ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3 DEZEMBRO 2015 €9,00
ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3 DEZEMBRO 2015
LABOR IMPROBUS
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
OMNIA VINCIT
SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3 Ficha Técnica Diretor Paulo Teixeira Editora Edite Gaspar Colaboram nesta edição António Araújo, Celina Francisco, Cláudia Pereira, Diana Leiras, Filipa Vieira, Maria João Machado, Susana Pinto Conselho Geral Tel. 213 894 200 | Fax 213 534 870 c.geral@solicitador.net Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 | Fax 222 054 140 c.r.norte@solicitador.net Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 | Fax 213 534 834 c.r.sul@solicitador.net Design Atelier Gráficos à Lapa www.graficosalapa.pt Impressão Lidergraf, Artes Gráficas, S.A. Tiragem 5 500 Exemplares Periodicidade Anual ISSN 2182-9225 Depósito legal 358745/13 Registo na ERC com o n.º 126587 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 Lisboa N.º de contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 Lisboa Tel. 213 894 200 | Fax 213 534 870 E-mail: c.geral@solicitador.net www.osae.pt Os trabalhos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.
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ESTATUTO EDITORIAL
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o longo do tempo, muitos trabalhos têm vindo a ser desenvolvidos no âmbito das mais diversas áreas de estudo associadas à solicitadoria e à ação executiva. Assim sendo, pretendendo-se conservar esses contributos intelectuais, considerou-se que a melhor alternativa para alcançar tais objetivos seria compilar os mesmos numa coletânea anual. Este desafio dirige-se não só aos nossos associados, mas também aos estagiários, formadores, professores e estudantes universitários da área da solicitadoria ou do direito. Pautados pela isenção e independência, os trabalhos da coletânea de estudos deverão ser originais, podendo ser apresentados a título individual ou coletivo. A avaliação dos trabalhos será feita por um júri composto por três elementos, um membro indicado pelo conselho geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, um membro indicado pelo conselho regional do Porto e um último indicado pelo conselho regional de Lisboa. Para que esta avaliação seja feita de forma justa e transparente, os membros do júri não podem ter qualquer participação na elaboração dos trabalhos apresentados. Os autores dos trabalhos selecionados mantêm o direito de publicar o trabalho em outras publicações científicas nacionais ou estrangeiras, mediante o pedido de autorização à Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. A organização e publicação da coletânea de estudos obedecem ao Regulamento n.º 111/2014 (Regulamento de publicação da coletânea de estudos sobre solicitadoria e ação executivo), publicado em Diário da República a 19 de março. A Coletânea assegura o respeito pelos princípios deontológicos e pela ética profissional dos jornalistas, assim como pela boa fé dos leitores. A Coletânea cumpre a Lei da Imprensa e as orientações definidas neste Estatuto Editorial e pelo seu diretor.
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NOTA INTRODUTÓRIA
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A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO ADMINISTRADOR JUDICIAL António Peixoto Araújo e Maria João Machado
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REFLEXÃO SOBRE A EVOLUÇÃO DO ESTATUTO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE Diana Leiras
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A VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR – PERSPETIVA DO TITULADOR Susana Alcina Ribeiro Pinto
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Prémio
SOLICITADOR DANIEL LOPES CARDOSO – 2.ª EDIÇÃO
TRABALHO DISTINGUIDO COM O PRIMEIRO PRÉMIO
DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR (REFLEXÕES) Diana Leiras
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TRABALHO DISTINGUIDO COM O SEGUNDO PRÉMIO
O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL Filipa Isabel Soares da Silva Vieira
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TRABALHO DISTINGUIDO COM MENÇÃO HONROSA
MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO Celina S. Francisco
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TRABALHO DISTINGUIDO COM MENÇÃO HONROSA
A ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS EMERGENTES DE CONTRATOS Cláudia Pereira
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Nota Introdutória
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stamos perante o terceiro número da coletânea “Solicitadoria e Ação Executiva – Estudos”. Será a primeira coletânea publicada sob a égide do novo Estatuto que determinou a passagem a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Um momento que marca a história desta Casa que, não esquecendo o seu passado, sabe por onde quer que passe o seu futuro. A coletânea “Solicitadoria e Ação Executiva - Estudos” deriva dessa atitude, dessa vontade de preservar sem perder a ambição de inovar. Este terceiro número comprova isso mesmo, integrando, para além dos artigos selecionados, os trabalhos distinguidos no âmbito da segunda edição do Prémio Solicitador Daniel Lopes Cardoso. Mais uma vez, foram muitos os artigos apresentados e o nível de qualidade registado não nos poderia deixar mais convictos da relevância deste projeto que contribui, de forma evidente, para a afirmação da identidade dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Os profissionais representados por esta Ordem são detentores da experiência e da formação. E, sem menosprezarem a irrefutável necessidade de adaptação às exigências dos tempos, mantêm e partilham uma ambição: servir o a Justiça e o Cidadão. O estudo, a atualização de conhecimentos, o debate são ferramentas essenciais no alcance desse mesmo objetivo e esta coletânea de estudos materializa um esforço que diariamente se desempenha com prazer, dedicação e empenho. Hoje, ao abrirmos mais um número da nossa coletânea, estaremos a olhar com mais atenção para estas profissões. Acreditamos que só assim poderemos ambicionar chegar mais longe. E vamos chegar. Essa, graças à colaboração de todos vós, é a maior das certezas. Paulo Teixeira
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A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO ADMINISTRADOR JUDICIAL* ANTÓNIO PEIXOTO ARAÚJO Solicitador e Consultor fiscal. MARIA JOÃO MACHADO Docente do Instituto Politécnico do Porto. Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Felgueiras. Membro do CIICESI/ESTGF.
I. INTRODUÇÃO
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responsabilidade tributária do administrador judicial (AJ) em sede de insolvência é, actualmente, um tema controverso. A discórdia existente entre a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e a classe profissional dos administradores judiciais é relativa às obrigações fiscais a cumprir durante um processo de insolvência e assenta no entendimento da AT de que é sobre o Administrador Judicial (AJ) que impendem tais obrigações, como fez saber através de um ofício em 2005 e de uma circular em 2010, em que tomou posição, designadamente em matéria de IRC e de IVA, no sentido de não abdicar do cumprimento das obrigações declarativas e fiscais do devedor insolvente, através do AJ. Por outro lado, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)1, em várias disposições, refere-se à responsabilidade tributária do AJ. Assistimos, assim, a uma cada vez maior responsabilização deste órgão da insolvência.
Aprovado pelo DL 53/2004 [D.R. I Série A. 66 (2004-03-18) 1402-1406], tendo entrado em vigor em 18-09-2004, entretanto alterado pelos Decretos-Lei 200/2004, de 18 de Agosto, 76-A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho, 185/2009 de 12 de Agosto, pelas Leis 16/2012, de 20 de Abril, 66-B/2012, de 31 de Dezembro e pelo DL 26/2015, de 06 de Fevereiro.
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A Responsabilidade Tributária Do Administrador Judicial
RESUMO A responsabilidade tributária do administrador judicial (AJ) em sede de insolvência é, actualmente, um tema controverso. Ao ser nomeado num processo de insolvência, o AJ assume não só as funções e responsabilidades que o seu Estatuto e o CIRE lhe impõem, mas também as que cabem aos liquidatários incumbidos da liquidação de uma sociedade comercial, após dissolução por vontade dos seus titulares. A posição da Autoridade Tributaria e Aduaneira (AT), no que concerne à actuação e responsabilização do AJ, no âmbito do processo de insolvência, resulta clara em dois documentos adiante apresentados.
* Artigo elaborado no contexto da investigação realizada no âmbito do Mestrado em Solicitadoria concluído na ESTGF/IPP em 2013-Dezembro.
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II. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA Para José Manuel Teixeira, ao AJ estão cometidas todas as responsabilidades que podem ser assacadas aos liquidatários das sociedades comerciais que, por iniciativa dos seus sócios, decidem dissolver a sociedade. Ou seja, ao ser nomeado num processo de insolvência, o AJ assume não só as funções e responsabilidades que o seu Estatuto e o CIRE lhe impõem, mas também as que cabem aos liquidatários incumbidos da liquidação de uma sociedade comercial, após dissolução por vontade dos seus titulares. A responsabilidade tributária do Este autor entende que a declaração de insolvência de administrador judicial em sede uma sociedade comercial é causa imediata de dissolução mas de insolvência é, actualmente, a dissolução não causa a sua imediata extinção antes implica um tema controverso. um estádio intermédio que é a sua liquidação e a sua extinção fica concluída com o registo e encerramento da liquidação 2. A este propósito, Joaquim Alexandre Silva3 refere que a personalidade jurídica da insolvente após a dissolução, nos casos em que esta tenha por motivo a declaração de insolvência, não é posta em causa pela particular situação jurídica delineada no CIRE, já que as inibições ou limitações que tal declaração impõe não têm consequências nesse plano.
III. NORMAS JURÍDICAS A temática em análise encontra-se, no essencial, regulada pelo CIRE, o Estatuto do AJ4, um ofício5 e uma circular6 da AT, a posição da Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais (APAJ) e dois acórdãos, um do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN)7 e outro do Supremo Tribunal Administrativo (STA)8. Ademais, é de referir que o processo de insolvência perpassa todo o ordenamento tributário, desde a Lei Geral Tributária, mormente, o seu artigo 30.º/3, que com a redacção dada pela Lei que aprovou o Orçamento do Estado (OE) para 20119, deixaram de poder ser, a partir de 01/01/2011, homologados planos de insolvência que afectem os créditos da Segurança Social e os créditos fiscais, aos códigos dos impostos sobre o rendimento, ao procedimento e processo tributário; alem disso, há que contar com doutrina a propósito 2 Cfr. TEIXEIRA, José Manuel – Formação segmentada curso SEG2610 processo de insolvência. Lisboa. OTOC – Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, 2010, p. 104 e 107-108. 3 Cfr. SILVA, Joaquim Alexandre – IRC/2012 – Determinação da matéria colectável e cálculo do imposto. Maia. APECA – Associação Portuguesa das Empresas de Contabilidade e Administração, 2013, p. 189. 4 Cfr. L 22/2013. D.R. I Série. (2013-02-26) 1126-1133. 5 Cfr. Ofício sem n.º, processo n.º 523/2005, da Divisão de Concepção, da Direcção de Serviços do IRC, em anexo a este trabalho. 6 Cfr. Circular n.º 1/2010, de 2 de Fevereiro, das Direcções de Serviços do IRC e do IVA. 7 Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, processo n.º 994/10.8BEAVR, de 13-01-2011, publicado em www.dgsi.pt. 8 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, relator: Dulce Ponte, processo n.º 01145/09, de 24-02-2011, publicado em www.dgsi.pt. 9 Cfr. L 55-A/2010. D.R. I Série. (2010-12-31) 6122(2-322)
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da aplicação das normas tributárias pelos administradores judiciais, no que respeita a obrigações acessórias.
IV. O CIRE Este diploma, pelo menos em oito dos seus artigos, refere-se à responsabilidade tributária do AJ. O artigo 13.º confere às entidades públicas titulares de créditos sobre um insolvente o direito a representação pelo Ministério Púbico (MP). Assim, o MP, depois da declaração de insolvência, é notificado para reclamar, no processo de insolvência, os créditos do Estado. Nesses créditos estão, naturalmente, os tributários (impostos, contribuições, taxas, entre outros). O artigo 51.º caracteriza o que são dívidas da massa insolvente e a sua alínea d) refere as resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções. Ora, a nosso ver, aqui se incluem, por exemplo, o IVA da venda de bens da massa e contribuições para a segurança social, quando o AJ decida manter algum trabalhador da insolvente em funções ou, até, no caso de contratar novos. No mesmo sentido Carvalho Fernandes e João Labareda10 afirmam que em certos processos de insolvência se mantém a entidade em exercício empresarial e, por consequência, todas as dívidas de funcionamento da empresa nascidas no período posterior à declaração de insolvência – dívidas laborais, fiscais, previdenciais, bancárias, de fornecimento, etc. –, por serem consideradas dívidas da massa insolvente (…). A ser assim, cremos que, se são dívidas da massa insolvente, são, também, da responsabilidade do AJ. Silva Vieira11, a propósito da nova redacção do artigo 59.º, refere que a nova lei clarifica que os administradores da insolvência não podem ser responsabilizados por factos ocorridos antes da declaração de insolvência e, concomitantemente, da sua nomeação. Ora, assim sendo, parece-nos que o legislador quis delimitar, também, a responsabilidade tributária do AJ pelo que apenas os actos praticados após a declaração de insolvência serão passíveis de tal responsabilização. Por sua vez, com a nova redacção introduzida pela reforma do CIRE em 2012 (Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril), o artigo 65.º, n.º 2, traz uma novidade relevante ao determinar que, com a deliberação, pela assembleia de credores, de encerramento da actividade do estabelecimento, se extinguem todas as obrigações declarativas e fiscais. Porém, de acordo com a jurisprudência e com o entendimento que a AT tem sobre obrigações declarativas e fiscais em caso de insolvência, a que nos vamos referir mais adiante, não vislumbramos como é que a AT vai “acomodar” esta nova norma jurídica para que dela não resultem menos receitas fiscais que as que resultariam antes da alteração da sua redacção. Cfr. FERNANDES, Luís A. Carvalho e LABAREDA, João – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, (Reimpressão). Lisboa: Quid Juris, 2013. 11 Cfr. VIEIRA, Nuno da Costa Silva – Insolvência e processo de revitalização. Lisboa: Quid Juris, 2012, p. 22. 10
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Já o artigo 92.º refere-se a dívidas de impostos e de contribuições para a segurança social, que tenham um plano de regularização em curso, para estabelecer que estas se vencem imediatamente com a declaração de insolvência. Quanto ao artigo 267.º, vem considerar como dívidas da massa todos os dispêndios com os emolumentos de registos de despachos ou de sentenças. Logo, como está bom de ver, da responsabilidade do AJ. O artigo 268.º cria os benefícios relativos a impostos sobre o rendimento de pessoas singulares e colectivas, através da não tributação em imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) ou colectivas (IRC) para: i) mais-valias realizadas por efeito da dação em pagamento e ii) variações patrimoniais positivas resultantes das alterações das dívidas previstas num plano de insolvência ou plano de pagamentos. Ora, por exclusão de partes, todos os demais actos jurídicos estão, então, sujeitos quer a IRS quer a IRC, consoante se trate de pessoas singulares ou colectivas. Equivale por dizer que, na nossa opinião, são da responsabilidade do AJ estes impostos advenientes de actos por si praticados após a declaração de insolvência. Depois é o artigo 269.º que estabelece o benefício em sede de imposto do selo (IS). Desta feita, isenta de tributação A temática em análise certos actos jurídicos praticados no âmbito de planos de encontra-se, no essencial, insolvência e de pagamentos ou ainda os levados a cabo regulada pelo CIRE, o Estatuto para a liquidação da massa insolvente. Tendo em conta que do administrador judicial, um esta norma elenca quais são esses actos (referindo-se a um ofício e uma circular da conjunto muito pequeno) vale por dizer que outros haverá Autoridade Tributária e que estão sujeitos a este imposto e, por consequência, sob a Aduaneira, a posição da responsabilidade, mais uma vez, do AJ. Associação Portuguesa dos Por último, o artigo 270.º, que faz operar um benefício Administradores Judiciais relativo ao imposto municipal sobre as transmissões one(APAJ) e dois acórdãos, um do rosas de imóveis (IMT) desde que integradas num plano de Tribunal Central Administrativo insolvência ou de pagamentos, vem referir, taxativamente, do Norte (TCAN) e outro do os actos jurídicos de transmissão, isentos de imposto, conSupremo Tribunal finados, apenas, à transmissão de imóveis para três situaAdministrativo (STA). ções específicas: i) constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital; ii) aumento de capital da sociedade insolvente e iii) dação em cumprimento de bens da empresa e cessão de bens aos credores.
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Portanto, tal como nos impostos supra citados, também no IMT não faltarão actos jurídicos de transmissão onerosa de imóveis sujeitos a tributação pelos quais, igualmente, responde o AJ em sede de responsabilidade tributária. Posto isto, e como o CIRE nada diz quanto ao IVA, parece ser de concluir que nessa sede inexiste qualquer benefício, de tal sorte que a maioria das operações praticadas no âmbito da administração da massa insolvente estarão sujeitas ao regime normal do IVA. Assim, sempre que o AJ proceda à venda de um bem móvel integrante da massa insolvente, terá de liquidar, cobrar e entregar nos cofres do Estado o imposto respectivo. Logo, parecem não restar dúvidas que ao AJ pode vir a ser assacada responsabilidade tributária caso se verifique incumprimento no âmbito deste imposto. Para lá do IVA, pensamos que o mesmo princípio se aplica a outros impostos, contribuições, taxas, emolumentos, coimas, entre outros. É o caso, por exemplo, das contribuições para a segurança social, para citar uma situação que pensamos ocorrer mais vezes, porquanto pode ser deliberado, pela assembleia de credores, continuar com a laboração da empresa e, por inerência, com os trabalhadores em funções, ou parte deles, o que impõe, naturalmente, que todos os meses sejam pagas as respectivas contribuições.
V. O ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL O Estatuto do Administrador Judicial, de 2013, no seu artigo 12.º – deveres – nada refere sobre obrigações tributárias a cumprir pelo AJ. Ademais, nada consta do Estatuto sobre matéria tão importante. Seria espectável, quanto a nós, que o legislador estabelecesse regras de responsabilização tributária bem como fronteiras sobre como, quando e porquê o AJ é chamado a responder por incumprimento tributário.
VI. A POSIÇÃO DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA A posição da AT, no que concerne à actuação e responsabilização do AJ, no âmbito do processo de insolvência, resulta clara em dois documentos. O primeiro é um ofício12 sobre Obrigações do administrador da insolvência em sede de IRC, do qual passamos a transcrever alguns parágrafos que nos parecem sintetizar o objecto desta comunicação do Fisco: Entende-se que o facto de a sociedade ser declarada insolvente não obsta a que se mantenham, com as necessárias adaptações e em tudo que não for incompatível com o regime processual de liquidação, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas, visto que se mantem a personalidade jurídica, nos termos do n.º2 do artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais (…). A liquidação no processo de insolvência substitui a liquidação nos termos gerais, mas não deixa de consubstanciar uma operação (ou conjunto de operações) que visa a liquidação do património, no caso de insolvência em benefício 12
Cfr. Ofício sem n.º, processo n.º 523/2005, da Divisão de Concepção, da Direcção de Serviços do IRC.
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dos credores e nos outros casos em benefício dos sócios. Assim sendo, bem se percebe que o Código do IRC não faça distinção quanto ao regime aplicável às sociedades declaradas insolventes (…). Verificada, pois, a continuidade da sua qualidade de sujeito passivo de IRC, nos termos do artigo 2.º do respectivo Código, deverá ser mantida, à luz do n.º 1 do artigo 115.º, contabilidade organizada conforme a lei comercial e fiscal, embora com a derrogação de alguns princípios contabilísticos, como, por exemplo, o da “Continuidade” ou o da “Especialização do exercício”. Inerente à contabilidade organizada, está a obrigatoriedade de dispor de um Técnico Oficial de Contas, parecendo que a sua falta pode ser colmatada, a pedido do administrador da insolvência, junto do Juiz, de acordo com o artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/1999, de 5.11, o qual atribui aos TOC, entre outras competências, as de perito nomeado pelos Tribunais ou outras entidades públicas ou privadas. Inexistindo, pois, qualquer excepção prevista na lei, mantêm-se todas as obrigações, designadamente as declarativas, sendo a sua responsabilidade dos respectivos administradores da insolvência, nos termos do n.º 9 do artigo 109.º do Código do IRC, que, aliás, expressamente o refere. Quanto ao segundo documento, trata-se da circular n.º 1/2010, de 2 de Fevereiro, das Direcções de Serviços do IRC e do IVA, sobre obrigações fiscais em caso de insolvência. Se atentarmos no seu conteúdo, vemos que a AT não abdica do cumprimento das obrigações declarativas e fiscais do devedor insolvente e não prescinde, também, desse cumprimento através do AJ. Com efeito, vem através desta circular dizer: I – Da declaração de insolvência (…) a declaração de insolvência é causa imediata de dissolução da sociedade, entrando esta, por força do n.º 1 do artigo 146.º do CSC, em fase de liquidação. (…) que o n.º 2 do artigo 146.º do CSC estabeleça que “a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica (…) A personalidade tributária da insolvente, tal como definida no artigo 15.º da Lei Geral Tributária (LGT), não é afectada pela declaração de insolvência, porquanto, inerente ao respectivo processo de liquidação, está a realização de operações abrangidas pelo campo de incidência do imposto sobre o rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). II – Das obrigações em sede de IRC (…) com os artigos 117.º a 125.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) resulta, para as pessoas colectivas em situação de insolvência, o cumprimento de obrigações em sede de IRC, designadamente: proceder à liquidação e ao pagamento do imposto (…); apresentar (…) declaração com as alterações verificadas, aditando-se, nomeadamente, à designação social “sociedade em liquidação” ou simplesmente, “em liquidação”, conforme decorre do n.º 3 do artigo 146.º do CSC. Esta declaração deve conter obrigatoriamente a identificação / assinatura do respectivo técnico oficial de contas (TOC); submeter, por transmissão electrónica de dados, (…) a declaração periódica de
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rendimentos a que se refere a alínea b) do artigo 117.º, a qual deve conter a identificação do TOC; submeter (…) a declaração anual de informação contabilística e fiscal a que se refere a alínea c) do artigo 117.º, com a identificação do TOC. Estas e as demais obrigações declarativas previstas no Código do IRC são da responsabilidade do administrador da insolvência, conforme decorre expressamente do n.º 10 do artigo 117.º do referido código (...) Nos termos e condições referidas no artigo 123.º do CIRC é obrigatório dispor de contabilidade organizada nos termos da lei comercial e fiscal. III – Das obrigações em sede de IVA (…) Emitir (…) factura ou documento equivalente por cada transmissão de bens ou prestação de serviços (…); proceder ao correcto apuramento do imposto em cada um dos períodos de tributação (…); proceder, nos períodos de tributação em que tenha sido apurado imposto a favor do Estado, ao pagamento do imposto que se mostrar devido (…); cumprir, na forma e prazos definidos na lei, as demais obrigações declarativas previstas no CIVA; dispor de contabilidade adequada ao apuramento e fiscalização do imposto (…); na circunstância de no decurso do procedimento de insolvência, se prever, em sede de plano de insolvência, a manutenção em actividade da empresa, (…) submeter, nos termos do artigo 32.º do CIVA, uma declaração de alterações contendo: a retirada à designação social do devedor da menção “sociedade em liquidação” ou simplesmente “em liquidação”(…); a adopção de qualquer providência a que alude o artigo 198.º do CIRE; a identificação/assinatura do técnico oficial de contas (TOC). Esta tomada de posição da AT causou incómodo no seio da classe profissional dos administradores judiciais, de tal sorte que a APAJ intentou uma providência cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo de sancionamento de instruções (constantes da circular 1/2010, de 2 de Fevereiro), contra o Ministério das Finanças, para que ela fosse suspensa. Não logrou, porém, tal desiderato, pois o Tribunal Central Administrativo do Norte13 veio, em 13-01-2011, proferir acórdão no sentido de recusa do pretendido com a referida providência cautelar. Refere o Tribunal que a APAJ alegou, em síntese, que ressalta do conteúdo da circular n.º 1/2010, um conjunto de deveres impostos pela Administração Fiscal aos Administradores de Insolvência, (…) cumprirem determinadas obrigações de índole fiscal no tocante à administração da massa insolvente; que tais obrigações impostas pela Administração Fiscal não decorrem de qualquer norma legal prevista no Código da Insolvência; que decorrente da entrada em vigor da Circular, muitos Serviços de Finanças estão a imputar responsabilidade subsidiária tributária aos Administradores de Insolvência, pelas dívidas fiscais da, massa insolvente, baseando-se nos termos do artigo 24.º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT); que a lei falimentar e a lei fiscal portuguesa não imputam responsabilidade subsidiária tributária aos Administradores da Insolvência, pelo não cumprimento 13 Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, processo n.º 994/10.8BEAVR, de 13-01-2011, publicado em www.dgsi.pt.
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de obrigações fiscais contraídas pelo insolvente, pelo que o comportamento da Administração Fiscal, depois da entrada em vigor da circular n.º 1/2010 tem sido ofensivo dos interesses dos Administradores da Insolvência, por ser ilegal, injusto e incompreensível. (…) por as normas/orientações inseridas na Circular n.º 1/2010 criarem um conjunto de obrigações para os Administradores da Insolvência que conduzem a um “ataque” ao acesso à profissão. Para recusar a providência cautelar, o Tribunal veio alegar que o acto impugnado sancionou instruções enunciadas no ponto 5.1 do relatório de um grupo de trabalho sobre as obrigações fiscais em caso de insolvência, determinando a sua divulgação pelos serviços. Trata-se manifestamente de um acto interno porque sanciona orientações para os serviços, com vista à uniformização da interpretação da lei respeitante às obrigações fiscais em caso de insolvência, Apesar da nova redacção do as quais em momento posterior, no cumprimento do desartigo 65.º do CIRE, introduzida pacho, irão consubstanciar a Circular n.º 1/2010, de 2 de com a reforma de 2012, trazer Fevereiro de 2010. uma novidade relevante ao Não tem eficácia externa uma vez que não produz determinar que, com a directamente efeitos jurídicos na esfera jurídica dos admideliberação, pela assembleia de nistradores da insolvência. credores, do encerramento da Entende-se, assim, que o despacho que sanciona actividade do estabelecimento, determinadas orientações com vista a uma interpretase extinguem todas as ção uniforme de determinadas normas jurídicas não obrigações declarativas e fiscais, tem eficácia externa e não é por isso impugnável, sendo entendemos que seria manifesta a improcedência da pretensão a formular na espectável que o legislador acção administrativa especial de impugnação de tal estabelecesse regras mais claras despacho. de responsabilização tributária bem como fronteiras sobre como, quando e porquê o VII. JURISPRUDÊNCIA Administrador judicial é chamado a responder por Também o acórdão do Supremo Tribunal Administraincumprimento tributário. tivo14, de 24-02-2011, é caracterizador da responsabilidade tributária dos administradores judiciais no âmbito do IRC. Para o STA, não se vê motivo para que a liquidação derivada da dissolução em processo de falência tenha um tratamento diferenciado das demais liquidações de patrimónios societários. O facto de a sociedade ser declara falida não obsta, pois, a que se mantenham, com as necessárias adaptações e em tudo o que não for incompatível com o regime processual da massa falida, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas, designadamente as regras previstas no CIRC para a tributação do lucro tributável das sociedades em liquidação. Depois de tudo visto e ponderado, o STA conclui que mesmo em processo de liquidação da massa falida, a sociedade continua a ter de cumprir, através do respectivo liquidatário, com as obrigações fiscais declarativas. 14 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, relator: Dulce Ponte, processo n.º 01145/09, de 24-02-2011, publicado em www.dgsi.pt.
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A Responsabilidade Tributária Do Administrador Judicial
VIII. A REFORMA DO CIRE EM 2012 Apesar da nova redacção do artigo 65.º do CIRE, introduzida com a reforma de 2012, trazer uma novidade relevante ao determinar que, com a deliberação, pela assembleia de credores, do encerramento da actividade do estabelecimento, se extinguem todas as obrigações declarativas e fiscais, entendemos que seria espectável que o legislador estabelecesse regras mais claras de responsabilização tributária bem como fronteiras sobre como, quando e porquê o AJ é chamado a responder por incumprimento tributário.
