivamente. Também o requerente pagará esse valor pela apresentação da sua contestação. É obrigatória a constituição de advogado nas oposições de valor superior à alçada do tribunal de 1.ª instância. II. Mas, por muito que a remissão para o Código de Processo Civil seja singela, estamos em crer que várias dúvidas se levantarão pois, afinal, não estamos numa ação excutiva. Seja como for, a lei atribui uma espécie de efeito suspensivo à dedução da oposição: enquan­ to o processo de oposição não for julgado, o requerente não pode instaurar processo de execução com base no mesmo título. Deste modo, a não pendência de oposição a requeri­ mento de PePEX passa a constituir um novo pressuposto processual, negativo, da ação execu­ tiva. Muito grosseiramente, o n.º 8 do artigo 16.º determina que o processo de execução assim instaurado é imediatamente extinto pelo agente de execução logo que verificado o facto. Mas claro que se o juiz intervir antes do agente de execução também o fará.

III. Nos casos em que a oposição seja julgada procedente, o requerente do procedimento extra­ judicial pré-executivo não pode instaurar ação executiva com base no mesmo título. IV. Finalmente, a fase pré-executiva termina com: a) Encerramento do processo por inexistência de bens; b) Inclusão do devedor na lista pública (após notificação);

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c) Remessa do processo para a distribuição: i. Para realização das diligências executivas; ii. Pela reclamação da decisão do agente de execução que não reconheça a suficiência do título executivo; iii. Pela oposição deduzida pelo devedor;

5. IMPUGNAÇÃO DOS ATOS I. O PePEX prevê como meios de impugnação dos atos do agente de execução o que podemos designar como reclamação disciplinar e reclamação processual. Tal decorre, respetiva­ mente, dos artigos 23.º n.º 4 e 27.º n.º 1 primeira parte, e do artigo 27.º. A reclamação disciplinar pode ser apresentada por qualquer interessado no prazo de 30 dias a contar da data em que teve conhecimento da prática dos mesmos, para os órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução Portanto, o pedido será o de decretamento de uma medida desciplinar. Têm legitimidade tanto as partes, como intervenientes, como terceiros. No caso do requerido, ele dispõe de um regime especial: nos termos do artigo 23.º n.º 4 o requerido dispõe do prazo de 30 dias, após a primeira consulta a procedimento contra si ins­ taurado, para reclamar da atuação do agente de execução que repute como violadora dos seus direitos junto dos órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução. Na realidade, esta faculdade não afasta mesmo para o requerido a regra mais geral do n.º 1 do artigo 27.º que lhe permite reclamar de outros atos posteriores a esses 30 dias. Em qualquer caso, isto significa que ele pode promover, indiretamente, a destituição do agen­ te de exeução. Nos subsequentes atos dos órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução7 pode ser determinado, a título cautelar ou como sanção acessória, a exclusão tem­ porária do agente de execução da lista de agentes de execução que participam no procedi­ mento extrajudicial pré -executivo quando não observe as regras «na presente lei ou seja defeituoso o cumprimento das suas funções. Estes atos disciplinares podem ser impugnados, no prazo de 30 dias contados da data da sua notificação aos interessados, i.e., pelo agente de execução ou os interessados reclamantes, junto dos tribunais administrativos II. Quando o pedido seja o da revogação de ato de agente de execução ou da sua pratica, quan­ do omitido, também qualquer interessado no prazo de 30 dias a contar da data em que teve conhecimento da prática dos mesmos, o pode deduzir com fundamento em ilegalidade do ato do agente de execução junto dos tribunais judiciais com competência para exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil. Em suma, e respetivamente, o ter-se-á de deduzir a conhecida reclamação processual para o juiz que seria competente para a ação executiva, nos termos dos artigos, 85.º e segs. nCPC, e prevista no artigo 723.º n.º 1 alínea c) do mesmo Código.

6. DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

Finalmente, o diploma apresenta um significativo leque de regras de direito singular e de direito transitório relativas ao PePEX. Assim, disposições finais:

A este propósito, o n.º 1 do artigo 26.º reafirma, se dúvidas houvesse, que a ação fiscalizadora e disciplinar sobre os agentes de execução no âmbito do procedimento extrajudicial pré-executivo cabe aos órgãos de fiscalização e disciplina da atividade dos agentes de execução.

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i. Aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras aplicáveis aos agentes de execução na tramitação dos processos de execução; ii. aos prazos aplicam-se as regras previstas no Código de Processo Civil; iii. não há lugar à suspensão dos prazos durante as férias judiciais; iv. com exceção das notificações dirigidas ao requerido, ou ao requerente nos termos previs­ tos nos n.os 10 e 11 do artigo 5.º, todo o procedimento é tramitado exclusivamente por via eletrónica, através do SISAA; v. os valores suportados pelo requerente no âmbito do procedimento extrajudicial pré-exe­ cutivo, com exceção dos referentes à remuneração devida pelas consultas, podem ser reclamados pelo requerente no processo de execução. vi. quando o agente de execução esteja integrado em sociedade os honorários presumem­ -se pertencentes à sociedade e as medidas cautelares previstas no n.º 2 do artigo 7.º esten­ dem-se aos sócios.

Por seu turno, disposições transitórias são estas: i. modelos genéricos de notificações e requerimentos são aprovados por portaria do mem­ bro do Governo responsável pela área da justiça, sob proposta da associação pública pro­ fissional representativa dos agentes de execução; ii. enquanto não for aprovada a portaria a que se refere o n.º 1 do artigo 9.º, aplica -se, quan­ to às consultas a realizar pelo agente de execução ao abrigo da presente lei, o regime constante da Portaria n.º 331-A/2009, de 30 de março, alterada pela Portaria n.º 350/2013, de 3 de dezembro, com as necessárias adaptações: iii. enquanto o diploma que regula a lista pública de devedores não entrar em vigor, aplicam­ -se os artigos 16.º-A a 16.º-C do Decreto-Lei n.º 201/2003, de 10 de setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, referentes à lista pública de execuções, com as necessárias adaptações. iv. o agente de execução que pretenda ser incluído na lista de agentes de execução que participam no procedimento extrajudicial pré-executivo deve declará-lo, através do SISAAE, bem como aderir à plataforma de faturação disponibilizada ou protocolada com a associação pública profissional representativa dos agentes de execução.

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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #2


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§ 2.º REFLEXÕES: ENQUADRAMENTO, CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DO PEPEX 1. ENQUADRAMENTO NO PARADIGMA DA EXECUÇÃO E DOS MEIOS INJUNTÓRIOS DESENVOLVIDO A PARTIR DE FINAIS DOS ANOS 90 I. Em documento distribuído em Setembro de 2013 esperava-se que o PePEx permitisse que “dezenas de milhares de execuções inviáveis (por inexistência de bens) sejam intentadas, diminuindo assim o impacto negativo que estes processos têm na agenda dos tribunais e dos agentes de execução”. Claro que, não podemos deixar de dizer, que este objetivo importante não pode deixar de respeitar as garantias e reservas constitucionais e ordinárias. Será assim? Se estívessemos uma década atrás o PePEx causaria ondas de rejeição: a ação executiva fora dos tribunais, privatizada, sem mediação de um juiz? Mas o país mudou; o processo civil, também. II. Claramente atinge-se com o PePEx a consequência procedimental última de duas linhas de evolução dos últimos 10/15 anos do processo civil: tutela de direitos privados fora de um tribunal, quando não exista um litígio e uso do modelo injuntório, em que a falta de cumprimento pelo devedor implica uma consequência negativa, acompanhada pela possibilidade de reen­ vio para os meios judicários comuns. Repare-se neste detalhe: se a execução pelo agente de execução regulada no nCPC ainda é distribuída a um tribunal, o PePEX não é distribuído a um juiz: a execução é plenamente desjudicializada no plano orgânico. Pode isto ser feito? No estrito plano das funções do Estado, pensamos que sim, atenta a natu­ reza administrativa da execução de dívidas. Ou seja: à desjuridicionalização da execução é acompanhada de uma desjudicialização. Recorde-se a este propósito a evolução do sistema de execução da última década. III. Efetivamente, o processo executivo cível acha-se, desde 2003, em rápida e irreversível mudan­ ça de paradigma. De processo menor deixado aos funcionários judiciais dirigido pelos ritmos tradicionais do juiz, passou-se a processo autónomo, orgânica e procedimentalmente, dirigido pelo fito da eficácia no cumprimento do título executivo. Os actos executivos deixaram de ser realizados pelo tribunal, por meio do funcionário judicial, e passaram para a competência de uma entidade privada – o solicitador de execução; agora agente de execução. Doravante pretendeu-se que o tribunal só tivesse de intervir em caso de litígio, exercendo então uma função de tutela, enquanto o poder geral de direcção do processo que lhe com­ petira passaria para um privado. IV. Na verdade esta profunda mudança de atores, veio tornar explícita a natureza adminstrativa das providências adequadas à realização coactiva de um direito/poder a uma prestação enunciado num título legalmente suficiente A natureza dos actos de execução é ditada pela função do próprio processo executivo. Na doutrina, Lebre de Freitas entende que a existência do agente de execução “não retira a natureza jurisdicional ao processo executivo” mas tão só a “sua larga desjudicialização (…) e também a diminuição dos actos praticados pela secretaria”. Se o processo executivo apresen­ tasse natureza administrativa então correria sem um juiz da causa e os actos executivos seriam realizados sempre fora de um processo judicial. O juiz estaria de fora e só interviria em casos de litígios. Não seria o caso português 8. Por seu turno, Teixeira de Sousa escreve que a “actividade de execução, no sentido de activi­ dade de penhora, apreensão e venda de bens, não é uma actividade jurisdicional e, por isso, ela pode ser realizada por órgãos não jurisdicionais (como é o caso do agente de execução)” 9. Finalmente, a favor da jurisdicionalidade da execução dir-se-ia, aproveitando de certo modo jurisprudência internacional, que a tutela jurisdicional apenas termina com a execução; antes AEx 5, 2009 28, ainda no Código velho. A reforma cit., 16.

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desta não se concluiu a resolução de um litígio. Ou seja, e como escreve Lebre de Freitas, está­ -se ainda perante uma “actuação do tribunal, ainda quando tida através do agente de execu­ ção” que visa ainda “a efectivação do direito” do credor 10. Em suma: os actos do agente de execução até poderiam ser administrativos, como já o eram muitos dos despachos do juiz, mas tal não dá natureza administrativa ao próprio processo executivo11. Ou, no dizer de Teixeira de Sousa, “desjudicialização significa apenas atribuição de funções executivas a órgãos não jurisdicionais, pelo que a acção executiva não deixa de ser um processo jurisdicional” 12, pertencendo ao “âmbito da jurisdição” 13.

V. Sucede, porém, que a natureza jurídica da função cumprida na execução não pode ser ditada por opções de competência orgânica e de procedimento a seguir. Ela há-de ser intrínseca, determinada pelo quadro constitucional de referência do processo civil e das funções do Estado. Por outro lado, é incompreensível como os actos do agente de execução, i.e., o grosso dos actos que integram o procedimento executivo, possam ser qualificados como administrati­ vos, mas já não o sentido final do próprio processo executivo. O que se deve considerar é o efeito material dos actos executivos: são ainda actos de tutela ou já não? E são actos de tutela jurisdicional? Ora o efeito material dos actos é, sem dúvida, o de realização coactiva dos direitos privados a uma prestação: é esse pedido que o credor apresenta no início da execução, como vimos atrás. Portanto, estamos ainda em sede de tutela dos direitos subjectivos. Essa realização não é privada, porém: o agente de execução é um privado que impondo coativamente direitos privados não realiza justiça privada. Realiza justiça pública,digamos, assim, de modo grosseiro. Usa a maquinaria da justiça do Estado. VI. Mas, se quisermos ser mais rigorosos, cabe, no entanto, perguntar se essa “justiça pública” é, tecnicamente, ainda a função jurisdicional, uma vez que realiza os direitos privados. Não o cremos: o direito notarial e o direito registal também certificam e realizam direitos privados, sem que por isso se apresentem como prosseguindo a função jurisdicional. A função jurisdicional diz o direito aplicável ao conflito de pretensões e fá-lo produzindo um título executivo – a sentença. Por vezes, a lei dispensa esse ius dicere e substitui-o por títulos extrajudiciais desde que ofereçam suficientes garantias . Em qualquer caso, a controversão esgota-se antes da execução e com ela a função jurisidi­ cional14. A execução vem então realizar o direito subjectivo demonstrado no título executivo, já depois ou até prescindindo do prévio exercício da jurisdição, consoante o título seja sentença ou seja diverso de sentença. Essa realização do direito subjectivo é uma fase de tutela dos direitos sujectivos por actos matertiais, mas cumprindo já uma função administrativa. Neste sentido, o acórdão TC 199/2012, de 24 de Abril (Pamplona de Oliveira) concluiu que “o Agente de Execução não exerce nem participa na função jurisdicional”. VII. No entanto, não se trata de actos administrativos autónomos, pois apenas existem pressupondo uma sentença, ou similar ou seja um título de resolução de um litígio e inversamente são eles que dão corpo, tanto em actos materiais, como actos processuais, à função jurisdicional. Os actos jurisdicionais alimentam os actos executivos e estes alimentam a função jurisdicional 15. AEx cit., 16, nota 26. AEx cit., 24, implicitamente. 12 A reforma da acção executiva, 2004, 16. 13 A reforma cit., 14. 14 Trata-se da mesma questão em matéria de execução de sentença penal onde o acórdão TC 427/2009, de 28 de Agosto de 2009, DR 181/II (17/9/2009), 38013, veio concluir pelo carácter adminstrativo da actuação do Director­ -Geral dos Serviços Prisionais quando coloca o recluso em regime aberto no exterior, porquanto “não resolve uma qualquer questão de direito, nem o faz para a resolver, não dirime um qualquer litígio em que os interesses em confronto são apenas os das partes”. 15 Muito longe se estão, por conseguinte, os actos executivos dos actos administrativos autónomos como a avalia­ ção um aluno num estabelecimento de ensino oficial. 10 11

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Daqui decorre que os actos executivos devem estar organizados e apresentar o conteúdo que seja conforme à sentença e que, ao invés, não esvazie a função jurisdicional de eficácia. Ou seja: os actos executivos são actos instrumentais de um acto instrumental como é a sentença em face do direito substantivo. Neste sentido, o direito à tutela jurisdicional consagrado no artigo 20.º n.º 1 CRP é na verdade e em bom rigor um direito à jurisdição e à imposição material dessa jurisdição. Aquilo que se designa por tutela jurisdicional efectiva é afinal uma jurisdição concretizada por uma função administrativa acessória.

VIII. Chegados aqui, estão confirmados os fundamentos constitucionais de partida de uma solu­ ção de tipo PepEX. Não estamos em sede de reserva de jurisdição, Mas este parece ir mais longe em relação ao modelo de intervenção que no nCPC está reser­ vado ao agente de execução. Será que o PePEX não é apenas uma pesquisa preliminar de bens, mas também é uma forma de execução soft do devedor?

2. O PEPEX COMO SOFT MEASURE EXECUTIVA. QUESTÕES EM ABERTO I. O PePEX é na sua aparência um procedimento autonomizado de clarificação da situação patrimonial do devedor antes da ação executiva e que vem reunir sob uma solução unitária vários instrumentos que já existem no seio da ação executivo. Assim, apresenta um conjunto de artigos equivalentes aos artigos 717.º (Registo informático de execuções), 749.º (Diligências prévias à penhora) e 750.º (Diligências subsequentes) do Código de Processo Civil. Mesmo a eventualidade do devedor pagar ou aderir ao plano de pagamentos já está atualmente prevista na Portaria n.º 313/2009, de 30 de Março, alterada pela Portaria n.º 279/2013, de 26 de Agosto Portanto, e em resumo: o que é aparentemente inovador no PePEx são menos as peças de puzzle que ele junta mas a circunstância de o fazer fora dos tribunais: consultam-se das bases de dados e inscreve-se o devedor na lista pública, sem se ter sequer aberto uma execu­ ção – não se incomodam nem os tribunais, nem as estatísticas. Por esta perspetiva, se definirmos as medidas executivas (incluindo as ações) como todas aquelas em que o autor requer como efeito jurídico as providências adequadas à realização coactiva de um direito/poder a uma prestação enunciado num título legalmente suficiente, seja qual for o meio processual, não há aqui uma medida executiva. Porquê? Porque o credor pode pedir ou a convolação do requerimento em requerimento executivo, com subsequente remessa à distribuição, com vista à realização da penhora – caso em que sai-se já da esfera do PePEX – ou a notificação do requerido para o procedimento de inserção na lista pública de execuções. Ele não pode pedir a penhora de bens. Se o quiser pedir será em sede de ação executiva. II. Mas vamos alterar a perspetiva, relendo o artigo 11.º n.º 1 alínea b): “No caso de não terem sido identificados bens suscetíveis de penhora, a notificação do requerido para os termos previs­ tos no artigo seguinte”. Ora, no n.º 1 do remetido artigo 12.º determinar-se que “o requerido é notificado para, no prazo de 30 dias: pagar o valor em dívida, celebrar acordo de pagamento com o requerente, indicar bens penhoráveis, ou opor-se ao procedimento. E sabemos ainda que se o devedor nada fizer nesse prazo de 30 dias o agente de execução procede à inclusão do devedor na lista pública de devedores no prazo de 30 dias. Isto significa que, na prática, as mais das vezes o executado ou paga ou é incluído na lista pública. Claro que é uma medida de constrição do devedor ao cumprimento, uma soft measure executiva: o credor não precisa de pedir que o deve pague; basta pedir que todos fiquem a saber que este é um devedor. Mas, novamente, esta medida também não é nova: sempre foi assumida em sede de Portaria n.º 313/2009, de 30 de Março.