IX. CONCLUSÃO Com a declaração de insolvência é nomeado um AJ a quem, por força do disposto no número 10, do artigo 117.º, do CIRC, são atribuídas as obrigações declarativas em sede do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas. Também na fase que se segue à dissolução por insolvên(…) os credores públicos cia, denominada fase da liquidação da massa insolvente, comportam-se, em sede de quando essa massa integre uma empresa, esta é considerainsolvência, como se nada de da sujeito passivo de IRC (artigo 3.º, do CIRC) estando por especial se esteja a passar com esse facto o AJ obrigado a manter contabilidade organizada o devedor insolvente, (artigo 123.º do CIRC) e por inerência a manter o actual ou a exigindo-lhe, à mesma, o contratar um novo Técnico Oficial de Contas (TOC) para a cumprimento, quer de sua execução (artigo 6.º do Estatuto da Ordem dos Técnicos obrigações declarativas, quer Oficiais de Contas – EOTOC). Assim, o AJ deve, para o efeito, de obrigações de pagamentos notificar o TOC da empresa para o manter em funções, mas de tributos dos períodos agora a expensas da massa ou para o despedir. ocorridos antes e depois da O OE 2011 alterou a redacção do artigo 30.º da LGT, para declaração de insolvência. estatuir que o crédito tributário não é afectado por legislaAndam mal, na nossa opinião, ção especial (por exemplo pelo CIRE), pelo que o fisco e a ao adoptarem este segurança social, entre outros credores públicos, não podem comportamento inaceitável reduzir os valores que tenham a haver dos devedores insolpara os administradores ventes, o que, convenhamos, se traduz, em muitos casos, na judiciais. impossibilidade de recuperação da empresa, porque, não raras vezes, são de grande significado tais valores e por consequência o voto favorável deste credor faria a diferença entre recuperação ou “morte” da empresa. Ademais, os credores públicos comportam-se, em sede de insolvência, como se nada de especial se esteja a passar com o devedor insolvente, exigindo-lhe, à mesma, o cumprimento, quer de obrigações declarativas, quer de obrigações de pagamentos de tributos dos períodos ocorridos antes e depois da declaração de insolvência. Andam mal, na nossa opinião, ao adoptarem este comportamento inaceitável para os AJ. Acresce, que notificam, incessantemente, o AJ para cumprir com os deveres do devedor insolvente, que ficaram por satisfazer, anteriormente à declaração de insolvência, o que a
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nosso ver está errado e em contradição com o CIRE. O AJ apenas responde por actos por si praticados após a declaração de insolvência. Ora, lamentavelmente, o AJ tem de responder a essas notificações, praticando, assim, uma enormidade de actos inúteis. Concluímos este tema da responsabilidade tributária do AJ para nos manifestarmos a favor de uma urgente clarificação sobre como, quem e porquê tem de cumprir todas as obrigações tributárias, a bem da fácil e transparente responsabilização do AJ e sobretudo para que este auxiliar da justiça saiba como actuar em matéria tão sensível como a do cumprimento destas obrigações. Porto/Felgueiras, 2015-Maio-14
Artigo escrito segundo o antigo acordo ortográfico
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REFLEXÃO SOBRE A EVOLUÇÃO DO ESTATUTO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE DIANA LEIRAS Docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave. Mestre em Solicitadoria, Doutoranda em Direito.
I – INTRODUÇÃO
A
sociedade encontra-se em constante mutação, e as mudanças sentidas repercutem-se, inevitavelmente, na família, que procura ajustar-se às novas realidades. Por sua vez, e dada a evidente conexão entre o Direito da Família e o Direito das Sucessões, à medida que a família evolui terão de ser introduzidas alterações ao nível dos direitos sucessórios. É certo que têm sido reconhecidas outras formas de constituição de família, para além do casamento, entre elas, a união de facto, mas igualmente é ponto assente que o casamento continua a ser a predominante e apenas o cônjuge ocupa, ex lege, posição hereditária no nosso sistema sucessório. No presente estudo pretende-se, como o próprio título indica, refletir sobre a evolução do estatuto sucessório do cônjuge supérstite. O facto de nem sempre ao cônjuge sobrevivo ter sido conferido o atual estatuto sucessório, por em tempos persistir um privilégio de consanguinidade, motivou-nos a não indagar somente o regime contemporâneo.
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RESUMO A família constitui uma realidade em permanente evolução, na medida em que procura adaptar-se às constantes mudanças sociais. Na sociedade contemporânea, em que predomina a família nuclear, ao contrário de outros tempos, o cônjuge detém um papel de extrema relevância na família e na sociedade. Em consequência do impacto da evolução socioeconómica da família provocado sobre a posição do cônjuge no seio familiar, o estatuto sucessório que lhe é conferido na sucessão do seu consorte, evoluiu. Em especial, no direito sucessório atual, o cônjuge sobrevivo é titular da categoria de herdeiro legitimário, sendo-lhe, ainda, concedidas importantes benesses, as quais dignificam o seu estatuto sucessório, v. g. na atribuição da sua legítima subjetiva e na consagração das atribuições preferenciais.
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Com a Reforma do Código Civil de 1977, operada pelo DL n.º 496/77, de 25 de novembro assistiu-se a uma profunda transformação do estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo, o qual se encontra inalterado desde então. Assim, os preceitos mencionados neste estudo sem indicação da respetiva fonte pertencem ao Código Civil em vigor, com a redação introduzida pelo referido diploma legal. No final da tarefa a que nos propomos, esperamos contribuir para a reflexão sobre se o estatuto sucessório conferido, na atualidade, ao cônjuge supérstite se harmoniza com a importância que este reveste, hoje, no núcleo familiar.
II – A EVOLUÇÃO SOCIOECONÓMICA DA FAMÍLIA Durante séculos, a família tradicional ou grande família caracterizou a economia agrária e constituiu a base das sociedades ocidentais1. Este modelo de família procurava a segurança e a estabilidade económica, e correlativamente a procriação2, e estava submetido a um conjunto de normas inflexíO facto de nem sempre ao veis reguladoras das funções de família e dos papéis desemcônjuge sobrevivo ter sido penhados por cada cônjuge. Como afirmou outrora conferido o atual estatuto JOAQUIM NOGUEIRA “o pai era o chefe de família, a quem sucessório, por em tempos competia a tarefa de sustentar o lar e garantir a autoridade persistir um privilégio de familiar (o homem como breadwinner e chefe), cabendo à consanguinidade, motivou-nos mãe o desempenho das tarefas domésticas (a mulher como a não indagar somente fada do lar) e a educação dos filhos. A estes cabia o dever de o regime contemporâneo. respeito e obediência, e a execução de tarefas menores”3. Era, assim, desigual o estatuto para os homens e para as mulheres, porquanto o homem tinha o seu direito, e também o dever, de procurar realizar o seu percurso individual fora de casa, sendo o papel reservado à mulher o de proporcionar o conforto doméstico e a educação dos filhos. Acresce que, a inferioridade social da mulher relativamente ao marido era tal que que se traduzia num estatuto jurídico de incapacidade da mulher casada4. Contudo, ocorreram acontecimentos, na sociedade e na economia que, modificaram a família. De entre esses acontecimentos, cumpre destacar: a constituição da sociedade industrial; o papel mais intervencionista do Estado; e a nova posição social da mulher5. a) Constituição da Sociedade Industrial Com a passagem da sociedade pré-industrial à sociedade industrial, a imagem da família e as condições de vida dos seus membros foram profundamente transformados. A 1 LEAL, Ana Cristina, A legítima do cônjuge sobrevivo. Estudo comparado Hispano-Português, Coimbra: Coleção Teses, Almedina, 2004, p. 107. 2 DIAS, Maria Olívia, “A família numa sociedade em mudança problemas e influências recíprocas”, Gestão e Desenvolvimento, 9, Viseu: UCP, 2000, pp. 81-102, p. 90. 3 NOGUEIRA, Joaquim Fernando, “A Reforma de 1977 e a posição sucessória do cônjuge sobrevivo”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 40, tomo III, Setembro-Dezembro 1980, pp. 663-694, p. 668. 4 VARELA, Antunes, Direito da Família, Lisboa: Livraria Petrony, 1987, p. 42. 5 NOGUEIRA, Joaquim Fernando, ob. cit., p. 668.
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concentração desordenada de grandes massas operárias nos centros urbanos em constante crescimento (com o consequente abandono das pequenas propriedades rústicas), e o aparecimento do trabalho assalariado, apresentaram-se como dois dos acontecimentos advindos da Revolução Industrial que provocaram grandes modificações na constituição e modo de vida dos núcleos familiares tradicionais6. Deu-se então o enfraquecimento dos laços do parentesco colateral que reuniam tios, sobrinhos, primos no culto dos mesmos avós7, e o agregado familiar passou a circunscrever-se praticamente ao marido, à mulher, e aos filhos solteiros8, à chamada pequena família. Surgiu, assim, um novo modelo de família – família nuclear9. No modelo moderno, a família perdeu as suas características de família patriarcal, unitária e multifuncional: foi relegado para segundo plano o valor instituição, cedendo o seu lugar à consideração primordial da individualidade própria de cada um dos membros da família, dissipando-se a até aí existente grande dependência económica entre os seus membros10. A rígida distribuição dos papéis que caracterizava a família tradicional deu lugar, em geral, ao exercício conjunto por marido e mulher dos papéis profissional, doméstico e educativo11. b) O papel mais intervencionista do Estado No nosso sistema jurídico, a transformação da família e a sua regulação jurídica começou o seu percurso, especialmente, após a democratização do sistema político e social, iniciada com o movimento democratizador de 25 de abril de 197412. Foi nessa sequência, que a Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 consagrou a família um valor fundamental da vida em sociedade, conferindo-lhe proteção. Com efeito, desde então prevê-se no art. 67.º, n.º 1 da CRP que, “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”13. Com esse propósito, o Estado passou a garantir subsídios de doença, a atribuir reformas, a oferecer cuidados médicos aos cidadãos trabalhadores e serviços de educação oficial aos seus filhos14. c) A posição social da mulher A nova posição social da mulher apresenta-se também como uma das razões que coadjuvou no colapso da tradicional estrutura familiar e a substituição por um novo modelo15. OLIVEIRA, Carla Patrícia Pereira, Entre a mística do sangue e a ascensão dos afetos: o conhecimento das origens biológicas, 1.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 17. 7 VARELA, Antunes, ob. cit., p. 37. 8 Normalmente um a três filhos, DIAS, Maria Olívia, ob. cit., p. 90. 9 Este é o modelo familiar que atualmente predomina na nossa sociedade. 10 LEAL, Ana Cristina, ob. cit., pp. 107 e 108. 11 NOGUEIRA, Joaquim Fernando, ob. cit., p. 670. 12 PEDROSO, João; CASALEIRO, Paula; e BRANCO, Patrícia, ‘A Odisseia Da Transformação Do Direito Da Família (19742010): Um Contributo Da Sociologia Política Do Direito’, in Sociologia, Revista Da Faculdade de Letras Da Universidade Do Porto, Vol. XXII, 2011, pp. 219–238, p. 220 13 No n.º 2 do mesmo preceito é feita uma indicação, meramente exemplificativa, de incumbências do Estado para concretização da proteção da família, v. g. promover a independência social e económica dos agregados familiares. 14 NOGUEIRA, Joaquim Fernando, ob. cit., p. 669. 15 PEDROSO, João; CASALEIRO, Paula; e BRANCO, Patrícia, ob. cit. p. 227. 6
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Face ao constante crescimento da indústria e consequente necessidade de mais mão-de-obra barata, surgiu o trabalho feminino, que por um lado, libertou a mulher da sua dependência económica face ao marido, e por outro, deu origem ao movimento emancipador da mulher16. No âmbito desse processo, para além da condição de mulher e mãe, a mulher assumiu um novo estatuto social, económico e político, trazendo para dentro da família e do direito da família três princípios que se traduziram em grandes conquistas da CRP de 1976: o princípio da igualdade entre os homens e as mulheres, o princípio da igualdade entre os cônjuges e o princípio da igualdade entre os filhos nascidos dentro ou fora do casamento17. Assim, e em especial para o presente estudo, refira-se que o princípio da igualdade entre os cônjuges encontra-se, desde então, consagrado no art. 36.º, n.º 3 da CRP, onde se prevê que, “os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos”. Ora, consagrando o Código Civil de 196718 um modelo desatualizado da família, pois que a conceção de família que nele estava patente estava ligada a um sistema económico anterior ao desenvolvimento industrial que se baseava exclusivamente na conservação do património familiar, tornou-se imperioso que interiorizasse o espírito do princípio da igualdade entre os cônjuges. Com efeito, aquele diploma legal, não podia mais conjeturar um modelo autoritário e hierárquico de família assente na desigualdade de géneros e na subordinação jurídica e económica da mulher, que era inclusive, considerada no contrato de casamento, como propriedade do marido. A mulher não podia continuar a ser legalmente construída como legalmente incapaz, a ser privada dos direitos de livre disposição do seu salário, de privacidade perante o marido, de liberdade de circulação, de livremente exercer uma profissão, de administrar os seus bens e de representar os seus filhos19. Surgiu, assim, a Reforma do Código Civil de 1977, que introduziu importantes modificações, v. g., atribuiu a direção da família a ambos os cônjuges, que devem acordar sobre a orientação da vida em comum tendo em conta o bem da família e os interesses de um e outro (art. 1671.º, n.º 2). A organização da vida familiar passou, assim, a ser matéria confiada à autonomia dos cônjuges, desaparecendo a definição dos papéis-tipo que o Código Civil repartia entre o marido e a mulher, com a evidente predominância dos poderes confiados ao marido20. NOGUEIRA, Joaquim Fernando, ob. cit., p. 670. PEDROSO, João, BRANCO, Patrícia, “Mudam-se os tempos, muda-se a família. As mutações do acesso ao direito e à justiça de família e das crianças em Portugal”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 82, setembro, 2008, pp. 53-83, p. 58. Segundo GILHERME DE OLIVEIRA: “a igualdade jurídica dos cônjuges foi, assim, uma consequência das pressões sociais fundamentais, ao mesmo tempo que pode ter potenciado transformações em direção à maior independência das mulheres e à sua plena inserção no mercado de trabalho”. Cfr. OLIVEIRA, Guilherme, “Transformações do direito da família”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 768. 18 Aprovado pelo DL n.º 47344/66, de 25 de novembro, mas que apenas entrou em vigor em 1 de junho de 1967. 19 SOTTOMAYOR, Maria Clara, “A situação das mulheres e das crianças 25 anos após a Reforma de 1977”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 86 e 87. 20 COLLAÇO, Isabel de Magalhães, ”A reforma de 1977 do Código Civil de 1966. Um olhar vinte e cinco anos depois”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pp. 17-40, p. 28. 16 17
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II – CONEXÃO EXISTENTE ENTRE OS DIREITOS SUCESSÓRIOS ATRIBUÍDOS AO CÔNJUGE SUPÉRSTITE E O REGIME MATRIMONIAL SUPLETIVO DE BENS É evidente a conexão existente entre os direitos sucessórios atribuídos ao cônjuge sobrevivo e o regime matrimonial supletivo de bens, por duas ordens de razão. A primeira prende-se com o facto de o regime supletivo de bens ser estipulado por lei atendendo à configuração que a instituição familiar assume em cada momento, e por isso a evolução das conceções sobre a família, em especial, sobre a sociedade conjugal que é o seu núcleo, conduz igualmente a uma modificação do regime matrimonial de bens consagrado supletivamente. A segunda está relacionada com a projeção a que se assiste no Direito Sucessório de alguns aspetos do regime matrimonial conjugal21. No Código Civil de 1867 (Código de Seabra), o regime de bens supletivo previsto era o da comunhão geral de bens, caracterizado pela comunicabilidade de todos os bens adquiridos pelos cônjuges em fase prévia do casamento ou na constância do mesmo. Assim, o legislador pretendia, mesmo no domínio patrimonial, uma forte união entre os cônjuges, vendo em cada um deles o familiar mais próximo do outro22. Porém, face à diminuição progressiva da estabilidade do casamento no Código Civil de 1967 foi estabelecido como regime supletivo o regime da comunhão de adquiridos, regime em que apenas são comuns os bens obtidos pelos cônjuges na constância do casamento, excetuando-se os bens adquiridos a título gratuito ou por virtude de direito próprio anterior, bem como outros considerados por lei incomunicáveis (cfr. arts 1717.º, 1721.º, e seguintes). A estipulação deste regime como regime supletivo correspondeu ao acompanhar das tendências sociais, mas não permitia a proteção dos interesses do cônjuge menos poderoso economicamente, no caso de falecimento do outro. Este era, aliás, um argumento de peso a favor da comunhão geral de bens, e que tinha em vista, sobretudo, a proteção dos interesses das mulheres, que se encontram, geralmente, afastadas do mercado de trabalho23. É nitidamente visível que, com o Código de 1967, em relação ao Código de 1867, o cônjuge supérstite ficou numa posição mais desfavorável, pois que perdeu metade do património conjugal, conservando um estatuto sucessório intocável e desvantajoso24. Contudo, era frequente que cada cônjuge deixasse, por testamento, a sua quota disponível ao outro, e nesse caso, se o casamento fosse dissolvido por morte, o viúvo tinha à sua disposição uma parte importante do património da família. Em situação de crise no casamento, o testador podia revogar o testamento25, pois que este ato unilateral é livremente revogável a todo o tempo, por dever corresponder à sua última vontade. LEAL, Ana Cristina, ob. cit., pp. 111 e 112. Cfr. CAMPOS, Diogo Leite de, “O estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo”, Relatório português às jornadas turcas da association henri capitan, Revista Ordem dos Advogados, 50, Livros e Temas, 1990, pp. 449-458, pp. 451 e 452. O autor diz mesmo que, “perante este quadro, poder-se-á mesmo sustentar que o legislador concede primazia dos vínculos conjugais, perante os de sangue. A comunhão envolverá, eventualmente, a saída dos bens da sua linha familiar”. Note-se que, mesmo no caso de separação de bens – o único caso de interrupção do vínculo conjugal permitido pelo Código de 1867 – a comunhão envolvia o enriquecimento de um dos cônjuges às custas do outro. O cônjuge que deu causa à dissolução do vínculo conjugal recebia, mesmo assim, metade dos bens comuns. 23 A situação de dependência da mulher em relação ao património conjugal era acentuada pelo facto de o marido a poder proibir de trabalhar ou de exercer o comércio. Cfr. CAMPOS, Diogo Leite de, ob. cit., p. 452. 24 Ver infra ponto III, al. a). 25 CAMPOS, Diogo Leite de, ob. cit., p. 453. 21
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Saliente-se que, para determinação do património pertença do cônjuge falecido é necessário atender ao regime de bens de casamento: se o casamento for em regime de comunhão de adquiridos, o património hereditário é constituído por metade dos bens comuns mais os bens próprios de que era detentor; se for em regime de comunhão geral, o património hereditário corresponde a metade dos bens do casal. Não existindo bens comuns no regime de separação de bens, o património a partilhar corresponde à totalidade dos bens do falecido26.
III – AS REFORMAS LEGISLATIVAS ATRIBUTIVAS DE DIREITOS SUCESSÓRIOS AO CÔNJUGE SOBREVIVO a) Código Civil de 1967 Na redação do Código Civil de 1967, o cônjuge supérstite não integrava o núcleo dos herdeiros legitimários, tendo sido relegado para a quarta classe de sucessíveis da ordem da sucessão legítima. Era assim preterido mesmo em relação aos irmãos e sobrinhos do de cujos (arts 2157.º e 2133.º, na redação primitiva27). Mas o legislador contemplava o cônjuge sobrevivo com o usufruto de toda a herança, caso os sucessores fossem os irmãos ou sobrinhos do de cujos (art. 2146.º na redação primitiva). Acresce que, ao cônjuge era reconhecido o direito a ser alimentado pelos bens da herança (o chamado apanágio do cônjuge sobrevivo, estabelecido no art. 2018.º28). Face à resistência do Código Civil de 1967 em consagrar o cônjuge sobrevivo herdeiro forçoso, verifica-se que continuou a persistir o entendimento de que o sangue é o único elo verdadeiramente gerador do vínculo familiar, capaz de legitimar a transmissão dos bens do cônjuge pré-defunto na sucessão legitimária29. b) A reforma do Código Civil de 1977 O verdadeiro corte com as conceções familiares tradicionais e por consequência com os princípios sucessórios clássicos teve lugar com a Reforma de 1977, operada pelo DL n.º 496/77, de 25 de novembro. Ainda que não se tratasse de matéria expressamente abrangida por qualquer disposição constitucional, no âmbito da preparação e adaptação do Código Civil à CRP de 1976, a definição da posição do cônjuge sobrevivo no domínio das sucessões foi o Relativamente aos regimes de bens, vide arts 1721.º - 1736.º. O regime da separação de bens é imperativo nos casos previstos no n.º 1 do art. 1720.º: a) casamento celebrado sem precedência do processo preliminar de casamento; e casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade. Nos termos do art. 1762.º “é nula a doação entre casados, se vigorar imperativamente entre os cônjuges o regime da separação de bens. 27 “A ordem por que são chamados os herdeiros, sem prejuízo do disposto no título da adoção, é a seguinte: a) Descendentes; b) Ascendentes; c) Irmãos e seus descendentes; d) Cônjuge; e) Outros colaterais até ao sexto grau; f ) Estado. 28 Este direito do cônjuge sobrevivo ainda se encontra consagrado no sistema sucessório em vigor. Aliás, a redação do preceito que o confere (art. 2018.º) em nada se alterou. 29 COLLAÇO, Isabel de Magalhães, ob. cit., p. 39. 26
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problema que suscitou a mais demorada atenção na Comissão encarregue dessa tarefa, pois que se lhe afigurava inaceitável a solução vigente30, por incompatibilidade com o modelo da família nuclear, em que o cônjuge se insere no seu núcleo31. Nessa perspetiva, o cônjuge sobrevivo passou a ser herdeiro legitimário, conjuntamente com os descendentes e ascendentes, tal como desde então resulta do art. 2157.º32. Este preceito prevê ainda, na sua parte final, que se aplicam, na sucessão legitimária, a ordem e as regras estabelecidas para a sucessão legítima, pelo que será de aplicar, em especial, o art. 2133.º. O cônjuge supérstite receberá, assim, necessariamente por via da sucessão legitimária e eventualmente por via da sucessão legítima33, ocupando a primeira classe de sucessíveis, se à herança concorre com descendentes do de cujos, e à segunda classe, se concorre com ascendentes [art. 2133.º, n.º 1, als a) e b), e n.º 2]. Note-se que foi consagrado o afastamento do cônjuge nos casos previstos no art. 2133.º, n.º 3: a vocação do cônjuge supõe a subsistência do vínculo conjugal, e por isso, compreensivelmente, não se verifica em caso de divórcio; igualmente não se verifica se tiver sido decretada a separação judicial de pessoas e bens, pois não se mantém a comunidade que, no ponto de vista substancial, justifica o chamamento34. Segundo LEITE DE CAMPOS, a legítima do cônjuge sobrevivo veio colidir com uma das finalidades visadas com a alteração do regime supletivo: evitar que os bens mudem de linha familiar35. Com efeito, hoje já não é possível manter, impreterivelmente, os bens dentro da mesma família no momento da morte de uma pessoa. Ora, vejamos a hipótese de um individuo A que falece sem descendentes nem ascendentes, sendo a sua herança deferida, na totalidade, para o cônjuge sobrevivo, B. Mais tarde, falecendo B, todos os seus bens (inclusivamente os que havia recebido do seu cônjuge por sucessão) irão para a sua família (nomeadamente, a pessoa com quem tenha posteriormente contraído novo casamento), os seus descendentes (nomeadamente, os do segundo matrimónio), ascendentes, irmãos e seus descendentes ou outros colaterais até ao 4.º grau ou o Estado36.
COLLAÇO, Isabel de Magalhães, ob. cit., p. 36. A Exposição de motivos do DL n.º 496/77 trazia no seu texto a seguinte justificativa: “A família tende hoje a concentrar-se no núcleo constituído entre o cônjuge e os filhos; para além deste núcleo, só os que conservam a possibilidade de efetivas relações pessoais com o de cuius devem ser chamados a suceder-lhe. Entre eles se contam, por certo, os parentes em linha reta, bem como os irmãos e seus descendentes. Quanto aos restantes colaterais, afigura-se que, para além do quarto grau, não existirão em regra aquelas efetivas relações familiares que justificam a atribuição de direitos sucessórios”. 32 A previsão do princípio da intangibilidade da legítima, nas suas vertentes quantitativa e qualitativa (arts 2163.º a 2165.º) reflete a proteção da família nuclear. 33 A sucessão legal divide-se em sucessão legítima e legitimária (art. 2027.º). A sucessão legítima, ou ab intestato, é uma modalidade de sucessão supletiva, que se verifica quando o falecido não tiver disposto válida e eficazmente, no todo ou em parte, do património de que podia dispor para depois da morte (art. 2131.º). 34 Admite-se que a ação de divórcio ou de separação possa ser prosseguida pelos herdeiros para efeitos patrimoniais (art. 1785.º, n.º 3). Saliente-se que, no caso de divórcio, o legislador refere-se a cônjuge no art. 2133.º, n.º 3, quando em termos rigorosos trata-se de um ex-cônjuge. 35 CAMPOS, Diogo Leite de, ob. cit., p. 457. 36 FRANÇA PITÃO, A Posição Do Cônjuge Sobrevivo No Atual Direito Sucessório Português, 4.ª edição (Coimbra:Almedina, 2005), pp. 38 e 39. 30 31
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IV – ESTATUTO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE NO DIREITO ATUAL O cônjuge sobrevivo é herdeiro legitimário, desde a Reforma do Código Civil de 1977. Poderá eventualmente suceder como herdeiro legítimo, relativamente à quota disponível ou remanescente dela. Nesta fase do nosso estudo, analisaremos os termos em que se dá o chamamento do cônjuge nestas duas modalidades da sucessão legal, tendo por presente que há casos em que o cônjuge não será chamado a suceder37: o cônjuge sobrevivo não será chamado se à data da morte do de cujos se encontrar divorciado ou separado de pessoas e bens, por sentença ou decisão do conservador do registo civil38, que já tenha transitado ou venha a transitar em julgado, ou ainda se a sentença de divórcio ou separação vier a ser proferida posteriormente àquela data, por ter O cônjuge sobrevivo é herdeiro sido prosseguida pelos herdeiros do de cujos, nos termos do legitimário, desde a Reforma do art. 1785, n.º 3 (art. 2133.º, n.º 3). Código Civil de 1977. Poderá eventualmente suceder como 4.1. O cônjuge supérstite como herdeiro legitimário herdeiro legítimo, relativamente à quota disponível ou Sendo o cônjuge sobrevivo, herdeiro legitimário nos terremanescente dela. mos do art. 2157.º, importa saber em primeira instância qual é a legítima global ou quota indisponível, ou seja, aquela porção de bens de que o de cujos não pode dispor por se destinar necessariamente aos herdeiros legitimários (art. 2156.º). Essa legítima será de dois terços da massa da herança em caso de concurso de cônjuge com descendentes39 (art. 2159.º, n.º 1), bem assim como no caso de concurso de cônjuge com ascendentes (art. 2161.º, n.º 1). Por outro lado, a legítima do cônjuge é de metade da massa da herança quando não existam nem descendentes nem ascendentes (art. 2158.º). Uma vez conhecida a legítima global em cada caso, interessa saber qual a quota que cabe a cada um dos legitimários (e, no nosso caso, especialmente ao cônjuge sobrevivo), dentro Sem prejuízo de não ser chamado por não ter capacidade sucessória, v. g. após ter sido deserdado, nos termos do art. 2166.º. 38 Com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, o divórcio e a separação judicial de pessoas e bens também pode ser resultar de decisão do Conservador do Registo Civil: ao abrigo dos arts 1776.º, n.º 3, e 1794.º, as decisões proferidas pelo conservador do registo civil em matéria de divórcio ou separação por mútuo consentimento produzem os mesmos efeitos das sentenças judiciais. 39 Os direitos sucessórios resultantes da adoção divergem, conforme se trate de adoção plena ou de adoção restrita. Pela adoção plena o adotado adquire a situação de filho do adotante e integra-se com os seus descendentes na família deste (art. 1986.º, n.º 1) adquirindo, assim, os mesmos direitos sucessórios de qualquer descendente natural do de cujos. Integra-se, por isso, na 1.ª classe de sucessíveis do art. 2133.º, n.º 1, e é, inclusivamente, herdeiro legitimário (art. 2157.º). No que se refere à adoção restrita, deve dizer-se que o adotado, ou seus descendentes, e os parentes do adotante não são herdeiros legítimos ou legitimários uns dos outros (art. 1996.º), mas o adotado (e, por direito de representação, os seus descendentes) pode ser chamado à sucessão do adotante, como herdeiro legítimo, na falta de cônjuge, descendentes e ascendentes (art. 1999.º, n.º 2), ficando, assim, colocado entre a 2.ª e a 3.ª classes de sucessíveis do art. 2133.º n.º1; por outro lado, o adotante é chamado à sucessão do adotado ou dos seus descendentes, na falta de cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos e sobrinhos do falecido (art. 1999.º, n.º 3), estando, portanto, integrando numa classe a colocar entre a 3.ª e a 4.ª classe de sucessíveis do n.º 1 do art. 2133.º. 37
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desta legítima. Referimo-nos à chamada legítima subjetiva. Por força da parte final do art. 2157.º aplicamos na sucessão legitimária a ordem e as regras estabelecidas para a sucessão legítima, pelo que somos remetidos para as normas dos arts 2131.º e ss. Nos termos do n. º 2 do art. 2133.º “o cônjuge sobrevivo integra a primeira classe de sucessíveis, salvo se o autor da sucessão falecer sem descendentes e deixar ascendentes, caso em que integra a segunda classe”. Por outro lado, o cônjuge sobrevivo sucede na totalidade dos bens, caso não existam nem descendentes, nem ascendentes (art. 2144.º). Um outro princípio que resulta das normas da sucessão legítima é o de que a partilha se efetua por cabeça, ou seja, os parentes de cada classe sucedem em partes iguais, salvas as exceções previstas na lei (art. 2136.º). É a duas exceções que nos referiremos de seguida. a) Concurso de cônjuge e descendentes De harmonia com o disposto na primeira parte do n.º 1 do art. 2139.º, havendo concurso de descendentes com o cônjuge, a partilha far-se-á por cabeça. Todavia, este princípio sofre uma exceção na medida em que a lei (na 2.ª parte do n.º 1 da mesma disposição legal) determina que a quota do cônjuge não pode ser inferior a uma quarta parte da herança. Importa esclarecer que, quando o legislador diz que “…a quota do cônjuge, porém, não pode ser inferior a uma quarta parte”, não quer dizer que ao cônjuge cabe sempre uma quarta parte da herança, mas sim, no que se refere à sucessão legitimária, pelo menos uma quarta parte da quota indisponível. Assim, quando o autor da sucessão tenha deixado cônjuge e mais de três filhos, é necessário atribuir, em primeira linha, um quarto da legítima global ao cônjuge, repartindo-se os restantes três quartos em quantas partes quantos forem os filhos. Daqui resulta um evidente beneficio a favor do cônjuge sobrevivo em todos os casos em que o de cujos tenha deixado uma prole numerosa. b) Concurso de cônjuge e ascendentes Uma vez mais o legislador estabelecendo um princípio de beneficiação do cônjuge sobrevivo, consagra no art. 2142.º, n.º 1 que, no caso de concurso entre cônjuge e ascendentes, ao cônjuge pertencerão duas terças partes e aos ascendentes uma terça parte. Note-se que, no caso de algum ou alguns dos ascendentes não puder ou não quiser aceitar, a sua parte acrescerá à dos outros ascendentes que concorram à sucessão, e não ao cônjuge (art. 2143.º, 1.ª parte). Na 2.ª parte do art. 2143.º prevê-se que, se não existirem ascendentes a quota do ascendente que não pode ou não quer aceitar acresce à do cônjuge sobrevivo. No âmbito da sucessão legítima, não se vê a necessidade desta estipulação, por existir um princípio geral no art. 2144.º segundo o qual o cônjuge sobrevivo é chamado à totalidade da herança (leia-se, totalidade da legítima e quota disponível ou seu remanescente, se existir) na falta de descendentes e ascendentes40. No que respeita à sucessão legitimária a situação complica logo na determinação da legítima global. Com efeito, nos termos do art. 2161.º, n.º 1, no caso de 40
Nesse sentido, cfr. FRANÇA PITÃO, José, ob. cit., p. 45.
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concurso entre cônjuge e ascendentes a legítima global é de dois terços da massa da herança; mas se o autor da sucessão não deixar descendentes nem ascendentes a legítima será de metade da herança (art. 2158.º). O que quer dizer, afinal, que se os ascendentes não existirem, a sua legítima não acresce ao cônjuge (como pretende o art. 2143.º, 2.ª parte ex vi art. 2157.º), mas haverá antes uma outra legítima atribuída a este (que é de metade da massa da herança, conforme resulta do art. 2158.º). O preceito legislativo já teria conteúdo útil se dissesse: “se os ascendentes não puderem por motivo diferente da pré-morte, ou não quiserem aceitar a sua quota, esta acrescerá ao cônjuge sobrevivo”. Ora, parece-nos que a determinação da legítima não deve estar dependente do repúdio ou incapacidade sucessória do ou dos ascendentes. Se assim fosse, haveria uma grande instabilidade na determinação da quota global a atribuir aos legitimários41. 4.2 O cônjuge supérstite como herdeiro legítimo O cônjuge sobrevivo é também herdeiro legítimo (no que concerne à quota disponível ou ao seu remanescente). Contudo note-se que, dado o carácter de supletividade da sucessão legítima (art. 2131.º), por o autor da sucessão poder dispor da sua quota disponível por sucessão voluntária, designadamente por testamento, poderá não ter lugar. Dada a aplicabilidade da ordem e das regras da sucessão legítima à sucessão legitimária, deve adaptar-se a este caso tudo o escrevemos supra: quando concorre com descendentes, a partilha da quota disponível faz-se por cabeça, a não ser que haja mais de três filhos (caso em que o cônjuge recebe, necessariamente, uma quarta parte); se concorre com ascendentes, o cônjuge recebe duas terças partes da quota disponível, etc… Importa esclarecer, à semelhança do que fizemos no ponto anterior a propósito da sucessão legitimária, que quando o quando o legislador refere no art. 2139.º, n.º 1 que, “…a quota do cônjuge, porém, não pode ser inferior a uma quarta parte”, pretende assegurar que o cônjuge receba, na sucessão legítima, pelo menos uma quarta parte daqueles bens (ou do seu remanescente) de que o autor da sucessão podia dispor livremente para depois da morte. 4.3. Outros direitos sucessórios atribuídos ao cônjuge supérstite Pretendendo-se garantir ao cônjuge sobrevivo a permanência no ambiente em que decorreu a sua vida conjugal, foi-lhe consagrado, igualmente com a Reforma de 1977, o direito de exigir, em partilha, que lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada de família e bem assim o direito de uso do respetivo recheio42 (arts. 2103.º-A a 2103.º-C). FRANÇA PITÃO, José, ob. cit., pp. 45 e 46. Para este efeito, considera-se recheio da casa o mobiliário e demais objetos ou utensílios destinados ao cómodo, serviço e ornamentação da casa (art. 2103.º-B). Como afirma França Pitão “(…) nem todos os objetos do recheio da casa deverão estar abrangidos por este direito preferencial: assim, será de excluir, nomeadamente, uma coleção de selos do cônjuge filatelista, ou a coleção de fósforo do cônjuge filumenista; assim como será ainda de excluir a estatueta, obra de arte, que o de cujos tinha recebido (por sucessão ou doação) como bem próprio”. FRANÇA PITÃO, José, ob. cit., pp. 57 e 58. 41
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Repare-se porém, que não se atribui ao cônjuge a propriedade de tais bens, mas tão somente reais de habitação e uso, ou seja, a faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos na medida das necessidades quer do cônjuge quer da sua família43. Estas atribuições preferenciais estão sujeitas a um regime especial, de que convém ainda salientar outros aspetos: o valor44 recebido pelo cônjuge sobrevivo é imputado na sua “parte sucessória e meação, se a houver”; se o valor exceder essa parte sucessória e meação, o cônjuge sobrevivo deve tornas aos co-herdeiros; podem caducar se o cônjuge não habitar a casa por prazo superior a um ano, salvo se se verificar algum dos casos particulares a que se refere o n.º 2 do art. 1072”45. (art. 2103.º-A, n.os 1 e 2); não pode, exceder a vida do cônjuge, sendo intransmissíveis entre vivos ou mortis causa, e extinguem-se nos termos gerais do direito de uso e habitação, nomeadamente por morte do cônjuge sobrevivo usuário ou do cônjuge sobrevivo apenas usuário do recheio46. Saliente-se que, não podemos confundir este direito sucessório do cônjuge sobrevivo com o que lhe é reconhecido nos termos do art. 1106.º, n.º 1, al. a), segundo o qual “o arrendamento para habitação não caduca47 por morte do arrendatário quando lhe sobreviva cônjuge com residência no locado”. Verifica-se assim que, o cônjuge sobreOs casamentos têm agora vivo (não separado judicialmente de pessoas e bens ou de na sua base o amor e não facto) ocupa uma posição privilegiada na transmissão por a conveniência, o que atribui morte do arrendamento relativamente à casa de morada ao cônjuge um especial papel comum, de que era arrendatário o cônjuge defunto48. na família. Entendemos que a diferença essencial entre a situação prevista no art. 2103.º-A e o art. 1106.º, n.º 1, al. a) é o seu âmbito de aplicação: a norma do 1106.º, n.º 1, al. a) é de aplicar quando o casal vivia numa casa arrendada, enquanto a hipótese regulada no art. 2103.ºA, n.º 1 é de aplicar quando a casa de morada de família seja propriedade do de cujos49. Por último, apesar de não nos ser possível aprofundar essa matéria neste estudo, cumpre-nos referir que a posição sucessória do cônjuge sobrevivo também é favorecida pelo legislador no que se refere à imputação das doações que recebeu do seu cônjuge falecido. Com efeito, a Reforma de 1977, transformando o cônjuge em herdeiro legitimário, não o incluiu na lista dos herdeiros legitimários obrigados à colação: apenas os descendentes que receberam uma doação do seu ascendente (de cujos) e eram seus presuntivos herdeiros 43 Segundo FRANÇA PITÃO estamos perante a nomeação de legatário ex vi legis dado que o cônjuge sobrevivo é encabeçado em bens determinados (Cfr. FRANÇA PITÃO, José, ob. cit., pp. 52 e 53). 44 Para avaliação dos direitos de habitação da casa de morada de família e uso do respetivo recheio, aplica-se o art. 13.º, primeira parte, al. a) do CIMT. 45 O art. 2103.º-A faz referência aos casos previstos no art. 1093.º, n.º 2, contudo, com as sucessivas alterações introduzidas ao Código Civil no que respeita ao arrendamento, os casos em que o não uso pelo arrendatário do locado há mais de um ano é permitido encontram-se previstos no n.º 2 do art. 1072.º, v. g. em caso de força maior ou de doença. 46 Art. 1476.º, n.º 1, al. a) aplicável ex vi art. 1485.º. Sobre a intransmissibilidade do direito inter vivos, cfr. art. 1488.º. 47 Exceção à regra de que por morte do arrendatário caduca o arrendamento [art. 1051.º, al. a)]. 48 Este é um dos casos excecionais em que o contrato de arrendamento não caduca com a morte do arrendatário. Este direito é igualmente concedido à pessoa que com o arrendatário vivia em união de facto ou economia comum há mais de um ano (als b) e c) do n.º 1 do art. 1106.º). Sobre a questão de saber o que deve entender-se por casa de morada de família. Vide FRANÇA PITÃO, José, ob. cit., p. 54. 49 Como vimos supra, se a casa de morada de família não fizer parte da herança, o direito de preferência do cônjuge sobrevivo incidirá sobre o respetivo recheio (art. 2103.º-B).
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legitimários à data da doação, são obrigados, salvo dispensa de colação, a conferir as doações recebidas, na sua legítima50. Sobre a sujeição ou não sujeição do cônjuge à colação, a doutrina diverge, mas o facto é que, apesar de a Reforma de 1977 ter colocado o cônjuge em pé de igualdade com os descendentes, não introduziu alterações em matéria de colação51.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Atualmente com a constituição da família pretende-se alcançar a felicidade. As pessoas têm liberdade de escolher com quem se pretendem unir pelo casamento, sem os obstáculos criados pelo antigo paternalismo e pela divisão de classes de uma sociedade solidamente estratificada. Os casamentos têm agora na sua base o amor e não a conveniência, o que atribui ao cônjuge um Não podemos olvidar que, especial papel na família. A evolução da família afastou a os laços conjugais à medida que ideia de que os laços de sangue são mais fortes do que os se tornaram mais intensos laços conjugais. também se tornaram menos É assim adequado que, na sociedade atual, em que previnculativos, não só pelo maior domina a classe média e os pequenos patrimónios, e em reconhecimento da liberdade que os bens do casal são cada vez em menor número, seja individual dos cônjuges e atribuída ao cônjuge sobrevivo, imperativamente, uma parcrescente independência da te da herança. Com efeito, a mera aplicação do regime de mulher, a que se tem assistido, bens, geralmente, o regime supletivo (regime da comunhão mas também por força do livre de adquiridos), poderá não ser suficiente para proteger aderegime de dissolução do quadamente o cônjuge sobrevivo e permitir-lhe manter o casamento. nível de vida que detinha durante o casamento, ou até para assegurar a sua própria subsistência. Esta nossa posição é reforçada pela tendência cada vez maior de os casais optarem pelo regime da separação de bens, face à inexistência, nesses casos, de meação dos cônjuges. Não podemos olvidar que, os laços conjugais à medida que se tornaram mais intensos também se tornaram menos vinculativos, não só pelo maior reconhecimento da liberdade individual dos cônjuges e crescente independência da mulher, a que se tem assistido, mas também por força do livre regime de dissolução do casamento. Entendemos que, se o casamento se dissolveu por morte, e não por crise no casamento, não será razoável pois que o cônjuge sobrevivo para além de ficar sem o seu mais que tudo, não seja “recompensado” pelo que representou na vida deste e pela partilha de vida até ao fim dos seus dias. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico Cfr. arts 2104.º e ss. Com essa posição, vide NOGUEIRA, Joaquim Fernando, ob. cit., pp. 690-692; e PEREIRA COELHO, Direito das Sucessões, Lições ao curso de 1973-1974, atualizadas em face da legislação posterior, Coimbra, 1992, pp. 292 e 293; e CORTE-REAL, Carlos Pamplona, Da imputação de liberalidades na sucessão legitimária, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, p. 1034, 1989. Com a posição de que se trata de uma lacuna, e que por isso o cônjuge está sujeito à colação, vide CAMPOS, Diogo de, “Parentesco, Família e Sucessão”, Revista da Ordem dos advogados, I, 1985; CAPELO DE SOUSA, R. Lições e Direito das Sucessões, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, pp. 227-229, nota de rodapé 578; e ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil Sucessões, 5.ª ed. Revista, 2000, pp. 532 e 533.
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A VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR – PERSPETIVA DO TITULADOR SUSANA ALCINA RIBEIRO PINTO * Solicitadora e Docente da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Felgueiras, do Instituto Politécnico do Porto.
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ação executiva é aquela em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida, tendo por base um título e que pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto.1 Não há, por isso, no contexto da ação executiva, um conflito a resolver, há, ao invés, uma obrigação a executar, obrigação essa espelhada, titulada, num título executivo, um documento a que a lei atribui essa natureza. Atualmente, entre outras formas previstas em lei especial, o título executivo pode ser uma sentença condenatória, documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação ou títulos de crédito, conforme resulta do artigo 703.º do Código de Processo Civil. A ação executiva para pagamento de quantia certa assume, estatisticamente, desde há largos anos, a modalidade mais utilizada.2
Artigo 10.º, n.os 4, 5 e 6 do Código de Processo Civil. Estatísticas Oficiais da Justiça [Consult. 12 Ago. 2015] disponível em http://www.siej.dgpj.mj.pt/webeis/ index.jsp?username= Publico&pgmWindowName=pgmWindow_633918141195530467.
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A Venda Por Negociação Particular – Perspetiva Do Titulador
RESUMO O Código de Processo Civil não estabelece a forma que reveste a venda por negociação particular de prédios, devendo aplicar-se as regras gerais dos contratos. O titulador do negócio jurídico deve verificar as regras da titulação, não esquecendo, porém, que tem subjacente uma ação judicial, havendo, por isso, especificidades a ter em conta, designadamente a legitimidade do encarregado da venda, a forma e tempo do pagamento do preço, a dispensa da exibição da autorização de utilização, caso o imóvel não a possua, bem como do certificado energético, o valor sobre que incidem os impostos e a caducidade dos encargos e respetivos registos que onerem o prédio.
* Membro do Centro de Inovação e Investigação em Ciências Empresariais e Sistemas de Informação - Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Felgueiras.
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
Susana Alcina Ribeiro Pinto
Conforme resulta do artigo 817.º do Código Civil, se a obrigação não for voluntariamente cumprida, o credor tem o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor. O direito à execução do património do devedor é exercido através da instauração de uma ação executiva. A ação executiva para pagamento de quantia certa é a que assume, no sentido mais imediato, este caminho, sendo o património penhorado, vendido, e com o produto da venda procede-se ao pagamento do exequente, o credor, que consegue, assim, a realização da prestação que lhe é devida.3 A tramitação da ação executiva para pagamento de quantia certa é sucedida, após a instauração do processo, pelo despacho liminar e citação do executado para pagar ou opor-se à execução (artigo 726.º CPC), podendo, no entanto, o exequente requerer a dispensa da citação prévia do executado, desde que alegue factos que justifiquem o receio de perda da garantia patrimonial e ofereça de imediato os meios de prova (artigo 727.º CPC), caso em que o executado será, após a penhora dos bens, citado para se opor à penhora (artigo 727.º n.º 4 e 856.º CPC). Após a citação e, não havendo oposição à execução ou sendo esta improcedente, quando tenha efeitos suspensivos, passa-se à fase de penhora dos bens do executado que respondam pela dívida exequenda.4 A penhora dos bens não é suficiente para satisfazer o direito do credor, pelo que é necessário providenciar o pagamento. No prazo de três meses, a contar da penhora, são iniciadas as diligências necessárias para proceder ao pagamento do exequente que pode ser feito pela entrega de dinheiro5, pela adjudicação dos bens penhorados6, pela consignação de rendimentos7 ou pelo produto da venda (artigo 795.º n.º 1 e 796.º CPC). No entanto, é possível, mediante acordo, o executado proceder ao pagamento em prestações (795.º n.º 2 CPC).8 A venda dos bens penhorados, para que com o seu produto se satisfaça o crédito do exequente, pode ocorrer de várias formas. O artigo 811.º do CPC contém o elenco das modalidades que pode revestir a venda no âmbito da ação executiva, nomeadamente venda mediante proposta por carta fechada, venda em mercados regulamentados, venda direta, venda por negociação particular, venda em leilões, venda em depósito público ou 3
FERREIRA, Fernando Amâncio – Curso de Processo de Execução. 13.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2010. ISBN
9789724043883, p. 106.
Além da ação executiva sob forma ordinária descrita, a ação executiva pode assumir a forma sumária (artigos 855.º e ss. CPC) ou a forma de execução da decisão judicial condenatória, a que se aplicam, supletivamente as disposições da ação executiva sob a forma ordinária (artigos 551.º n.º 3 e 626.º n.º 1 do CPC). 5 O pagamento por entrega em dinheiro ocorre quando a penhora tenha recaído sobre qualquer direito de crédito pecuniário, nomeadamente moeda corrente ou depósito bancário (artigo 798.º CPC). 6 A adjudicação de bens penhorados ocorre a pedido do credor reclamante, desde que não se trate de instrumentos financeiros ou mercadorias que tenham cotação em mercados regulamentados ou se trate de bens que devam ser entregues a determinada entidade ou tiverem sido prometidos vender com eficácia real, a quem pretenda exercer o direito de execução específica (artigos 799.º n.º 1, 830.º e 831.º CPC). 7 A consignação de rendimentos ocorre enquanto os bens não forem vendidos e caso o exequente requeira que lhe sejam consignados os rendimentos de imóveis ou de móveis sujeitos a registo, em pagamento do seu crédito (artigo 803.º CPC). 8 O pagamento em prestações resulta da existência de um acordo entre executado e exequente, sendo definido um plano de pagamento, tendo, a falta de pagamento de uma das prestações nos termos acordados, como consequência o vencimento de todas as prestações seguintes, podendo, nesse caso, o exequente requerer a renovação da execução para satisfação do remanescente do seu crédito (artigos 806.º e 808.º CPC). 4
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A Venda Por Negociação Particular – Perspetiva Do Titulador
venda eletrónica, cabendo a decisão sobre a modalidade de venda, em regra, ao agente de execução. Esta norma tem a mesma redação que a última redação do artigo 886.º do Código de Processo Civil de 1961, cuja versão originária (artigo 883.º) distinguia a venda judicial da venda extrajudicial, incluindo-se na primeira a venda por proposta em carta fechada e a arrematação em hasta pública e na segunda a venda em bolsas, a venda direta a quem tenha direito de adquirir os bens, a venda por negociação particular e a venda em estabelecimentos de leilões. Entre a primeira e a última redação foi eliminada a venda por arrematação em hasta pública e acrescentou-se a venda em depósito público e a venda em leilão eletrónico. A venda por negociação particular é, por natureza, uma venda extrajudicial, que só ocorre em situações muito concretas.9 De acordo com o artigo 832.º do CPC, a venda é feita por negociação particular, nomeadamente, quando o exequente De acordo com a tramitação ou executado propõem um comprador ou um preço, que é delineada da ação executiva, os aceite por ambos e demais credores, quando haja urgência na bens são penhorados e, depois, realização da venda, reconhecida pelo juiz, quando se frustre vendidos, seja por que a venda por propostas em carta fechada, por falta de propomodalidade for. Essa venda nentes, não-aceitação das propostas ou falta de depósito do determina a caducidade dos preço pelo proponente aceite, quando se frustre a venda em direitos de garantia que os depósito público ou equiparado, por falta de proponentes ou onerarem, nomeadamente, não aceitação das propostas e, atenta a natureza dos bens, tal hipotecas, bem como de todos seja aconselhável; quando se frustre a venda em leilão eletróos direitos reais registados após nico por falta de proponentes; e quando o bem em causa qualquer arresto, garantia ou tenha um valor inferior a quatro unidades de conta. penhora. Conforme resulta do artigo 833.º CPC, ao determinar-se a venda por negociação particular, é designada a pessoa que fica incumbida, como mandatário, de a efetuar, podendo ser o agente de execução. Neste caso, o preço é depositado diretamente pelo comprador numa instituição de crédito, à ordem do agente de execução, antes de lavrado o instrumento da venda.
A TITULAÇÃO Não estando estabelecido no artigo 833.º do CPC a forma que reveste a venda por negociação particular, deve aplicar-se as regras gerais dos contratos. Tratando-se de bens imóveis, deve revestir a forma de escritura pública ou documento particular autenticado, de acordo
9 Os actos e decisões tomados pelo Agente de Execução no âmbito desta modalidade de venda, não são seguramente actos de natureza judicial nem tão pouco administrativa. São actos que têm mais uma natureza privada e de gestão. O Agente de Execução está obrigado a um comportamento especialmente exigente do ponto de vista ético tendo uma formação de vontade orientada para os fins próprios da execução e para a satisfação do interesse do credor. Importa também referir o juízo de avaliação do Agente de Execução sobre se, em cada caso, estará perante um bom negócio, um mau negócio ou o negócio possível, o que lhe requer especial competência técnica-comercial e de gestão do património em execução. – Lopes, Micaela Bragadeste. Os actos decisórios do agente de execução. Lisboa: JusJornal, n.º 1460, 10 de Maio de 2012, 2012. p. 10.
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
Susana Alcina Ribeiro Pinto
com o artigo 875.º do Código Civil, transmitindo-se a propriedade para o adquirente, por mero efeito do contrato, nos termos do artigo 408.º do Código Civil.10 Assim, o titulador do negócio jurídico tem que verificar todas as regras da titulação, não esquecendo, porém, que tem subjacente uma ação judicial, havendo, por isso, especificidades que passaremos a analisar. No que respeita à legitimidade para a venda, ao contrário do que é regra no contrato de compra e venda em que é o proprietário, ou alguém por si mandatado para o efeito, que profere a declaração negocial11, sob pena de nulidade, por falta de legitimidade, nos termos do artigo 892.º do Código Civil, o contrato de compra e venda, na venda por negociação particular, é outorgado pelo encarregado da venda12, que, como se referiu, pode ser o Agente de Execução. A legitimidade do encarregado da venda, pessoa diferente do proprietário, provém de uma decisão judicial e não de um ato de representação voluntária. Mais, é o Agente de Execução que recebe o preço, que tem que ser, como se disse, depositado numa instituição bancária à sua ordem, antes da outorga do título de transmissão. No que se refere à identificação dos outorgante no contrato de compra e venda, se a regra é que a identificação seja (…) o titulador do negócio efetuada, nos termos do artigo 48.º do Código do Notariado, jurídico tem que verificar todas por conhecimento pessoal do titulador, pela exibição do as regras da titulação, não bilhete de identidade, de documento equivalente ou da caresquecendo, porém, que tem ta de condução, pela exibição do passaporte ou pela declasubjacente uma ação judicial (…) ração de dois abonadores cuja identidade tenha sido verificada por uma destas formas, já nos contratos de compra e venda de imóveis resultantes de negociação particular em ação executiva é necessário comprovar a legitimidade do encarregado da venda. O encarregado da venda, no nosso entender, deve, no ato da outorga do contrato de compra e venda, juntar certidão judicial, que deve ficar arquivada, nos termos do artigo 27.º do Código do Notariado, uma vez que é um documento apresentado para instruir o ato. A certidão deve conter a decisão da determinação da venda por negociação particular, a nomeação do Agente de Execução ou outrem como encarregado da venda, a identificação do prédio ou prédios objeto da penhora, a identificação do executado, do exequente, do adquirente, o valor por que será efetuada a venda e a confirmação do depósito do preço. Outra especificidade da venda através desta modalidade, prende-se com a exibição da autorização de utilização. De acordo com o artigo 1.º do Decreto-lei n.º 281/99, de 26 de julho, não podem ser realizados actos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular, a qual fará a sua menção, com a indicação do respectivo número e data de emissão ou da sua isenção. Se o prédio urbano for de construção posterior à data de entrada em Agravo n.º 3257/00 Acórdão de 23.1.01 [Consult. 18 Ago. 2015] Disponível em http://www.trc.pt/index.php/jurisprudencia-do-trc/direito-civil/2297-agravo325700 e FERREIRA – Curso de Processo…, p. 377. 11 O conteúdo do direito de propriedade inclui o poder de disposição – art. 1305.º C.C.. 12 FERREIRA – Curso de Processo…, p. 377. 10
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vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de agosto de 1951 ou da data em que o mesmo se tornou extensível à área do município em que o prédio se situa, é necessário exibir a autorização de utilização. O artigo 833.º n.º 6 do CPC determina que a venda de imóvel em que tenha sido, ou esteja sendo, feita construção urbana, ou de fração dele, pode efetuar-se no estado em que se encontre, com dispensa da licença de utilização ou de construção, cuja falta de apresentação a entidade com competência para a formalização do ato faz consignar no documento, constituindo ónus do adquirente a respetiva legalização. No entanto, esta dispensa só é aplicável nos casos de, quando exigível, não existir a autorização de utilização. Esta situação vem demonstrar que o que é relevante, neste âmbito é satisfazer o interesse do credor, mesmo que isso implique que alguns requisitos para a venda não se verifiquem, tal como a inexistência de autorização de utilização. Mas coloca-se aqui uma questão, tudo que for ultrapassado para a venda transfere-se para o adquirente, uma vez que constitui ónus do adquirente a respetiva legalização. Ora, se o adquirente comprou o imóvel com a intenção de o vender, então, terá, primeiro, que requerer a autorização de utilização, com todas as consequências a isso inerentes, tal como a possibilidade de realizar obras. Por outro lado, se adquiriu, para utilizar, antes de o fazer deve, também, legalizar, uma vez que, não o fazendo, incorre em infração contraordenacional, nos termos dos artigos 4.º n.º 5 e 98.º n.º 1 alínea d) do Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de dezembro. Parece-nos que se desprotege o adquirente, que, na maior parte das vezes, só tem noção desta situação depois da aquisição, para se garantir o direito do credor. Nestas aquisições é, também, dispensada, a verificação da existência de pré-certificado ou de certificado de Sistema de Certificação Energética e a consignação do seu número no contrato, de acordo com a alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto. Neste caso não há qualquer norma que expressamente preveja essa preterição ou isenção, no entanto, tem sido feita uma interpretação extensiva do artigo 833.º n.º 6 do CPC, no sentido de se dispensar, também, a exibição do certificado energético. Se é concedida uma dispensa, a da exibição da autorização de utilização, quando, em regra, a sua falta geraria a nulidade do negócio jurídico13, e atendendo que a única consequência para falta da existência do certificado energético é a aplicação de uma coima14, e a falta da sua apresentação no momento da outorga do contrato, determina, tão-somente, que o titulador tem a obrigação de comunicar à ADENE este facto15, não pondo em causa, a inexistência do certificado energético, a validade do contrato, parece-nos ser uma interpretação adequada. No entanto, tal como acontece no que respeita à autorização de utilização, esta dispensa implica que a respetiva certificação passe a ser encargo do adquirente que só tem que o fazer se arrendar ou vender o imóvel. No que respeita aos impostos – o Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis e Imposto de Selo da Verba 1.1 da Tabela Geral – estes devem ser pagos antes de titulado o contrato e incidem, em regra, sobre o valor do contrato ou sobre o valor Parecer do Conselho Consultivo do IRN n.º 01/ CC /2014 [Consult. 23 Ago. 2015] Disponível em http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/01-cc-2014/downloadFile/ file/01_CC_2014.pdf?nocache= 1395317042.97. 14 Artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto. 15 N.º 3, do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto. 13
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patrimonial tributário, consoante o que seja mais elevado.16 Aqui reside mais uma das especificidades. O valor dos bens adquiridos por arrematação judicial é o preço constante do ato ou do contrato.17 Em 2009 a, então denominada, Direção Geral dos Impostos, veio esclarecer o conceito de arrematação judicial, de acordo com a qual deve entender-se que inclui a venda por negociação particular na ação executiva, uma vez que a venda por negociação particular (que decorre em ação executiva) é apenas uma das modalidades de venda executiva consagradas na lei e a circunstância de assentar num contrato de compra e venda não altera a natureza do negócio que, na origem, é sempre executiva, isto é, promovida a partir de instância judicial adequada no âmbito de um processo executivo.18 Daqui resulta que as taxas aplicáveis vão incidir sobre o valor da aquisição, independentemente do valor patrimonial tributário poder ser mais elevado. Na venda voluntária, os prédios podem ser vendidos com encargos, sejam eles quais forem, tendo o titular dos encargos o direito de sequela em relação aos prédios, isto é, o direito real pode ser invocado contra quem quer que seja seu titular, não se extinguindo com o contrato de compra e venda, dependendo a extinção desses encargos da intervenção dos teus titulares. Tratando-se de venda em processo executivo, nos termos do n.º 2, do artigo 824.º do Código Civil, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo. De acordo com a tramitação delineada da ação executiva, os bens são penhorados e, depois, vendidos, seja por que modalidade for. Essa venda determina a caducidade dos direitos de garantia que os onerarem, nomeadamente, hipotecas, bem como de todos os direitos reais registados após qualquer arresto, garantia ou penhora. Por um lado, em consequência da venda executiva do bem penhorado, caducam os direitos reais de garantia, uma vez que, independentemente de serem constituídos anteriormente ou posteriormente à penhora e de ter havido, ou não, reclamação na execução dos créditos que garantem, os bens são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerem. Por outro lado, quanto aos direitos reais de gozo, há que fazer a distinção entre os que tenham sido registados antes ou depois dos direitos reais de garantia e da penhora.19 Para que um direito real de gozo continue a incidir sobre o prédio depois da venda executiva é necessário que tenha sido constituído antes do registo de qualquer direito real ou penhora. Por exemplo, um prédio que no momento de aquisição se dividiu em raiz e usufruto, caso o radiciário venha a ser executado e o seu direito vendido na sequência da penhora posterior, o usufruto não caduca. Para concluir, há mais uma questão que devemos referir. Nos termos do artigo 101.º, n.º 5 do Código de Registo Predial, a inscrição de aquisição, em processo de execução (…), de bens penhorados (…) determina o averbamento oficioso de cancelamento dos registos dos 16 Artigos 2.º, n.º 1, 12.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 36.º n.º 1 do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e artigos 1.º, 44.º n.º 4 do Código do Imposto de Selo. 17 Regra 16.ª, n.º 4 do artigo 12.º CIMT.