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Mesmo a não distribuição a um tribunal não é decisiva, visto que apenas se admite PePEX se o credor estiver “munido de título executivo que reúna as condições para aplicação da forma sumária do processo comum de execução para pagamento de quantia certa”. Esta dispensa, nos termos dos artigos 855.º e segs. nCPC o despacho liminar e a citação prévia” [artigo 2.º n.º 1 alínea a)]. Portanto, a soft measure já hoje pode ter lugar sem juiz. Com o PEPEX a execução puramente administrativa de dívidas em Portugal saiu da clandesti­ nidade. O que se pode, no entanto, perguntar é se, em especial, há suficiente aparência de direito do credor, para ela ter lugar, e se, em geral, e seja qual for o diploma, se esta pressão sobre o devedor é legal.

3. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE A) SUFICIENTE DEMONSTRAÇÃO DO DIREITO? I. Sem título executivo não se admite o pedido de PePEX: o agente de execução recusa o reque­ rimento ao abrigo do artigo 8.º n.º 2 alínea c). Será esta garantia de aparência de título suficiente para pressionar o devedor? Temos algumas dúvidas. Senão veja-se o que se passa no equivalente artigo 855.º nCPC do processo executivo sumá­ rio (i. e., com dispensa de despacho limina e de citação prévia), conjugado com o artigo 725.º nCPC: Assim, o artigo 855.º (Tramitação inicial) enuncia que: 1 – O requerimento executivo e os documentos que o acompanhem são imediatamente enviados por via eletrónica, sem precedência de despacho judicial, ao agente de execu­ ção designado, com indicação do número único do processo. 2 – Cabe ao agente de execução: a) Recusar o requerimento, aplicando‑se, com as necessárias adaptações, o preceituado no artigo 725.º; b) Suscitar a intervenção do juiz, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 723.º, quando se lhe afigure provável a ocorrência de alguma das situações previstas nos n.os 2 e 4 do artigo 726.º, ou quando duvide da verificação dos pressupostos de aplicação da forma sumária.

Por seu turno, o artigo 725.º nCPC contém as situações em que por requisitos externos no processo executivo ordinário tem lugar a recusa de recebimento do requerimento executivo pela secretaria. Um deles é, nomeadamente [n.º 1 alínea d)] não ser “apresentada a cópia ou o original do título executivo”, situação equivalente à do artigo 8.º n.º 2 alínea c) proj PePEX. Mas faz-se ainda remissão para o n.os 2 e 4 do artigo 726.º nCPC. Ora, o que nestes garante é a verificação judicial provocada de casos importantes como que levariam ao aperfeiçoamento (n.º 4) ou ao indeferimento judicial liminar (n.º 2). A saber, com aplicação in casu, (i) ser manifesta a falta ou insuficiência do título e (ii) sendo título negocial, seja manifesta, face aos ele­ mentos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda de conhecimento oficioso; Pois, em sede de PePEx talvez esses fundamentos possam caber no espírito (e menos na letra) do artigo 8.º n.º 2 alínea c) – o documento “não constitua título executivo idóneo”. Ou ainda na remissão da alínea a) do mesmo n.º 2 para os requisitos do artigo 3.º, nos quais se inclui a dívida ser certa, líquida e exigível. Mas, tudo isto é merecedcr de dúvidas.

III. Mas, mesmo que o agente de execução passe a fazer esse controlo, perguntamos qual é a coerência axiológica: se estivéssemos em sede de ação executiva, deveria o juiz ser chamado a pronunciar-se; se estamos em sede de PePEx, não. E nós sabemos que a ratio do artigo 726.º é proteger o devedor de títulos e dívidas inexistentes.

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No entanto, a soft measure é, no mínimo, essencialmente a mesma. Há uma resposta que se pode dar: se o devedor pode sempre opor-se. Só que se ele não se opuser não haverá um juiz que oficiosamente o possa. Claramente, está-se na linha limite entre proteger oficiosamente o devedor ou dar-lhe esse ónus.

B). É CONSTITUCIONAL A PRESSÃO SOBRE O DEVEDOR? I. Vimos que há uma diferença de natureza entre declaração e execução: a primeira integra a função jurisdicional; a segunda não. Por esta razão, quer o princípio da igualdade material quer o princípio do contraditório têm uma expressão qualitativamente diversa na execução: se a função jurisdicional postula uma igualdade entre as pretensões das partes que toma expressão numa igualdade de armas e numa igualdade de audição prévia, a execução é, muito pelo contrário, uma fase de desigul­ dade material pois é um momento de exercício de um direito subjectivo reconhecido. E se a sentença é produzida em comparticipação dos interessados, a execução da sentença ou outro título tem lugar ainda que sem a participação do devedor. Essa essencial desigualdade explica o favor creditoris, a desnecessidade de colabaração do devedor para se conseguir uma satisfação do credor processualmente validade e o uso de meios coactivos contra o executado. II. Mas até onde pode ser constrangido o devedor? Não será a inclusão na lista negra uma restri­ ção aos seus direitos pessoais de bom nome? Não deverão apenas ilícitos criminais justificar um registo ominoso? Se a solução de registo informático de execuções é equilibrada pois há uma legitimidade específica de acesso, o mesmo já não se pode dizer da lista pública de execuções. Aparente­ mente, o interesse do tráfego jurídico em geral, prevalece sobre o direito ao desconhecimen­ to por terceiro das suas dívidas. Ora, também aqui houve uma viragem no paradigma social e jurídico: ser devedor sem património passa a apresentar grande desvalor. E no entanto, não se sabe em que circunstâncias o devedor chegou a essa situação. Em termos de lugar paralelo, se o processo de insolvência integra um incidente de qualifica­ ção do estado da insolvência – culposa, fortuita (cfr. artigos 185.º e segs. CIRE) –, já a execução singular trata todos por igual (…). Exemplo: a insolvência do devedor que destruiu, danificou, inutilizou, ocultou, ou fez desapa­ recer, no todo ou em parte considerável, o seu património, considera-se sempre culposa [cfr. artigo 186.º n.º 2 alínea a) CIRE]; a falta de bens do devedor singular que não negue as suas dívidas leva à sua inclusão na lista pública de execuções

4. UMA NOTA FINAL: A RESPONSABILIDADE DO AGENTE DE EXECUÇÃO POR MANUSEIO INDEVIDO DO PEPEX I. Além do próprio, quem deve responder pelo agente de execução que faz uso ilegal culposo ou gravemente negligente do PePEx, maxime, prejudicando um putativo devedor? O nosso agente de execução realiza justiça pública, pelo que ele deve sempre permanecer imparcial, boa fé e atuando de modo proporcional perante credor e devedor. Tal decorre dos prin­ cípios gerais da função administrativa e dos princípios do processo civil executivo. Em suma: o agente de execução é também o agente do executado. Esta afirmação, importantíssima, é, desde logo, confirmada pelo regime do agente de execução. Efetivamente, é certo que não estamos perante um funcionário do Estado. Muito pelo contrá­ rio, o artigo 99.º n.º 1 ECS enuncia que a solicitadoria é exercida “em regime de profissão liberal

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remunerada”. Portanto, e antes de mais, pode dizer-se que lei nega qualquer relação laboral ou hierárquica do agente perante o Estado, maxime perante o juiz16. Mas, ao mesmo tempo, ele sujeita-se a um regime de incompatibilidades e impedimentos nos artigos 120.º, 121.º n.º 2 ECS cumpre várias funções, mas uma delas é a de garantir que o agente de execução não perde a imparcialidade, favor do credor. Por ex., constitui impedimento haver participado na obtenção do título que serve de base à execução; ter representado judi­ cialmente alguma das partes, nos últimos dois anos. Mais: há um especial dever de imparcialidade perante as partes que se concretiza em a. declarar no acto de inscrição, para efeito de verificação de incompatibilidade, qualquer cargo ou actividade profissional que exerça [cfr. artigo 109.º alínea b) ECS]; b. requerer a suspensão da inscrição na Câmara quando ocorrer incompatibilidade superve­ niente [cfr. artigo 109.º alínea c) ECS]; c. recusar mandato ou nomeação oficiosa para causa que seja conexa com outra em que representem ou tenham representado a parte contrária [cfr. artigo 109.º alínea g) ECS]; d. Não contactar ou manter relações com a parte contrária ou contra-interessados, quando representados por solicitador ou advogado, salvo se por eles for previamente autorizado [cfr. artigo 109.º alínea m) ECS]. Finalmente, acresce ainda um especial dever de independência, estando inscrito como advo­ gado, por força do artigo 84.º EOA.

II. Ora, este regime exigente de imparcialidade e independência do agente de execução é incompatível – nega – com a frequente qualificação da relação entre exequente e agente como sendo de mandato. Pelo contrário, ele apenas se justifica por o agente de execução ter a natureza de um oficial público (pelas funções administrativas que cumpre) que é auxiliar da justiça17exercendo jus imperii em nome do Estado, seja na direcção do processo, seja na realização de actos materiais de realização coativa da prestação. Mais: a consagração de uma “reclamação, como modo de impugnação dos actos, mostra como há, ainda, uma relação entre o agente de execução e o Estado, por via do juiz. Essa relação está, por comparação, de todo ausente quando falamos de advogado e juiz: dos actos daque­ le não se reclama para o juiz. III. Mas mesmo este regime extraprocessual do agente de execução, relativo à relação com o exequente, está em difícil equilíbrio com o seu regime intraprocessual. Está mesmo, e permi­ temo-nos a expressão, “no fio da navalha”. Efetivamente, o sistema de escolha pessoal – não alietória – e de livre destituição ou, no novo artigo 720.º n.º 4, de destituição fundamentada – contraposta a uma restrição e concentração da competência pública para a destituição, por razões disciplinares – parece colocar o agente de execução na dependência do exequente, de tal modo que alguns vêm aí um contrato de prestação de serviços18, na subespécie de mandato, pois o agente de execução actuaria por conta do exequente, enquanto profissional privado19. Na nova lei essa qualificação sairia, aliás, reforçada pela evolução do regime da indicação de bens pelo exequente: se antes era clara a letra do artigo 834.º n.º 1 da não vinculação do agen­ te de execução à indicação de bens feita por aquele, agora o correspondente artigo 751.º n.º 2

16 Negando essa relação, Paula Costa e Silva, A reforma da acção executiva 3, 2003, 39, Abrantes Geraldes, O juiz e a execução, Th V/9 (2004), 37 e Mariana França Gouveia, Poder geral cit., 11. 17 Lebre de Freitas, AEx cit., 27. 18 Classificando-o com contrato de prestação de serviços de direito privado, Virgínio da Costa Ribeiro, As funções da acção executiva, 2011, 50 e 54, nos termos gerais do artigo 1154.º CC. 19 Neste sentido, STJ 6-Jul-2011/85/08.1TJLSB.L1.S1 (Fonseca Ramos): “o facto de apesar de intervirem em processos executivos agindo com latos poderes, na perspectiva da desjudicialização do processo, e actuarem em nome próprio, ainda que possam ser destituídos pelo Juiz mas só com justa causa, faz com que a componente, diríamos, privada da sua nomeação e o modo e responsabilidade da sua actuação, sobreleve a vertente da actuação paradministrativa, não devendo considerar-se que a sua actuação é a de um funcionário judicial, auxiliar ou comitido do Tribunal”.

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estabelece que “o agente de execução deve respeitar as indicações do exequente sobre os bens que pretende ver prioritariamente penhorados”, dentro dos limites da legalidade. V. Todavia, em nosso entendimento, não é líquida a natureza contratual da relação entre exe­ quente e agente de execução. É bom de ver que o agente não pode deixar cumpre as normas de processo e estatutárias, por muito que o exequente não queira. È isso que agora expressamente se garante no artigo 751.º n.º 2 in fine nCPC.: deve cumprir as instruções do exequente quanto aos bens a penhorar “salvo se elas violarem norma legal imperativa, ofenderem o princípio da proporcionalidade da penho­ ra ou infringirem manifestamente a regra” da adequação enunciada no n.º 1 do mesmo artigo. Além disso as ditas “instruções” são uma mera nomeação de bens à penhora (como se fazia até à reforma de 2003), relativa ao objeto desta, e que não se estendem a mais nenhum aspeto da atividade executiva do agente de execução. Por outras palavras, o exequente não pode dar válidas e eficazes instruções quanto aos termos da penhora, quanto à venda e quanto ao pagamento. A ser assim, a tratar-se de contrato de mandato, nos termos do artigo 1157.º CC, o agente de execução apenas fica obrigado a penhorar bens segundo as instruções do mandante, como decorreria do artigo 1161.º alínea a) CC, mas não mais. Um mandato para penhora, restrito. Uma tal extensão da contratualidade da relação exequente/agente de execução – agora cla­ ramente expressa no dito artigo 751.º n.º 2 in fine – estaria ainda dentro dos limites dos deve­ res de independência, imparcialidade e legalidade do agente de execução. Só que um contrato supõe direitos e deveres para uma ou ambas as partes, e não vislumbra­ mos senão um eventual direito à penhora dos bens indicados. Da escolha ou da possibilidade de destituição não pode o exequente retirar mais direitos a seu favor; tampouco expetativa jurídicas. Ou seja: não pode esperar que o agente opere como ele desejaria. O estatuto públi­ co do agente, as garantias que ele tem de respeitar, os princípios processuais, não permitem senão esta interpretação. Portanto, parece que temos, quando muito um contrato com um único dever. É muito pouco, convenhamos, e nem sequer está de acordo com o restante do corpo de normas que determinam e balizam a atividade do agente de execução. VI. Por isto, concluímos que o agente de execução não está na causa como mandatário do exe­ quente, ainda que sem representação, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente. Esta tem a natureza de negócio jurídico processual unilateral do exequente. Mas não é a escolha de quem vai praticar o ato público que determina a natureza de mandato ou não de quem o faz. Aliás, há vários casos, já vistos, em que nem sequer o agente de execução é escolhido pelo exequente. Justamente, e bem, o agente de execução do PEPEX deve ser sorteado, nos termos do artigo 7.º Em consequência, o Estado pode ser responsabilizado pelas actuações dolosas ou negligentes do agente de execução, tanto em sede de processo civil, como em sede de PEPEX 20.

O artigo está escrito segundo o novo acordo ortográfico. E, ainda em sede de ação executiva, o exequente pode ter de responder civilmente em razão da escolha Por ex., se um agente de execução causar dano ao executado por actos que integram um padrão de comportamento reiterado e que era objecto de processos disciplinares já pendentes à data da escolha do agente, o Estado pode responder nos termos da responsabilidade civil extracontratual (cfr. Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro) e o credor também por não poder ignorar aqueles. Contra, STJ 11-Abr-2013 / 5548/09.9TVLSNB.L1.S1 (ABRANTES GERALDES). “embora as atribuições do agente de execução não se circunscrevam às que são típicas de uma profissão liberal, envolvendo também actos próprios de oficial público, para efeitos de responsabilidade civil emergem os aspectos de ordem privatística que resultam, nomeadamente, da forma de designação, do grau de autonomia perante o juiz, do regime de honorários, das regras de substituição e de destituição, da obrigatoriedade de seguro ou do facto de o recrutamento, a nomeação, a inspecção e a acção disciplinar serem da competência de uma entidade que não integra a Administração”, pelo que “a responsabilidade civil que aos agentes de execução for imputada, no âmbito do exercício da sua actividade, obedece ao regime geral, e não ao regime da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas” 20

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A REFORMA DA ACÇÃO EXECUTIVA DE 2013, NCPC, DOS MOTIVOS À TRAMITAÇÃO, COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES DOS SOLICITADORES NA ACÇÃO EXECUTIVA SÉRGIO ALEXANDRE ESPANHOL MIRA Licenciado em Solicitadoria pelo Instituto Politécnico de Beja, Escola Superior de Tecnologia e Gestão

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A Reforma Da Acção Executiva De 2013, Ncpc

RESUMO Quando foi revelado o tema para o trabalho escrito a realizar: “A Reforma da Acção Executiva de 2013, NCPC, dos Motivos à Tramitação, Competências e Atribuições dos Solicitadores na Acção Executiva” jamais imaginava até onde o meu pequeno estudo podia chegar. Este pequeno estudo do qual sou autor e que agora é parte integrante da segunda edição da Colectânea “Solicitadoria e Acção Executiva – Estudos, do qual tenho o maior orgulho, foi proposto pelo meu docente e Solicitador João Valadas no decorrer da unidade curricular de Solicitadoria de Execução da licenciatura em Solicitadoria ministrada pelo Instituto Politécnico de Beja, Escola Superior de Tecnologia e Gestão, sendo o objectivo claro: uma visão prática e realista sobre o tema em debate, a si caro docente, uma palavra: obrigado. Aprendi que um processo executivo é “uma história” e como tal foi assim que arrumei a estrutura do trabalho, ou seja, simulando que cada passo se encontra conforme para poder avançar para o seguinte. Assim, iniciei com uma pequena nota introdutória, passando pelos princípios orientativos do processo civil, títulos executivos, legitimidade, intervenientes, Juiz na Acção Executiva, Oficial de Justiça, Secretaria, Advogado e Solicitador, Agente de Execução, Formas de Processo, Distingues na Tramitação, Oposição à Execução, Penhora, Impenhorabilidade, Oposição à Penhora, Pagamento em Prestações e Acordo Global e por último e porque parte que diz respeito à venda não foi solicitada no estudo as citações e concurso de credores.