18 Circular n.º 22/2009 [Consult. 27 Ago. 2015] Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/ rdonlyres/A0546527-95B5-4656-A5C9-C1EC2C0758D1/0/Circular_22-2009.pdf. 19 SANCHES, Filipa, Os efeitos da Venda Executiva, JusJornal, n.º 1029, 15 de Junho de 2010; Lisboa, 2010, p. 4.
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direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil. Esta norma vem estabelecer que, com o pedido do registo de aquisição da compra por negociação particular20 e com a caducidade dos direitos reais que acima referimos, o registo desses encargos é cancelado, oficiosamente, pela Conservatória de Registo Predial, sem que disso resulte uma despesa acrescida para o adquirente, uma vez que se trata de um registo gratuito, de acordo com a alínea b), do n.º 1, do artigo 14.º do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado. Em jeito de conclusão podemos dizer que, apesar da venda por negociação particular ser uma venda extrajudicial que se concretiza com a outorga do contrato de compra e venda, o titulador não pode ignorar que a mesma se insere numa ação executiva, atendendo a todas as especificidades que ela comporta, nomeadamente, a legitimidade do encarregado da venda, a forma e tempo do pagamento do preço, a dispensa da exibição da autorização de utilização, caso o imóvel não a possua, bem como do certificado energético, o valor sobre que incidem os impostos e a caducidade dos encargos e respetivos registos que onerem o prédio.
Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico
20 Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, devem, obrigatoriamente, ser submetidos a registo, recaindo esta obrigação sobre as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas – Artigos 2.º, 8.º-A, 8.º-B do Código de Registo Predial.
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Bibliografia DUARTE, Rui Pinto – Curso de Direitos Reais. 3.ª Edição. Lisboa: Principia, 2013. ISBN 9789897161056; FERREIRA, Fernando Amâncio – Curso de Processo de Execução. 13.ª Edição. Lisboa: Almedina, 2010. ISBN 9789724043883; FIGUEIREDO, David Martins Lopes de – Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis. 2.ª Edição. Lisboa: Almedina, 2014. ISBN 9789724056395 LOPES, Micaela Bragadeste – Os actos decisórios do agente de execução. Lisboa: JusJornal, n.º 1460, 10 de Maio de 2012, 2012.
NETO, Abílio – Código Civil Anotado. Reimpressão da 18.ª Edição Revista e Atualizada de 2013. Lisboa: Ediforum, 2015. ISBN 9789898438065. NETO, Abílio – Código de Processo Civil Anotado. Reimpressão da 3.ª Edição Revista e Ampliada de 2015. Lisboa: Ediforum, 2015. ISBN 9789898438133. SANCHES, Filipa – Os efeitos da venda executiva. Lisboa: JusJornal, n.º 1029, 15 de Junho de 2010, 2010.
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PRÉMIO SOLICITADOR DANIEL LOPES CARDOSO 2.ª edição
DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR (REFLEXÕES)
DIANA LEIRAS Docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave. Mestre em Solicitadoria, Doutoranda em Direito.
TRABALHO DISTINGUIDO COM O PRIMEIRO PRÉMIO
NOTA PRÉVIA
A
penhora é, no contexto atual de crise económica, uma realidade deveras frequente, constituindo o ato executivo por excelência das execuções para pagamento de quantia certa, às quais, por esse motivo, nos restringiremos neste trabalho. O solicitador e o agente de execução lidam diariamente com processos executivos: o primeiro enquanto mandatário do exequente ou do executado, o segundo enquanto profissional a quem compete tramitar estes processos. Previamente à realização da penhora terão de ser determinados os bens que da mesma serão objeto, concedendo o legislador ao exequente a faculdade de indicar bens à penhora. Os poderes de indicação dos bens a penhorar sofreram constantes alterações desde o Código de Processo Civil de 1939 até ao atualmente em vigor, que tem a redação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho e que entrou em vigor no dia 2 de setembro de 2013. Neste trabalho será realizada uma análise da determinação dos bens a penhorar essencialmente em três diferentes vertentes: na vertente de função/poder do agente de execução; na vertente do exequente; e por último na vertente do juiz de execução a quem compete controlar a legalidade da mesma. Note-se que quanto ao exequente, a análise visa essencialmente ser um apoio ao solicitador, seu mandatário, pois que a cooperação ao agente de execução na determinação dos bens a penhorar pode ser crucial para que a penhora efetivamente se realize e assim fique garantido o pagamento do crédito exequendo. 49
Determinação Dos Bens A Penhorar (reflexões)
RESUMO Tanto o solicitador, enquanto mandatário do exequente ou do executado, como o agente de execução, a quem compete tramitar os processos de execução, lidam frequentemente, na sua atividade profissional, com o ato da penhora. Nesse sentido, estes profissionais devem estar providos de conhecimentos em matéria de processo executivo. É ao agente de execução que compete determinar os bens que serão objeto de penhora. No âmbito dessa determinação, o legislador impõe-lhe o respeito pela vontade do exequente (se este exercer a faculdade de indicar bens à penhora), salvo se essa vontade violar critérios e imperativos legais. A intervenção do juiz de execução, nesta fase prévia7. da penhora, não está necessariamente afastada, para salvaguarda da legalidade da penhora efetuada pelo agente de execução.
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Diana Leiras
No final da tarefa a que nos propomos e na pressuposição de que algum proveito pode advir da leitura das nossas reflexões por parte daqueles que lidam diariamente com processos executivos resolvemos dar a conhecer o nosso trabalho.
INTRODUÇÃO Consistindo a penhora na apreensão judicial de bens do executado, que fica impedido de exercer plenamente os poderes que integram os direitos de que sobre eles é titular, não lhe é indiferente, naturalmente, quais dos seus bens serão penhorados. Porém, do lado oposto da ação executiva temos o exequente, a quem poderá, visando a satisfação do seu crédito, interessar a O solicitador e o agente penhora de certos bens pertencentes ao executado. É ao de execução lidam diariamente AE a quem incumbe determinar, previamente à realização com processos executivos: da penhora, os bens que da mesma serão objeto. o primeiro enquanto mandatário O legislador atribui ao exequente a faculdade de indicar do exequente ou do executado, bens à penhora logo no momento da propositura da ação o segundo enquanto profissional executiva, indicação essa que ao ser efetuada pode limitar o a quem compete tramitar estes AE na tomada da decisão sobre os bens a penhorar. Normas processos. legais imperativas e critérios previstos na lei restringem essa limitação do AE à vontade do exequente, pois que devem O legislador atribui ao prevalecer sobre a mesma. Quando o exequente não tenha exequente a faculdade de manifestado vontade sobre os bens a penhorar, o poder de indicar bens à penhora logo no decisão do AE continua a ser um poder vinculado, pois que momento da propositura da devem ser respeitadas aquelas normas e critérios. ação executiva, indicação essa Como se infere do próprio título, o objetivo principal desque ao ser efetuada pode limitar te trabalho é analisar e refletir sobre aspetos subjacentes à o AE na tomada da decisão determinação dos bens a penhorar, considerada não só na sobre os bens a penhorar. vertente de função/poder do AE, mas também na vertente do exequente, que deve cooperar com aquele nessa deterNormas legais imperativas minação. Embora com diferentes interesses, AE e exequente e critérios previstos na lei têm um objetivo em comum: que a execução atinja a sua restringem essa limitação do AE última finalidade, ou seja, que o direito de crédito exequenà vontade do exequente, do seja satisfeito. pois que devem prevalecer Paralelamente e de forma a garantir a legalidade da sobre a mesma. penhora determinada pelo AE, ao juiz de execução é atribuída competência para controlar este seu poder, constituindo a análise da intervenção do juiz de execução no âmbito da determinação dos bens a penhorar uma outra vertente que analisaremos. Assim, com vista a cumprir esse objetivo, o presente trabalho encontra-se dividido em três capítulos. O primeiro capítulo versa sobre o solicitador e o AE. Neste capítulo será abordada a circunstância de na base da formação destes profissionais da justiça se encontrar o processo 51
Determinação Dos Bens A Penhorar (reflexões)
executivo; o exercício do mandato pelo solicitador na ação executiva e as competências do AE nesta espécie de ação. O segundo capítulo é dedicado a considerações gerais sobre a penhora, incidindo sobre a noção, efeitos, objeto da penhora e evolução dos poderes de indicação dos bens a penhorar. Ainda neste capítulo, serão abordados os critérios legais de determinação dos bens a penhorar: princípio da proporcionalidade e princípio da adequação. O último capítulo versa sobre a determinação dos bens a penhorar, descortinando as diligências tendentes à mesma, bem como analisando a vinculação deste poder do AE à vontade manifestada pelo exequente, a imperativos e critérios legais e, ainda, questionando se o AE tem liberdade de decisão, nos termos do n.º 3 do art. 751.º do CPC1. Neste capítulo é também abordada a temática da substituição ou reforço da penhora, bem como dos meios de reação à penhora determinada pelo AE: oposição à penhora e reclamação/impugnação para o juiz de execução quando na base da reação se encontrar a decisão sobre os bens a penhorar.
Doravante, as referências legais desacompanhadas de indicação expressa do respetivo diploma reportam-se ao CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
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CAPITULO I
SOLICITADOR E AGENTE DE EXECUÇÃO
1. PROCESSO EXECUTIVO NA BASE DA FORMAÇÃO DO SOLICITADOR E DO AE É manifesta a necessidade de os conhecimentos em matéria de processo executivo, incluídos os inerentes à penhora, fazerem parte do leque de conhecimentos do solicitador e do AE, pois que constituem um seu instrumento de trabalho. Nesse sentido, a formação em processo executivo integra quer o plano de estudos das licenciaturas em Solicitadoria, quer o plano de estudos das licenciaturas em Direito2, habilitações estas (que em alternativa) se apresentam como um dos requisitos de inscrição como solicitador junto da Câmara dos Solicitadores (art.s 75.º, n.º 1, 77.º, n.º 1, e 93.º, do ECS). Não subsistem assim, dúvidas quanto ao facto de aquele que detém o título de solicitador ter adquirido na sua formação académica competências que lhe permitam atuar em sede de ação executiva, sendo essa formação complementada com os conhecimentos que posteriormente serão adquiridos em sede de estágio de solicitadores. A formação em processo executivo também se encontra na base da formação do AE, já que constitui requisito de inscrição como tal, entre outros, ser-se solicitador ou advogado (arts 99.º, n.º 1 e 117.º, n.º 1 ECS). Esses conhecimentos adquiridos pelo solicitador ou advogado que pretende requerer a sua inscrição como AE são aprofundados no âmbito de um estágio regulamentado a nível nacional pelo Conselho Geral da Câmara dos Solicitadores3, que compreende uma parte teórica e uma parte prática. No primeiro período de estágio correspondente à parte teórica, os agentes de execução estagiários frequentam um curso de formação; no segundo período de estágio correspondente à parte prática, é-lhes proporcionado pôr em prática os conhecimentos adquiridos através da tramitação de processos executivos sob a direção de um patrono AE. A diferente intervenção do solicitador e do AE nas ações executivas justifica uma diferente exigência e necessidade destes profissionais, no que concerne à matéria de processo executivo. Cumpre ainda salientar, que tem adquirido cada vez mais amplitude a realização por estes profissionais de cursos de formação ou mesmo especializações em processo executivo, visando aqueles aprofundar os seus conhecimentos, e sentirem-se mais preparados para resolver as questões de diversa natureza com que são confrontados no dia-a-dia.
2. EXERCÍCIO DO MANDATO PELO SOLICITADOR NA AÇÃO EXECUTIVA O solicitador é um profissional conhecedor da tramitação da ação executiva, tendo-lhe sido atribuída competência para nela atuar, através da sua constituição, dentro de certos limites legais, como mandatário do exequente ou do executado. Desde que não estejam inscritos na Ordem dos Advogados. Os nacionais de outro Estado da União Europeia que sejam titulares das habilitações académicas e profissionais requeridas legalmente para o exercício da profissão no respetivo Estado de Origem são também admitidos. 3 Regulamento n.º 391/2009 – Regulamento do Estágio do Agente de Execução. 2
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Determinação Dos Bens A Penhorar (reflexões)
O legislador prevê no n.º 1 do art. 58.º que “as partes têm de se fazer representar por advogado nas execuções de valor superior à alçada da Relação e nas de valor inferior a esta quantia mas superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, quando tenha lugar algum procedimento que siga os termos do processo declarativo”. Verifica-se assim que o patrocínio judiciário para a ação executiva é obrigatório nas execuções de valor superior a cinco mil euros (valor da alçada do tribunal de primeira instância)4, permitindo-se, em termos diferenciados, tal patrocínio a solicitadores, advogados estagiários e advogados. Não sendo obrigatório o patrocínio judiciário nas execuções de valor inferior ou igual a cinco mil euros, o solicitador nessas execuções pode exercer o mandato sem quaisquer restrições (art. 58.º, n.º 3). Nas execuções de valor igual ou superior a cinco mil euros mas de valor inferior a trinta mil euros (valor da alçada do tribunal da Relação), tal já não sucede: o solicitador pode exercer o mandato, mas se tiver lugar uma ação que corra por apenso ao processo executivo ou nele se enxerte, que siga os termos do processo declarativo ( v. g. embargos de executado), já será obrigatória a constituição de advogado. No apenso de verificação de créditos, o solicitador poderá exercer o mandato se o crédito reclamado for de valor inferior ou igual a cinco mil euros, pois o art. 58.º, n.º 2 prevê que o patrocínio de advogado só é necessário quando seja reclamado algum crédito de valor superior à alçada do tribunal de primeira instância e apenas para apreciação daquele.
3. O AGENTE DE EXECUÇÃO – PODER GERAL DE DIREÇÃO DO PROCESSO No direito anterior à RPC2003, operada pelo DL. n.º 38/2003, de 8 de março, a ação executiva apresentava-se inteiramente jurisdicionalizada5, cabendo ao juiz a direção de todo o processo executivo: cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento. A RPC2003 teve em vista fazer face a uma notória ineficácia do sistema processual executivo português, tendo o legislador optado pela consagração de um novo paradigma da ação executiva, inspirando-se particularmente no regime francês, corporizado na figura do hussier de justice6. De facto, uma das linhas estruturantes implementadas relaciona-se com a criação de uma nova profissão – o AE, vulgo Solicitador de Execução – com funções determinantes no desenrolar da ação executiva.
4 Os valores das alçadas dos tribunais estão previstos no art. 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. 5 Cfr. Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 273. 6 Cfr. Paulo Pimenta, “As Linhas Fundamentais da Ação Executiva”, Revista do CEJ, Dossiê Temático Reforma do Processo Civil: Processo Executivo e Recursos, 2.º Semestre, 2009, N.º 12, Coimbra, Almedina, p. 171.
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O paradigma do processo executivo português passou a assentar num esquema de execução desjurisdicializada: deslocou-se do tribunal (juiz e funcionários) para o AE7 o desempenho dum conjunto de tarefas que, não constituindo exercício do poder jurisdicional, podem ficar a cargo de funcionários ou profissionais liberais, oficialmente encarregados de, por conta do exequente, promover e efetuar as diligências executivas8. De facto, o AE foi investido num papel ativo, competindo-lhe providenciar pelo normal andamento do processo, determinando e realizando oficiosamente todas as diligências necessárias à realização coerciva do direito do exequente9, sendo a sua competência a regra geral, diversamente do que se passa com a competência do juiz de execução, cuja intervenção é excecional. A lei n.º 41/2013, de 26 de agosto não alterou o paradigma da ação executiva, à semelhança do que sucedeu em 2009, aquando das alterações ao Código de Processo Civil introduzidas pelo DL n.º 226/2008, de 20 de novembro, em que o paradigma também não sofreu quaisquer alterações. Com efeito, o ordenamento jurídico português continua a assentar num sistema desjurisdicializado, com o AE a manter as funções de natureza executiva, competindo-lhe realizar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria (art. 719.º, n.os 3 e 4) ou sejam da competência do juiz (art. art. 723.º), incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos (art. 719.º, n.º 1). Nestas competências a cargo do AE incluem-se as citações nos apensos declarativos por força do art. 719.º, n.º 3, in fine, tendo este profissional das execuções competência mesmo após a extinção da instância, nos termos do at. 719.º, n.º 2: “ mesmo após a extinção da instância, o AE deve assegurar a realização dos atos emergentes do processo que careçam da sua intervenção.” Assim, concordamos com RUI PINTO, quando afirma que o AE tem um poder geral de direção do processo, a que se contrapõe um poder geral de controlo, residual e passivo cometido ao juiz10.
O AE é designado pelo exequente de entre os registados em lista oficial (art. 720.º, n.º 1). Não tendo o exequente designado o AE ou ficando a designação sem efeito, esta é feita pela secretaria, segundo a escala constante da lista oficial, através de meios eletrónicos que garantam a aleatoriedade no resultado e a igualdade na discriminação (art. 720.º, n.º 2). Esta designação é realizada entre os AE inscritos ou registados na comarca, ou na sua falta, de entre os inscritos ou registados nas comarcas limítrofes, sendo o AE notificado da sua designação pela secretaria, por meios eletrónicos (art. 720.º, n.º 3). Conforme resulta do art. 720.º, n.º 4, a cessação de funções do AE pode resultar, essencialmente, de duas causas: substituição provocada pelo exequente, devendo este expor o motivo da substituição; ou destituição pelo órgão com competência disciplinar sobre os AE – CPEE –, com fundamento em atuação processual dolosa ou em violação reiterada dos deveres que lhe são impostos pelo respetivo estatuto [art. 69.º-C, als. e) e f ), do ECS]. 8 Cfr. Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, ob. cit., p. 26. 9 Cfr. Eduardo Paiva/Helena Cabrita, O Processo Executivo e o Agente de execução, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 15. 10 Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 116. 7
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Determinação Dos Bens A Penhorar (reflexões)
CAPITULO II
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A INDICAÇÃO E DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR
1. NOÇÃO E EFEITOS DA PENHORA A ação executiva pressupõe a existência de um dever de realização de uma prestação, nela requerendo, o autor, as “providências adequadas à reparação efetiva do direito violado”, nos termos do art. 10.º, n.º 4. Assim, com a propositura da ação executiva para pagamento de quantia certa, o credor pretende obter a mesma prestação, o mesmo benefício que traria o cumprimento voluntário da obrigação por parte do devedor11. Com efeito, não podendo o devedor ser compelido a fazê-lo, torna-se necessário que a obrigação se torne efetiva pelo valor que representa no seu património12. Nesta linha, o art. 817.º, do CC, sob a epígrafe “princípio geral”, estabelece que, “não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis do processo.” É o art. 601.º, do CC, que estabelece o princípio geral quanto aos bens13 do devedor que respondem pelo cumprimento de obrigações, prevendo que o património do devedor constitui a garantia geral do cumprimento das suas obrigações. Este direito do credor sobre o património do devedor incide sobre o conjunto dos bens suscetíveis de penhora (art. 735.º, n.º 1), mas não recai sobre cada um dos bens autonomamente considerados, e o devedor mantém o poder de disposição dos seus bens, podendo aliená-los validamente14. Para cessar essa disponibilidade e o credor/exequente ver realizado o seu direito15, isto é, para que se verifique o pagamento da dívida exequenda, por qualquer dos modos de pagamento previstos no art. 872.º 16 , procede-se à prévia penhora dos bens que para tal sejam necessários. Neste sentido, a penhora é uma manifestação de jus imperii e o primeiro ato pelo qual se efetiva a garantia da relação jurídica pecuniária17, consistindo, segundo AZEVEDO DA SILVA, na “apreensão cautelar e física ou meramente jurídica de Nos termos do art. 762.º, do CC, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, sendo certo que a prestação pode ser efetuada tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação (art. 767.º, n.º 1, do CC). O não cumprimento, segundo ANTUNES VARELA, consiste na situação objetiva de não realização da prestação debitória e de insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de onde a falta procede (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, reimpressão da 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 60). 12 Cfr. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, p. 197. 13 Ao utilizar-se o termo “bens”, no âmbito do presente estudo, pretende-se abranger bens e direitos. 14 Cfr. Marques da Silva, Curso de Processo Civil Executivo: Ação Executiva Singular, Comum e Especial, 1.ª ed., Lisboa, Universidade Católica, 1995, p. 83. 15 Assim como todos os credores com garantia real sobre os bens penhorados que venham a reclamar o pagamento dos seus créditos na execução, nos termos do art. 865.º. 16 O pagamento pode ser feito pela entrega de dinheiro, pela adjudicação dos bens penhorados, pela consignação dos seus rendimentos ou pelo produto da respetiva venda (n.º 1). É admitido o pagamento em prestações e o acordo global, nos termos dos arts. 806.º a 810.º, devendo em qualquer caso prever-se o pagamento dos honorários e despesas do AE (n.º 2). 17 Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 300. 11
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bens, não excluídos por lei, pertencentes ao devedor ou a terceiro, em cumprimento de ordem de autoridade competente dada em processo de execução para pagamento de quantia certa” 18. A penhora constitui, assim, a apreensão de bens, um desapossamento de bens do devedor, um ato que retira da disponibilidade material do devedor e retira da sua disponibilidade jurídica, bens do seu património19. TULLIO LIEBMAN dá-nos uma definição de penhora mais minuciosa: “a penhora visa individualizar e apreender efetivamente os bens que se destinam aos fins da execução, preparando o ato futuro de desapropriação”, bem como “conservar os bens assim individualizados na situação em que se encontram, evitando que sejam escondidos, deteriorados ou alienados em prejuízo da execução” 20. Tome-se em atenção que a penhora não se confunde com a apreensão que é realizada na execução para entrega de coisa certa apesar de, perante o paralelismo das situações, à efetivação da entrega judicial da coisa, nos termos do n.º 1 do art. 861.º, sejam subsidiariamente aplicáveis as disposições referentes à realização da penhora. Isto porque, o fim da execução para entrega de coisa certa é, ao abrigo do art. 827.º, do CC precisamente a entrega de coisa determinada ao credor, e não o pagamento da quantia em dívida que é assegurado através de penhora de bens do executado. Igualmente a penhora não se confunde com o arresto apesar de ao arresto, se aplicarem, subsidiariamente, as disposições relativas à penhora ex vi art. 391.º, n.º 2. O arresto é um procedimento cautelar (de apreensão de bens ou direitos), que é concedido, uma vez verificados certos pressupostos (maxime, o justo receio da perda da garantia patrimonial por parte do credor nos termos do art. 391.º, n.º 1) para tutelar um direito (de crédito) ainda incerto, mas cuja existência seja provável21, enquanto a penhora, pese embora tenha, também, uma função conservatória, é um ato do processo executivo propriamente dito. Com efeito, na penhora o que está em causa é reparar integral e efetivamente um direito violado, cuja existência se presume com um grande grau de probabilidade, a qual está consubstanciada num título executivo22. Além disso, o arresto antecipa a futura sujeição à execução, sendo um meio de conservação da garantia patrimonial, ao passo que a penhora, como refere LEBRE DE FREITAS, representa já o “atuar na execução da responsabilidade patrimonial”23. O ato processual da penhora produz efeitos substantivos os quais têm, em geral, caráter permanente, pois produzem-se enquanto se mantiver a situação dos bens penhorados. Do art. 822.º, do CC, extraímos, desde logo, um efeito da penhora, em relação ao exequente, estipulando-se no seu n.º 1 que, “fora dos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”. Assim, uma vez efetuada a penhora o Lições de Processo de Execução Civil, Lisboa, Rei dos Livros, 1996, p. 227. Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., p. 197 20 Processo de Execução, 2.ª ed., S. Paulo, Editora Saraiva, 1963, p. 88. 21 Cfr. Lebre de Freitas, “Direito Processual Civil II – Relatório”, Revista da F.D.L., vol. XXXVII, N.º 1, 1996, p. 237, notas 67 e 68. 22 Vide o ac. do TRG, de 22 de fevereiro de 2006, proc. n.º 192/06-2, in www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “não pode o requerente, pretendendo talvez prevalecer-se do regime previsto nos arts. 822.º, n.º 2, do CC e 846.º e 863.º, sem que ainda esteja reconhecido o crédito alegado e sem título executivo, avançar para uma extemporânea penhora contra o vencimento da fiadora, sob o manto diáfano do arresto.” 23 “Direito Processual Civil…” cit., p. 237, notas 67 e 68. 18 19
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exequente passa a ter um direito real de garantia sobre os bens penhorados24, daí resultando o atributo da preferência que lhe é conferido: a penhora cria uma posição de preferência do exequente, relativamente ao bem penhorado, sobre os credores comuns e sobre os credores preferenciais cuja garantia seja constituída posteriormente à penhora25. Como refere SALVADOR DA COSTA, a atribuição desta preferência ao ato da penhora justifica-se, por um lado porque apenas os credores que disponham de garantia real sobre os bens penhorados podem intervir na ação executiva e, por outro lado, porque a penhora obtida por um dos credores é suscetível de evitar a dissipação de bens a favor de outros26. Um outro efeito da penhora relativamente ao exequente resulta do art. 819.º, do CC, que consagra expressamente a regra da inoponibilidade em relação à execução (e não apenas em relação ao exequente, como até à RPC2003 vinha sucedendo), não só dos atos de alienação ou oneração dos bens penhorados, como no que respeita ao arrendamento desses bens27. Torna-se crucial, contudo, ter em conta que os atos inoponíveis a que se refere este preceito são apenas os que procedem da vontade do executado, e não os originados em atitudes de terceiro, como os atos constitutivos de direito real de garantia sobre os bens penhorados em que o seu proprietário não intervenha ( v. g., a penhora, o arresto, a hipoteca legal ou judicial)28. Tal como MARQUES DA SILVA, apontamos igualmente como efeito da penhora relativamente ao exequente a sub-rogação real dos bens penhorados, uma vez que o credor exequente adquire pela penhora o direito de ser pago pelo valor dos bens penhorados. De facto, se a coisa penhorada se perder, for expropriada ou diminuir de valor e o executado tenha direito a ser indemnizado por terceiro, a penhora tem também o efeito de submeter à ação executiva a referida indemnização, que assim substitui ou se sub-roga ao bem penhorado (art. 823.º, do CC). Quanto ao executado, impõe-se referir que este, pela penhora, fica privado dos poderes de gozo relativamente à coisa penhorada, tal como se extrai do supra citado art. 819.º, do CC. Efetivamente, o executado perde o poder de fruição que integra o direito de propriedade, uma vez que os bens penhorados são apreendidos e entregues a um depositário (arts. 756.º e 764.º), e mesmo que fique depositário dos bens, o seu poder de fruição já não é o que lhe pertencia enquanto proprietário, por ficar sujeito às limitações e responsabilidades impostas aos Neste sentido, vai o ac. do STJ, de 23 de junho de 1992, proc. n.º 082647, in www.dgsi.pt. Para ser oponível à preferência resultante da penhora a garantia real anterior, no caso de hipoteca ou consignação de rendimentos, tem de estar registada [art. 2.º, al. h), do CRP]. 26 O Concurso de Credores, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, p. 26. 27 É inoponível ao exequente e aos credores concorrentes a extinção do crédito penhorado do devedor, por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora (art. 820.º, do CC). É o que ocorre com formas de extinção diversa do cumprimento, como a compensação, a novação e a remissão. Por as rendas e alugueres se encontrarem abrangidos pela penhora (art. 758.º, n.º 1), é inoponível à execução a sua liberação ou cessão, antes da penhora, desde que tais rendas ou alugueres respeitem a períodos de tempo não decorridos à data da penhora (art. 821.º, do CC). Tratando-se de um bem imóvel ou de um bem móvel sujeito a registo, a ineficácia dos atos de disposição ou de alienação que sejam realizados em momento posterior à penhora fica dependente do registo da penhora em momento anterior ao registo da prática desses atos. Nesse sentido, o ac. do STJ, de 2 de novembro de 2004, in CJ/ STJ, Ano XII, T.III/2004, pp. 98 ss. 28 Anselmo de Castro, A Ação Executiva, Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 1977, p. 160 e Teixeira de Sousa, Ação Executiva Singular, Lisboa, LEX, 1998, p. 245. 24
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depositários29. Contudo, pese embora a penhora determine a perda dos poderes de gozo sobre a coisa penhorada, o executado conserva os poderes de disposição ou de oneração30, já que não perde a titularidade do direito penhorado. Com efeito, como vimos supra, a propósito dos efeitos da penhora relativamente ao exequente, o que sucede é que os poderes de disposição sobre os bens ficam limitados pelo objetivo da execução. A penhora determina, assim, apenas uma ineficácia relativa na medida em que inviabilize a finalidade da execução31. Dessa forma, tal como salientam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, do princípio da inoponibilidade em relação à execução resulta que o devedor pode alienar, onerar ou arrendar livremente os seus bens penhorados, ainda que a execução prossiga os seus termos como se os bens pertencessem ao executado e na situação jurídica reportada à data da penhora32. Se o executado proceder à transmissão dos bens penhorados, a ineficácia relativa cessa se o terceiro adquirente ou o próprio executado pagarem os respetivos créditos ao exequente e aos credores com garantia real sobre os bens33. Evidentemente que essa ineficácia também cessa logo que a penhora seja levantada, readquirindo os atos de disposição ou oneração, eficácia plena34. Mas a penhora não produz apenas efeitos relativamente ao exequente e ao executado, mas também no que concerne aos credores com garantias reais sobre os bens penhorados: atribui-lhes o poder de intervir no processo executivo para aí fazerem valer os seus direitos. De facto, os credores do executado, que tenham garantia real sobre os bens penhorados são admitidos a intervir no processo de execução para aí reclamarem os seus créditos, ainda que não pudessem eles próprios intentar a ação executiva por os respetivos créditos não estarem vencidos ou por não disporem ainda de título executivo [arts. 786.º, n.º 1, al. b) e 788.º]. Por último, cumpre referir que se a penhora estiver sujeita a registo, a sua eficácia em relação a terceiros coincide com a data desse registo (arts. 755.º, n.º 4, 1.ª parte, 772.º e 783.º), sendo considerada como segunda penhora aquela que for registada posteriormente, sustando-se a execução em que esta ocorreu, nos termos do art. 794.º, n.º 1, in fine. Por sua vez, se a penhora resultar da conversão do arresto (o arresto, enquanto providência antecipatória da atuação prática da responsabilidade patrimonial, pode ser convertido em penhora ex vi art. 762.º), a sua anterioridade reporta-se à data do arresto, tal como resulta do art. 822.º, n.º 2, do CC. Ou seja, convertido o arresto em penhora, os efeitos desta retroagem à data do primeiro tudo se passando como se a penhora tivesse ocorrido na data do arresto35. 29 Cfr. Pereira Coelho, Processo Civil, Lições Policopiadas ao curso de 1957-1958 coligidas por Fernando Amâncio Ferreira, Fausto Morais e José Correia, p. 241. 30 Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., p. 242. 31 Apesar de o art. 819.º, do CC, antes da sua redação atual dada pelo art. 5.º do DL n.º 38/2003, de 8 de março, apenas se referir aos atos de disposição e oneração, já se entendia estar o arrendamento feito pelo executado após a penhora, sujeito ao regime de ineficácia relativa estatuído para os negócios de alienação e oneração dos bens penhorados. Vide o ac. do STJ, de 25 de novembro de 1975, BMJ n.º 251, p. 163, no qual se decidiu que o arrendamento feito pelo executado após a penhora está sujeito ao regime da ineficácia relativa estatuído para os negócios de alienação e oneração de bens penhorados e também o ac. daquele Tribunal de 2 de dezembro de 1975, BMJ, n.º 252, p.123. 32 Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed. (revista e atualizada), Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 91. Nesse sentido, vide o ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 1998, proc. n.º 98A880, in www.dgsi.pt. 33 Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro, As funções do Agente de Execução, Coimbra, Almedina, 2011, p. 142. 34 Tome-se em atenção que, verificando-se a venda executiva do bem penhorado, assiste-se à caducidade do direito do terceiro (art. 824.º, n.º 2, do CC), o qual, no entanto, é transferido para o produto da venda (art. 824.º, n.º 3, do CC). 35 Pese embora o registo do arresto não seja obrigatório, nem quanto aos bens móveis, nem quanto aos bens imóveis [arts. 3.º, n.º 1, al. d) e art. 8.º-A, n.º 1, al. b) 2.ª parte, ambos do CRP], neste último caso terá de ser efetuado para que se possa proceder à sua conversão em penhora que é registada por averbamento à inscrição do arresto [art. 101.º, n.º 2, al. b), do CRP].
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2. OBJETO DA PENHORA Com vista à realização da penhora, importa previamente determinar os bens penhoráveis, isto é, aqueles que dela podem ser objeto. Como se sabe, não se permite no nosso ordenamento jurídico que a execução atinja a pessoa do executado, por dele ter desaparecido, como dos demais ordenamentos próximos, a antiga prisão por dívidas36. Vigora o princípio da patrimonialidade da execução que isenta da penhora, não só a pessoa do devedor, mas também os direitos de caráter não patrimonial37, os da personalidade e os direitos familiares38. Note-se, que ainda que a própria pessoa do executado não possa ser atingida pela execução, face ao disposto nos arts. 829.º-A, do CC, 868.º, n.º 1, e 876.º, n.º 1, al. c), do CPC, o executado não se liberta do constrangimento que para ele possa advir quando sujeito a uma sanção pecuniária compulsória. O art. 735.º n.º 1, que traduz em termos adjetivos o princípio da garantia geral das obrigações previsto no art. 601.º, do CC, enuncia que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”39. Por sua vez, o art. 747.º n.º 1 determina que “os bens do executado são apreendidos ainda que, por qualquer título, se encontrem em poder de terceiro, sem prejuízo, porém, dos direitos que a este seja lícito opor ao exequente”. Verifica-se que o simples facto de os bens penhorados estarem em poder de terceiro (o legislador não identifica o conceito de terceiro constante desta norma, entendendo-se que se trata de alguém estranho à execução40) não preclude, sem mais, a admissibilidade da penhora. Porém, tal como determina a parte final daquele preceito, a penhora não pode atingir os direitos que ao terceiro seja lícito opor ao exequente, o que acontecendo faculta àquele a dedução de embargos de terceiro (arts. 342.º e ss.), já que o seu direito se configura naturalmente como incompatível com a realização ou com o âmbito do ato de apreensão de bens efetuada41. Atento o estatuído no n.º 2 do art. 747.º, o AE deve averiguar se o título que permite estarem os bens em poder de terceiro é o penhor ou o direito de retenção. Em caso afirmativo, procederá imediatamente à sua citação para a reclamação de créditos, nos termos da al. b) do n.º 3 e n.º 4 do art. 786.º. Esta averiguação justifica-se por, em sede de reclamação de créditos, se ter restringido a citação dos credores com garantia real, que não careça de ser registada, às garantias conhecidas [art. 786.º, n.º 1, al. b)]. Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., p. 200. Apenas bens ou direitos com um valor patrimonial podem ser penhorados, porque só eles podem ser alienados, o que afasta a penhorabilidade de direitos de caráter pessoal. Neste sentido, Teixeira de Sousa, A Ação Executiva…cit., p. 34. 38 Rodrigues Bastos, Código de Processo Civil Anotado e Atualizado: Suplemento Bibliográfico e de Jurisprudência, vol. II, Coimbra, Almedina, 1978-1979, p. 42. 39 Na versão originária do Código era enunciado, como princípio geral, o da sujeitabilidade à execução de todos os bens do património do devedor e só deles (“todo o património e unicamente esse património” e apenas “em regra”, dizia o CPC1939). Com o Código de 1961 a redação passou a ser a seguinte: “Estão sujeitos à execução todos os bens compreendidos no património do devedor e só esses bens”. Porém, havia, e há muitos bens do património do devedor que não estão sujeitos à penhora ( v. g., art. 822.º), do mesmo modo que há casos em que a penhora pode incidir sobre bens de terceiro (art. 818.º, do CC), razão por que a reforma de 1967 deu a este preceito uma nova redação que, alterada sucessivamente pelos Decretos-Lei n.os 329-A/95, de 12 de dezembro, 180/96, de 25 de setembro e 38/2003, de 8 de março, adquiriu a sua expressão atual. Cfr. Rodrigues Bastos, ob. cit., pp. 41 e 42. Na redação atual, a lei processual devolve à lei substantiva a definição do âmbito dos bens sobre que pode recair a execução. 40 Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 199. 41 Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2004, p. 62. 36 37
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No caso de o AE não poder efetuar regular e imediatamente a citação, fará constar do auto de penhora o domicílio do terceiro, para efeito de posterior citação, nos termos do n.º 3 do referido art. 747.º. Esta averiguação por parte do AE justifica-se, assim, com vista a possibilitar a citação dos credores com garantia real conhecida que não consta do registo – penhor e direito de retenção – para a reclamação de créditos42. Da conjugação dos referidos arts. 735.º, n.º 1, do CPC e 817.º, do CC e do 53.º, do CPC43, resulta a regra de que apenas os bens do devedor estão sujeitos à execução. Todavia, a penhora pode incidir não só sobre o património do devedor, seja ele o devedor principal ou um devedor subsidiário, mas também sobre bens de pessoas diversas do devedor, ou seja, bens de terceiros. De facto, o art. 735.º, n.º 2, admite essa possibilidade, mas apenas nos casos especialmente previstos na lei e desde que a execução tenha sido movida contra ele. À semelhança do que sucede no art. 747.º, n.º 2, também aqui não se identifica o conceito de terceiro, entendendo-se que neste caso “terceiro” é alguém que é estranho relativamente à obrigação: que não é devedor da obrigação exequenda44. O art. 818.º, do CC, prevê dois casos em que o direito do exequente pode incidir sobre bens de terceiro. O primeiro é quando bens de terceiro estejam vinculados à garantia do crédito, v. g. no caso de ter sido prestada uma fiança45 ou de ter sido constituída uma garantia real, v. g. penhor, hipoteca, quer esta tenha sido constituída pelo executado, tendo este posteriormente transmitido os bens ao terceiro, quer tenha sido constituída diretamente pelo terceiro (a favor do devedor), em relação ao crédito exequendo46. O segundo é quando os bens de terceiro sejam objeto de ato praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado. Nos termos do art. 616.º, n.º 1, do CC., sendo julgada procedente a ação de impugnação pauliana (actio pauliana)47, o credor tem o direito à restituição dos bens e de os executar no património do terceiro adquirente. Sendo a decisão da ação de impugnação posterior à instauração da execução, deverá admitir-se, no âmbito da ação executiva, o incidente de intervenção de terceiros previsto nos arts. 311.º (espontânea) ou 316.º 42 Nos termos do art. 786.º, n.º 1, al. b), em sede de reclamação de créditos, é restringida a citação aos credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou conhecido, sobre os bens penhorados para reclamarem o pagamento dos seus créditos. 43 Deste preceito resulta que só o devedor poderá ser demandado na ação executiva, já que só relativamente a ele o exequente dispõe do necessário título executivo. 44 Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz…cit., p. 235, nota 13. 45 A execução imediata dos bens do fiador depende da não invocação, por parte dele, do benefício da excussão prévia, nos termos dos arts. 638.º e 639.º, do CC, em consonância prévia com o art. 745.º, do CPC. Note-se que desde 2 de setembro de 2013, ou seja, desde que entrou em vigor a Lei n.º 41/2013, de 26.06 que aprovou o CPC que se encontra atualmente em vigor, o devedor subsidiário que seja singularmente demandado tem a seu favor a garantia de forma ordinária, por força do art. 550.º, n.º 3, al. d), desde que não haja renunciado ao benefício da excussão prévia. No entanto, não deixa de estar sujeito à dispensa de citação prévia por fundado receio de perda da garantia patrimonial, nos termos do art. 727.º. A contrario, em todas as demais situações – execução de devedor subsidiário que seja singularmente demandado, com renuncia ao beneficio da excussão prévia e execução conjunta de devedor subsidiário e devedor principal – a execução seguirá, nos termos gerais, a forma ordinária ou sumária conforme o que decora da aplicação dos n.os 1 a 3 do referido art. 550.º. O art. 745.º estabelece um regime para que o devedor subsidiário possa fazer valer os seus direitos específicos, o qual vale qualquer que seja a forma de processo. 46 Cfr. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Coimbra, Almedina, 2000, p. 172. 47 A finalidade desta ação é a de assegurar a conservação da garantia patrimonial através da impugnação de qualquer alienato in fraudem creditorem (cfr. Teixeira de Sousa, Ação Executiva...cit., p. 225).
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(provocada)48. Em qualquer destas hipóteses, como se disse supra, o terceiro responsável deve ser demandado na própria ação executiva. Caso contrário, poderá deduzir oposição mediante embargos de terceiro nos termos dos arts. 735.º, n.º 2, e 342.º, n.º 1, caso a penhora incida sobre bens dele49. Importa fazer menção, ainda que breve, aos desvios à regra de que estão sujeitos a execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora: os regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios e as impenhorabilidades (art. 601.º, in fine, do CC). A lei exclui do objeto da garantia geral certas massas patrimoniais, afetando-as à satisfação de determinadas dívidas. Essas massas de bens, desintegradas do património geral do seu titular, denominam-se patrimónios autónomos ou patrimónios separados. Entende-se por património autónomo ou separado aquele que tem dívidas próprias. De facto, se o devedor for titular de patrimónios separados da sua massa patrimonial geral, pelas dívidas do seu património geral não respondem os bens ou direitos afetos ao património separado e vice-versa, v. g. por dívidas da herança só responde o acervo hereditário (art. 2068.º, do CC)50. No que concerne à outra exclusão que a lei preceitua – a impenhorabilidade – esta é configurada sob uma tripla modalidade: bens absoluta ou totalmente impenhoráveis (bens que em nenhuma circunstância podem ser penhorados, os quais estão previstos no art. 736.º)51; bens relativamente impenhoráveis (bens em que a penhora fica dependente da verificação de determinadas circunstâncias especiais ou da natureza das dívidas exequendas, os quais constam do art. 737.º)52; e bens parcialmente impenhoráveis (bens que só podem ser penhorados em parte, previstos no art. 738.º)53. Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro, ob cit., p. 122. Também a ação executiva poderá ser proposta contra o devedor e o terceiro, sendo aqui o litisconsórcio facultativo (art. 735.º, n.º 2 conjugado com o art. 54.º, n.º 2). 50 Outros exemplos de autonomia patrimonial admitidas por lei: por dívidas afetas a um EIRL, só respondem, por via de regra, os bens que lhe estejam afetos (art. 11.º do DL n.º 248/86, de 25 de agosto, consagrando o art. 22.º a proibição de os credores do comerciante penhorarem o EIRL, por dívidas alheias à sua exploração, a menos que provem a insuficiência dos restantes bens do devedor); nenhum credor de um associado de uma associação sem personalidade jurídica ou de uma comissão especial pode executar diretamente o fundo comum da associação ou da comissão especial (art. 196.º, n.º 2, do CC); as cláusulas fideicomissárias – estabelecidas em convenção antenupcial (arts. 1700.º, n.º 2 e 1707.º, do CC), testamento (arts. 2286.º e ss, do CC) ou em doação (art. 962.º, do CC, a que se aplicam os princípios dos arts. 2286.º e ss, do mesmo Código) – implicam, por dívidas pessoais do fiduciário, a irresponsabilidade dos bens fideicomitidos, seja em relação aos credores anteriores, seja em relação aos credores posteriores (art. 2292.º, do CC); assim como por dívidas do fideicomissário não podem ser executados os bens fideicomitidos, antes da morte do fiduciário (art. 2294.º, do CC). 51 Dado que a finalidade da penhora está em possibilitar a praticabilidade dos atos executivos posteriores, de nada valeria realizar a apreensão de um bem ou direito se e quando a lei substantiva proíbe a sua alienação. Precisamente por isso, são impenhoráveis os bens inalienáveis [art. 736.º, n.º 1, al. a)]. Outros exemplos de impenhorabilidade absoluta são os instrumentos indispensáveis aos deficientes e os objetos destinados ao tratamento de doentes [art. 736.º, al. g)]. 52 v. g. não estarem os bens afetos a fins de utilidade pública. Também os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na casa de habitação efetiva do executado são bens relativamente penhoráveis, já que podem ser penhorados tratando-se de execução destinada ao pagamento do preço da respetiva aquisição ou do custo da sua reparação (art. 737.º, n.º 3). Antes de entrar em vigor o CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, esses bens estavam classificados como bens absolutamente impenhoráveis, não obstante poderem ser objeto de penhora verificando-se as referidas circunstâncias. 53 A título de exemplo, não são penhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado (art. 738.º). Esta impenhorabilidade tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional (art. 737.º, n.º 3). No caso de o crédito ser de alimentos, é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo (art. 737.º, n.º 4), ou seja, 199,53 euros (Port. 378-B/2013, de 31 de dezembro). 48 49
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Por não ser de considerar de ordem pública, o princípio da exequibilidade de todo o património do devedor, existem ainda outras limitações que de seguida analisaremos e que decorrem da vontade das partes. O art. 602.º, do CC estabelece que, “salvo quando se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes, é possível, por convenção entre elas, limitar a responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens, no caso de a obrigação não ser voluntariamente cumprida”54. A admissibilidade desta convenção conhece vários limites. Em primeiro lugar, e como resulta da própria norma, não pode ter lugar quando se trate de matéria subtraída da disponibilidade das partes v. g., o direito a alimentos (art. 2008.º n.º 1, do CC): se o direito é indisponível, também o é a respetiva garantia patrimonial55. Em segundo lugar, não parece que possa contrariar o art. 809.º, do CC: não pode consubstanciar uma renúncia antecipada aos direitos ao cumprimento e a indemnização por mora. Por seu turno, o art. 603.º, do CC regula um caso especial de limitação de responsabilidade, estabelecendo uma cláusula de irresponsabilidade relativamente a disposições a título gratuito (bens deixados ou doados) pelas dívidas do beneficiário existentes ao tempo da liberalidade, mas não em relação às posteriores. Contudo, para que não respondam também pelas dívidas anteriores, torna-se necessário, tratando-se de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo, que o registo daquela cláusula seja anterior ao registo da penhora que venha a recair sobre esses bens56. Além disso, o devedor pode ceder a totalidade ou parte dos seus bens aos seus credores, ou a algum deles, para procederem à respetiva liquidação e repartição do produto extrajudiciais, nos exatos termos do art. 831.º, do CC. Em contrapartida, os credores cessionários e os credores posteriores à cessão de bens ao devedor não podem penhorar esses bens (art. 833.º, segunda parte, do CC), ao contrário dos demais credores terceiros ao negócio da cessão e anteriores à mesma. Na prática, os bens cedidos57 não podem ser penhorados pelos cessionários, que ficam vinculados pelo regime acordado na cessão, e pelos credores posteriores à cessão58. Mas já os credores anteriores, que não intervieram no negócio, podem penhorar os bens cedidos, enquanto a alienação não tiver lugar (art. 833.º, 1.ª parte, do CC), pois que, se tal já tiver sucedido, só lhes resta promover a impugnação pauliana59. Analisados estes três casos de impenhorabilidade convencional importa, por fim, conhecer outras duas limitações à penhora, estas resultantes diretamente da lei. A primeira advém do facto de estarem em causa bens ou direitos do devedor ou de terceiro intransmissíveis ou sujeitos a um procedimento administrativo especial de transmissão, v.g a venda judicial dos direitos resultantes das concessões de exploração de recursos Esta limitação tanto pode ser contemporânea, como posterior à constituição da dívida. Neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., p. 618. Além disso, nada impede que essa limitação esteja sujeita a condições ou se opere para certas dívidas que o devedor tenha perante o credor. Cfr. Teixeira de Sousa, Ação Executiva...cit., p. 208. 55 PINTO, Rui, Manual da Execução e Despejo, cit., p. 485. 56 Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., p. 201. 57 Observe-se que não se transmite para os credores a titularidade dos bens cedidos, mas só a administração e os inerentes poderes de disposição deles (art. 834.º, n.º 1, do CC). 58 Por sua vez, os bens não cedidos estão sujeitos ao regime geral de penhorabilidade por qualquer credor, incluindo um dos cessionários (salva sempre a possibilidade de se celebrar uma convenção nos termos do art. 602.º). Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva Á Luz…cit., p. 246, nota 20. 59 Cfr. Remédio Marques, ob. cit., p.174. 54
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geológicos (depósitos, minerais, recursos hidrominerais e geotérmicos). De facto, embora a penhora seja possível nos casos de hipoteca dos referidos direitos, será feita através da Direção Geral de Geologia e Minas, por concurso público e com a afixação do valor do objeto da hipoteca (art. 50.º n.os 1 e 2, do DL n.º 90/90, de 16 de março). A segunda está relacionada com os bens que respondem por dívidas do mandatário, declarando o art. 1184.º, do CC, isentos de penhora os bens que o mandatário, sem poderes de representação, haja adquirido em execução do mandato, pois que esses bens se destinam a ser transferidos para o património do mandante nos termos do art. 1181.º, n.º 1, do CC. É necessário, porém, que o mandato conste de documento anterior à data da penhora e não tenha sido efetuado registo de aquisição a favor do mandatário (se se tratar de bens sujeitos a registo)60.
3. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DOS PODERES DE INDICAÇÃO DOS BENS A PENHORAR 3.1 Poderes de indicação dos bens a penhorar até à RPC2003 Na vigência do CPC1961 – diploma aprovado pelo DL n.º 44.129, de 28 de dezembro de 1961 – e à semelhança do CPC1939, o direito de indicar os bens sobre que recaía a penhora pertencia, por regra e em primeiro lugar, ao executado. De facto, assim sucedia na execução com processo ordinário61, em que o executado era citado para pagar ou nomear bens à penhora, devendo fazê-lo no prazo de dez dias (art. 811.º, n.º 1, do CPC1961), bem como na execução com processo sumário, sendo, no entanto, o prazo reduzido a cinco dias (art. 924.º, n.º 1, do CPC1961). Em qualquer dos casos, o prazo decorria desde a citação, que tinha de ser requerida pelo exequente e que ocorria após despacho de citação lavrado pelo juiz de execução62. A exceção à referida regra de que o direito de indicar os bens sobre que recaía a penhora pertencia em primeiro lugar ao executado, verificava-se no processo sumaríssimo63. Neste, se proferida a sentença e liquidadas as custas, o réu não pagasse estas e a dívida no prazo de dez dias a contar da notificação da conta, o Ministério Público promovia a execução das mesmas se o autor lho requeresse dentro de vinte e quatro horas depois do termo do prazo para o pagamento; se o autor não o requeresse tempestivamente ou o réu tivesse pago as custas no prazo estipulado, então a execução tinha de ser promovida pelo autor (art. 927.º, n.º 1 do CPC1961). Em qualquer dos casos, tal como dispunha o n.º 2 daquele art. 927.º, o Cfr. Remédio Marques, ob. cit., pp. 178 e 179. Dispunha o art. 465.º do CPC1961, que estavam sujeitas à forma ordinária as execuções cujo valor excedesse a alçada da Relação. A forma sumária era utilizada para as execuções “fundadas em sentenças proferidas em ações de processo sumário”, fosse qual fosse o valor do pedido, e as fundadas noutros títulos quando o valor do pedido estivesse dentro da alçada da Relação. Por último, estavam sujeitas à forma sumaríssima as execuções fundadas em sentenças proferidas em ações de processo sumaríssimo. Às execuções sumárias aplicava-se subsidiariamente o regime das execuções ordinárias e às execuções sumaríssimas aplicava-se subsidiariamente, em primeiro lugar o regime das execuções sumárias e, em segundo lugar o regime das execuções ordinárias (arts. 466.º, n.º 2 e 463.º, n.º 1 e 464.º, do CPC1961). 62 O despacho judicial também podia ser de indeferimento ou aperfeiçoamento. 63 E ainda no âmbito de execução especial por alimentos (art. 1118.º, n.º 1, al. a), do CPC1961). 60 61
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direito de nomear bens à penhora pertencia exclusivamente ao exequente, iniciando-se a execução pelo requerimento de nomeação à penhora, ordenando-se e efetuando-se esta independentemente de citação. Na verdade, a citação era substituída pelo aviso para pagamento da conta de custas a que se referia o art. 145.º, do CCJ na redação na altura em vigor. Dentro de 10 dias a contar da expedição desse aviso, o executado tinha de pagar, sob pena de serem penhorados os bens indicados pelo exequente64. O art. 834.º, do CPC1961, ocupava-se da nomeação de bens pelo executado, atribuindo-lhe expressamente, no seu n.º 1, o direito de nomear bens à penhora, e também impunha que os bens nomeados deviam ser penhoráveis65 e suficientes para pagar ao exequente e para pagar as custas. Por seu turno, o n.º 2 do referido preceito submetia a nomeação realizada pelo executado a um gradus executionis, ou seja, a uma ordem de realização da penhora, dispondo que a nomeação devia começar “pelos móveis ou imóveis situados na comarca, sem distinção entre eles, seguindo-se os situados no continente ou na ilha onde corria a execução e, em último lugar, os sitos no ultramar; só na falta de móveis ou imóveis podiam ser nomeados à penhora direitos e ações.” Assim, o executado não podia nomear, v. g. bens situados fora da comarca onde corria a ação executiva, quando os tinha igualmente penhoráveis e suficientes, dentro da mesma comarca. Nos termos do art. 837.º, n.º 1 e n.º 2, 1.ª parte, do CPC1961, a nomeação devia, “tanto quanto possível”, identificar os bens a penhorar, sendo feita por termo lavrado nos autos independentemente de despacho (o executado, ou o seu mandatário dirigia-se à secretaria e ditava ao funcionário os bens que nomeava à penhora66). Mas, no caso de o executado nomear à penhora bens imobiliários, teria de apresentar no ato da nomeação os títulos respetivos. Quando não tivesse títulos, devia declará-lo, mas indicar a proveniência dos bens. Os títulos ficavam depositados na secretaria do tribunal67 e eram entregues ao seu adquirente na venda executiva (art. 834.º, n.º 3, do CPC1961). Porém, o direito a nomear bens à penhora transferia-se para o exequente nos casos previstos no n.º 1 do art. 836.º, do CPC1961, designadamente quando o executado o deixava extinguir pelo decurso do prazo perentório para o seu exercício [al. a)] ou não observava o disposto no art. 834.º [al. b)]. O CPC1939 não era claro sobre se essa devolução dependia ou não de despacho judicial, tendo o referido art. 836.º sofrido modificações com a revisão de 1961, estabelecendo o legislador, claramente, que o direito de nomeação se devolve ao exequente “independentemente de despacho”. Assim, verificando-se o facto que fundamentava a devolução, o exequente podia logo nomear bens e requerer a respetiva penhora mediante requerimento, no qual tinha de alegar as razões pelas quais lhe foi devolvida a faculdade de nomeação (art. 837.º, n.º 2, do CPC1961). Sobre este requerimento é que recaía despacho a ordenar a penhora dos bens penhorados ou a indeferi-la. Mas o exequente, depois de efetuada a penhora dos bens nomeados pelo executado ou por si, possuía ainda a faculdade de completar ou substituir os bens nomeados: tratava-se, respetivamente, da penhora complementar e da penhora substitutiva. As hipóteses que atribuíam ao exequente esse direito resultavam do Cfr. Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, 3.ª Ed. (2.ª reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 1996, p. 244. Ao abrigo do CPC1939 apenas era exigido que os bens fossem “alienáveis”. Cfr. Ministério da Justiça, “Observações Ministeriais”, BMJ n.º 124, p. 170. 66 Castro de Mendes, Direito Processual Civil, III vol. Revisto e Atualizado, Ed. AAFDL, Lisboa, 1989, p. 376. 67 No ultramar, ficavam depositados no cartório – art. 6.º, n.º 1, da Portaria n.º 19 305, de 30 de julho de 1962 (que torna extensivo ao ultramar, com as alterações constantes da presente portaria, o CPC1961). 64 65
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n.º 2 do citado art. 836.º, do CPC1961, designadamente quando fosse ou se tornasse manifesta a insuficiência dos bens nomeados pelo executado [al. a)]. Igualmente pertencia ao exequente o direito de nomear bens à penhora, ao abrigo do n.º 3 do art. 871.º, do CPC1961, quando, penhorados os que primeiro haviam sido nomeados, quer por ele, quer pelo executado, se verificava que os mesmos já tinham sido objeto de penhora anterior. Finalmente, e nos termos do art. 825.º, n.º 3, do CPC1961 e do art. 160.º do CCJ, ao exequente era devolvido o direito de nomear bens comuns do casal, requerendo simultaneamente a citação do cônjuge do executado para requerer a separação, quando a dívida fosse comercial, proveniente de responsabilidade por acidente de viação ou respeitante a custas, se o executado tivesse nomeado à penhora o seu direito à meação. A propósito da nomeação de bens à penhora pelo exequente, torna-se necessário esclarecer que a ordem da nomeação de bens68, não tinha de ser observada por esta parte processual: o exequente era pois livre na indicação dos bens a penhorar. O art. 834.º referia-se unicamente à nomeação feita pelo executado e destinava-se a proteger o interesse do exequente69. Com a reforma intercalar de 1985, operada com o DL n.º 242/85, de 9 de julho, o legislador restringiu a nomeação de bens por parte do executado ao atribuir a indicação de bens ao exequente, logo no requerimento inicial, quando o título que servia de base à execução era uma sentença de condenação transitada há não mais de um ano (art. 811.º, n.º 3, do CPC1985 no caso da execução ordinária, aplicável à execução sumária ex vi remissão constante do art. 924.º, n.º 2, do CPC1985). Neste caso, nos termos dos referidos preceitos, a citação era substituída, após a penhora, pela notificação do requerimento inicial e do despacho determinativo da penhora, podendo o executado requerer a substituição dos bens penhorados por outros de valor suficiente (no prazo de 10 dias na execução ordinária e de 5 dias na execução sumária, prazos contados desde a notificação). Nem mesmo com a remodelação do Código de Processo Civil sofrida nos anos de 1995 e de 1996, que ficou conhecida como Revisão do Código de Processo Civil70 foi suprida a regra de que o executado tinha o direito de nomeação de bens à penhora. Contudo, foram introduzidas alterações, designadamente foram reduzidas a duas as formas de processo de execução – ordinária e sumária71, já que foi extinta a forma sumaríssima do processo executivo; na execução Com as alterações introduzidas pelo DL n.º 368/77, de 3 de setembro, foi suprida a referência a “ultramar”: o legislador em vez de referir bens móveis ou imóveis sitos no ultramar, refere bens móveis ou imóveis sitos no território de Macau. Esta alteração justifica-se por em 1975, aquela designação ter perdido o seu significado após a Revolução dos Cravos pois todas as colónias portuguesas, à exceção de Macau, se tornaram independentes de Portugal. 69 Neste sentido, vai o ac. do TRP, de 6 de maio de 1999, proc. n.º 9930610, in www.dgsi.pt, do qual resulta: “Quando, por qualquer razão, tenha sido devolvido ao exequente o direito de nomear bens a penhora, ao contrário do que ocorre por parte do executado, não se impõe aquele à ordem prevista no artigo 834.º, n.º 1, podendo nomear direitos de crédito ainda que o executado tenha outros bens”. Não se consentia, porém, que ele, exercendo o direito de nomeação que se lhe devolveu por o executado não ter respeitado a referida ordem, nomeasse à penhora bens da mesma natureza ou com igual situação, embora diferentes. Cfr. Fernando Soares/Romeira Mesquita/Ferraz Brito, Código de Processo Civil Anotado, 12.ª ed., Coimbra, Almedina 2000, p. 644. 70 Publicada pelos Decretos-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro e n.º 180/96, de 25 de setembro. Apesar de ter entrado em vigor em 1 de janeiro de 1997, os diplomas que lhe servem de suporte são de 1995 e 1996. 71 Nos termos do art. 465.º: 1 – estão sujeitas à forma ordinária as execuções que, independentemente do valor do pedido, se fundem: a) Em qualquer título executivo que não seja a decisão judicial; b) Em decisão judicial condenatória que careça de ser liquidada em execução de sentença, nos termos dos arts. 806.º e ss. 2 – Seguem a forma sumária as execuções baseadas em sentença ou decisão judicial, qualquer que seja o processo em que haja sido proferida, sem prejuízo do disposto na al. b) do n.º anterior. 68
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ordinária o prazo concedido ao executado para proceder à nomeação foi alongado para 20 dias após a sua citação (art. 811.º, n.º 1, do CPC1995)72; e a execução sumária deixou de coincidir com a ordinária, estabelecendo o art. 924.º, do CPC1995 que no caso de a execução se fundar em decisão judicial condenatória, ainda que pendente de recurso com efeito meramente devolutivo (art. 47.º, n.º 1, do CPC1995), que não careça de ser liquidada nos termos dos arts. 806.º e ss., do CPC1995, o exequente tinha ab initio o direito de nomeação, devendo exercê-lo logo no requerimento executivo73, salvo se necessitasse, para tal fim, da colaboração do tribunal. Assim, na tramitação da forma sumária, o direito de nomear bens à penhora pertencia exclusivamente ao exequente, sendo o executado citado apenas após a efetivação da penhora. De facto, apesar de a determinação dos bens a penhorar ser feita pelas partes, o exequente podia, desde a revisão em análise, requerer justificadamente a cooperação do tribunal na descoberta ou identificação dos bens (art. 837.º-A, n.º 1, do CPC1995). As naturais dificuldades do exequente em indicar ou localizar bens penhoráveis do executado podiam, assim, ser suplantadas através do auxílio do tribunal, prestado no âmbito do seu dever de colaboração com as partes74. Além disso, por determinação do juiz, o executado podia ter de prestar as informações que se mostrassem necessárias à realização da penhora75, incorrendo em má-fé76 quando não o fizesse (art. 837.º-A, n.º 2, do CPC1995). Outra alteração advinda da revisão consistiu em o legislador esclarecer expressamente que o executado, ao nomear os bens, devia fornecer todos os elementos que definam a situação jurídica destes, identificando, designadamente, os ónus e encargos que sobre eles incidam (art. 833.º, n.º 2, do CPC1995). Em 1997, pelo DL n.º 274/97, de 8 de outubro, foi consagrado outro caso em que são aplicáveis, mutatis mutandis, os termos do processo sumário, e por consequência em que o direito de nomeação passou a pertencer ao exequente: execução de dívida pecuniária de valor não superior ao da alçada do tribunal de comarca baseada em título diverso de decisão judicial, desde que a penhora incidisse em bem móvel ou direito não dado de penhor, com exceção do estabelecimento comercial (art. 1.º daquele diploma). Posteriormente com o DL n.º 269/98, de 1 de setembro, o mesmo se verifica no que concerne às execuções fundadas em requerimento de injunção em que foi aposta a fórmula executória, nos termos dos arts. 14.º e 21.º, n.º 1 daquele DL. Em qualquer dos casos em que o exequente tinha este direito de nomeação, fazia-se primeiro a penhora dos bens nomeados pelo exequente e só depois se procedia à citação 72 Caso o executado já tivesse sido citado no âmbito das diligências destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se esta o não fosse em face do título executivo (previstas no art. 802.º, do CPC1995), a citação era substituída por notificação; sendo igualmente substituída por notificação quando, citado o executado para a execução de determinado título, se cumule depois no mesmo processo a execução por outro título (art. 811.º, n.º 2, do CPC1995). 73 Após a reforma do CPC1995-1996 o requerimento inicial, primeiro articulado, passou a denominar-se de requerimento executivo. 74 Cfr. Teixeira de Sousa, Ação Executiva...cit., p. 233. Esta alteração legislativa foi muito positiva, na medida em que permitiu ultrapassar dificuldades (anteriormente intransponíveis) na localização ou determinação de bens penhoráveis, tornando possível, por exemplo, apurar a residência do executado, a sua entidade patronal ou as suas contas bancárias. Cfr. Paulo Pimenta, “As Linhas Fundamentais…”cit., p. 171. 75 Cabe aqui a prestação de informações relativas a dados que se encontrem em serviços administrativos e que se refiram à identificação, residência, profissão e entidade empregadora ou que permitam o apuramento da situação patrimonial do executado (art. 519.º-A, n.º 1, do CPC1995). 76 Sobre as consequências dessa litigância, vide arts. 456.º, n.º 1, e 457.º, n.º 1, do CPC1995.
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do executado (art. 926.º, n.º 1, do CPC1995)77, que podia então opor-se à execução e à penhora, cumulando uma e outra oposição no mesmo meio, bem como requerer a substituição dos bens penhorados por outros (art. 926.º, n.º 2, do CPC1995). Estando em causa dívida com garantia real, o legislador dispensava a nomeação de bens, começando a penhora independentemente de nomeação, pelos bens a que se referia a garantia nos termos do art. 835.º, do CPC1995, regime esse que já se encontrava em vigor desde o CPC193978. Assim, e não havendo, nestes casos, lugar a nomeação de bens à penhora, o executado era apenas citado para pagar dentro dos prazos legais79. Reforce-se que o legislador apenas dispensava a nomeação de bens, sendo necessário despacho do juiz a ordenar a penhora. Com efeito, o regime previsto impedia que se procedesse à penhora sem despacho ordenativo da mesma, quer a nomeação tivesse sido feita pelo executado, quer tivesse sido efetuada pelo exequente, quer quando, nos termos do referido art. 835.º, não houvesse lugar a nomeação: o juiz tinha de fiscalizar a legalidade do ato, nomeadamente a penhorabilidade (objetiva e subjetiva) dos bens e até mesmo a possibilidade de abusos no direito de nomeação (quando exercido)80. Assim, considerando-se nomeados ex lege os bens sobre que recaía a garantia, a secretaria devia fazer o processo concluso logo que findasse o prazo de pagamento fixado ao executado e o juiz devia proferir despacho oficiosamente81. Note-se que também não havia nomeação se o processo executivo tivesse sido precedido de arresto, compreendido entre as garantias reais, mas cujo regime era distinto: o despacho judicial não era um despacho ordenativo da penhora mas de conversão do arresto em penhora (art. 822.º, n.º 2 do CC e 846.º, do CPC1995). Face ao exposto, constata-se que o regime que estava em vigor desde o CPC1939 até à RPC200382 assentava numa conceção típica do dispositivo, pois fazia recair sobre o exequente toda a responsabilidade pelo sucesso da execução, já que era ónus seu impulsionar o processo, fazendo sucessivos requerimentos, nomeadamente com vista a obter a penhora de bens, limitando-se o tribunal a atuar reagindo a tais impulsos, numa perspetiva de controlo da legalidade. Com efeito, mesmo nos casos em que era o executado que tinha o direito de nomear bens à penhora, na maior parte dos processos, a referida responsabilidade pertencia ao exequente, porquanto, o direito de indicar bens à penhora era-lhe devolvido por não ser exercido pelo executado, o qual se limitava a assistir às tentativas de lhe encontrar e penhorar património. Na prática, muitas vezes, por mais que fosse o empenho do exequente na identificação e localização de bens do executado, a falta de informação e de meios apresentava-se como um obstáculo intransponível, sendo conhecidos os elevados índices de insucesso das ações executivas em Portugal83.. Notificação lhe chamava a lei, embora submetendo-a expressamente ao regime da citação (art. 926.º, n.º 4, do CPC1995). E que ainda se mantém em vigor. Cfr., infra, Capítulo III, 2.3.1. 79 Cfr. Lopes Cardoso, ob. cit., p. 242. 80 Cfr. Castro de Mendes, ob. cit., p. 377. 81 Cfr. Lopes Cardoso, ob. cit., pp. 372 e 373. 82 Em termos de aplicação no tempo, as alterações legislativas em matéria de ação executiva, entraram em vigor em 15 de setembro de 2003, só se aplicando “nos ou relativamente aos processos instaurados a partir” dessa data (art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 38/2003, de 8 de março), salvo no que toca à imediata aplicação do disposto nos novos arts. 806.º e 807.º CPC2003 (registo informático de execuções e acesso aos dados dele constantes). 83 Cfr. Paulo Pimenta, “Tópicos para a Reforma do Processo Civil Português”, Julgar, Coimbra Editora, Lisboa, N.º 17 (Maio-Agosto 2012), pp. 116 e 117. 77
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3.2 Poderes de indicação dos bens a penhorar após a RPC2003 Perante um quadro geral de ineficácia do sistema e visando a desjurisdicionalização do processo executivo84, com a RPC2003 foi concentrada a atividade de identificação e localização de bens penhoráveis no AE, vulgo Solicitador de Execução (figura aí criada)85, tendo sido abolida a nomeação de bens à penhora com um caráter determinativo do objeto da mesma. Com efeito, a dita reforma não só suprimiu o benefício de o executado proceder, nas execuções ordinárias, voluntariamente à individualização do património a sujeitar à execução antes de eventual devolução ao exequente, tendo ido mais longe: suprimiu a própria figura da nomeação de bens. O poder da nomeação de bens deixou de depender da forma de processo, que deixou de existir (o processo comum de execução passou a seguir forma única nos termos do art. 465.º CPC2003), tendo a individualização de bens penhoráveis passado a poder ser feita pelo exequente em dois momentos, inicial e sucessivo. Num momento inicial, o exequente podia fazê-lo no requerimento executivo, [art. 810.º, n.º 3, al. d), do CPC2003], rectius, nos anexos que o acompanham, devendo indicar, sempre que possível, o empregador do executado, as contas bancárias de que o executado seja titular, os seus bens, os ónus e encargos que sobre eles incidam. Além disso, devia proceder “tanto quanto possível”, à individualização dos bens indicados (art. 810.º, n.º 5, do CPC2003)86, identificando os prédios, por denominação ou número de polícia, ou situação, confrontações, artigo matricial, e número da descrição, caso estejam registados ou a sua natureza, freguesia e concelho, caso o não estejam [al. a)], especificar e indicar o lugar em que se encontram os móveis [al. b)]87, identificar os créditos, por título, identidade do devedor, montante, natureza e origem da dívida, data do vencimento e garantias [art. (al. c)] e identificar o administrador ou os comproprietários de bens indivisos, bem como a quota-parte que neles pertence ao executado [al. d)]. O requerimento executivo devia ser acompanhado dos documentos ou títulos (cópia ou originais) relativos aos bens indicados (art. 810.º, n.º 4, do CPC2003). A ideia de que o exequente tem o ónus de indicar bens penhoráveis no requerimento executivo era afastada pela possibilidade que a lei lhe confere de indicar bens à penhora num momento sucessivo: depois de notificado para indicar bens à penhora pelo AE por este não os ter encontrado no âmbito das diligências prévias à penhora (art. 833.º, n.º 4). Efetivamente, como refere Teixeira de Sousa, “este ónus de colaboração do exequente não se compreenderia, se esta parte tivesse o ónus de indicar bens penhoráveis no requerimento executivo”88. No que respeita ao executado, era restrita a faculdade desta parte processual nomear bens à penhora, sendo esta reduzida ao mínimo e à ideia de último recurso para a prossecução da Desjurisdicionalização não é o mesmo que desjudicialização: visa dispensar a intervenção do juiz na prática de determinados atos e não permitir execuções sem processo judicial, caso da desjudicialização. Neste sentido, Cfr. Lebre de Freitas, “Agente de Execução e Poder Jurisdicional”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano IV, N.º 7 (2003), Lisboa, Almedina, p. 21 e Teixeira de Sousa, “Os Paradigmas da Ação Executiva”, Revista da Ordem dos Advogados, II, 2001, pp. 543-545 e 440-552. 85 Sobre a realização das diligências prévias à penhora – incumbência do AE, cfr., infra, capítulo III, 1. 86 Este n.º 5 correspondia, no essencial, ao art. 837.º anterior à reforma em análise. 87 No caso dos bens móveis é suficiente que o exequente refira o local onde se encontram, a sua designação global e, sem indicação do seu valor, que os mesmos sejam bastantes para pagar a quantia exequenda e as custas (ac. do TRP, de 2 de julho de 1998, proc. n.º 9850543, in www.dgsi.pt). 88 Ação Executiva...cit., p. 149. 84
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execução. Efetivamente, o legislador de 2003 apenas permitia que o executado indicasse bens à penhora se o AE não tivesse encontrado bens penhoráveis, nem o exequente os tivesse indicado depois de notificado nos termos supra mencionados ou, naturalmente, se os indicados não fossem encontrados. Estabelecia assim o art. 833.º, n.º 5, do CPC2003, que: “o executado é citado89 para que ainda que se oponha à execução, pagar ou indicar bens à penhora, no prazo de 10 dias, com a advertência das consequências de uma declaração falsa ou da falta de declaração, nos termos do n.º 7, e ainda a indicação de que pode no mesmo prazo, opor-se à execução”. O executado não era notificado para indicar bens à penhora quando, após consulta ao registo informático de execuções, o AE verificava que contra este foi movida execução terminada sem integral pagamento (art. 832.º n.º 3, do CPC2003). Esta perda do direito de nomeação dos bens a penhorar por parte do executado, operada com a reforma ora em análise, verificava-se mesmo quando houvesse despacho de citação, caso em que o executado era chamado à ação para “pagar ou opor-se à execução”, segundo o n.º 6 do art. 812.º, do CPC2003, e já não para “pagar ou nomear bens a penhora”, como se dispunha no art. 811.º, n.º 1, na redação anterior à reforma de 2003. Para a recusa de cooperação do executado no apuramento da sua situação patrimonial, o legislador estabelecia uma específica sanção processual: a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, no montante de 1% da dívida ao mês, desde a data da omissão até à superveniente descoberta dos bens penhoráveis por ele ocultados (art. 833.º, n.º 7, do CPC2003). Tratou-se, no fundo, da cominação imposta a uma atuação processual de ma fé por violação grave do dever de cooperação, pelo qual se devia pautar a atuação do executado em sede de penhora e que veio substituir a prevista anteriormente no art. 837.º – A, n.º 2 que sujeitava o executado que não cooperasse com o tribunal ao regime geral da litigância de ma fé. Estabelecia o n.º 6 do art. 833.º, do CPC2003, que se o executado não nomeasse bens à penhora (nem pagasse), suspendia-se a instância, mantendo-se a suspensão enquanto o exequente não requeresse algum ato de que dependesse o andamento do processo, concretamente não indicasse para penhora bens que haja, entretanto, apurado. 3.3 Poderes de indicação dos bens a penhorar após as alterações introduzidas pelo DL n.º 226/2008, de 20 de novembro A intervenção legislativa concretizada pelo DL n.º 226/2008, de 20 de novembro não configurou uma reforma da reforma operada em 2003, nem criou um novo regime de ação executiva, pois que as linhas orientadoras da RPC2003 se mantiveram, e, por via disso, também se manteve o paradigma instituído pelo DL n.º 38/2003, de 8 de março. Nesse sentido PAULO PIMENTA expressou a incerteza de que em causa estivesse uma verdadeira reforma, ou de que se pudesse falar em novo regime da ação executiva90. Com efeito, o DL n.º 226/2008, de 20 de novembro visou, no essencial, tal como resulta do seu preâmbulo, 89 Conforme consta da parte final desta norma, a citação é substituída por notificação quando tenha tido lugar a citação prévia. 90 Cfr. Paulo Pimenta, “Tópicos para a Reforma…cit., p. 121. Em sentido oposto, v. g. LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva Depois da…cit. e Mariana França Gouveia, “A Novíssima Ação Executiva – Análise das Mais Importantes Alterações”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, III/IV, (julho/setembro, outubro/dezembro), 2009.
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“aperfeiçoar o modelo adotado, tornando as execuções mais simples e eliminar formalidades desnecessárias”. De facto, e no que concerne ao poder de indicação dos bens a penhorar, o regime consagrado em 2003 manteve-se praticamente inalterado. A grande novidade introduzida com o DL n.º 226/2008, de 20 de novembro verificou-se após a realização das diligências prévias à penhora pelo AE nos termos do art. 833.º-A: o AE notifica o exequente, preferencialmente por via eletrónica, do resultado da consulta ao registo informático das execuções e dos bens penhoráveis identificados ou do facto de não terem sido identificados quaisquer bens penhoráveis (art. 833.º-B, n.º 1)91. Esta alteração transpareceu o reforço da dependência do processo, do seu controlo pelo exequente, tal como confirmava o n.º 2 daquele art. 833.º-B, ao estabelecer que a execução prosseguirá com a penhora dos bens penhoráveis identificados, sem prejuízo do disposto quanto à ordem de realização da penhora (art. 834.º, n.º 1), exceto se no prazo de 5 dias, a contar da notificação, o exequente declarar que não pretende a penhora de determinados bens imóveis ou móveis não sujeitos a registo identificados; ou desistir da execução. Verifica-se que a possibilidade de oposição do exequente é limitada, na medida em que este apenas poderá declarar que não pretende a penhora de determinados bens imóveis ou móveis não sujeitos a registo (e não de outros bens) ou desistir da execução. Neste regime era o art. 833.º-B, n.º 3 que determinava que, caso o AE não encontrasse bens penhoráveis, deveria notificar o exequente para indicar bens à penhora, e o art. 833.º-B, n.º 4, que determinava que, no caso de ausência de resposta por parte do exequente, deve citar o executado para o mesmo efeito. Comparando com o regime que vigorava em 2003, foi agravada a sanção a aplicar ao executado no caso de se recusar a cooperar no apuramento da sua situação patrimonial: sanção pecuniária compulsória, já não no montante de 1% da dívida ao mês, mas de 5% da dívida ao mês, com o limite mínimo global de mil euros (art. 833.º-B, n.º 7). Nos termos do art. 833.º-B, n.º 6, se o executado não indicasse bens à penhora, extinguia-se a execução. Assim, ao contrário do que sucedia no regime de 2003, o processo de execução já não se suspendia enquanto o exequente não requeresse algum ato de que dependa o andamento do processo, antes se extingue, sem prejuízo de se vir a renovar, se posteriormente forem encontrados e identificados bens penhoráveis (art. 920.º, n.º 5). Esta alteração tem subjacente o objetivo do legislador de eliminar um dos grandes dilemas da justiça – o excesso de processos executivos a correr termos nos tribunais portugueses. 3.4 Poderes de indicação dos bens a penhorar no CPC atualmente em vigor – aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho O exequente continua a poder indicar bens à penhora no requerimento executivo [art. 724.º, n.º 1, al. i); 2, 3 4., al. b)], bem como num momento sucessivo após a realização das diligências prévias à penhora. Contudo não satisfeito com os resultados obtidos, o legislador introduziu alterações no regime de indicação bens à penhora pelo exequente num momento sucessivo, ou seja, depois de realizadas as diligências prévias à penhora. 91
Sobre o dever de informação do AE perante o exequente, cfr., infra, Capítulo III, 1.3.
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Ora vejamos: O legislador concede ao AE um prazo de 3 meses a contar da notificação para início das diligências prévias à penhora (art. 748.º, n.º 1) para encontrar bens penhoráveis. Só não encontrando bens penhoráveis no referido prazo é que o AE notifica o exequente para especificar quais os bens que pretende ver penhorados na execução, devendo nessa circunstância, simultaneamente notificar o executado para indicar bens à penhora, com a cominação de que a omissão ou falsa declaração importa a sua sujeição a sanção pecuniária compulsória, no montante de 5% da dívida ao mês, com o limite mínimo de 10 UC, se ocorrer posterior renovação da instância executiva e aí se apurar a existência de bens penhoráveis (art. 750.º, n.º 1). Verifica-se que, o legislador para uma mais rápida identificação de bens determina, por um lado, que a notificação do exequente e do executado para o efeito de indicação de bens à penhora é efetuada ao mesmo tempo e, por outro lado, que o executado possa estar sujeito a uma sanção pecuniária compulsória mais gravosa no caso de ter bens e nada declarar ou de prestar falsas declarações, pois que no regime anterior o limite mínimo global daquela se situava em dez mil euros e agora se situa em 10 UC (atualmente dez mil e vinte euros)92. Por outro lado, é igualmente desiderato do legislador extinguir mais rapidamente os processos que em princípio estão destinados ao fracasso. Assim, se nem o exequente nem o executado após a notificação para efeitos de indicação de bens penhoráveis supra referida, indicarem bens à penhora, no prazo de 10 dias, terá lugar a extinção da execução (art. 750.º, n.º 2) por inutilidade superveniente da lide, sem prejuízo da renovação da instância, desde que o exequente venha a indicar bens à penhora [arts. 849.º, n.º 1, al. c) e 850.º, n.º 5]. Note-se que o n.º 3 do art. 750.º, veio ultrapassar um problema na extinção da execução por falta de bens. Anteriormente à sua entrada em vigor, o procedimento tendente à extinção passava necessariamente pela citação, sendo frequente, na prática quotidiana dos tribunais que (sendo caso de dispensa de citação prévia), o processo acabasse por deter-se nas diligências tendentes à mesma. Quando a citação pessoal não se conseguisse realizar, avançava-se para a citação edital só para poder extinguir a execução, com os custos inerentes, que levavam a que o exequente preferisse muitas das vezes desistir da execução93. O legislador estabelece, no referido preceito, que frustrando-se a citação pessoal do executado, não haverá lugar à citação edital, ocorrendo outrossim a extinção da execução.