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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #2

O curto limite de páginas estabelecido exigiu abrir mão de vários temas e concentrar-me naquilo que na minha humilde opinião é essencial bem como elaborar esquemas para melhor esclarecer o que pretendia transmitir.


Sérgio Alexandre Espanhol Mira

INTRODUÇÃO

N

o âmbito da disciplina de Solicitadoria de Execução do 3.º ano da Licencia­ tura em Solicitadoria foi-nos proposto a elaboração de um trabalho, tendo como tema a análise da Reforma Da Acção Executiva de 2013, os Motivos, a Tramitação, competências e atribuições dos Solicitadores na Acção Exe­ cutiva. Este trabalho aborda o direito processual civil, ou seja, instrumento atra­ vés do qual é permitido restituição de direitos lesados, quer seja através da acção para pagamento de quantia certa, quer na entrega de coisa certa, quer na prestação de facto, mas nos dias em que vivemos, a acção para pagamento de quantia certa tem uma enorme importância pois o momento actual de crise fez com que o volume de processos crescesse a um ritmo alucinante e por isso o processo civil teve que se adoptar à nova realidade. Dado à “falta de resposta” por parte dos Tribunais, em 2003, foi criada a figura do Solicitador de Execução que posteriormente veio dar origem ao que hoje denominamos de Agente de Execução. Tal como mencionado este processo foi “quase privatizado” mas no entanto continua sobre a alçada dos Tribunais mas a sofrer constante reformulações e alterações sendo a mais recente a que se encontra neste trabalho em estudo. Por força da crise, julga-se, Portugal foi “obrigado” a solicitar ajuda externa, tendo sido negocia­ do um plano entre o Governo e Troika, sendo que um dos pontos que consta do memorando de entendimento a diminuição a todo o custo da pendência e da morosidade processual. Para isto, e porque o revogado Código de Processo Civil não estava preparado para esta reali­ dade houve lugar a uma gigante reforma legislativa que tinha em vista sanar algumas “lacunas” e sobretudo encontrar mecanismos de modo a poder-se extinguir com maior facilidade e rapidez processos onde não sejam localizados bens dos executados, com isto, o processo mal começa e já terminou, e assim, as pendencias teriam de descer bruscamente. Assim, e face ao número de páginas estabelecidas para a realização desde trabalho irei analisar os pontos que, e salvo melhor opinião, me parecem mais oportunos e com maior relevância no dia-a-dia.

1. DESENVOLVIMENTO 1.1. NOTA INTRODUTÓRIA “No domínio da acção executiva, embora seja mantido o figurino introduzido pela reforma de 2003, assente na figura do agente de execução, o novo código introduz alterações e diversos planos (…)”.1 Cabe então dar definição ao que se entende acção executiva sendo vários os entendimento “(…) As acções executivas têm por finalidade a realização coerciva das providências destinadas à efectiva reparação do direito violado(…)”2 ou ainda, “Dizem-se «acções executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coactiva de uma obrigação”, cfr. n.º 4 do artigo 10.º do Código do Processo Civil, doravante designado por CPC. Em anexo I é representado a nova estrutura do Código de Processo Civil.

CORREIA, Pimenta e Castanheira: Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, p. 99 2 AMARAL, Jorge Augusto Pais: Direito Processual Civil, Almedina, 2013, 11.ª Edição, p. 27 1

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A Reforma Da Acção Executiva De 2013, Ncpc

1.2. PRINCIPIOS ORIENTATIVOS DO PROCESSO CIVIL De todos os princípios que orientam o Processo Civil alguns ganham destaque no que diz respeito à acção executiva sendo eles princípio da economia processual3, dispositivo4, contraditório5 e por fim o da igualdade6.

2. TITULOS EXECUTIVOS Entende-se por título executivo, documento, demonstrativo de um direito, que pode, segundo a lei, servir de base ao processo executivo7 sendo o pressuposto processual que delimita os fins e os limites, cfr. n.º 5 do artigo 10.º sendo certo que exige-se este seja certo, exigível e liquido, cfr. artigo 713.º ambos do CPC. Este tema é especialmente importante uma vez que ocorreu uma modificação profunda para a inclinação adoptada nas últimas décadas, pois ainda na legislação anterior, certas espécies de títulos executivos eram alvo de alguma divergência entre a jurisprudência e doutrina tendo esta reforma tentado de alguma maneira atenuar tal divergência mas não se reuniu novamente o consenso. Assim, e servindo o artigo 703.º do CPC como guia para estudo, encontramos na alínea a) do n.º 1 as sentenças condenatórias, também alvo de divergências, pois se a mesma tem por base acção declarativa8 de simples apreciação9 pela natureza da acção, não há lugar a condenação/ incumprimento e por consequência não motivam título executivo. Por outro lado, se provier de uma acção declarativa de condenação10 cfr. alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º, não subsistem quaisquer dúvidas em como a sentença constitui título executivo, sen­ do a grande diferença nesta alteração legislativa, pois inicia-se com simples requerimento do interessado, cfr. n.º 1 do artigo 626.º do CPC, correndo por apenso. Por fim, e se advier de uma acção declarativa constitutiva11, cfr. alínea c) do n.º 3 do artigo 10.º, geram conflito pois Lebre de Freitas, considera-as a alínea a) do n.º 1 do artigo 703.º, desde que tenham pedidos implícitos, no entanto, Miguel Teixeira de Sousa defende que não procriam títu­ los executivos Mas, esta reforma veio de alguma maneira atenuar tal divergência retirando do “rol” de documentos particulares12 os títulos de créditos sendo por sua vez integrados na alínea c) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC passando agora a valer como meros quirógrafos, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem no próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo, no entanto, e face à exigência do artigo 2.º da Portaria n.º 282/2013 de 29 de Agosto, fundando-se a execução em titulo de crédito, dispõe o exequente de 10 dias, subsequente à distribuição, cfr. arti­ gos 203.º e ss, para fazer chegar o original do documento, cfr. n.º 5 do artigo 724.º, sob pena de ser proferido despacho nos termos e para os efeitos da aliena a) do n.º 2 do artigo 726.º, todos do CPC. 3 Consiste com o mínimo de esforço processual possível alcançar o resultado pretendido. Exemplo disso encontramos nos artigos 36.º, 130.º e 131.º todos do CPC. 4 Encontramos este princípio batente no n.º 1 do artigo 3.º do CPC, ou seja, o Tribunal não pode resolver conflitos sem que seja solicitado por uma das partes. 5 Já tem sido denominado a trave mestra do sistema processual civil, permitindo a cada uma das partes, deduzir as suas razões, de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas do adversário. Encontra-se espelhado no artigo 3.º, conjugando o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa com o artigo 4.º do CPC, cruzando-se assim com o princípio da igualdade. 6 Vide nota n.º 5. 7 PRATA, Ana: Dicionário Jurídico, Almedina, 2012, 5.º Edição, Volume I, Pág. 1420 8 Acções que visam o reconhecimento da existência ou inexistência de um direito 9 Apontam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, cfr. alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CPC. 10 Acções em que o autor para além de querer ver declarado que o seu direito esta a ser violado também pretende a condenação quer através da realização de uma determinada prestação quer por meio de uma abstenção ou omissão, cfr. alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do CPC. 11 O autor pretende obter, através do tribunal, um efeito jurídico novo que vai alterar a esfera jurídica do réu, independentemente da sua vontade. 12 É qualquer documento escrito e assinado pelo seu autor que não seja documento autentico nem tenha sido confirmado pelas partes perante notário.

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Mas, a grande alteração e no que a este capítulo diz respeito encontra-se na supressão da exequibilidade dos documentos particulares. Segundo João Correia, Paulo Pimenta, e Sérgio Castanheira, a grande mudança nos títulos executivos tem como objectivo reduzir, palavra imposta pela TROIKA13, e assim de uma só vez, reduzir o número de acções declarativas, reduzir o risco de execuções injustas, tornar mais simples e menos frequentes as oposições à execução, uma vez que são reduzidos “ao máximo” as dúvidas quanto ao titulo executivo. Sem possibilidade de excepções dilatórias no que ao titulo diz respei­ to, o processo ficará mais célere e por consequência a pendência irá também reduzir objectivo da TROIKA e constante do memorando de entendimento. Por seu turno, é esperado um acréscimo significativo do processo de injunção, no entanto, e como “não corre” em tribunal não leva a acréscimo de pendência, mas neste processo é assegu­ rado ao réu o contraditório através de oposição à injunção pelo requerido. Esta abolição leva a que exista um crescimento nas execuções baseadas em injunções às quais foi aposta fórmula executória, que por seu turno têm como objectivo: confiança aos títulos exe­ cutivos, restrição dos motivos de oposição à execução baseada em requerimento de injunção e atenuar a pressão dos tribunais, um pena ressalva que este processo de injunção não é novidade nesta alteração legislativa. Antes aos documentos particulares, apenas bastava que estivessem, assinados pelo devedor e importassem o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cfr. n.º 1 do artigo 46.º do CPC revo­ gado, com a nova alteração os documentos particulares para assistirem de base à execução, necessitam de ser autenticados, cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC, introduzindo-se assim a obrigatoriedade de os documentos particulares que reconheçam obrigações serem autenticados. 2.1. LEGITIMIDADE Neste capitulo, não existem divergências, pois a mesma apura-se pelos sujeitos que titularem no título executivo, cfr. artigo 53.º do CPC, havendo no entanto, desvios à regra geral, cfr. artigo 54.º, quer seja pro via da sucessão, cfr. n.º 1, quer quando seja provida de garantia geral sobre bem de terceiro, cfr. n.º 2 e 3, e encontrando-se os bens onerados em posse de terceiro, cfr. n.º 4. A falta deste pressuposto processual leva a uma excepção dilatória, cfr. alínea e) do artigo 577 do CPC, sanável nos termos do artigo 578.º, impede o Juiz de conhecer do mérito da causa e caso não seja sanada levará a absolvição do réu da instância, cfr. n.º 2 do artigo 576.º do CPC.

3. INTERVENIENTES A nova alteração legislativa, consagrou a repartição de competências, cfr. artigo 719 do CPC tendo orientado as competências e esferas do Juiz, secretaria e do Agente de Execução evitando desta forma os actos desnecessários tendo como objectivo o desfecho mais célere e eficaz. 3.1. JUIZ NA ACÇÃO EXECUTIVA O Juiz é “todo aquele que por lei ou designação das partes (por exemplo o Juiz arbitral), exercer funções jurisdicionais, isto é, de resolução de litígios (conflitos de interesses) entre particulares ou entre particulares e o Estado, e por vezes, até entre Estados (…)”14 e encontramos consagrado no artigo 152.º Na reforma de 2003: “(…) O referido artigo 808.º, n.º 1, nas suas anteriores redacções, em parti­ cular a dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08/03, previa expressamente que cabia ao agente de execução efectuar todas as diligências do processo de execução, incluindo citações, O termo troika foi usado como referência às equipas constituídas por responsáveis da Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional que negociaram as condições de resgate financeiro na Grécia, no Chipre, na Irlanda e em Portugal

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notificações e publicações, sob controlo do juiz. Esta norma carecia de ser conjugada com o arti­ go 809.º, n.º 1 (…).”15 Em 2008, “(…) A reforma de 2008 eliminou esta referência expressa ao “controlo do juiz”, o que foi interpretado como um indicador claro de que o papel do Agente de Execução havia sido reformulado, passando a estar praticamente sozinho na condução do processo do CPC, que, na sua redacção de 2003, aludia também ao poder geral de controlo do processo por parte do Juiz.”16 Em 2013: “(…) Porém, no NCPC não consta norma equivalente (nem sequer na Proposta de Lei n.º 521/2012, de 22/11/2012). O que pensar disto? Creio que uma tal previsão legal seria desneces­ sária e que o Juiz nunca perdeu o poder de controlo do processo, que, aliás, até sai reforçado, como decorre designadamente do artigo 6.º do NCPC, que consagra expressamente o dever de gestão processual, o poder-dever do Juiz de direcção do processo. Assim, e por exemplo, parece-me evi­ dente que o Juiz pode controlar se os prazos estão a ser cumpridos pelo Agente de Execução (…).”17 Quando ao mencionado dever de gestão processual e competências do Juiz vide anexos II e III. 3.2. O OFICIAL DE JUSTIÇA A expressão “oficial de justiça” engloba conjunto de funcionários da justiça, entre eles, Escrivão de Direito, Escrivão-adjunto e Escrivão-auxiliar, cfr. artigos 1.º, 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 121/2008 de 11 de Julho, que materializa o Estatuto dos Funcionários de Justiça. O papel do oficial de justiça consiste na “(…) prática de actos de secretaria no âmbito dos pro­ cessos que correm termos nos tribunais – designadamente a autuação, a incorporação material dos requerimentos e peças processuais mais relevantes, a junção de expediente em suporte papel, as notificações –, mas também na própria organização do serviço, em articulação com o Juiz de Execução e com o Juiz Presidente do Tribunal de Comarca.5 Além disso, em determinadas situações previstas na lei o Oficial de Justiça poderá, no lugar do Agente de Execução, realizar as diligências de execução (cfr. artigo 808.º, n.os 4 e 5, do CPC e artigo 722.º, n.º 1, do CPC) (…).”18 Todas as funções atribuídas ao mesmo encontram-se patentes no anexo IV. 3.3. SECRETARIA Nesta nova reforma, à luz do n.º 1 do artigo 725.º do CPC, cabe à secretaria recusa do requeri­ mento executivo, em sede de processo ordinário, sendo certo que antes cabia ao Agente de Execução, cfr. ex. artigo 811.º, esta transformação tem por objectivo a uniformidade do processo civil uma vez que em sede declarativa é a secretaria que tem competências para recusar a petição inicial, cfr. artigo 558.º CPC. 3.4. ADVOGADO E SOLICITADOR O primeiro, “é licenciado em direito, inscrito na Ordem dos Advogados, que exerce o mandato judicial como profissão. O artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa diz que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocí­ nio forense como elemento essencial à administração da justiça.”19, A sua actividade abrange a prática de actos próprios da advocacia nos termos e para dos efei­ tos dos artigos 61.º a 108.º da Lei n.º 49/2004 de 24 de Agosto – Estatuto da Ordem dos Advoga­ dos e tal como mencionado exerce a sua actividade com mandato forense conferido por exe­ quentes, executados, credores, reclamantes, terceiros embargantes, cfr. n.º 7 do artigo 1.º do mencionado diploma. Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 433 16 Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 434 17 Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 434 18 Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 417 19 PRATA, Ana: Dicionário Jurídico, Almedina, 2012, 5.º Edição, Volume I, p. 77 15

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O segundo, profissional do foro, inscrito na Câmara dos Solicitadores e que exerce profissional­ mente o mandato judicial20sendo a sua actividade estabelecida no artigo 99.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 88/2003 de 26 de Abril com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008 de 20 de Novembro - Estatuto da Câmara dos Solicitadores, a saber: exercem a sua actividade, “em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão, designadamente exercer o mandato judicial, nos termos da lei, em regime de profissão liberal remunerada.” “Um último traço comum, transversal a todos os que abraçam estas profissões, é estarem dota­ dos duma boa dose de coragem, na medida em que não é fácil tomar decisões que afectam os direitos das pessoas (propriedade, habitação, intimidade da vida privada) e porque existem situa­ ções complicadas e até de algum risco para a própria segurança pessoal (aqui os senhores Agen­ tes de Execução estão mais expostos), que é preciso enfrentar com espírito de missão. Estamos a falar de profissões em que é preciso “vestir a camisola” e interiorizar a ética e deon­ tologia profissionais. Esta é, aliás, uma matéria que vai ser tratada nestas Jornadas e que me pare­ ce ser das mais difíceis de ensinar, porque não basta conhecer as regras previstas nos Estatutos é preciso em cada momento das muitas encruzilhadas da nossa vida profissional conseguir, quase imediata e intuitivamente, agir de acordo com as mesmas”.21 3.5. O AGENTE E EXECUÇÃO “Entrando na análise do papel do Agente de Execução, é sabido que se trata duma figura relati­ vamente nova no mundo judiciário, pois embora a sua génese remonte à reforma da acção execu­ tiva de 2003 (com o Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08/03), foi só com a reforma de 2008 (Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20/11) que surgiu a figura do Agente de Execução como hoje o conhecemos(…)” “(…) Até essa altura, e apesar da epígrafe do artigo 808.º do CPC, é curioso que não se era propriamente agente de execução, mas apenas se desempenhava as funções de agente de exe­ cução, sendo certo que, em regra, essas funções eram desempenhadas por Solicitador de Execu­ ção e, nos casos previstos na lei, por Oficial de Justiça. Com a reforma de 2008 abandonou-se a expressão Solicitador de Execução, e nasceu o “Agente de Execução” propriamente dito, com um estatuto específico, que não é aplicável aos Oficiais de Justiça (cfr. artigo 808.º, n.º 13, do CPC e artigo 722.º, n.º 2, do NCPC), estatuto esse que encontra consagração nos artigos 116.º a 131.º-C do Estatuto da Câmara dos Solicitadores ”22 É um profissional liberal, que tanto pode ser Advogado como Solicitador e que exerce funções públicas no âmbito do processo civil, em especial do processo executivo, cfr. 720.º do CPC mas também tem intervenção outros tipos de processo. “(…) Por outro lado, a ideia de que o Agente de Execução actua apenas nas acções executivas, quando, na verdade, embora o núcleo essencial das competências do agente de execução se inscreva no âmbito da acção executiva, não se esgota nessa sede, sendo este chamado a realizar citações em todos os processos judiciais [artigos 233.º, n.º 2, alínea c), 239.º e 240.º do CPC e arti­ gos 225.º, n.º 2, alínea c), 231.º e 232.º do NCPC], bem como a intervir nos procedimentos caute­ lares especificados de arresto e arrolamento (aplicando-se as disposições relativas à penhora por via dos artigos 406.º, n.º 2, e 424.º, n.º 5, do CPC e artigos 391.º, n.º 2, e 406.º, n.º 5, do NCPC), e também, até à entrada em vigor do NCPC, nos processos especiais, em particular nas acções de divisão de coisa comum, quando é necessário proceder à venda da coisa comum precedida das citações previstas no artigo 864.º do CPC, aplicável por via do artigo 463.º, n.º 3, do mesmo Códi­ go (competência que, no novo Código, é conferida ao oficial de justiça – cfr. artigo 549.º, n.º 2, do NCPC). Além disso, é de salientar a intervenção no âmbito do procedimento especial de despejo (a par do notário), conforme previsto nos artigos 15.º-A a 15.º-S da Lei n.º 6/2006, de 24/02, intro­ duzidos pelo artigo 5.º da Lei n.º 31/2012, de 14/08…”23 PRATA, Ana: Dicionário Jurídico, Almedina, 2012, 5.º Edição, Volume I, p. 1369 Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 424 22 Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 424 23 Centro de Estudos Judiciários, Caderno I, 2.ª Edição, Dezembro de 2013, O novo Processo Civil, Contributos Da Doutrina Para A Compreensão Do Novo Código De Processo Civil, p. 425 20 21