4. CRITÉRIOS LEGAIS DE DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR A lei impõe que o AE respeite, no exercício da sua função de determinar os bens que irá sujeitar a penhora, dois importantes critérios. São eles, o princípio da proporcionalidade e o princípio da adequação. O valor da UC para vigorar no ano de 2014 é de 102, 00 euros por força da al. a) do art. 113.º da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro – Lei do Orçamento do Estado para 2014 (suspensão do regime de atualização do valor do Indexante dos Apoios Sociais). 93 Lemos Jorge, “A Reforma da Ação Executiva de 2012: um Olhar sobre o (primeiro) Projeto”, Julgar, Coimbra Editora, Lisboa, N.º 17 (Maio-Agosto 2012), p. 94. 92
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4.1 Princípio da proporcionalidade Um princípio fundamental que o AE tem de ter em consideração, no momento da determinação dos bens sujeitos a penhora, é o princípio da proporcionalidade dos bens a penhorar (também designado por princípio da suficiência). Este princípio não estava expresso antes da RPC2003 mas era tido como implicitamente consagrado pelo sistema: quando exercesse o direito de nomeação (art. 833.º, n.º 1, do CPC1995), o executado devia nomear bens suficientes para se atingir o fim da execução (suficientes para pagamento do crédito e das custas); quando a nomeação fosse feita pelo exequente, era-lhe vedado nomear mais bens do que os necessários para esse mesmo fim, o que constituiria abuso do direito de nomeação94. Encontra-se previsto no art. 735.º, n.º 3, 1.ª parte, aí se podendo ler que “a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução”. Contudo, repare-se que este princípio, que tem raiz constitucional no princípio da propriedade privada (art. 62.º da Constituição da República Portuguesa) e que torna excecional qualquer oneração ou perda forçada das situações jurídicas ativas privadas, não deve apenas ser utilizado para apreciar se a penhora excede (ou não) os limites estabelecidos no art. 735.º, n.º 3. O AE deve aplicá-lo, igualmente, para determinar, caso se conclua pela existência de excesso, qual ou quais dos bens do executado devem permanecer penhorados, em vista da realização da finalidade última da execução – integral satisfação do crédito exequendo – e, por contraponto, quais dos bens devem ser libertados e subtraídos a tal garantia95. Claro está que este princípio não pode pôr em causa a realização da prestação que consta do título executivo, isto é, não pode fundamentar a não realização coativa dessa prestação. Isso vale mesmo no caso em que o montante do crédito do exequente seja diminuto. Mas esse princípio influencia as medidas coativas que podem ser tomadas na ação executiva: destas devem ser escolhidas aquelas que, pela sua característica ou medida, melhor se compatibilizem com a realização da prestação exequenda. O princípio é, afinal, um reflexo da configuração específica que o interesse processual assume na ação executiva: este interesse falta sempre que o exequente use um meio desproporcionado para obter a satisfação da sua pretensão. Como afirma TEIXEIRA DE SOUSA, a natural e indispensável prevalência dos interesses do exequente não pode determinar um completo desrespeito dos interesses do executado, já que a posição jurídica do credor, embora prevalecente, não pode ser considerada absoluta96. Pretende-se com o uso da expressão “despesas previsíveis da execução” abranger, além das custas judiciais, os encargos com remunerações e outros pagamentos a fazer ao AE, nos termos dos arts. 43.º e ss., da Port. n.º 282/2013, de 29 de agosto. Para o cálculo destas despesas avança a lei com uma presunção (segunda parte do n.º 3 do art. 735.º), graduando-as conforme o valor da execução e o valor das alçadas. Assim, para calcular as despesas previsíveis da execução, deve presumir-se, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de liquidação posterior, que tais despesas se presumem no valor de: 20%, 10% e 5% do valor de execução, consoante respetivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, Cfr. Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2003 p. 341. 95 Neste sentido, vide o ac. do TRP, de 29 de março de 2011, proc. n.º 1921/07.5TBVCD.P1, in www.dgsi.pt. 96 Ação Executiva...cit., pp. 33 e 34. 94
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sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da relação, ou seja superior a este último valor. Assim, se o valor da execução for até 5.000,00 euros as despesas presumem-se 20% desse valor, até 120.000,00 euros presumem-se 10% desse valor. Por sua vez, numa execução cujo valor exceda 120.000,00 euros as despesas presumem-se 5% desse valor. Trata-se de uma presunção legal ilidível mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do CC), pelo que se o AE estiver em condições de demonstrar que o valor que o preceito presume é inferior ao valor da dívida exequenda e das despesas previsíveis, pode penhorar os bens necessários para o seu pagamento nessa exata medida97. Na apreciação da adequação do valor dos bens penhorados deverá atender-se ao valor dos eventuais créditos de terceiros com garantia real sobre os bens apreendidos, na medida em que sejam conhecidos. Neste sentido, devem ser levadas em conta, na extensão inicial da penhora, as garantias reais de terceiro: acionadas em sede de reclamação de créditos, elas reduzirão a parte do produto da venda a receber pelo exequente. E faz todo o sentido que assim seja, já que podendo reclamar na execução os credores com garantia real sobre os bens penhorados (art. 788.º, n.º 1), o valor destes, enquanto realizável no processo executivo, tem de atender ao valor das garantias existentes, que o diminuem98. Se após a penhora, aparecerem a reclamar créditos, credores desconhecidos que prefiram ao exequente, o princípio da adequação implica que, verificando-se insuficientes os bens penhorados (por o seu valor de realização se mostrar, afinal, inferior ao estimado), a penhora possa ser reforçada [art. 751.º, n.º 3, al. b)]99. Verifica-se assim que, sem prejuízo de, em momento posterior100, se vir a constatar da insuficiência da penhora e de, por isso, haver necessidade de penhorar outros bens (art.º 751.º, n.º 3), deverá atender-se a uma dupla estimativa: a do valor dos bens e a do valor das despesas. Para assegurar o respeito deste princípio, quando seja penhorado prédio, cujo valor exceda manifestamente o da dívida exequenda e dos créditos reclamados, deve ter-se presente o disposto no art. 759.º, que prevê a possibilidade e os trâmites da divisão desse prédio, cabendo ao juiz conceder ou não a autorização de fracionamento. Este princípio constitui não tanto uma orientação quanto ao objeto da indicação dos bens para penhora pelo exequente ou pelo executado, mas mais uma limitação da atividade do AE neste domínio. Efetivamente, se houver excesso de indicação de bens pelo exequente ou mesmo pelo executado, tal apenas aumentará o leque de escolha do AE. Face a este regime, deve o AE, caso sejam indicados para penhora bens em excesso, efetuar a penhora apenas sobre os necessários a garantir o pagamento daquelas quantias, a menos que se verifique a situação prevista no n.º 3 do art. 751.º 101. A referida exceção está relacionada com a penhora de certo tipo de bens (imóveis ou do estabelecimento comercial) a qual se admite, verificadas certas circunstâncias, mesmo que o respetivo valor seja excessivo relativamente ao valor da dívida exequenda, atendendo ao tempo necessário para integral satisfação do credor102: Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., p. 199. Neste sentido, Lebre de Freitas, A Reforma da…cit., p. 242, nota 2. 99 Sobre o reforço da penhora, cfr., infra, Capítulo III, 2.4. 100 A necessidade para o pagamento, é apreciada logo no momento da apreensão e não só após a venda dos mesmos (Cfr. ac. do TRE, de 17 de maio de 2007, proc. n.º 586/07-3, in www.dgsi.pt). 101 Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit., p. 199. 102 Para mais desenvolvimentos sobre esta exceção ao princípio da proporcionalidade, cfr., infra, capítulo III, 2.2. 97
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4.2 Princípio da adequação – ordem de realização da penhora O art. 751.º, n.º 1, consagra o princípio de adequação da penhora impondo que esta comece pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostrem adequados ao montante do crédito do exequente. A redação em vigor encontrava-se já prevista no âmbito da RPC2003 no art. 834.º, n.º 1, mas com o DL n.º 226/2008, de 20 de novembro foi estabelecida uma ordem de realização da penhora, sendo interpretado o critério geral até então previsto, isto é, tendo em conta os bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostrem adequados ao montante do crédito do exequente. De acordo com doutrina e jurisprudência já estabilizada, a enumeração de bens a penhorar que se encontrava em vigor, correspondia a uma ordem meramente preferencial. Esta ordem de realização da penhora dirigia-se diretamente ao AE na sua função de determinar quais os bens a penhorar – “o AE deve efetuar a penhora” lia-se no preceito. Daqui se concluía que nem o exequente nem o executado estavam vinculados ao gradus executionis nela previsto. Por se tratar de matéria que só pode ser decidida casuisticamente, com a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho foi abandonada novamente a previsão de uma ordem de realização da penhora, voltando-se a consagrar o critério geral que vigorava com a RPC2003. 4.2.1 Considerações sobre a penhora de depósitos bancários Segundo a ordem de realização da penhora, que vigorou desde as alterações introduzidas pelo DL n.º 226/2008, de 20 de novembro até à entrada do CPC atualmente em vigor, o AE devia começar, preferencialmente (mas não necessariamente, como vimos) pela penhora dos depósitos bancários, [al. a) do n.º 1 do art. 834.º], que consiste na notificação ao banco depositário de que o saldo da conta ou contas fica à ordem do AE103. Tendo em conta que proporciona uma fácil e rápida realização da obrigação exequenda, seria de esperar que o exequente tivesse interesse nela e que o AE tomasse iniciativa nesse sentido. Contudo, os AE não assumiam a penhora de depósitos bancários como prioridade, os exequentes não tinham, por várias razões, preferência pela penhora de depósitos bancários e os juízes não usavam a prerrogativa de autorizar antecipadamente, em despacho liminar, essa penhora. Eram muitas as razões que influenciavam que não se desse preferência à penhora de depósitos bancários, sobressaindo delas, a necessidade de notificar todas as instituições por não se dispor de dados de identificação da conta bancária. De facto, a circunstância de a informação sobre as contas bancárias não poder ser solicitada a uma única entidade, como o Banco de Portugal, tornava esta penhora morosa, pouco eficaz e dispendiosa. Ainda sobre o regime da penhora de depósitos bancários, note-se que o legislador pretendeu criar uma solução de compromisso, tentando minimizar as consequências da necessidade de despacho que autoriza a penhora de depósitos bancários, sobretudo relacionadas com a morosidade processual daí decorrente. Por isso, admitiu, nos termos 103 Sendo vários os titulares do depósito, a penhora incide sobre a quota-parte do executado, presumindo-se que as quotas são iguais (art. 788, n.º 5).
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do 861.º-A, n.º 1 CPC2009, que o juiz podia fazer integrar essa autorização, por antecipação, no próprio despacho liminar, quando a ele haja lugar. Apesar da bondade da solução, a mesma era inócua, pois que na maior parte dos casos, essa prerrogativa não era concretizada. Ainda que no âmbito do CPC em vigor se tenha abolido a ordem de realização da penhora, a penhora de depósitos bancários continua a ser aquela a que, por força do princípio da adequação, se deve dar preferência, e daí o legislador introduzir importantes alterações no seu regime. Julgamos como razões mais determinantes para que o exequente indique ou o AE determine a penhora de depósitos bancários: a) O facto de permitir realizar mais facilmente o fim da execução do que a penhora sobre outros bens. A penhora de depósitos bancários permite que, penhorado um depósito, este fique de imediato na disponibilidade do AE sendo até possível a entrega das quantias penhoradas ao exequente, sem ter de aguardar pelo fim da execução. Assim, com a penhora deste bem permite-se, além de que a penhora atinja apenas o valor que se mostre adequado ao montante do crédito exequendo, uma mais fácil realização do fim da execução, respeitando-se o princípio da adequação na sua plenitude. Obviamente, para que a entrega das quantias penhoradas se verifique antes do fim da execução têm que estar reunidos determinados requisitos, os quais estão previstos no art. 780.º, n.º 13: não ter sido deduzida oposição, ou esta tenha sido julgada improcedente, e entrega ao exequente apenas das quantias penhoradas, que não garantam crédito reclamado, até ao valor da dívida exequenda, depois de descontado o montante relativo a despesas da execução referido no n.º 3 do art. 735.º 104. b) O exequente poderá beneficiar da restrição da reclamação de créditos fundada em privilégio creditório geral. Se a penhora recair sobre depósitos bancários em dinheiro e o valor do crédito exequendo não exceder 190 UC, estabelece o art. 788.º, n.º 4, al. b, que não é admitida a reclamação do credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário 105. c) Desnecessidade de exigência legal de prévio despacho judicial Excecionalmente, a penhora é precedida de despacho judicial, por poder estar em causa a proteção de direito fundamental ou de sigilo106. Assim, verifica-se com a penhora de casa de “domicílio” ou de bens móveis nela existente (art. 757.º, n.º 4, 764.º, n.º 4 e 767.º, n.º 1), em que cabe ao juiz ordenar a requisição da força pública, por imposição da norma constitucional que garante a inviolabilidade do domicílio (art. 34.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) – sem, prejuízo de, não se tratando de domicílio, a poder solicitar diretamente o AE quando seja 104 A entrega das quantias penhoradas será feita pelo AE, por meio de cheque ou transferência bancária (art. 798.º, n.º 2). 105 Para mais desenvolvimentos, cfr., infra, Capítulo III, 2.1.2. 106 FREITAS, Lebre de, A Ação Executiva à Luz…cit., p. 278.
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oposta resistência no ato da penhora, ou quando haja receio justificado de oposição de resistência (art. 757.º, n.º 2), bem como quando seja necessário proceder a arrombamento de porta e substituição de fechadura (art. 757.º, n.º 3). Assim, acontecia também com a penhora de depósitos bancários, atento o regime legal de proteção do sigilo bancário (arts. 78.º e 79.º, do DL n.º 298/92, de 31 de dezembro, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras); mas deixou de ser no CPC em vigor (art. 780.º, n.º 1). Reconhecendo-se que não há nenhuma justificação para complicar a penhora de depósitos bancários com um prévio despacho judicial, este foi abolido. Com efeito, a notificação para penhora de eventuais depósitos bancários remetida pelo AE não implica o levantamento do sigilo bancário, porquanto este não pretende saber quais os valores existentes mas tão só penhorar (congelar) o valor em dívida permitindo-se a seguir ao executado que exerça os seus direitos de oposição. A desnecessidade de despacho judicial que autorize a penhora de depósitos bancários foi de facto a alteração mais significativa introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, pois que a exigência legal de prévio despacho judicial sempre foi considerado um entrave a esta penhora. E essa consideração ganhava mais amplitude quando na execução não havia lugar a despacho liminar, em que o processo devia ser concluso ao juiz apenas para ser proferido despacho de autorização da penhora. Assim só após a obtenção de despacho judicial a autorizar o levantamento, o AE podia notificar a instituição de crédito para que esta penhorasse o depósito, à ordem dos autos. Este caso exclusivo em que a penhora continuava a depender de um despacho judicial, depois da sua eliminação com a RPC2003, significava, que sendo os depósitos bancários o primeiro bem que aparecia na ordem de realização da penhora, todos os processos seriam apresentados ao juiz logo no seu início, com a possibilidade de conhecimento oficioso de todos os vícios relacionados com os pressupostos processuais. Esta era uma das razões subjacentes à ideia de que a ordem prevista no art. 834.º, n.º 1 não vinculava o AE, pois se fosse obrigatório ao AE começar em todos os processos pela penhora de depósitos bancários, então mais valia ter-se introduzido o despacho liminar como regra.
b) Desnecessidade de notificar todas as instituições por não se dispor de dados de identificação da conta bancária No regime anterior para a concretização da penhora de depósitos bancários tornava-se necessário notificar todas as instituições bancárias, face ao normal desconhecimento de dados de identificação bancária de que o executado era titular. Este obstáculo foi ultrapassado com a aprovação da Lei n.º 41/2013, de 26 de agosto, pois, que se prevê no art. 749.º, n.º 6, que no âmbito das diligências prévias à penhora, o AE obterá informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o executado detém contas ou depósitos bancários, informação essa que é disponibilizada, por via eletrónica, pelo Banco de Portugal. Não subsistem dúvidas que esta disponibilização de informação ao AE permite reduzir significativamente as despesas administrativas e tornar a penhora mais célere. 77
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A solicitação da informação pelo AE e a sua disponibilização pelo Banco de Portugal operam através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais e dos AE (art. 17.º Port. n.º 278/2013, de 29 de agosto). Recorde-se que na vigência do CPC1995 era legítima a ordem do tribunal dirigida à instituição bancária para o efeito de prestação de informação sobre a existência de conta aberta em nome do executado107. Contudo, parecia claro que a falta de identificação adequada dos saldos, por ocasião da nomeação à penhora efetuada pelo exequente (ainda quando tal direito lhe tivesse sido devolvido nas execuções ordinárias), obrigava à intermediação da entidade supervisora da atividade bancária: o Banco de Portugal que, no cumprimento da injunção do tribunal, notificava as instituições bancárias para fornecerem informações sobre a existência de depósitos abertos em nome do executado108. Estas eram, porém, apenas diligências preliminares à realização e efetivação da penhora do saldo do depósito bancário109. Com a RPC2003 foi abolida a intervenção do Banco de Portugal, abolição essa motivada pelo facto de as notificações referidas não desfrutarem da natureza jurídica (e dos efeitos resultantes) de uma penhora, nem a maioria das instituições bancárias notificadas informarem positivamente a entidade supervisora, já que enquanto contraentes interessados numa relação jurídica contratual duradoura – que implicara a abertura de conta e a prestação de outros serviços – avisavam os respetivos clientes da eminência de penhoras ou tentavam “manipular” o momento da realização da penhora110 – teoricamente coincidente com a receção por via postal do despacho ordenatório em cujo aviso os funcionários apunham a assinatura, permitindo o levantamento dos saldos existentes quando tinham conhecimento que a penhora ía ser realizada111. Acresce que o Banco de Portugal não tinha qualquer controlo sobre quais as instituições bancárias que havia notificado respondiam ao tribunal e em que prazo. Assim, verifica-se que a solução oferecida pelo legislador de 2003 se manteve com o DL n.º 226/2008, de 20 de novembro, solução essa que não era do agrado dos operadores judiciários e que agora está afastada. c) Realização da penhora de saldos bancários por comunicação eletrónica No âmbito das diligências prévias à penhora, o AE obtém informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o executado detém contas ou depósitos bancários. Depois de obtida esta informação, o AE comunica eletronicamente às instituições constantes da mesma, que o saldo existente, ou a quota-parte do executado nesse saldo, fica bloqueado desde a data do envio da comunicação (art. 780.º, n.os 1 e 2). Cfr. ac. do TRP, proc. n.º 0220783 de 18 de junho de 2002: tendo o exequente alegado não conseguir identificar adequadamente contas bancárias, estão preenchidos os requisitos para que o tribunal solicite ao Banco de Portugal informação sobre quais as instituições em que o executado e detentor de contas bancárias”. 108 Neste sentido o ac. do TRC, de 5 de junho de 2001, in www.dgsi.pt. 109 Remédio Marques, Curso de Processo…cit., pp. 254 e 255, nota 708. 110 Paula Costa e Silva, A Reforma da Ação Executiva, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 80 e 81. 111 Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, ob. cit., p. 468. 107
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Evita-se, desta forma, com efeitos a partir da data em que a penhora seja oponível à instituição bancária, a existência de atos de levantamento antecipado ou de transferência de saldos para outros depósitos realizados com o precípuo propósito de o executado subtrair estes bens ao processo executivo. A resposta das instituições de crédito notificadas pelo AE é também realizada por via eletrónica (art. 780.º, n.º 8), assim como a posterior comunicação do AE – comunicação da penhora, nos termos do art. 780.º, n.º 9, permitindo-se que a penhora se realize com celeridade. d) Despesas administrativas apenas para os litigantes em massa As instituições que prestem colaboração à execução na averiguação da existência das contas bancárias e na efetivação da penhora dos saldos existentes têm direito a uma remuneração pelos serviços prestados, mesmo que não haja saldo a penhorar. Ao abrigo do art. 780, n.º 12, essa remuneração constitui encargo apenas do exequente que seja uma sociedade comercial que tenha dado entrada num tribunal, secretaria judicial ou balcão, no ano anterior, a 200 ou mais providências cautelares, ações, procedimentos ou execuções (litigante em massa). O quantitativo, formas de pagamento e cobrança e distribuição de valores são definidos pela Port. 202/2011, de 20 de maio, alterada pela Port. 279/2013, de 26 de agosto, devendo, nessa fixação, atender-se à complexidade da colaboração requerida e à circunstância de a penhora se ter ou não consumado. e) Morosidade administrativa na resposta das instituições bancárias O prazo para a observância do dever de informação das instituições bancárias ao AE (comunicação por via eletrónica), quanto ao montante bloqueado, aos saldos existentes ou à não existência de conta ou saldo é de dois dias (art. 780.º, n.º 8). No CPC2009, o prazo em questão era de 10 dias, estando aqui mais uma vez presente o princípio da celeridade.
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CAPITULO III
PODERES DO AE NA DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR
1. REALIZAÇÃO DAS DILIGÊNCIAS PRÉVIAS À PENHORA – INCUMBÊNCIA DO AE O sistema instituído dispensa a nomeação de bens, quer pelo executado, quer pelo exequente, e inclui na atividade do AE a determinação dos bens a penhorar, ou seja, a prévia indagação dos bens do executado que possam ser penhorados, não se procedendo à penhora sobre bens pré-determinados. A dificuldade de conhecimento do património do devedor justifica e abona a favor do modelo de ação executiva introduzido em 2003, assim como as vantagens da criação da figura do AE e atribuição de competências na fase das diligências prévias à penhora, com consequentes efeitos positivos sobre a eficácia da execução. Cabe ao AE proceder à consulta do registo informático de execuções e à realização das diligências úteis à identificação ou localização de bens penhoráveis, primeira e segunda fases respetivamente, das diligências prévias à penhora. Note-se que o momento em que se iniciam as referidas diligências está condicionado pela forma de processo, ordinária ou sumária, distinção esta retomada após abandonada com a RPC2003. Nos processos que seguem forma ordinária112, assegura-se a intervenção liminar do juiz e a citação do executado em momento anterior à penhora (art. 726.º, n.º 1), iniciando o AE as diligências após ser notificado pela secretaria, o que acontecerá depois de proferido despacho que dispense a citação prévia do executado, nos termos do art. 727.º 113, depois de decorrido o prazo de oposição à execução sem que esta tenha sido deduzida, depois da apresentação de oposição que não suspenda a execução ou depois de ter sido julgada improcedente a oposição que tenha suspendido a execução (art. 748.º, n.º 1). Nos processos que seguem a forma sumária114 haverá penhora imediata, com dispensa da intervenção liminar do juiz e da citação prévia do executado (art. 855.º, n.º 1), e o AE procede às ditas diligências depois de o processo lhe ser remetido e reunir condições para prosseguir (art. 855.º, n.º 3). O novo art. 550.º, n.º 3, prevê situações em que não é aplicável a forma sumária, pelo que nelas é aplicável a forma ordinária (forma regra). 113 O exequente pode obter a dispensa de citação prévia do executado, o que deverá requerer no requerimento executivo nos termos do art. 724.º, n.º 1, al. j), alegando factos que justifiquem o receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito e oferecendo de imediato os meios de prova, aplicando-se, caso o juiz tenha dispensado a citação prévia, a tramitação do processo executivo sumário (art. 727.º, n.os 1 e 4). 114 Empregar-se-á quando o título executivo for uma decisão arbitral ou judicial (quando esta não deva ser executada nos próprios autos, v. g. execução de sentença estrangeira), um requerimento de injunção ao qual tinha sido aposta fórmula executória, um título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor, ou um título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância (art. 550.º, n.º 2), desde que não se verifique nenhuma das causas que determine a aplicação da forma ordinária constantes do art. 550.º, n.º 3. Note-se que, no caso de servir de base à execução, decisão judicial condenatória (que corre nos próprios autos – art. 85.º e 626.º, n.º 1), não se verificando nenhuma das referidas causas, a execução segue a tramitação prevista para a forma sumária, não sendo, no entanto, o executado citado: é notificado após a realização da penhora. 112
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1.1 Consulta ao registo informático de execuções O registo informático de execuções foi criado “com o intuito de evitar o impulso processual que venha a revelar-se improfícuo, mas sobretudo de agilizar a fase processual da penhora, conferindo-lhe maior eficácia”, tal como resulta do Preâmbulo do DL que o regula – DL n.º 201/2003, de 10 de setembro. Como já se disse, a sua consulta pelo AE tem de ter sempre lugar e necessariamente antes de serem efetuadas pesquisas (art. 748.º, n.º 2) com vista a apurar a existência de bens penhoráveis. A consulta ao registo informático de execuções consiste assim no primeiro ato preparatório a levar a cabo pelo AE115. O registo informático de execuções contém o rol de execuções pendentes, com informação sobre as partes (incluindo os credores reclamantes), os montantes envolvidos e os bens penhorados e indicados para penhora (art. 717.º, n.º 1). Saliente-se que a menção dos bens indicados para penhora, designadamente nos requerimentos executivos, tem a vantagem, ainda que eles não tenham vindo a ser penhorados, de proporcionar informação útil sobre o património do executado, pois que essa informação deve constar do registo informático de execuções [art. 717.º, n.º 1, al. e)]. Principalmente a consulta ao registo informático de execuções permitirá esclarecer o AE sobre a verificação de uma importante realidade, realidade essa que ditará a atitude que deve tomar: anterior execução instaurada contra o executado, terminada nos últimos três anos, sem integral pagamento e o exequente não haja indicado bens penhoráveis no requerimento executivo. Quando verifique que contra o executado foi movida execução, nos últimos três anos, que tenha findado sem integral pagamento (o que implica que tenha ocorrido execução em que não foi possível encontrar bens que vendidos, fossem suficientes para pagar o crédito do exequente), e o exequente não tenha indicado bens penhoráveis no requerimento executivo, o AE deve realizar de imediato as diligências tendentes a identificar bens penhoráveis nos termos do art. 749.º. Posteriormente às diligências de identificação e localização dos bens, o AE deve cumprir um dever de informação perante o exequente. Assim, determina o art. 748.º, n.º 3, que caso aquelas se frustrem, o AE comunica o resultado ao exequente, extinguindo-se a execução se este não indicar, em dez dias, quais os concretos bens que pretende ver penhorados [art. 849.º, n.º 1, al. c)]. Note-se que esta norma rege não só para a execução que segue forma ordinária mas também para a execução que segue forma sumária por força da aplicação subsidiária imposta pelo art. 551.º, n.º 3. Contudo, no caso de a execução seguir forma ordinária mas em que foi dispensada a citação prévia do executado, nos termos do art. 727.º, ou no caso de a execução seguir forma sumária, a execução extingue-se sem que o executado chegue a ter conhecimento de que alguma vez veio a existir. É assim, já que nesses casos o executado apenas é citado após a realização da penhora. Visa-se de forma célere e simplificada pôr rapidamente termo a execuções sem viabilidade. É a parte final da al. b) do n.º 4 do art. 717.º que confere ao AE legitimidade para a consulta, consulta esta que é feita de modo direto, por via eletrónica (através do SISAE/GPESE) conforme os arts. 8.º, n.º 1, al. b), 9.º, n.º 1 do DL n.º 201/2003, de 10 de setembro e art. 56.º, n.º 2 da Port. 282/2013, de 29 de agosto.