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O Agente de Execução deve, no exercício das suas funções, cumprir com os deveres dispostos no artigo 123.º ECS e na acção executiva desempenha um papel fundamental que está consagra­ do no n.º 1 do artigo 719.º e 720.º ambos do CPC e ainda no artigo.º 36.º e seguintes da Portaria n.º 282/2013 de 29 de Agosto. As suas competências serão alvo de análise no anexo V.

4. FORMAS DE PROCESSO A regra dita que o processo é tramitado electronicamente, cfr. artigo 712.º do CPC conjugado com o artigo 5.º da Portaria 282/2013 de 29 de Agosto, no entanto, o conforme já abordado o processo pode revestir umas formas possíveis: ordinário ou sumário, cfr. n.º 1 do artigo 550.º CPC, sendo elaborado anexo 3 para melhor entendimento da matéria em estudo. Com esta disposição julga-se que o legislador pretende alcançar um “(…) maior controlo judi­ cial na fase introdutória da execução, pois execuções que até agora principiavam pela penhora passarão a ser submetidas a despacho liminar, o que reforçará as garantias do executado (…).”24 Nas execuções destinadas a entrega de coisa certa e para prestação de facto, o processo segue forma única, cfr. n.º 4 do artigo 550.º do CPC. Para o efeito, foi elaborado anexo VI. 4.1. DISTINGUES NA TRAMITAÇÃO O processo sob a forma sumária, cfr. artigo 855.º do CPC, apenas é tramitado pelo Agente de Execução por isso compete a este examinar os pressupostos processuais. Neste tipo de processo, existe lugar à dispensa de citação prévia, pelo que, após a recepção do mesmo, analisa os pressupostos processuais e se tudo estiver “conforme”, tramita-o, dando inicio as consultas prévias à penhora e concretiza-se a penhora e só à posteriori é o executado citado, fazendo-se aqui uma pequena ressalva, tendo executado de ser citado quando o mesmo se encontrar presente no acto da penhora, cfr. artigos 855.º e 856.º ambos do CPC. Frisar, que tudo o que não se encontrar previsto para esta forma de processo aplica-se subsi­ diariamente as indicações do processo ordinário, cfr. n.º 3 do artigo 551.º CPC. Por sua vez, a tramitação do processo sob a forma ordinária, cfr. artigo 724.º do CPC, e tal como abordado nas competências da secretaria, é esta que tem competência para proceder à recusa do requerimento executivo, cfr. artigo 725.º, e existe sempre lugar a despacho liminar, cfr. artigo 726.º, sendo assim o controlo dos pressupostos processuais d alçada do Juiz, devendo este con­ vidar o exequente a suprir as irregularidades e a sanar a falta de algum dos pressupostos, cfr. n.º 4 do artigo 726.º sob pena de ser indeferido o requerimento executivo. O executado é citado previamente, cfr. n.º 6 do artigo 726.º, havendo dispensa de citação pré­ via quando for alegado o previsto no n.º 1 do artigo 727.º, cabendo ao Juiz pronunciar-se e deci­ dir, cfr. n.º 2 do mesmo artigo. Existindo citação do executado é efectuada para que este, querendo, pague ou se oponham à execução, no prazo de 20 dias, cfr. n.º 1 do artigo 728.º, sendo certo que se nada dizer passado o prazo da citação serão efectuadas as diligências de penhora e posteriormente será efetuada a mesma, sendo elaborado o Auto de Penhora, cfr. artigo 766.º, havendo aqui também lugar a opo­ sição do executado, cfr. artigo 784.º todos do CPC.

5. OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO Para melhor análise e entendimento foram elaborados vários esquemas constantes no anexo VII. Este incidente processual encontra-se previsto no artigo 728.º e seguintes do CPC, e encontra­ -se intimamente ligado ao princípio do contraditório, no entanto, encontra-se limitado face ao limites e fundamentos previstos e estipulados para cada tipo de título executivo. 24 PIMENTA, Paulo: A acção executiva na reforma do processo civil; in Revista da Ordem dos Advogados, Vol. II/ III – Abr./Set. 2012

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O executado, querendo, e citado para o efeito, efectua oposição mediante embargos tendo como objectivo a extinção da execução. A oposição à execução consagra o princípio do contraditório, no entanto este princípio é constrangido face ao título executivo em que se fundamenta a acção executiva pois este trás emparelhada uma presunção de existência de um direito, sendo por isso atribuída força probató­ ria, que reforça quando o títulos é judicial e que por isso o fundamentos de oposição à execução firmada em sentença, encontrando-se aqui limitado ao estipulado no artigo 729.º do CPC. Sendo fundamentado por outro título, os fundamentos para a oposição são mais “alargados”, cfr. artigo 731.º. Cabe, uma analise as execuções baseadas em titulo de injunção, encontrando-se os funda­ mentos específicos previsto no artigo 857.º do CPC. No revogado código, esta era parte integrante do elenco do n.º 2 do artigo 814.º do CPC, ou seja, com fundamentos era permitido a este título os mesmos fundamento admitidos as sentenças. Tal cenário, mudou após o acórdão proferido Ac. TC 437/2012, onde a esta norma no que con­ cerne à injunção foi declarada inconstitucional baseando-se o Tribunal Constitucional que não se pode dar o mesmo “valor” a um título obtido de forma administrativa a um obtido de forma judicial. Vejamos então o processo ordinário, o executado dispõe, querendo, tem 20 dias, para se opor mediante embargos, no processo sumário o executado igualmente 20 dias, para querendo, dedu­ zir oposição à execução e a penhora efectuada, devendo esta ser efectuada no prazo de 5 dias contados da data da realização da penhora, cfr. n.º 2 do artigo 856.º do CPC. Mas, a apresentação de oposição à execução não suspende a execução uma fez que os seus efeitos são meramente devolutivos. Assim, para garantir a suspensão do processo o executado terá e ir de encontro com o previsto no artigo 733.º, sendo certo que enquanto o processo se encontrar suspenso apenas se podem praticar actos urgentes destinados a evitar dano irreparável. Relativamente à prestação de caução, tem como efeitos a suspensão do processo executivo pois dessa forma o executado consegue garantir ao exequente a quantia exequenda, esta pode ser efectuada de diferentes formas: carta de conforto, a garantia bancária, hipoteca, sempre mediante aceitação do exequente. Logo, se for apresentado embargos de execução e esta prosseguir é sinónimo de dizer que nenhum dos fundamentos do mencionado no artigo 733.º foi invocado.

6. PENHORA “A satisfação do direito do exequente (e outros credores com garantia real que venham recla­ mar os seus créditos) é conseguida, no processo de execução, mediante a transmissão de direitos do executado, seguida do pagamento da dívida exequenda. Para que essa transmissão se realize, há que proceder previamente à apreensão dos bens que constituem objecto desses direitos, ao mesmo tempo paralisando ou suspendendo, na previsão dos actos executivos subsequentes, a afetação jurídica desses bens à realização de fins do executado, que fica consequentemente impedido de exercer plenamente os poderes que integram os direitos de que sobre eles é titular, e organizando a sua afetação específica à realização dos fins da execução”.25 Tendo como pedra-toque a definição dada por Lebre de Freitas, posso afirmar que este proces­ so denominado penhora não é mais que a apreensão judicial de bens do executado tendo em vista a satisfação do dos direitos do exequente por força da coercibilidade, ou seja, face à situação de incumprimento e através do sistema judicial, o exequente priva o executado dos poderes sobre os seus bens, tendo em vista a venda dos mesmos para a satisfação do crédito do exequente. 6.1. IMPENHORABILIDADE Este capítulo trata dos bens que não podem em parte ou no seu todo serem penhorados, a título de exemplo, “(… A preocupação do julgador deve ser a da garantia do mínimo de condições 25

FREITAS, Lebre: A acção Executiva- Depois da Reforma da Reforma, Coimbra Editora, 2012, p. 205 71


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de vida do executado, o que passa pela impenhorabilidade de tudo o que possa por em causa a disponibilidade do executado a um rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacio­ nal (…).”26 A lei tipifica esta matéria, ou seja, consta quais dos bens de impenhorabilidade absoluta, rela­ tiva e parcial, sendo, os bens absolutamente impenhoráveis, cfr. artigo 736, os bens relativamente impenhoráveis, cfr. artigo 737, com as ressalvas no n.º 2 do artigo 737.º e os bens parcialmente penhorados, cfr. artigo 738.º todos do CPC.

7. OPOSIÇÃO À PENHORA Este incidente processual é o exemplo prático do princípio do contraditório e como a sua pre­ sunção legal prevista no artigo 784.º do CPC, no prazo de 10 dias contados da notificação do auto de penhora, cfr. n.º 1 do artigo 785.º, o executado, querendo pode defender os seus direitos que considere lesados e caso se verifique uma situação em que o executado preste caução, a execu­ ção suspende-se. O executado ao opor-se à penhora, fá-lo respeitante a um bem específico o que implica que a suspensão ocorrerá apenas quanto ao bem penhorado sobre o qual recaiu uma oposição, pros­ seguindo por isso a execução contra os outros bens penhorados (artigo 785.º3 CPC). Importante ressalvar que enquanto a oposição não for julgada procedente ou improcedente nem o exequente nem qualquer outro credor reclamante pode ser pago sem prestar caução, cfr. n.º 5 do artigo 785.º do CPC. Caso, seja julgada procedente a oposição à penhora cabe ao Agente de Execução proceder ao levantamento da mesma, cfr. n.º 6 do mesmo artigo.

8. PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES E ACORDO GLOBAL Este preceito encontra-se previsto nos artigos 806.º a 809.º, e com esta nova alteração ao Códi­ go de Processo Civil para além de manter a figura do acordo de pagamento em prestações, no entanto, criou nova “figura”, o acordo global. A principal novidade nesta figura é que no Código revogado a execução suspendia-se durante o período do acordo de pagamento por seu lado no novo Código a execução extingue-se, cfr. n.º 2 do artigo 806.º, uma clara manobra para reduzir pendencias em processos que afinal não se encontram “findos com pagamento integral”. A novidade, o acordo global, encontra-se consagrada no artigo 810.º, e neste mecanismo per­ mite que seja celebrado um plano global de pagamentos entre exequente, executado e credores reclamantes, ou seja, com este plano todos ficam assegurados. No Código anterior isto não seria possível mas o credor reclamante após a notificação da extin­ ção da execução podia requerer a renovação da instância assumindo assim o lugar do exequente, cfr. ex-artigo 920.º do CPC revogado.

9. CITAÇÕES E CONCURSO DE CREDORES “Existindo vários credores de um mesmo devedor, todos eles têm, em principio, o direito a ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, se aquele não for suficiente para satisfazer integralmente todas as suas dívidas (…).27 Efectuada a penhora, elaborado o Auto de Penhora e citado o executado para deduzir oposição à penhora, segue-se as citações previstas no artigo 786.º do CPC, devendo, o Agente de Execução “cha­ mar” todos os sujeitos previstos no mencionado artigo, adaptando o preceito ao processo em ques­ tão, sendo certo que os chamados “credores públicos” tem sempre de ser obrigatoriamente citados. 26 27

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Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 8768/2006-6, datado de 2 de Novembro de 2006 PRATA, Ana: Dicionário Jurídico, Almedina, 2012, 5.º Edição, Volume I, p. 333

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Para existir com concurso de credores é essencial que exista uma reclamação de créditos, cfr. artigo 788.º, disposto o potencial credor de 15 dias para efectuar a sua reclamação de créditos, sendo certo que a mesma correrá por apenso à execução, cfr. n.º 8 do mesmo artigo. Apresentada a reclamação de créditos e sendo a mesma aceite, será verificado e graduado os créditos e posteriormente elaborada, pelo Juiz, a sentença da graduação dos créditos, cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 723.º e 791.º ambos do CPC.

CONCLUSÃO Sendo um interessado no Processo Civil, este trabalho serviu para interpretar as novas ideias, conhecer a nova numeração do Código e sobretudo fico com a sensação que este novo Código traz mais certezas e celeridade que o anterior, nesse sentido foi elaborado um esquema patente no anexo VIII. Vejamos, um dos grandes problemas dos Agentes de Execução eram as incertezas quanto ao título e quando se tratava de documentos particulares as duvidas levantadas ao Juiz eram imensas. Agora, existe uma maior certeza quanto a estes e quanto à sua veracidade e presunção de verdade, na medida em que terão de ser autenticados e ter o respectivo termo de autenticação. Por outro lado, as sentenças, devem ser executadas no próprio processo mediante requeri­ mento. Mas algo que preocupa os Agentes de Execução, as suas Notas de Honorários e Despesas, passa­ ram igualmente a constituir titulo executivo o que traz sem dúvida uma maior segurança à classe. Quanto à repartição de competências no seio da acção executiva, tal como se diz na gíria “cada macaco no seu galho” e parece que este ditado popular encaixa que nem uma luva neste tema, parece-me que as competências encontram-se determinadas e modo a não acontecer fenóme­ nos como os processos ficarem parados meses porque ninguém julga ser da sua competência o tramite seguinte, sendo certo que a forma obrigatória de tramitar electronicamente o processo além de se tornar mais rápido, transparente, é mais ecológico e vantajoso para todos os interve­ nientes pois não existe hipótese de se perderem documentos. A penhora de saldos bancários, é o grande “cavalo de guerra” entre Agentes de Execução e Governo pois encontra-se prevista desde 2003 e só 10 anos depois começou, e mal, a funcionar, vamos dar tempo ao tempo e ver se será ou não mais vantajoso, outro modo de dar rapidez ao processo foi a revogação do despacho judicial a autorizar a penhora de saldos bancários, no entanto, mais responsabilidade recai sobre o Agente de Execução. As formas de processo distintas, e terminar com o infinito artigo 812.º, veio finalmente “organi­ zar” o processo executivo, sendo certo que alguns processos sob a forma sumária podem nem chegar as mãos de um Juiz, cabendo toda a responsabilidade ao Agente de Execução, a meu ver, trata-se de um claro voto de confiança à classe, mas também uma forma de terminar os proces­ sos ditos “pequenos” no menor espaço de tempo. Existiu também uma protecção ao Agente de Execução ao ser revogado a norma que permitia que o mesmo fosse livremente e sem justificação substituído. Fico com a consciência de ter abordado, aos meus olhos, o que pareceu ser mais pertinente, no entanto, sei que muito mais sobre esta reforma deve ser dita e explicada.

O artigo não está escrito segundo o novo acordo ortográfico.

Bibliografia Suporte Impresso: CORREIA, Pimenta, Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013. AMARAL, Jorge Augusto Pais, Direito Processual Civil, Almedina, 2013, 11.ª Edição.

Suporte Digital: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/ Caderno_I_Novo%20_Processo_Civil.pdf http://www.novocpc.org/ http://solicitador.net/ Todos os websites foram consultados no Dezembro do corrente ano.

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A Reforma Da Acção Executiva De 2013, Ncpc

Anexo I

LIVRO I Da Acção, das Partes e do Tribunal

LIVRO V Dos Processos Especiais

Sistematização do Código de Processo Civil

LIVRO V Do Processo de Execução

LIVRO II Do Processo em Geral

LIVRO V Do Processo de Declaração

Anexo II

Verdaddeiro DEVER de Gestão Processual, cfr. artigo 6.º

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Contraditório “Ouvidas as partes”

Irrecorribilidade, salvo quando contender com o Princípio da Igualdade ou do Contraditório, com a Aquisição Processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios, cfr. n.º2 artigo 630.º


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Juiz

Anexo III – Declarar extinta a execução; – Proferir o despacho liminar; – Rejeitar total ou parcialmente a execução; – Indeferir liminarmente ou receber a oposição à execução assim como julgar a oposição à execução; – Autorizar (ou não) a consulta de declarações ou elementos protegidos pelo sigilo fiscal, bem como de outros dados sujeitos a regime de confidencialidade; – Julgar a oposição à penhora; – Decidir sobre o prosseguimento da execução no caso de registo provisório da penhora; – Decidir sobre a prossecução da gestão do estabelecimento comercial penhorado pelo executado quando o exequente se oponha à mesma; – Verificar e graduar os créditos reclamados; – Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de actos e impugnações de decisões do agente de execução;

Anexo IV

Funções do Oficial de Justiça (à Luz do artigo 722.º do NCPC)

– Nas execuções em que o Estado seja o exequente; – Nas execuções em que o Ministério Público represente o exequente; – Quando o juiz o determine, a requerimento do exequente, fundado na inexistência de agente de execução inscrito na comarca onde pende a execução e na desproporção manifesta dos custos que decorreriam da atuação de agente de execução de outra comarca; – Quando o juiz o determine, a requerimento do agente de execução, se as diligências executivas implicarem deslocações cujos custos se mostrem desproporcionados e não houver agente de execução no local onde deva ter lugar a sua realização; – Nas execuções de valor não superior ao dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância em que sejam exequentes pessoas singulares, e que tenham como objeto créditos não resultantes de uma atividade comercial ou industrial; – Nas execuções de valor não superior à alçada da Relação, se o crédito exequendo for de natureza laboral e se o exequente o solicitar no requerimento executivo e pagar a taxa de justiça devida.

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A Reforma Da Acção Executiva De 2013, Ncpc

Anexo V

Agentes de Execução

– Recusar o requerimento executivo (processo sumário), cfr. aliena a) do n.º 2 do artigo 855.º do CPC; – Remessa ao juiz para proferir despacho liminar, em sede de processo sumário em situações previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 855.º do CPC, em processo ordinário esta competência é da secretaria, cfr. n.º 1 do artigo 726.º CPC; – Citar o executado, cfr. n.º 1 do artigo 719.º e n.º 8 do artigo 726.º ambos do CPC; – Dever de informação e comunicação, cfr. artigo 754.º CPC e no artigo 42.º da Portaria n.º 282/2013; – Localizar bens susceptíveis de penhora, cfr. artigos 748.º e 749.º CPC, sendo certo que em processo ordinário apenas o pode fazer após ser notificado para o efeito pela secretaria, cfr. n.º 1 do artigo 748.º – Proceder às diligências de penhora, cfr. artigos 751.º e ss; – Determinar o incidente de levantamento de penhora, cfr. artigo 763.º CPC; – Decidir o levantamento da penhora sobre bens do herdeiro: se no antigo n.º 2 do artigo 827.º competia ao Agente de Execução, actualmente esta competência é do Juiz conforme n.º 3 do artigo 744.º ambos do CPC; – Desempenhar as funções de depositário dos bens penhorados, imóveis (artigos 756.º e 757.º) que respeita móveis (artigo 764.º CPC); – Autorizar a divisão do prédio penhorado, competência retirada ao Agente de Execução e concedida ao Juiz, cfr. ex. 8421.º-A CPC em confrontação com o artigo 759.º do CPC em vigor; – Citar: cônjuge do executado/credores com garantia real, cfr. n.º 1 do artigo719.º e 786.º ambos do CPC; – Sustar a execução quando e quanto aos bens em que pendam penhoras anteriores, em conformidade com o disposto no artigo794.º CPC.; – Declarar extinta a execução nos termos do artigo 849.º CPC;

Anexo VI

Sumário

Ordinário

Decisão arbitral ou judicial nos casos em que esta não deva ser executada no próprio processo;

Quando a obrigação não é certa, nomeadamente alternativa e dependa de escolha;

Requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória;

Quando a obrigação não é exigível, nomeadamente por estar dependente de verificação da condição suspensiva;

Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor;

Quando a obrigação não é líquida, e careça de ser liquidada na fase executiva e não dependa de simples cálculo aritmético;

Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância;

Quando, havendo título executivo diverso de sentença apenas contra um dos cônjuges, o exequente alegue a comunicabilidade da dívida no requerimento executivo; Nas execuções movidas apenas contra o devedor subsidiário que não haja renunciado ao benefício da excução prévia;

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Anexo VII Oposição à Execução

Oposição à execução simultânea com oposição à penhora (artigo 856.º 1 CPC)

Processo Sumário Opção 1:

Processo Ordinário

Decisão do Juiz face aos embargos

Deferimento

Execução prossegue

Se improcederem os embargos

Execuente exerce o contraditório no prazo se procederem aos embargos de 20 dias (n.º 2 do 732.º CPC)

Processo Ordinário

Decisão do Juiz face aos embargos

Deferimento

Extinção da execução (n.º 4 do artigo 732.º CPC)

Se improcederem os embargos

Execuente exerce o contraditório no prazo se procederem aos embargos de 20 dias (n.º 2 do 732.º CPC)

Decisão do Juiz face aos embargos

Indeferimento (n.º1 do artigo 732.º CPC)

Penhora

Execução prossegue

Penhora

Opção 2:

Opção 3:

Processo Ordinário

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A Reforma Da Acção Executiva De 2013, Ncpc

Anexo VIII

– Fim dos documentos Particulares

– Se entretanto forem encontrados bens, a execução renova-se, cfr. n.º 5 do artigo 850.º CPC

Redução dos Títulos Executivos

Extinção da Execução ao fim de 3 meses

Cfr. artigo 703.º CPC

Cfr. artigo 750.º CPC

Penhoras Cfr. artigos 768.º e 780.º – Saldos bancários – Por comunição electrónica – Veículos Automóveis, imobilização antes da Penhora

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Eliminação de Ordem legal de Penhoras Cfr. artigo 751.º CPC – Respeito pelas indicações do Exequente


INTEGRAÇÃO DE LACUNAS ANÁLISE DO ARTIGO 10.º DO CÓDIGO CIVIL SUSANA AMARO VELHO Licenciada em Solicitadoria e Empregada Forense de Agente de Execução

I. INTRODUÇÃO

C

onforme consta da definição do Dicionário da Língua Portuguesa, designa-se por lacuna qualquer falta ou omissão identificada num determinado contexto e/ou documento. Ora, no nosso quotidiano, e aqui ressalvando não só naqui­ lo que tende ao Direito no seu todo e enquanto Lei, mas em qualquer situa­ ção diária, deparamo-nos com lacunas que nos obrigam a agir, a procurar soluções e a perceber de que forma tais omissões são, ou não, propositadas, obrigando à existência de determinada conduta. A importância da Lacuna no contexto do Direito, nomeadamente a Integração das Lacunas na Lei, torna-se um aspecto fulcral para o correcto entendimento e análise dos textos de Direito. É urgente o seu conhecimento, distinção e interpretação, com vista a uma correcta identifica­ ção das imperfeições, bem como da sua diferenciação. Há que colmatar o problema do “Silên­ cio da Lei”, visto que, conforme (adiante cfr.) J. Oliveira Ascensão “Há que rejeitar a ilusão positi­ vista de que a lei é auto-suficiente, e que a «norma» pode ser vista com abstracção da ordem social” (ASCENSÃO, 1997). Prevê o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil (adiante C.C.) que “A inter­ pretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” Ora, depreende-se que, diante de uma constante mutação jurídico-social é impensável que as previsões legais acompanhem a realidade, visto que “Até as leis que são completas no momento em que são postas em vigor acabam por se tornar lacunosas perante a alteração de condições sociais.” (ASCENSÃO, 1997).

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Integração De lacunas

RESUMO “A Lei não é uma colecção de regras: é uma colecção de Lacunas”. M. Gomes da Silva, Professor da Faculdade de Direito

Sabemos de antemão que uma precisa e fundamentada análise do Direito importa no alcance de uma verdade almejada. Muitas vezes, nessa mesma busca, deparamo-nos com um vazio legal que torna particularmente difícil o percurso. É premente a necessidade de uma análise e integração destes “buracos da lei” em conformidade com o legalmente previsto no artigo 10.º do Código Civil. Esta é uma temática introduzida e abordada nos conteúdos programáticos das licenciaturas de Solicitadoria e Direito, precisamente pela sua extrema relevância. Um vazio legal, uma omissão na Lei, podem existir (ou até coexistir) em qualquer sistema jurídico e, não obstante em primeira instância, julgarmos que não, a sua (in)existência pode ser voluntária. Sempre que existe, então, um caso omisso, ou seja, uma falha na Lei, tal não pode implicar a não tomada de posição ou decisão judicial perante determinado caso. Daí a eximia pertinência do artigo 10.º, aludindo, a priori, a uma integração por analogia e, em última instância, recorrendo à norma criada pelo intérprete.

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É, então, determinante que de forma sucinta, e dando primor à ratio juris, se defina o conceito legal de lacuna, que se identifiquem as suas causas e que se determinem formas de integração da mesma. Este relatório visa, fundamentalmente, esclarecer sobre a imperatividade da omissão, no que concerne à sua total determinação do caso/ relação jurídica, visto que a sua existência e integração são determinantes para a tomada de posição, “porque é impossível que todos os casos da vida estejam cobertos por leis ou precedentes judiciais.” (ASCENSÃO, 1997). Existe, naturalmente, doutrina que explicita a integração das lacunas, bem como a utilização da analogia, equidade e jurisprudência como forma de a colmatar, motivo pelo qual serão estes conceitos/métodos analisados, quid juris. É ainda de salientar que a integração da lacuna poderá ser realizada mediante a tradução do intérprete, no determinado contexto legal em que a mesma predomina e cfr. determinado no n.º 3 do artigo 10.º do C.C., adiante, devidamente, transcrito.

II. O CONCEITO LEGAL DE LACUNA

Artigo 10.º do Código Civil (Integração das Lacunas da Lei): 1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos­. 2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamen­ tação do caso previsto na lei. 3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérpre­ te criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema. Antes de partirmos para uma análise mais detalhada daquilo que é a integração da lacuna, e conforme estabelecido no artigo 10.º do C.C. supra transcrito, importa perceber o conceito de lacuna, não de uma forma generalista, e pegando na definição básica do termo, mas partindo da sua aplicação em termos de Direito Objectivo. Há, então, que distinguir, a priori, dois tipos de lacunas: Lacunas de Direito, de carácter mais abrangente, uma vez que subsistem e têm expressão ao nível de todo o ordenamento jurídico, e Lacunas da Lei, estas sim aqui analisadas, e que reportam ao caso específico da não existência de legislação para determinado incidente, ou seja, não existe a aplicação de uma norma sem que uma nova determinação seja criada. Utilizando aquilo que é a doutrina existente, por lacuna, entende-se, segundo Maria Helena Diniz, considerada como uma das maiores especialistas em Direito Civil no Brasil, tendo inclusive um vasto portfólio de obras e prémios atribuídos em função da sua intervenção no âmbito do Direito, “lacuna é uma imperfeição insatisfatória dentro da totalidade jurídica, representa uma falha ou uma deficiência do sistema jurídico.” (DINIZ, 2002). Existem, impreterivelmente, diferentes conceitos ou designações de lacuna, bem como uma divergência de concepções quanto à sua forma e método de supressão. Considerando a lacuna, conforme supra citado, como uma falha ou deficiência do sistema jurídico, é fácil depreender que, tal falha tem, inevitavelmente, que existir num sistema em constante mudança e que, ao acom­ panhar a evolução quotidiana se mostra, em determinados casos, também ele deficitário. É impossível que a Lei acompanhe, na mesma perspectiva e ritmo temporal, a evolução das pró­ prias sociedades, visto que, aquando da sua elaboração occasio legis, esta terá sido criada e funda­ mentada perspectivando determinado contexto, conforme já sucintamente enunciado na parte introdutória. Certo é que a lacuna da lei existe e que, de certa forma, é legítima a sua existência, considerando esta constante mutação do envolvente. Segundo Humberto Ávila, também ele especialista brasileiro e detentor de diversos ensaios e doutrina, no seu Sistema Constitucional Tributário, “Uma lacuna é uma incompletude contrária ao plano normativo no âmbito do direito positivo (…). Constatamos uma lacuna quando a lei, nos limites do seu possível sentido literal e do direito consuetudinário não contém uma regra,

Lacuna é uma imperfeição insatisfatória dentro da totalidade jurídica, representa uma falha ou uma deficiência do sistema jurídico

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Integração De lacunas

É impossível que a Lei acompanhe, na mesma perspectivar e ritmo temporal, a evolução das próprias sociedades, visto que, aquando da sua elaboração occasio legis, esta terá sido criada e fundamentada perspectivando determinado contexto.

embora o ordenamento jurídico na sua totalidade a exija.” (ÁVILA, 2006). Ora, a lacuna não é só uma imperfeição ou falha num determinado sistema jurídico. É também a constatação de que, para a legislação de determinado caso, não existe Lei ou norma jurídica vigente, apesar de neces­ sária e de ser imperativa a sua aplicação. No entendimento do Professor J. Oliveira Ascensão, “Lacuna não é tudo o que não está na Lei.”. É necessária uma determinação consistente da falha, visto que “não é imediata, perante uma omissão da lei, a inferência de que há uma lacuna.” (ASCENSÃO, 1997). A lacuna, segundo a sua perspectiva, “não é toda a incompleição do sistema jurídico, mas sim aquela incompleição que contraria o plano deste”. (ASCENSÃO, 1997). Esta acepção vai ao encontro do também conceito do professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, Inocêncio Galvão Telles, que distin­ gue lacuna como a “falta, entre as fontes de Direito vigentes de uma disposição que se aplique directamente a determinada matéria.” (TELLES, 1999). É de extrema relevância que, a existirem lacunas, exista uma obrigação do seu preenchimento. O juiz, na análise/ julgamento de um qual­ quer caso, não pode negar-se à sua efectivação com base na inexistência de fonte de Direito. Estas faltas do ordenamento jurídico, conforme Inocêncio Galvão Telles, têm que, forçosamente, ser contornadas visto que “não o fazer, com o falso pretexto de não dispor de norma aplicável, constitui denegação de justiça, que o ordenamento jurídico proíbe e sanciona (…), envolvendo responsabilidade penal.” (TELLES, 1999). Em consonância, o vazio jurídico tem, então, obrigatorie­ dade de integração, quando não exista Lei que julgue determinada relação ou facto do sistema jurídico. A título de curiosidade e simultaneamente relevante numa perspectiva conceptual, consta­ tou-se aquando da leitura de doutrina, ensaios e obras relacionadas com a temática que, maiori­ tariamente, os conceitos, formulações e teses existentes, nas plataformas disponíveis online, são de autores de origem brasileira. Tal constatação motivou-nos a procurar a forma como a lacuna era introduzida no Direito Civil Brasileiro, sendo que o artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil, dispõe, expressamente, que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Neste sentido, e existindo a assumpção de que a lei é omissa em determinados contextos, depreende-se que a existência de um número eminente de doutrina a respeito do assunto, se fundamenta com a também elevada existência de lacunas da lei Brasileira. São em vasto número os artigos, casos analisados à luz da jurisprudên­ cia, artigos e manifestações face à existência de omissões e falhas da Lei Brasileira. Contudo, não serão aqui ressalvados, visto abordarmos o conceito geral de lacuna, mas a sua integração ao nível do Direito Interno, o que só justifica, nesta senda, considerá-la como a falta ou omissão exis­ tente na legislação portuguesa relativamente a determinado caso concreto e que, a existir, obri­ gue à utilização de métodos ou fontes jurídicas para a sua incorporação. Em síntese, e não menos relevante, surge o pensamento de Karl Larenz, em Metodologia da Ciência do Direito1, que afirma que “uma lei particular e também uma codificação completa só pode conter lacunas sempre e na medida em que falte pelo menos uma regra que se refere a uma questão que não tenha sido deixada ao «espaço livre do Direito», ou seja, sempre que a lacuna não se trata de omissão consciente, com vista à determinação/ integração pelo próprio intérprete. Ainda no mesmo seguimento, surge a ideia basilar de que “o acentuar do conceito de lacuna só surge quando a questão de que se trata é em absoluto susceptível e está necessitada de solução jurídica (…).”, o que nos conduzirá, mais adiante, à destrinça dos diferentes tipos de lacunas. É ainda de salientar que existe uma corrente que nega a existência de lacunas no Direito. Segundo Hans Kelsen, “A suposição do Tribunal de que um caso não foi previsto pelo legislador teria formulado o Direito de diferente modo se estivesse previsto o caso (…). A intenção do legis­ lador somente é apreensível com suficiente segurança quando adquira expressão no Direito por ele criado. Por isso, o legislador, para limitar a atribuição deste poder aos tribunais, atribuição essa considerada por ele como inevitável, recorre à ficção de que a ordem jurídica vigente, em certos casos, não pode ser aplicada (…)” (KELSEN, 1998). Depreende-se, então, que, nesta convicção, o modelo jurídico é orgânico, encontrando-se todos os elementos da relação jurídica ordenados em função da criação de uma norma como um todo inquestionável. Considera-se a Lei como 1

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In http://www.trp.pt/fixacaojurisprudencia

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algo fechado à mudança e não susceptível de ser questionado, se bem que, salvo melhor opinião, tal entendimento é, por si só, susceptível de levantar questões relativamente à, então, elaboração e execução da Lei em si. A doutrina, obviamente, assume papéis e caminhos díspares na condu­ ção dos casos e na acepção de diferentes noções. Assumindo, ou partindo do pressuposto, de que não existiriam lacunas na Lei, questiona-se qual o fundamento da analogia, da equidade e até da jurisprudência, senão como formas de julgar casos, cujas faltas ou omissões, as tornaram como fidedignas fontes de direito? Parece-nos por demais evidente que a lacuna e a sua Integra­ ção, através das fontes de Direito supra mencionadas, se relacionam sob condição sine qua non, contudo, e no sistema anglo-americano, existindo lacuna nada mais se poderia fazer, visto que a solução, não existindo lei que a preveja, teria que ser realizada através da «common law», confor­ me J. Oliveira Ascensão. (ASCENSÃO, 1997). No entanto, Inocêncio Galvão Telles apresenta uma solução rápida, para a dualidade de pare­ ceres e perspectivas, quando afirma “Discute-se se há verdadeiramente lacunas no ordenamento jurídico. A questão é mais de palavras do que de ideias, visto que a resposta depende do sentido em que a palavra lacuna seja tomada. Se por esse termo se entende um vazio do ordenamento jurídico insusceptível de ser preenchido, então, deverá dizer-se que não há lacunas no Direito, visto que para toda e qualquer situação, necessitada de regulamentação jurídica, é possível e necessário descobrir uma norma que lhe seja aplicável”. (TELLES, 1999). SECÇÃO 2.1 – LACUNAS: TIPOLOGIA Como já frisado anteriormente, as lacunas podem distinguir-se quanto à sua tipologia. A dis­ tinção mais valorizada e que, no presente relatório será considerada, prende-se com a diferencia­ ção entre lacunas de previsão e de estatuição, bem como a destrinça entre lacunas intencionais ou voluntárias e lacunas não intencionais ou não voluntárias. Da identificação da diferenciação depende, inequivocamente, a sua possibilidade de integração e forma mais opor­ tuna. Ora, partindo da primeira distinção enunciada, podemos considerar que “Há lacuna de previ­ são quando determinado caso, ou mais precisamente, determinada categoria de casos não é contemplado por disposição legal” (ASCENSÃO, 1997). Exempli gratia, e recorrendo à Jurisprudên­ cia, no ponto III, do Processo 08S3445, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-05-2009, foi votado por unanimidade que, “A falta de regulação própria para os contratos de trabalho de outros agentes desportivos, que não se encontram regulados naquele diploma, designadamente dos treinadores, não determina, sem mais, a aplicação da lei geral do trabalho, antes impõe, face a uma reconhecida lacuna de previsão, o recurso aos instrumentos de integração previstos no artigo 10.º do C.C. e, por via deles, a aplicação, a tais agentes, do regime vertido na Lei n.º 28/98.” (ASCENSÃO, 1997). Trata-se pois de uma lacuna de previsão imposta pelo legislador, que reconhe­ ceu as especialidades que a actividade desportiva comporta, necessitando, por esse motivo, de uma constante actualização à luz do disposto no supra citado artigo. Deduz-se, assim, a partir da análise em causa, que a lacuna de previsão tem solução jurídica, nomeadamente no recurso à analogia e à jurisprudência. No que diz respeito à lacuna de estatuição esta ocorre “quando a lei, contemplando uma cate­ goria de casos, não formula para esta a consequência jurídica”. (ASCENSÃO, 1997). Para que se perceba, atendendo à índole e à estrutura do ordenamento jurídico, diante de que tipo de lacuna nos encontramos é imprescindível detectar em que contexto surge a omissão, com vista a uma determinação do seu efeito jurídico, visto que, “A problemática do apuramento da lacuna cruza­ -se com a da determinação da solução jurídica”. (ASCENSÃO, 1997). No que diz respeito à diferenciação entre lacunas voluntárias e não voluntárias, é fundamental, para um mais claro entendimento, a conjectura desenvolvida por Norberto Bobbio2 na sua Teoria Geral do Ordenamento Jurídico. Afirma, então, N. Bobbio que as lacunas voluntárias e involuntárias são sempre de natureza subjectiva, pois, contrariamente às objectivas, estas dependem ou

Existem lacunas de previsão e de estatuição, bem como a destrinça entre lacunas intencionais ou voluntárias e lacunas não intencionais ou não voluntárias. Da identificação da diferenciação depende, inequivocamente, a sua possibilidade de integração e forma mais oportuna.”

Norberto Bobbio foi um notável activista, pensador e historiador político italiano, autor de um consagrado número de títulos, obras, ensaios e peças de comentário político. Na sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico é dado especial ênfase ao problema das lacunas, numa contingente mais generalista e perfeitamente aplicável ao relatório em apreço.

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advêm de um qualquer motivo imputado à conduta do legislador, enquanto que as objectivas estão relacionadas com o envolvente das relações sociais. Ora, as lacunas voluntárias advêm de um “buraco” deixado propositadamente na Lei, quando existe um complexo de regras e normas que torna também complexa a legal resolução do caso. Nesse sentido, é deixada ao free-will do Juiz, obviamente dentro dos normativos jurídicos. A contrario sensu, as lacunas involuntárias não são previamente determinadas e tratam-se de casos que, por manifesto lapso, não são legislados. (BOBBIO, 1995).

III. A INTEGRAÇÃO DA LACUNA Depois de definido o conceito de Lacuna, e depois de, em determinado caso, se verificar que para o mesmo não existe conteúdo na lei, afirma-se a necessidade de integração do caso omisso. Nenhum sistema jurídico pode funcionar sem que exista uma solução para a existência de faltas da Lei. “Em todo o mundo, assistimos a este paradoxo: os órgãos legislativos por excelência – os parlamentos ou assembleias legislativas – são caracterizados por uma notável impotência (e por vezes mesmo incompetência) legislativa, fora de assuntos que se caracterizam por emoção polí­ tica imediata”. (ASCENSÃO, 1997). Por outras palavras, é iminente a capacidade que o poder polí­ tico tem de corromper a própria capacidade legislativa, o que torna imperativa a também capa­ cidade de adaptação e necessidade urgente de encontrar soluções. Conforme estatui o n.º1 do artigo 10.º do C.C., “Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos”. Importa pois, numa primeira instância, definir o conceito de Analogia e decom­ por, à luz do Direito a sua consequência e aplicabilidade. SECÇÃO 3.1 – ANALOGIA São três as definições de analogia presentes no Dicionário da Língua Portuguesa: a) Relação de semelhança entre objectos diferentes. b) Investigação da causa das semelhanças. c) Razão da formação das palavras. No contexto ora em análise, e no que concerne à integração das lacunas na lei, não podemos considerar nenhuma delas ipsis verbis. É certo que a analogia é fundamentalmente a relação de semelhança e que, inclusive, é a investigação da causa das semelhanças. Contudo, e apesar de determinado no artigo 10.º do C.C. que a integração das lacunas se faz pela utilização dos casos análogos, ou seja, pela semelhança, a verdade é que esta aplicação é muito mais complexa que a simples explanação do termo. O que na análise em causa importa é a definição de analogia enquanto método de encontrar uma regra geral aplicável directamente ao caso omisso. Refere J. Oliveira Ascensão que “O primeiro e o mais importante dos processos de integração de lacunas da lei é a analogia. A ele se refere o artigo 16.º do C.C. de 1867, ao prever a solução do caso omisso «pelos casos análogos prevenidos por outra lei»” (ASCENSÃO, 1997). Vemos, pois, que a utilização do caso análogo já reporta ao século XIX, o que, a não ter sido alterado/ revogado, salienta a sua extrema relevância. Estamos, então, perante uma situação/ caso que não está contemplado na lei, sendo a analo­ gia o método utilizado para, por semelhança, se encontrar uma solução para o problema da falta de lei. Através da análise dos pressupostos de um caso em tudo semelhante, chega-se à correcta forma de regular o caso que não se encontra contemplado. Se a lei resolveu de deter­ minada forma um caso semelhante ao que nos propomos julgar, então é esse caso a nossa fonte, porquanto permite não só prever a sua consequência e o seu resultado, como justificar aquela tomada de decisão. Não faz sentido, salvo melhor opinião, que, a existirem casos julga­ dos, e aqui falando no bom senso e não tomando a questão da não existência destes casos jul­ gados como fonte no nosso Direito, estes sejam simplesmente ignorados pelo Juiz de Direito. É evidente que estes casos serão analisados e revistos e seria, até, negligente defraudando mais profundos entendimentos, fingir que eles não existem ou não os considerar, visto que “A integra­ ção das lacunas é um dos afloramentos da sua intervenção. Se a lei, a propósito de um caso

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semelhante, resolveu de uma maneira, é natural que o caso omisso seja resolvido da mesma forma”. (ASCENSÃO, 1997) O “caso julgado” é, então, primordial, pois surge enquanto caso análo­ go, numa possível interpretação. É comum na doutrina que se considere como princípio da analogia a expressão ubi eadem ratio legis, ubi eadem eius dispositio, o que significa que onde há a mesma razão da lei (caso análo­ go), deve haver a mesma disposição legal, conforme prevê o n.º 2 do artigo 10.º do C.C. Por con­ seguinte, e mantendo esta linha de abordagem, I. Galvão Telles assegura que “Se a razão é a mesma nos dois casos, a mesma deve ser também a disposição. Não basta uma simples seme­ lhança formal de situações; é necessária uma semelhança decorrente das razões justificativas da solução explicitada. Todo o facto tem certos elementos essenciais, que, juridicamente, o caracte­ rizam e formam a ratio júris da norma”. (TELLES, 1999). Pegando, então, na expressão ratio juris evocada, importa distinguir duas modalidades de analogia, que a doutrina distingue como fun­ damentais: a analogia legis e a analogia juris. A analogia legis é a aplicação de um processo geral de pensamento particular ao domínio da integração. Ou seja, é o procurar de fundamento nos já mencionados casos semelhantes, consi­ derando uma disposição única. Há uma incessante busca da uniformidade de soluções, sendo aqui determinante a aplicação do n.º 1 do artigo 10.º do C.C., com a salvaguarda de que existem casos que fogem à regra geral e que, mais adiante, serão vistos. No que concerne à própria expres­ são de caso análogo, importa também defini-la como, não apenas a semelhança na descrição exterior de determinada situação, mas também, e principalmente, o enaltecer das semelhanças formais, do paralelo legal e do critério de valor do legislador, pois, ao ser utilizado como fonte de integração é também forma de veicular a lei. A analogia legis parte, como já referido, de uma disposição única – a lei – sendo que a analogia juris se baseia num complexo de preceitos jurídi­ cos. (TELLES, 1999). Aqui, não há o recurso a uma solução normativa concreta, mas sim a integra­ ção mediante a mediação entre várias regras. Temos, portanto, sucintamente, uma distinção entre a analogia que é feita através da lei, legis, e a analogia que é feita tendo por base todo o ordenamento jurídico, todo o Direito no seu sentido Objectivo, juris. Partindo então da premissa de que à analogia interessa a semelhança pelo ponto de vista da solução que foi estatuída anteriormente (ASCENSÃO, 1997), importa, uma vez mais, fazer uma distinção entre lacunas de previsão e de estatuição, aqui no concernente à sua extensão por analogia. Na perspectiva de J. Oliveira Ascensão, quando a “lacuna é de mera estatuição, o esque­ ma aplica-se com simplicidade” (ASCENSÃO, 1997), uma vez que, a existir lei em caso análogo, deve aplicar-se o princípio da analogia supra referido (e.g. se para determinado caso julgado, a lei ditou ineficácia, para o caso omisso o mesmo deverá suceder, ou seja, deve aplicar-se a mesma disposição legal). Por outro lado, a lacuna de previsão acarreta mais dificuldades na sua integra­ ção, “é que a semelhança de casos, de que se fala, não é uma semelhança exterior. Nada tem que ver com a semelhança sociológica, ou resultante da apresentação exterior dos casos.” (ASCENSÃO, 1997). Importa, neste sentido, verificar não só as semelhanças como também as diferenças exis­ tentes entre os vários casos, visto que, só dessa forma, se poderá percepcionar onde é que “a analogia pesa mais, no sentido de impor para o caso omisso a solução mais adequada de um dos casos regulados”. (ASCENSÃO, 1997).

É comum na doutrina que se considere como princípio da analogia a expressão ubi eadem ratio legis, ubi eadem eius dispositivo, o que significa que onde há a mesma razão da lei (caso análogo), deve haver a mesma disposição legal.

3.1.1 LIMITES DA ANALOGIA Não obstante toda a relevância da analogia enquanto processo de integração da Lacuna, existem limites à aplicação deste processo, dado que “Nem sempre é possível aplicar a solução de um caso a outro caso. Pode essa solução depender de um processo ou meio que não é ampliável. Assim, por analogia, não podemos chegar a estudar o âmbito de um processo espe­ cial: os processos especiais são típicos, pelo que a eles só se poderá recorrer nos casos previstos na lei”. (ASCENSÃO, 1997). Há, assim, efectivas excepções à aplicação do caso análogo, visto que, mais precisamente, o “facto de uma regra ser excepcional traz justamente a consequência de não poder ser estendida por analogia”. (ASCENSÃO, 1997). É com clareza que se entende esta excepção à regra geral, porquanto se a norma é excepcional, isto significa que ela própria foi criada justamente para fazer face a uma particularidade que não poderia, à luz do Direito, ser legislada segundo a parte geral. Sendo a norma excepcional considerada como um “ponto de

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fractura”, ou seja, emerge numa quebra motivada pela necessidade de legislar especificamente um caso, podemos designá-la como ius singulare. (TELLES, 1999). Esta terminologia, que vem de encontro à dicotomia entre normas comuns e normas excepcionais, tem como principal alicer­ ce, precisamente, esta fuga ao que é comum, às chamadas directrizes gerais e, se é excepcional, não pode ser prevista por analogia. Esta imposição destaca I. Galvão Telles, é uma “estatuição do Direito Positivo, visto estar consagrada no artigo 11.º do C.C”., que prevê que “As normas excep­ cionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.” (TELLES, 1999). Especificamente, no que diz respeito ao Direito Penal e a título de exemplo, não é exequível a utilização da analogia. Secundum legem há a proibição da analogia nas “regras penais positivas, pelo menos as que demarcam crimes e fixam penas. Nenhuma analogia é permitida a partir delas. Este é um dos pilares mais solidamente assentes no sistema romanístico, fundando o «prin­ cípio da legalidade»”. (ASCENSÃO, 1997). No Direito Penal, é, por esse motivo, frequente a utiliza­ ção da expressão in dubio pro reo, ou nullum crimen, nulla poena sine lege. De facto, impõe-se sempre, diante da existência de lacuna, a retroactividade das leis penais mais favoráveis ao caso sub judice. Também no que diz respeito às normas fiscais, não é aplicável a integração por analogia, visto que aqui, vigora o princípio da legalidade. Ora se este princípio declara que só é concebí­ vel fazer o que a lei prevê, não é, portanto admissível, ou sequer plausível, a criação de normas por analogia. 3.1.2 O CARÁCTER BASILAR DA JURISPRUDÊNCIA Uma das formas de aplicação da analogia é através da fixação de acórdãos de Jurisprudência. Conforme estabelece o artigo 8.º do C.C. não pode nunca o tribunal “abster-se de julgar invo­ cando a falta ou obscuridade da lei, ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio”. É inequívoco que “o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”. Há uma conduta imperativa que define que é imprati­ cável que, para determinado facto concreto, não exista decisão. O julgador deve, conforme escla­ rece o artigo, “ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. É aqui que a Jurisprudência assume um carácter basilar: ela é fonte mediata de Direito, de revelação da própria norma jurídica, ou seja, é fonte juris cognoscendi. No fundo, sucede muitas vezes que o julgador esteja perante um caso ambíguo, ou que se mostre perante a existência de uma lacuna da lei. É nestes casos, e aqui, que reforçamos a impor­ tância da Jurisprudência, porquanto as decisões tomadas perante o caso omisso nunca são apli­ cadas sem que se recorra ao Direito, quer implícita, quer explicitamente. Há, contudo, que frisar que, apesar da relevância da Jurisprudência e da aplicação do caso análogo, os resultados a que o julgador chega, “só têm força vinculativa para o caso concreto a ser decidido. Nenhum outro tribunal está vinculado a aplicar a um caso da mesma espécie a solução encontrada pelo juiz na interpretação e integração da norma” (PINTO, 2005). SECÇÃO 3.2 – A NORMA CRIADA PELO INTÉRPRETE Dispõe o n.º 3 do artigo 10.º do C.C. que “Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segun­ do a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.” É assim possível comprovar que a analogia, como o próprio artigo estabelece, é insuficiente para a integração das lacunas. O Código do Processo Civil de 1966 alterou o, até então, artigo vigente, dando primor à própria acepção que o intérprete faz do caso omisso. Relativamente a esta introdução/ possibilidade de integração, muitos são os entendimentos dos jurisconsultos. Aliás, existe uma vastidão de opiniões quanto à real essência e até isenção desta norma, muito também devido à complexidade que dela emana. Há toda uma questão em mesa, no que concerne à, primeiramente, definição de intérprete. Tomamos por intérprete o Meritíssimo Juiz de Direito? O legislador? Um qualquer leitor/ curioso que se mostre perante um caso especial? Na visão de J. Oliveira Ascensão, “Tender-se-á dizer que é o julgador. Mas os textos

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não facilitam este entendimento. Notar-se-á que a lei (…) aqui justamente se afasta ao falar em intérprete em vez de juiz.” (ASCENSÃO, 1997). Porém, e nesta linha de pensamento, se conside­ rarmos o n.º 3 do artigo 8.º do C.C., o entendimento é de que intérprete será sinónimo de julga­ dor – “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”. É mani­ festa a ideia de que o intérprete irá, obviamente, trazer à lei não um cunho geral e abstracto, mas sim uma leitura subjectiva da própria norma, ou falta. O intérprete terá, então, que se cingir ao ordenamento jurídico, visto que, a existência desta regra não é sinónimo de livre arbítrio, pois o acto de legislar tem que ser feito “dentro do espírito do sistema”. Esta última assumpção é funda­ mental, senão essencial, na aplicação desta norma, pois o legislador/ julgador não faz uma apli­ cação mecânica da ordenação que lhe é dada, “Cabe-lhe a importantíssima missão de, em face do caso concreto, dar vida à norma legal, precisando-a e concretizando-a (…) como o exigem o princípio da legalidade e o fundamento democrático da função legislativa”. (PINTO, 2005). 3.2.1. O DIREITO SUBSIDIÁRIO Perante a situação supra referida, concluiu-se que o intérprete irá partir sempre da utilização do Direito Subsidiário. Este está, pois, intimamente relacionado com a questão da existência de lacunas no ordenamento jurídico, podendo ser, particularmente, entendido como o sistema “mais próximo” de leis utilizado para colmatar as lacunas de um outro sistema. Há ainda a distin­ ção fundamental entre Direito Subsidiário especial ou geral, divergindo na medida em que pode preencher um só ramo jurídico especial ou uma lacuna da ordem jurídica na sua totalidade. O Direito Subsidiário tem, pois, um papel preponderante sem que, contudo, se levantem ques­ tões quanto à sua subjectividade. Para Pires de Lima e Antunes Varela, citados em J. Oliveira Ascensão, “Este sistema tem, teoricamente, o inconveniente de permitir disparidades de interpre­ tações, já que diferem, necessariamente, os critérios de razoabilidade de homem para homem, mas tem a vantagem de, sobrepondo-se a concepções puramente teóricas, desde à realidade das coisas”. (PINTO, 2005). Apesar desta disparidade de interpretações, importa esclarecer que a solução terá sempre que ser apenas uma e que esta deverá estar abrangida por um princípio abstracto. Tem que existir um domínio da Objectividade sobre a Subjectividade, visto que o direito subjectivo tem, obviamente, que decorrer do Direito objectivo. Ainda que existam diversas interpretações, estas irão sempre, salvo melhor entendimento, basear-se na Lei geral visto que a “discricionariedade pressupõe sem­ pre uma realização de interesses em que a inclinação pessoal do agente, ainda que nos limites da lei e na prossecução dos fins que lhe são próprios é um elemento legalmente previsto e aprova­ do: não pode pois ser apreciada a correcção de uma decisão quando o elemento subjectivo é essencial” (PINTO, 2005), ainda que este decorra de um conjunto de disposições legais de carácter objectivo. O que resolve, então, o caso é a norma que o intérprete criaria, dando-se primado à norma, em detrimento do caso concreto. Decidiu o legislador em 1966 que a solução da existência de caso omisso passaria pela sustentabilidade de uma norma hipotética que aqui, obviamente, teria que ser de cariz interpretativo. Ora, segundo I. Galvão Telles, o nosso Código Civil é mais feliz que o Código Civil suíço, que permite ao juiz decidir segundo as regras que estabeleceria se estivesse a legislar, pois, no nosso Direito Interno, jamais se pode fugir ao sistema jurídico vigente. (TELLES, 1999). A norma interpretativa assume, neste âmbito, uma função decisiva, na medida em que estas normas “visam fixar o sentido que o legislador atribui às suas próprias palavras, precisando o res­ pectivo conteúdo”, o que preceitua que a interpretação “partindo do legislador, não tem valor filológico mas jurídico.” (TELLES, 1999), concebendo-se, pois, tal decisão, como essencial.

O intérprete tem que se cingir ao ordenamento jurídico, visto que a existência desta regra não é sinónimo de livre arbítrio, pois o acto de legislar tem que ser feito «dentro do espírito do sistema».

3.2.2. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CIVIL: 3.2.2.1 A IMPORTÂNCIA DA BOA FÉ. Salvo melhor entendimento, julgamos que, para um correcto entendimento da criação da norma pelo intérprete é elementar que se faça alusão aos princípios fundamentais do Direito

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Desde os tempos de Aristóteles, e dos seus estudos sobre a Equidade existentes na célebre Ética a Nicómaco e Retórica, que esta é a busca pela igualdade, ou seja, a busca pela «solução concretamente mais justa, mas apenas dentro dos limites que a lei permite»”

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Civil, visto ser precisamente aqui que se definem características essenciais à tomada de posição. Estes princípios são, para Carlos Alberto da Mota Pinto, “a ossatura do direito civil, sustentando as normas que os desenvolvem e dando-lhes um sentido e uma função.” (PINTO, 2005). Adoptando a doutrina deste jurisconsulto, existem oito princípios que penetram e desenvol­ vem, num complexo sistema de integrações, o nosso Direito Civil. Para o caso em apreço, impor­ ta salientar o princípio da boa fé. “A ideia de «boa fé» remete para o fundamento último do sistema jurídico – a sua verdade que é necessariamente também a sua justiça”. (MACHETE, 2010). Esta definição, apresentada em Janei­ ro de 2010 na 2.ª Sessão do III Encontro de Professores de Direito Público no Porto, abarca a ver­ dadeira concepção do termo: “a sua verdade que é também a sua justiça”. Nesta senda, é fácil discernir que o princípio da boa fé tem que fazer parte do quadro de incidências obrigatório ao intérprete quando este se digna a desmistificar a lacuna e a proceder à sua integração a partir da sua interpretação própria. Partindo do pressuposto de que a boa fé e a conduta moral do indiví­ duo são a sua maior lei, é também perceptível que este princípio seja um requisito fundamental nas relações humanas desde os primórdios do Direito Romano, daí que seja também este princí­ pio essencial para qualquer tradução e orientação que se faça da lei, nomeadamente na integra­ ção das lacunas. A boa fé “exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-jurídicos da comunida­ de, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma juridicidade social e material­ mente fundada. A consagração da boa fé corresponde, pois, à superação de uma perspectiva positivista do direito, pela abertura a princípios e valores extra-legais e pela dimensão concreto­ -social e material do jurídico que perfilha”. (PINTO, 2005). Isto é, há uma constante preocupação com o acompanhamento da ordem social e jurídica, na medida em que esta emerge num con­ texto de desequilíbrios, que, como já referido, conduzem à existência de “buracos” na lei. O prin­ cípio da boa fé tem uma aplicabilidade extensiva, podendo ser adaptado a diversas e alargadas áreas do Direito. Contudo, é fundamental que aqui se considere o princípio da boa fé como base da criação da norma pelo intérprete, pois é provável que, desprovido deste princípio, se limite a realizar uma avaliação subjectiva, sem carácter jurídico e fazendo apenas uso da sua própria inter­ pretação parcial. Por outras palavras, é fundamental que o intérprete, tal como a boa fé, actue “em conformidade com o direito por desconhecer ou ignorar, designadamente, qualquer vício ou circunstância anterior.” (PINTO, 2005). 3.2.3. PRINCÍPIO DA EQUIDADE E PRINCÍPIO DA IGUALDADE A equidade deve ser introduzida quando se aborda a questão da criação da norma pelo intér­ prete, pois, em qualquer que seja a situação deve ser sempre mantido o princípio da equidade no ordenamento jurídico. Os critérios de justiça e de igualdade não devem, em caso algum, ser menosprezados, pois, de acordo com o já analisado, a criação ou adaptação da norma nunca pode ser feita de livre arbítrio. Os princípios fundamentais do Direito devem ser respeitados, bem como, o princípio da igualdade, referência obrigatória inscrita no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Esta imposição de que se trate de forma igual, o que for essencialmente igual, e de forma diferente o que for essencialmente diferente, é, fundamentalmente, uma impo­ sição também à proibição do livre arbítrio, dado que não pode o legislador “separar categorias de situações (…) segundo critérios arbitrários, isto é, sem relação objectiva com o regime especial que se lhe dispensa.” (PINTO, 2005). Ora em síntese, é crucial que se afirme que, desde os tempos de Aristóteles, e dos seus estudos sobre a Equidade existentes na célebre Ética a Nicómaco e Retórica, que esta é, no fundo, a busca pela igualdade, ou seja, a busca pela “solução concretamente mais justa, mas apenas dentro dos limites que a lei permite”. (TELLES, 1999). Uma solução que se afirme justa, sem que, contudo, se substituam os ingredientes normativos pelos equitativos. Tem que existir um aproveitamento das regras legais concretas e, na ausência de lei, no caso de existência de lacuna, há que existir, sem­ pre, uma busca pela equidade e igualdade aquando da criação da norma. Não pode, em deter­ minado caso, o legislador beneficiar uma das partes, prejudicando a outra, por exemplo, apenas e porque existem motivos de carácter subjectivo que o fazem proteger ou favorecer alguém em detrimento de outrem.

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IV. CONCLUSÃO Podemos frisar que, na integração da lacuna na lei, há todo um conjunto de preceitos legais que poderíamos aplicar e explicitar. É de todo o interesse, quer público, quer privado, que não existam “buracos” na lei que, de alguma forma, causem dificuldades à regulação de determinado caso. A lacuna pode surgir num contexto quer mais generalizado, quer no que concerne, particu­ larmente, à ausência de lei, o que, por si só, é suficiente para que se depreenda que a lacuna pode e irá sempre existir em qualquer que seja o sistema, relação ou ordenamento jurídico vindouro ou já existente. As áreas que esta temática abarca comprovam a sua extrema relevância, o que, uma vez mais, fundamenta o motivo pelo qual foi abordado o tema, questionadas as suas principais assump­ ções e procuradas soluções que, dentro do legalmente aplicável, se fixem. É em tudo proveitoso que o tema aqui escrutinado seja do conhecimento geral, dado que, em qualquer profissão jurídica existe a sujeição à lacuna. O artigo 10.º do C.C. é a base do seu enten­ dimento e integração e é, conjuntamente, a ponte que atravessa o buraco existente entre o caso omisso e a sua possível adaptação. Esta plataforma de entendimento é basilar, serve-se da analo­ gia, da jurisprudência, da equidade e do direito subsidiário, todos eles modos ou rumos, se assim quisermos chamar, de colmatar um problema real, intemporal e mais extenso que o imaginável. Há todo um conjunto de conceitos chave, mas também uma linha de condução orientadora e eficaz e, a prova da sua extensibilidade, é, precisamente, a existência de um sem fim de casos resolvidos, que tenderá a crescer, precisamente pela integração da lacuna da lei.

O artigo não está escrito segundo o novo acordo ortográfico.

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PINTO, C. A. (2005): Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Coimbra Editora. TELLES, I. G. (1999): Introdução ao Estudo do Direito - Volume I e II, 10.ª Edições Refundidas e Actualizadas. Coimbra: Coimbra Editora. CÓDIGO CIVIL, 2011, Colecção Textos da Lei, Editora: Almedina. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, 2011, Editora: Almedina.

A lacuna pode surgir num contexto quer mais generalizado, quer no que concerne, particularmente, à ausência de lei, o que, por si só, é suficiente para que se depreenda que a lacuna pode e irá sempre existir em qualquer que seja o sistema, relação ou ordenamento jurídico vindouro ou já existente.

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ANÁLISE DA SENTENÇA DE PORTALEGRE DE 04/01/2012 E AS GARANTIAS DO CREDOR HIPOTECÁRIO TANIA PADILLA Licenciada em solicitadoria e Mestranda na Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Felgueiras CARLA VIEIRA Solicitadora e mestranda na Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Felgueiras

INTRODUÇÃO

A

elaboração deste trabalho tem por base o estudo da Sentença de Portalegre proferida no dia 4 de Janeiro de 2012 no âmbito de um processo de inventário, na qual a questão controversa é saber se a entrega do imóvel ao credor numa situação de crédito bancário extingue por si só o crédito na sua totalidade, apesar de não cobrir a totalidade da dívida. O credor hipotecário adquire o imóvel pelo valor mínimo permitido legalmente, 70% do valor base fixado, em proposta de carta fechada e na qualidade de terceiro, no entanto o valor deste é inferior ao valor em dívida, pelo que reclama o remanescente. Na sentença proferida não se dá razão ao credor, solução que para muitas pessoas se apresenta como uma fonte de esperança pois com a crise que se instalou em Portugal são imensos os casos em que os mutuários deixaram de poder cumprir as prestações do crédito de habitação a que estão vinculados, parecendo assim que a dívida poderá ser saldada com a entrega do imóvel à entidade bancária, o que como veremos con­ siste numa dação em pagamento. No entanto a lei determina que a garantia geral das obrigações é todo o património do devedor artigo 601.º CC, ora o crédito bancário estava garantido por hipoteca, que consiste numa garantia real que por sua vez será um reforço da garantia geral, não sendo sufi­ ciente o produto da venda do imóvel hipotecado para garantir o total pagamento do montante em dívida, o credor poderá sempre valer-se da garantia geral, o que significa que não sendo suficiente o produto resultante da venda executiva do imóvel hipotecado e apesar da hipoteca se extinguir com aquela venda ele poderá sempre executar outros bens do devedor artigos 601.º e 817.º CC. 91


Análise Da Sentença De Portalegre De 04/01/2012

RESUMO Sentença de Portalegre proferida no dia 4 de Janeiro de 2012 no âmbito de um processo de inventário, na qual a questão controversa é saber se a entrega do imóvel ao credor numa situação de crédito bancário extingue por si só o crédito na sua totalidade, apesar de não cobrir a totalidade da dívida. O credor hipotecário reclama o remanescente da dívida mas não lhe é dada razão.

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Posto isto decidiu-se fazer de forma muito breve uma descrição dos aspectos mais importan­ tes da hipoteca a mais comum das garantias reais, principalmente aquando da aquisição habita­ ção com recurso a crédito bancário para termos algumas noções bem assentes no estudo desta sentença que consideramos um tanto controversa.

1. A HIPOTECA 1.2 NOÇÕES GERAIS: A hipoteca é um direito real de garantia que incide sobre imóveis ou bens equiparados (tais como aeronaves, navios) e encontra-se prevista no artigo 686.º ss. Esta pode incidir sobre os bens do devedor ou de um terceiro, quando a garantia é prestada por um terceiro e não pelo próprio devedor. Têm legitimidade para hipotecar quem tem legitimidade para alienar os bens artigo 715.º CC. A hipoteca sendo uma garantia assegura um crédito, o que significa que é um direito acessório deste, assim em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca o credor hipote­ cário poderá satisfazer o seu crédito através de uma acção executiva, na qual será pago pelo produto da venda executiva daquele bem, tendo preferência sobre outros credores salvo se os seus créditos beneficiarem do direito de retenção ou privilégio imobiliário especial ver artigos 754.º CC e 743.º CC. Este acessoriedade implica ainda que extinguindo-se o crédito através do pagamento, ou outra das formas de extinção previstas na lei, a hipoteca também se extinguirá artigo 730.º alínea a) CC. Como direito real de garantia a hipoteca goza ainda, em regra, do direito de preferência e do direito de sequela, pois prevalece sobre os demais direitos reais que sejam constituídos posterior­ mente e seguem a coisa onerada nas suas transmissões. 1.3 FORMA E REGISTO: A lei distingue três tipos de hipoteca: legal artigo 704.º CC, judicial artigo 710.º CC e voluntária artigo 712.º CC. Sendo a hipoteca voluntária a mais comum nos dias de hoje e aquela que nos interessa para a análise da Sentença de Portalegre será sobre esta que nos iremos debruçar. Esta resulta da vontade do autor da hipoteca ou das partes, podendo constituir-se por contrato ou declaração unilateral do proprietário do bem dado em garantia artigo 712.º CC. Dispõe ainda o artigo 714.º CC que caso o negócio constitutivo da hipoteca tenha por objecto bens imóveis deverá constar de escritura pública, documento particular autenticado ou testa­ mento. Porém de acordo com o Decreto-Lei n.º 255/93 de 15 de Julho1 tratando-se de um con­ trato de compra e venda de prédio urbano destinado a habitação acompanhado de mútuo garantido ou não por hipoteca sendo a entidade mutuante uma instituição de crédito esta pode ser efectuada por documento particular de modelo próprio artigo 1.º, constituindo um facto sujeito a registo obrigatório sendo sujeito da obrigação de registar a própria instituição bancária artigo 3.º Do título deverá constar especificamente sobre que bens do devedor ou de terceiro incide a hipoteca, pois a hipoteca geral é nula artigo 716.º n.º 1 e 2 CC. Também será nula a cláusula que disponha que em caso de incumprimento o credor fará a coisa hipotecada sua sem esta vir a ser avaliada, esta é a chamada proibição do pacto comissório prevista no artigo 694.º CC “(…) a sua razão de ser está em que tal paco pode representar um benefício injustificado para o credor(…).”2 No entanto a forma legal exigida não será o suficiente para que esta produza efeitos, mesmo entre as partes, uma vez que a lei atribui ao registo o efeito constitutivo artigo 4.º n.º 2 CRP e 687.º CC só produzindo efeitos depois deste, deste modo concluímos que o contrato é o facto de onde emerge a hipoteca, mas esta só se constitui e produz efeitos com o registo pois só ele lhe atribui eficácia. O registo da hipoteca ganha ainda importância no que se refere ao princípio da 1 2

Na sentença proferida não se dá razão ao credor, solução que para muitas pessoas se apresenta como uma fonte de esperança pois com a crise que se instalou em Portugal são imensos os casos em que os mutuários deixaram de poder cumprir as prestações do crédito de habitação a que estão vinculados, parecendo assim que a dívida poderá ser saldada com a entrega do imóvel à entidade bancária, o que como veremos consiste numa dação em pagamento. A hipoteca é um direito real de garantia que incide sobre imóveis ou bens equiparados e encontra-se prevista no artigo 686.º ss.

Disponível em: http://www.dre.pt/pdf1s/1993/07/164A00/38433845.pdf (consultado em 25 de Junho de 2014). SERRA , A. Vaz – Penhor-Penhor de coisas, BMJ 58, p. 217.

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No entanto a forma legal exigida não será o suficiente para que esta produza efeitos, mesmo entre as partes, uma vez que a lei atribui ao registo o efeito constitutivo artigo 4.º n.º 2 CRP e 687.º CC só produzindo efeitos depois deste, deste modo concluímos que o contrato é o facto de onde emerge a hipoteca, mas esta só se constitui e produz efeitos com o registo pois só ele lhe atribui eficácia. Em caso de incumprimento, o devedor não tendo meios para continuar a cumprir a obrigação a que se vinculou poderá querer extinguir a sua dívida através da dação em pagamento. Por um lado, temos a instituição bancária que financiou a aquisição da habitação e que, aquando do incumprimento do devedor, pretende a integral satisfação do seu direito, por outro lado, temos a tutela do interesse do particular, que se pretende garantir, porque tem um direito à habitação reconhecido constitucionalmente. 94

prioridade dos registos artigo 6.º CRP e 713.º CC uma vez que o facto de uma hipoteca já se encontrar registada não impede que sejam constituídas outras hipotecas sobre o mesmo bem quer sejam voluntárias, legais ou judiciais, prevalecendo aquela que foi constituída em primeiro lugar, ou seja, se tivermos três hipotecas sobre o mesmo bem o credor da segunda hipoteca só poderá obter a satisfação do seu crédito pelo produto da venda executiva após satisfação total do crédito do credor que é titular da primeira hipoteca, o mesmo se aplica ao credor titular da tercei­ ra hipoteca em relação ao da segunda. O registo será igualmente relevante para apurar-se o montante assegurado pela hipoteca, a hipoteca assegura o crédito bem como os seus acessórios (juros, despesas de registo e constitui­ ção da hipoteca) artigo 96.º, n.º1, alínea a) CRP. No que diz respeito aos juros a hipoteca não abrange mais do que três anos, mas é possível registar-se nova hipoteca que abranja os juros que ultrapassem os três anos artigo 693.º CC. 1.4 EXTINÇÃO: No que diz respeito às formas de extinção da hipoteca uma vez que esta é acessória ao crédito, como já se referiu, extinguindo-se o crédito garantido, esta também se extinguirá artigo 730.º alínea b) CC. São várias as causas que da extinção temos como exemplo a renúncia, o perecimen­ to previstas no artigo 730.º CC. No entanto atendendo ao objectivo deste estudo consideramos mais oportuno desenvolver a questão da possibilidade da hipoteca se extinguir através da dação em pagamento que descrevemos em seguida. 1.5 DAÇÃO EM PAGAMENTO DO BEM HIPOTECADO: Em caso de incumprimento, o devedor não tendo meios para continuar a cumprir a obrigação a que se vinculou poderá querer extinguir a sua dívida através da dação em pagamento. No entanto a dação não opera unilateralmente, será necessário o acordo do credor artigo 837.º CC, com respeito ao princípio Pacta Sunt Servanda o devedor tem que cumprir pontualmente a obri­ gação nos termos em que se vinculou artigo 406.ºCC. É possível então que exista uma dação em pagamento, porém tem que existir o acordo das partes. Nos dias de hoje é muito comum o recurso a este mecanismo como forma de extinção do crédito, nomeadamente no crédito à aquisição de casa própria assegurado por hipoteca. Aliás na celebração do contrato é possível que as partes estabeleçam que em caso de incumprimento seja possível a dação em pagamento, mas a entidade bancária deverá prestar informação sobre os riscos de incumprimento relativo ao período de tempo em que o empréstimo é concedido, o risco de depreciação do imóvel, pois se o devedor não puder cumprir e o montante em dívida for superior ao valor do imóvel em questão além de entregar o imóvel, o devedor fica ainda obrigado à satisfação do montante em falta. Se o mutuante não cumprir com o dever de informação está ele em incumprimento. No entanto este acordo não é o suficiente para que possa haver dação em pagamento, pois terá que ser fixado o valor do imóvel, o que implica uma avaliação em obediência à proibição do pacto comissório artigo 694.º CC. Esta avaliação terá que ser efetuada por um terceiro indepen­ dente. 1.6 EXECUÇÃO DA HIPOTECA: Em caso de incumprimento por parte do devedor é permitido ao credor o recurso aos tribu­ nais como meio de realizar coercivamente a obrigação artigo 2.º n.º 2 CPC. Para o efeito terá de intentar uma acção executiva artigo 10.º CPC, mais precisamente para pagamento de quantia certa (n.º 6) pois o que se pretende é que seja paga certa quantia pecuniária. Para poder recorrer a este meio processual terá que cumprir os requisitos necessários, nomeadamente os requisitos gerais e específicos da acção executiva. Quanto aos requisitos gerais estes podem ser positivos pois têm mesmo de se verificar tais como personalidade judiciária artigo 11.º ss CPC, capacidade judiciária artigo 15.º ss, legitimidade processual 53.º ss CPC, competência do tribunal, patrocínio judiciário artigo 58.º CPC, mas

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também podem ser negativos não podendo verificar-se, tais como ineptidão do requerimento litispendência e caso julgado. No que diz respeito aos requisitos específicos da acção executiva estes são a existência de um título executivo artigo 10.º n.º 5 e 703.º CPC e a obrigação ser certa líquida e exigível artogo 713.º CPC. No contexto da acção executiva, a penhora deverá iniciar-se pelos bens sobre os quais incida a garantia e só na insuficiência destes recairá sobre outros bens artigo 752.º n.º 1 CPC. Nos termos do artigo 697.º CC o devedor poderá opor-se a que outros bens sejam penhorados sem que pre­ viamente seja reconhecida a insuficiência da garantia tal como poderá opor-se a que a execução se estenda além do montante necessário à satisfação do direito do credor. Como já se referiu o autor da hipoteca poderá ser um terceiro, neste caso resulta do artigo 54.º n.º 2 a 4 CPC que o credor/exequente poderá optar por fazer valer a garantia no âmbito do pro­ cesso executivo tendo necessariamente que seguir contra o proprietário dos bens e apenas na eventualidade do produto da venda do bem hipotecado ser insuficiente para a satisfação total do crédito exequendo então poderá desde logo vir a ser demandado o devedor 54 n.º 3 CPC. De qualquer modo poderá também intentar a acção contra os dois fazendo, desde logo, valer a garantia e ficando logo salvaguardado o remanescente da dívida. O terceiro poderá ainda defen­ der-se nos termos do artigo 698.º n.º1 CC opondo ao credor os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito, ainda que o devedor os tenha recusado. E poderá opor-se à execução nos termos previstos no artigo 698.º n.º 2 CC. Conforme já referimos a hipoteca sendo uma garantia assegura um crédito, assim em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca o credor hipotecário poderá satisfazer o seu crédito através de uma acção executiva, na qual será pago pelo produto da venda executiva daquele bem, tendo preferência sobre outros credores, esta é a regra. Isto significa que em prin­ cípio o credor hipotecário obterá em primeiro lugar a satisfação do seu crédito pelo produto da venda do bem que garantia a obrigação. No entanto incidindo sobre o mesmo bem mais do que uma hipoteca estas serão graduadas pela data do registo, vigorando o princípio da prioridade dos registos artigo 6.º CRP sendo o credor da primeira pago em primeiro lugar. Porém nem sempre a graduação será feita pela ordem cronológica dos registos, pois podem vir a ser constituídos outros direitos reais que prevalecem sobre a hipoteca, sendo neste caso aqueles credores reme­ tidos para a posição de credores comuns se o bem não for suficiente para satisfazer ambos os créditos garantidos. Isto pode acontecer no caso do direito de retenção que resulte de um con­ trato de promessa de compra e venda de um imóvel, com tradição da coisa, caso se verifique o incumprimento por parte do promitente vendedor, o direito de retenção artigo 755.º n.º 1 alínea f ) CC do promitente-comprador prevalecerá sobre a hipoteca independentemente da data do registo, aliás o direito de retenção não está sujeito a registo questão muito polémica e debatida. O bem hipotecado permanece na esfera jurídica do titular da hipoteca motivo pelo qual não é imune as penhoras realizadas no âmbito de uma acção executiva intentada por um terceiro, mesmo não se verificando a intervenção do devedor executado. Nesta situação o credor hipote­ cário terá de ser citado para reclamar o pagamento do seu crédito artigo 786.º n.º 1 alínea b) CPC, apesar dele não se encontrar vencido, sob pena de eventualmente perder a garantia do seu cré­ dito até porque sendo penhorado e vendido aquele bem em sede de venda executiva este é transmitido livre de ónus e encargos artigo 824.º CC.

2. ANÁLISE DA SENTENÇA A propósito da sentença do Tribunal de Portalegre, que se pronunciou acerca da exigibilidade do remanescente da dívida emergente de um empréstimo bancário, após a adjudicação à enti­ dade bancária do imóvel constituindo garantia real desse mesmo empréstimo que correspondia ao valor patrimonial tributário no valor de 117 500,00€, sendo que o montante da dívida assenta em 129 521,52€, e foi adjudicado o imóvel pelo valor de 82 250,00€, em venda judicial no âmbito do processo de inventário / partilha. Está aqui em causa o reconhecimento do remanescente da dívida quanto à liquidação da dívida emergente de um crédito habitação, após a excussão do imóvel hipotecado, por adjudica­ ção em venda judicial ao banco credor, tendo o produto da venda sido insuficiente.

Neste âmbito foi constituído direito real de hipoteca para garantia e liquidação da quantia mutuada, tendo o devedor o direito a opor-se a que sejam penhorados outros bens enquanto não for excutido o objecto desta e que a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor, artigo 697.º CC, aqui temos um paralelismo com o artigo 752.º do CPC, na medida em que na dívida com garantia real que onere os bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelo objecto da garantia, podendo apenas recair noutros quando seja insuficiente o objecto dado em garantia.

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O tribunal não reconhece o remanescente da dívida, entre o valor da adjudicação, e o valor da dívida, antes porém, ficciona que a venda ocorreu por um valor superior ao que efectivamente foi proposto e aceite, e que o banco enquanto proponente estava disposto a oferecer pelo bem. Aliás na própria sentença considera-se que a entrega daquele imóvel à entidade bancária por si só irá extinguir a totalidade da dívida, o mesmo é dizer que como causa da extinção do crédito garantido temos a dação em pagamento, a qual nos referimos anteriormente, mas uma dação em pagamento forçada, imposta pelo próprio tribunal, o que não é possível, pois a lei determina que para que a hipoteca se extinga desta forma tem que existir acordo das partes, ou seja a entidade bancária teria de concordar, o que não aconteceu artigo 837.º CC.

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Estamos perante uma garantia real, a qual é muito utilizada em contratos imobiliários bancá­ rios, onde o adquirente de imóvel cede em garantia hipotecária ao banco financiador o próprio imóvel que está adquirir, garantindo ao banco o pagamento da dívida assumida. No entanto, face à crise económica e imobiliária, o valor do bem hipotecado é insuficiente para o pagamento da dívida. Por um lado, temos a instituição bancária que financiou a aquisição da habitação e que, aquan­ do do incumprimento do devedor, pretende a integral satisfação do seu direito, por outro lado, temos a tutela do interesse do particular, que se pretende garantir, porque tem um direito à habi­ tação reconhecido constitucionalmente. Face às garantias gerais das obrigações, respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, artigo 601.º CC e não sendo esta obrigação voluntariamente cumprida, tem o cre­ dor o direito de exigir coactivamente o seu cumprimento e de executar o património do deve­ dor, conforme o artigo 817.º CC, podendo, contudo, o devedor opor-se. Neste âmbito foi consti­ tuído direito real de hipoteca para garantia e liquidação da quantia mutuada, tendo o devedor o direito a opor-se a que sejam penhorados outros bens enquanto não for excutido o objecto desta e que a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor, artigo 697.º CC, aqui temos um paralelismo com o artigo 752.º do CPC, na medida em que na dívida com garantia real que onere os bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelo objecto da garantia, podendo apenas recair noutros quando seja insuficiente o objecto dado em garan­ tia. No caso em apreço não havia na herança outros bens, nem dinheiro suficiente para paga­ mento do passivo. A modalidade da venda foi fixada em proposta em carta fechada, considerando o valor patri­ monial tributário do bem como valor base de 117 500,00€, sendo a única proposta apresentada a do credor hipotecário, que foi aprovada quer pelo devedor, quer pelo tribunal, e foi adquirido, por adjudicação, no valor de 82.250,00€, que corresponde ao valor a anunciar para venda de 70% do valor base, seja para o credor ou qualquer outro terceiro proponente, face à lei em vigor à data da venda judicial, artigo 816.º do CPC, porquanto o credor proponente, atua enquanto terceiro, não se verificando um abuso de direito. O tribunal não reconhece o remanescente da dívida, entre o valor da adjudicação (70% do valor base do bem), e o valor da dívida, antes porém, ficciona que a venda ocorreu por um valor superior ao que efectivamente foi proposto e aceite, e que o banco enquanto proponente estava disposto a oferecer pelo bem. Assim o tribunal ignora as declarações das partes, bem como o disposto na lei, aplicando-se aqui um abuso de poder, por parte do tribunal que impõe coactiva­ mente às partes um valor de aquisição, mesmo depois de adjudicado e aceite pelas partes. Aliás na própria sentença considera-se que a entrega daquele imóvel à entidade bancária por si só irá extinguir a totalidade da dívida, o mesmo é dizer que como causa da extinção do crédito garantido temos a dação em pagamento, a qual nos referimos anteriormente, mas uma dação em pagamento forçada, imposta pelo próprio tribunal, o que não é possível, pois a lei determina que para que a hipoteca se extinga desta forma tem que existir acordo das partes, ou seja a enti­ dade bancária teria de concordar, o que não aconteceu artigo 837.º CC. O ordenamento jurídico português tem como princípio geral, face ao artigo 8.º CC, o dever de obediência à lei por parte dos juízes, o qual não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo, visto que a decisão do julgador não tem qualquer assento legal. Não se coloca aqui a questão da integração das lacunas da lei, prevista no artigo 10.º do CC, porque se assim fosse teria o próprio intérprete de criar dentro do espírito do sistema. O juiz deve aplicar a lei tal como ela é, mesmo quando lhe pareça que a mesma não convém ao caso específico. Estamos, portanto, perante uma decisão sem qualquer assento legal e mesmo contrária a lei.

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O artigo não está escrito segundo o novo acordo ortográfico.


Tania Padilla

Bibliografia SERRA , A. Vaz - Penhor-Penhor de coisas, BMJ 58. Vasconcelos, L. Miguel Pestana de – Direito das Garantias. 2.ª Edição. Edições Almedina 2013. ISBN 978-972-40-5092-8.

Webgrafia http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa 00497eec/09fb0e5be6139ee380257aa30035c61d?Ope nDocument (consultado em 2 de Junho de 2014). http://www.dre.pt/pdf1s/1993/07/164A00/38433845. pdf (consultado em 5 de Junho de 2014). http://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80147394b82313%7D.pdf (consultado em 25 de Maio de 2014).

Legislação Código Civil Código de Processo Civil. Código de Registo Predial. Decreto-Lei n.º 255/93 de 15 de Julho.

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Ao longo do tempo, muitos trabalhos têm vindo a ser desenvolvidos no âmbito das mais diversas áreas de estudo associadas à solicitadoria e à ação executiva. Assim sendo, pretendendo-se conservar esses contributos intelectuais e ambicionando-se que também as gerações vindouras venham a conhecê-los, considerou-se que a melhor alternativa para alcançar tais objetivos seria compilar os mesmos numa edição anual.

CÂMARA DOS SOLICITADORES Av. José Malhoa, n.º 16 – 1B2 - Edifício Europa 1070-159 Lisboa Telefone 213 172 063 Fax 213 534 870 E-mail: c.geral@solicitador.net www.solicitador.net


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