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Não se verificando a situação supra mencionada e prevista no n.º 3 do art. 748.º, ou seja, havendo a execução de prosseguir, o AE inscreve no registo informático de execuções os dados referidos no n.º 1 do art. 717.º e prossegue com as diligências prévias à penhora (art. 748.º, n.º 4). Comparando com o regime anterior, a verificação pelo AE de que foi extinta execução contra o executado sem integral pagamento, apenas condiciona a sua atuação quando essa execução terminou nos últimos três anos. Além disso, o legislador deixa de fazer referência à circunstância de estar pendente processo de execução para pagamento de quantia certa contra o executado, não sendo admissível a figura da coligação sucessiva ativa. De facto, a situação prevista no art. 832.º, n.º 4, do CPC2009 não se encontra prevista no CPC em vigor: quando o AE verificasse que contra o executado se encontra pendente um processo de execução para pagamento de quantia certa, para ele remetia o requerimento executivo116, desde que o exequente fosse titular de um direito real de garantia sobre bem penhorado nesse processo, que não fosse um privilégio creditório geral, e que no mesmo processo ainda não tivesse sido proferida a sentença de graduação. 1.2 Diligências úteis à identificação ou localização de bens penhoráveis Quanto ao âmbito de tais diligências, esclarece o art. 749.º, n.º 1, que serão apenas aquelas que o AE considere úteis à identificação e localização de bens penhoráveis. Trata-se de uma cláusula geral, que deixa alguma margem de manobra ao AE, competindo-lhe, caso a caso e, nomeadamente, face a outros elementos de que disponha, aferir que concretas diligências deve realizar. A lei exige, assim, que o AE pondere, diligência a diligência, da sua utilidade e eficácia117. Estas diligências devem ser realizadas no prazo de 20 dias e consistem na consulta direta, sem necessidade de qualquer autorização judicial, destinada a identificar e localizar bens penhoráveis, nas bases de dados da administração tributária, da segurança social, das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes (registo nacional de pessoas coletivas), bem como de todas as informações sobre a identificação do executado junto desses serviços e sobre a identificação e a localização dos seus bens penhoráveis, através do SISAE/GPESE e do sistema informático CITIUS, nos quais ficarão registados automaticamente todos os dados relativos a cada consulta (n.º 2 e 3 do art. 749.º e arts. 2.º e 6.º da Port. 331-A/2009, de 30 de março, alterada pela Port. 350/2013, de 3 de dezembro). Fica todavia dependente de despacho judicial de autorização a consulta de declarações ou de elementos protegidos pelo sigilo fiscal, bem como de outros dados sujeitos a regime de confidencialidade, aplicando-se, mutatis mutandis, o n.º 2 do art. 418.º (art. 749.º, n.º 7). Quando o sistema informático se mostre indisponível e não seja possível efetuar a consulta por acesso eletrónico direto, o AE comunica o facto à entidade titular da base de dados que pretende consultar, por qualquer meio legalmente admissível, a qual deve disponibilizar a informação solicitada pelo meio mais célere (preferencialmente por via eletrónica) e no 116 Estamos perante uma situação de coligação sucessiva ativa expressamente admitida, nos termos do n.º 4 do art. 56.º. 117 Cfr. Eduardo Paiva/Helena Cabrita, ob. cit., p. 114.
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prazo máximo de 10 dias (n.º 5 do art. 749.º e n.os 3 e 4 do art. 2.º da Port. 331-A/2009, de 30 de março, alterada pela Port. 350/2013, de 3 de dezembro). 1.3 Dever de informação sobre o resultado das diligências prévias à penhora Uma vez que dos atos praticados pelo AE, bem como das suas decisões cabe reclamação ou impugnação, respetivamente, para o juiz de execução [art. 723.º, n.º 1, al. c)], o AE, nos termos do art. 754.º, n.º 1, tem obrigação de informar o exequente de todas as diligências efetuadas, bem como dos motivos de frustração da penhora. O âmbito deste dever de informação abrange, além de outras diligências, o resultado das diligências prévias à penhora, nos termos dos arts. 748.º e 749.º [art. 42.º, n.º 1, al. a), da Port. 282/2013, de 29 de agosto]. Relativamente à forma de acesso, por parte do exequente, a tais informações, o legislador estabelece no n.º 2 do art. 754.º que estas são disponibilizadas exclusivamente por meios eletrónicos após a realização de cada diligência ou do conhecimento do motivo da frustração da penhora, nos termos a definir por portaria do membro do governo responsável pela área da justiça. Contudo, nos termos da Port. 282/2013, de 29 de agosto (portaria a que se refere aquela norma), importa distinguir as situações em que o requerimento executivo é apresentado por transmissão eletrónica de dados, dos casos em que é apresentado em suporte de papel. Quando o requerimento executivo tenha sido apresentado por meios eletrónicos, a informação é disponibilizada exclusivamente por meios eletrónicos: encontra-se disponível no SISAE/GPESE e é acessível ao exequente através do CITIUS118 (art. 42.º, n.º 1, da Port. 282/2013, de 29 de agosto). Tendo o requerimento executivo sido remetido em suporte de papel, o AE comunica o resultado das diligências prévias à penhora ao exequente, por carta registada, no prazo de 5 dias após a obtenção da última informação ou a requerimento (a pedido) do exequente, preferencialmente por via eletrónica, 5 dias após a receção do pedido [art. 42.º, n.º 2, al. a) da citada Port.]. Cumpre ainda salientar que o AE, quando não cumpra o seu dever de informação, incorre em responsabilidade disciplinar, porquanto constitui ilícito disciplinar a não prestação atempada das informações ou esclarecimentos devidos às partes [citado art. 754.º conjugado com a al. h) do n.º 2 do artigo 131.º-A.º, do ECS]. Não sendo encontrados bens penhoráveis suficientes no prazo de três meses, verificar-se-á o previsto no art. 750.º, já por nós aludido a propósito da indicação de bens a penhorar pelo exequente119.
2. PODER DE DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR PELO AE O AE deve respeitar as indicações do exequente quanto aos bens que este pretende ver prioritariamente penhorados, salvo se elas violarem normas imperativas ou ofenderem o princípio da proporcionalidade da penhora. 118 119
http://citius.tribunaisnet.mj.pt. Cfr. Capítulo II, 3.4.
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Claro que, se o exequente não se pronunciar sobre os bens que pretende ver sujeitos a penhora, o AE procede, com indiscutível liberdade, à determinação dos bens a penhorar120. Evidente será também que se o AE não descobrir quaisquer outros bens penhoráveis, está vinculado àqueles que foram indicados pelo exequente no requerimento executivo ou depois de notificado para indicar bens à penhora nos termos do art. 748.º n.º 3, ou nos termos do n.º 1 do art. 750.º (art. 855.º, n.º 4 para a execução sumária). 2.1 Indicação de bens pelo exequente Quando o exequente indique bens penhoráveis do executado121, em princípio o AE está vinculado a penhorar esses mesmos bens. Até ao CPC em vigor a vinculação do AE à indicação de bens a penhorar efetuada pelo exequente não era entendimento uniforme, pois que também o legislador nada concretizava expressamente sobre a mesma. O legislador agora é expresso no sentido de que o AE está vinculado à indicação de bens realizada pelo exequente. A regra da vinculação do AE às indicações do exequente está enunciada na primeira parte do n.º 2 do art. 751.º, onde se diz: “o agente de execução deve respeitar as indicações do exequente sobre os bens que pretende ver prioritariamente penhorados”. É certo que, sem prejuízo do controlo judicial e no respeito da lei, é ao AE (e não ao exequente) que cabe a escolha dos bens a penhorar. Dissemos “sem prejuízo do controlo judicial”, porque estando a liberdade do AE limitada, cabe ao juiz controlá-la122. Assim, o juiz pode ordenar ao AE que proceda à penhora dos bens indicados pelo exequente se entender que acautelam melhor o fim da execução do que os bens que aquele penhorou123. Já assim se entendia no regime anterior, pois que certamente que o legislador quando cometeu ao exequente a indicação de bens a penhorar, sempre que possível, bem como quando aprovou o modelo de requerimento executivo criando anexos para a indicação dos vários tipos de bens, não estava seguramente a prever a prática de um ato processual inútil. Se não pretendesse que a vontade do exequente quanto aos bens a penhorar fosse tida em consideração pelo AE, não lhe tinha concedido a possibilidade de indicar bens à penhora124, atribuindo exclusivamente a este último a função de identificação, localização, escolha e apreensão dos bens do executado. Contudo, na segunda parte do mesmo n.º 2 do art. 751.º, o legislador restringe essa vinculação do AE às indicações do exequente, quando estas violarem norma legal imperativa, ofenderem o princípio da proporcionalidade da penhora ou infringirem manifestamente o princípio da adequação constante do n.º 1 do próprio art. 751.º. 120 Nesse sentido, Teixeira de Sousa, “Aspetos Gerais da Reforma da Ação Executiva”, Cadernos de Direito Privado, N.º 4/Outubro-Dezembro (2003), Braga, CEJUR, p. 18. 121 Sobre os poderes do exequente de indicar bens penhoráveis, cfr., supra Capítulo II, 3. 122 Cfr. ac. do TRL, de 24 de junho de 2008, proc. n.º 5213/2008-1, in www.dgsi.pt. 123 Cfr. ac. do TRL, de 29 de novembro de 2007, proc. n.º 9974/2007-8, in www.dgsi.pt. Vide, também nesse sentido o ac. do TRL, de 5 de março de 2009, proc. n.º 4490/06.0YYLSB-2, in www.dgsi.pt e o ac. do TRL, de 16 de junho de 2009, proc. n.º 10156/05.0YYLSB-A.L1-7, in www.dgsi.pt. 124 Remédio Marques, “A Penhora de Créditos na Reforma de 2003” Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano V, N.º 9 (2004), Lisboa, Almedina, p. 174.
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Assim, o AE deve exercer as suas competências em consonância com a vontade do exequente, em cujo interesse se desenvolve a execução, a não ser que a isso se oponha algum obstáculo legal. Nesse sentido, tendo o AE no âmbito das diligências prévias à penhora encontrado outros bens suscetíveis de penhora, a questão deve ser resolvida através dos critérios legais, nomeadamente o princípio da proporcionalidade e da adequação, não estando obrigado a fazê-lo se isso não suceder e se tiver encontrado bens penhoráveis que melhor se ajustam àqueles requisitos125. Isto sem prejuízo de estarem em causa imperativos legais, porque nesse caso o AE está a obrigado a penhorar determinados bens, independentemente de serem ou não indicados pelo exequente. Pode dar-se aqui um exemplo de um caso em que o AE não deve atender à vontade do exequente quanto aos bens a penhorar, e que se verifica com bastante frequência. Como se sabe os bens móveis não sujeitos a registo que se encontrem na residência do executado são os bens indicados pelo exequente na maioria das vezes, pois que este, não tendo condições de saber os bens que compõem o património do executado quase sempre salvaguarda a possibilidade de penhora desses bens. Bem sabendo, por certo, que não são bens de grande valor, em grande parte dos casos, o exequente pretende assegurar, residualmente, a penhora de bens sujeitos a remoção e, nessa circunstância, conseguir, eventualmente, um efeito compulsório. Uma vez que essa indicação de bens à penhora não obedece ao princípio da adequação pois que os bens móveis não são bens de valor pecuniário de fácil realização, não deve ser atendida pelo AE. 2.1.1 O caso do art. 855.º, n.º 5 Quando a execução segue forma sumária, a penhora é efetuada, sem despacho liminar e sem citação prévia do executado, iniciando o AE as consultas e diligências prévias à penhora, imediatamente a seguir à admissão do requerimento executivo, caso o processo houver de prosseguir, ou seja antes da citação do executado (art. 855.º, n.º 3). A dupla dispensa permitida na execução sumária é, sem dúvida, uma vantagem prática para o exequente, uma vez que acelera o tempo processual: o AE não tem que aguardar que o juiz de execução profira despacho liminar e que decorra o prazo conferido ao executado com a citação prévia para pagar ou opor-se à execução, para poder proceder às diligências prévias à penhora a fim de proceder a esta. Mas, principalmente, pretende-se evitar que o executado tome conhecimento da execução antes da realização da penhora, podendo praticar algum ato de extravio ou descaminho do seu património126. Quanto mais célere for a realização da penhora, mais rapidamente se garante a conservação da garantia patrimonial do exequente, evitando-se a dissipação da mesma pelo executado. Importa, contudo, referir que a citação do executado não deixa de ter lugar, apenas sendo diferida para momento posterior ao da efetivação da penhora. Contudo, no n.º 5 do art. 855.º, encontramos um caso em os termos iniciais da execução podem alterar-se, passando a haver citação prévia mediante despacho liminar. Na mesma linha de orientação que justificava o regime previsto no art. 812.º-C, al. d), do CPC2009 a dispensa de citação prévia e despacho liminar está condicionada pelos bens 125 126
Cfr. Teixeira de Sousa, A Reforma da…cit., pp. 152 e 153. Cfr. Teixeira de Sousa, A Reforma da…cit., p. 22.
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sobre que irá recair a penhora, pois se prevê que quando a execução siga forma sumária por força da al. d) do n.º 2 do art. 550.º, ou seja, tem por base um título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância, apenas se procede à penhora de bens imóveis, de estabelecimento comercial, de direito real menor que sobre eles incida ou de quinhão em património que os inclua depois da citação do executado, em consequência da aplicação do disposto no art. 726.º. Assim, neste caso, não havendo outros bens a penhorar que não aqueles, o AE não realiza a penhora e remete o processo ao juiz, para efeitos de citação prévia127. Poderá suceder um fenómeno processual algo estranho: uma execução que começou por dispensar a intervenção liminar do juiz tem de retornar ao momento do despacho liminar se se constatar que é indispensável à satisfação do direito do exequente agredir imóveis, estabelecimento comercial, direito real menor que sobre eles incida ou quinhão em património que os inclua128. Atendendo ao valor em causa e considerando que essa tramitação inicial é mais favorável ao exequente, o mais razoável é este atuar no sentido de não indicar os bens que afastam esse regime. 2.1.2 Indicação de bens com vista à restrição da reclamação de créditos fundada em privilégio creditório geral Efetuada a penhora, para que o exequente obtenha a quantia exequenda, terá que ter lugar a conversão dos bens penhorados em quantia monetária, para o que é necessário, previamente, proceder à venda de tais bens.129 Por forma a que os credores preferencialmente garantidos pelos bens penhorados ao executado não percam, com a venda executiva, a garantia dos respetivos créditos e, consequentemente, os respetivos direitos se transfiram, nos termos do artigo 824.º, n.º 3, do CC, para o produto da venda dos bens penhorados é necessário que lhes seja dada a possibilidade de ir à ação executiva reclamar os seus créditos130. Assim, para esse efeito, são citados os credores que gozam de direito real de garantia sobre o bem penhorado, registado ou conhecido [art. 786.º, n.º 1, al. b)], bem como a Fazenda Nacional, e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (art. 786.º, n.º 2) devendo estas citações serem realizadas no prazo de cinco dias a contar do termo do prazo de que o executado dispõe para deduzir oposição à penhora (art. 786.º, n.º 2). Visando acautelar a posição do exequente face aos outros credores do executado que poderiam intervir na execução por efeito do concurso de credores (e que só posteriormente ao exequente diligenciam pela cobrança coerciva dos seus créditos), estão previstas situações em que não é admitida a reclamação de créditos pelo credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário131. 127 Cfr. Lurdes Mesquita e Francisco Costeira da Rocha, A Ação Executiva no Novo Código de Processo Civil, Porto, Vida Económica, 2013, p. 53. 128 Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código…cit., p. 34, a propósito do referido art. 812.º-C, al. d), do CPC2009, mas que tem aplicação ao regime atualmente em vigor, 129 Com a venda executiva os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, por força do disposto no art. 824.º, n.º 2, do CC. 130 Cfr. Eduardo Paiva/Helena Cabrita, ob. cit., p. 181. 131 Cfr. Lurdes Mesquita, Francisco Costeira da Rocha, ob. cit., p. 77.
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A individualização de bens feita pelo exequente pode permitir colocar a execução no âmbito da restrição à reclamação de créditos fundada em privilégio creditório geral132 nos termos do art. 788.º, n.º 4, introduzido pela RPC2003, já que nos termos deste preceito não é admissível aquela reclamação quando: – a penhora tenha incidido sobre bem parcialmente penhorável, nos termos do art. 738.º, renda, outro rendimentos periódico, veículo automóvel133, ou bens móveis de valor inferior a 25 UC [art. 788.º, n.º 4, al. a)]. – o crédito do exequente for inferior a 190 UC, ou seja, inferior a 19.380,00 euros e a penhora tenha incidido sobre moeda corrente, nacional ou estrangeira, ou depósito bancário em dinheiro [art. 865.º, n.º 4, al. b)]. – o crédito do exequente for inferior a 190 UC, ou seja, inferior a 19.380,00 euros e o exequente tenha requerido (procedentemente) a consignação de rendimentos (arts. 803.º e ss) ou a adjudicação (em dação em cumprimento), do direito de crédito sobre o qual tenha incidido a penhora (nos termos do art. 799.º, n.os 5 a 7), e o tenha feito antes de convocados os credores [art. 788.º, n.º 4, al. c)]. Segundo LEBRE DE FREITAS/RIBEIRO MENDES, nos casos das als. b) e c), ainda que o crédito exequendo exceda a quantia de 190 UC, a reclamação de créditos deve considerar-se igualmente excluída se o valor do bem penhorado (como, por exemplo, o depósito bancário ou o direito de crédito) for inferior a esse quantitativo134. Tenha-se em atenção que esta restrição não tem aplicação quando se trate de privilégios creditórios titulados por trabalhadores135. De facto, quando a reclamação de créditos se refira a créditos com privilégios creditórios dos trabalhadores, é sempre admissível a sua reclamação, independentemente da natureza ou valor dos bens penhorados e do crédito do exequente (art. 788.º, n.º 6). Além disso, esta restrição vale somente para a reclamação, pelo que não se aplica se for o crédito do exequente a beneficiar de privilégio creditório geral136. Apesar de não se aludir, no art. 788.º, n.º 4, como no art. 864.º-A, n.º 1, na redação anterior ao DL n.º 38/2003, de 8 de março à dispensa de convocação ou do concurso de credores137, não haverá lugar às citações dos credores reclamantes nas hipóteses em que não é 132 Apenas os privilégios creditórios imobiliários que não estejam previstos no CC estão abrangidos por esta restrição, já que o art. 735.º, n.º 3, do CC determina que os “privilégios imobiliários estabelecidos neste diploma são sempre especiais”. 133 A inclusão do veículo automóvel deve-se à rapidíssima desvalorização a que está sujeito, sendo por isso crucial que entre a penhora e a venda não decorra muito tempo. Cfr. Elsa Sequeira Santos, “Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos”, Themis, Ano V, n.º 9 (2004), Coimbra, Almedina 2004, p. 100. 134 Ob. cit., p. 508. 135 Os privilégios creditórios dos trabalhadores encontram-se regulados no art. 333.º do Código do Trabalho. 136 Cfr. Luís Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Coimbra, Almedina, 2010, p. 344. 137 Nos termos daquela disposição o juiz podia dispensar a convocação dos credores quando a penhora apenas incidisse sobre vencimentos, abonos ou pensões ou quando, estando penhorados bens móveis, não sujeitos a registo e de reduzido valor, não constasse dos autos que sobre eles incidiam direitos reais de garantia. Tal não obstava porém a que o credor com garantia real reclamasse espontaneamente o seu crédito na execução, até à transmissão dos bens penhorados.
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admissível reclamação de créditos138, a menos que a penhora tenha incidido sobre veículo automóvel em que se procederá à citação das entidades referidas nas leis fiscais, por sobre aquele poder incidir privilégio mobiliário especial para garantia do pagamento de certos impostos139. Segundo AMÂNCIO FERREIRA, não se justifica a citação da Administração Fiscal e da Segurança Social apenas para virem à execução comum reclamar o seu crédito com base na garantia real da penhora, uma vez que as execuções fiscais e as execuções das dívidas à segurança social não se sustam por virtude de penhora anterior em execução judicial (arts. 218.º, n.º 3, do Código de Procedimento e Processo Tributário e 6.º do DL.º 42/2001, de 9 de fevereiro)140. A restrição em análise não é a única medida tomada em prejuízo destes credores. Com efeito, na fase do pagamento tais credores sofrem ainda a limitação a que se refere o n.º 3 do art. 873.º: a quantia que têm a receber é reduzida até 50% do remanescente do produto da venda, deduzidas as custas da execução e as quantias a pagar aos credores que devam ser graduados antes do exequente, na medida do necessário ao pagamento de 50% do crédito do exequente, até que este receba o valor correspondente a 250 UC141. Visa-se com estas medidas impedir que o exequente seja transformado numa espécie de promotor das execuções, não tomando os credores que gozam de garantia real constituída por privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário a iniciativa de promover nenhuma execução. No regime anterior à RPC2003, estes credores limitavam-se a esperar que algum credor atuasse, vindo, depois, reclamar os créditos garantidos na execução e, aproveitando-se assim da promoção processual do exequente. Este, que só via o seu crédito ser pago depois de satisfeitos os credores titulares de privilégios creditórios, mobiliários ou imobiliários (o que pressupunha que o executado tivesse bens suficientes para pagar a estes credores e, só depois, ao exequente), ficava muitas vezes sem obter pagamento algum142. Tendo o Estado, em regra, os seus créditos garantidos por privilégio creditório, era quem beneficiava mais deste regime. Face ao exposto, verifica-se que o respeito pelo AE da vontade manifestada pelo exequente quanto aos bens a penhorar (que a lei impõe, nos termos do art. 751.º, n.º 2), pode adquirir especial relevância quando a indicação é efetuada com vista à aplicação da restrição ora em análise, de forma a evitar-se que a reclamação de créditos por credores com privilégio creditório geral ponha em causa a satisfação integral ou parcial do crédito exequendo. Neste sentido, Teixeira de Sousa, A Reforma da…cit., p. 182; e Timóteo Ramos, Prontuário de Formulários e Trâmites: Processo Executivo, vol. IV, 2.ª ed., Coimbra, Quid Juris, 2004, p. 965. Diversamente, admitindo a citação das entidades públicas, Lopes do Rego, Comentários…cit., p. 109; e Salvador da Costa, ob. cit., p 236 reponderando posição anterior. 139 Nos termos do art. 10.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 3 de maio, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário especial sobre o veículo que deu origem à coleta, mesmo que tenha sido transmitido a terceiros antes ou depois da liquidação, salvo se a transmissão se tiver operado por venda judicial ou extrajudicial em processo a que o Estado deva ser chamado a deduzir os seus direitos. 140 Ob. cit., p. 331. No sentido da admissibilidade da reclamação do credor com privilégio creditório geral, fundado em penhora sobre os mesmos bens numa outra execução, pronuncia-se Ribeiro Mendes, “Reclamação de Créditos no Processo Executivo”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano IV, N.º 7 (2003), Lisboa, Almedina, p. 235. 141 À semelhança da limitação constante do art. 788.º, n.º 4, também esta não se aplica aos privilégios creditórios dos trabalhadores (796.º, n.º 4). 142 Paula Costa e Silva, ob. cit., p. 15. 138
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2.2 O caso do regime previsto no art. 751.º, n.º 3 Está consagrado no art. 751.º, n.º 3 um afastamento lícito ao princípio da proporcionalidade143, pois que se admite a penhora de imóveis e de estabelecimento comercial, ainda que esta não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo. Para tal é necessário que se verifiquem determinados requisitos mencionados nas várias alíneas do referido preceito: a) A penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de doze meses, no caso de a dívida não exceder metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância (2.500,00 euros) e o imóvel seja a habitação própria e permanente do executado; b) A penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de dezoito meses, no caso de a dívida exceder aquele valor e o imóvel seja a habitação própria e permanente do executado; c) A penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de seis meses, nos restantes casos. Note-se que mesmo antes da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, já esta norma se encontrava prevista, tendo a sua redação sido introduzida pela Lei n.º 60/2012, de 9 de novembro144. Mas até então o legislador não discriminava se o imóvel a penhorar se destinava ou não a habitação própria e permanente do executado, admitindo a penhora de bens imóveis e do estabelecimento comercial sempre que a penhora de outros bens presumivelmente não permitisse a satisfação integral do credor no prazo de seis meses. Saliente-se, que para evitar abusos na utilização desta norma, o legislador já não estabelece que é “admissível” mas que “só é admissível” a penhora destes bens nestes casos. Suscita-se a questão de saber se, mesmo tendo o legislador admitido, excecionalmente, que se penhore um bem de valor bastante superior ao da quantia exequenda pelo facto de a penhora de outros bens onerar o exequente com o pagamento em prazo mais alargado, deve o AE ter em consideração se o exequente prefere, ou não, suportar esse facto. Até porque a penhora de bens imóveis ou estabelecimento comercial, cuja penhora seria realizável mesmo que de valor desproporcionado, ao abrigo do referido regime, pode trazer outro ónus, como seja o ingresso de credores reclamantes no processo, evitável caso se penhore, por exemplo, rendas ou salários, ainda que neste caso o pagamento se faça em mais tempo. Para uma melhor compreensão do que está em causa, vejamos um exemplo: – O exequente indica à penhora o salário do executado, no valor de 1.500,00 euros, para pagamento de uma dívida de 200.000,00 euros. Sobre o princípio da proporcionalidade, cfr., supra, Capítulo II, 4.1. Esta lei inseriu-se num conjunto de leis da Assembleia da República, publicadas no mesmo número do Diário da República, relacionado com o crédito à habitação e proteção de devedores em situação económica difícil. 143
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– O AE procede às consultas prévias à penhora e não encontra mais bens a não ser um imóvel no qual o executado reside permanentemente. – Uma vez que se trata de dívida superior a metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância e sendo o imóvel destinado a habitação própria e permanente, a penhora desse imóvel só é admissível porque a penhora do salário não permite a satisfação integral do credor no prazo de dezoito meses [art. 751.º, n.º 3, al. b)]. – O AE pretende efetuar a penhora do imóvel mas o exequente opõe-se, manifestando a sua vontade pela penhora do salário durante o tempo que for necessário para a satisfação integral do seu crédito. Que deverá o AE fazer? Penhorar o imóvel ou respeitar a vontade do exequente? Por outras palavras, terá o AE, neste caso, liberdade de decisão? Tendo por base o exemplo dado, verifica-se que quer incidindo a penhora sobre o salário ou sobre o imóvel, o exequente correrá o risco de não ver o seu crédito, total ou parcialmente satisfeito. No caso da penhora de salário, uma vez que a penhora é protelada no tempo, em prestações mensais, até ser atingido o valor necessário ao pagamento da dívida exequenda e das despesas da execução, e o interesse do exequente só se mostrará garantido quando o montante dos descontos for suficiente para pagamento das quantias referidas, podendo tal não se verificar no caso de se “romper” o vínculo laboral. No caso da penhora de imóvel, por implicar a citação dos credores que sejam titulares de direito real de garantia para reclamarem o pagamento dos seus créditos, bem como a citação da Fazenda Pública, com vista à defesa dos possíveis direitos, bem como do Instituto da Segurança Social, I.P., e do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. para defesa dos direitos da segurança social [arts. 786.º, n.º 1, al. b) e n.º 2], tendo de ser respeitada a verificação e graduação dos créditos145. Além disso, o exequente deverá ter presente que a venda de bens imóveis e do estabelecimento comercial é, normalmente, demorada, tendo inclusive frequentemente lugar mediante propostas em carta fechada (art. 816.º) e que o registo predial da penhora, no caso dos bens imóveis, pode gerar problemas. Para dar resposta a esta problemática, torna-se imprescindível conhecer a ratio da referida norma. Verifica-se que entre o valor jurídico da efetiva realização do crédito e o valor jurídico da proporcionalidade da penhora, prevalece aquele primeiro valor sobre este último. Estamos 145 Após a verificação dos créditos reclamados, o juiz gradua-os, isto é, estabelece a ordem pela qual devem ser satisfeitos, incluindo o crédito do exequente, de acordo com os preceitos aplicáveis de direito substantivo. – Em caso de concurso sobre a mesma coisa imóvel, o privilégio imobiliário é graduado em primeiro lugar, seguido do direito de retenção, e a seguir da hipoteca e da consignação de rendimentos, prevalecendo entre as duas últimas a que for registada em primeiro lugar (arts. 751.º, 759.º, n.º 2, ambos do CC e 6.º, n.º 1 do CRP); – Concorrendo entre si vários privilégios creditórios, a ordem de prevalência é, em geral, a dos arts. 745.º a 748.º, do CC, mas há várias disposições avulsas, designadamente no domínio do direito fiscal e para-fiscal, que estabelecem o lugar em que são graduados determinados privilégios; – O direito do exequente, se for apenas garantido pela penhora, será graduado depois destes créditos (a menos que, estando sujeitos a registo, o registo da penhora lhes seja anterior), mas antes dos credores que, por segunda penhora, arresto ou hipoteca judicial, constituam garantia real posteriormente à penhora. Se o exequente tiver direito real de garantia, deve atender-se à natureza e à data da constituição deste. Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva Á Luz… cit., p. 368.
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claramente perante uma manifestação do favor creditoris: entre ter de se sacrificar o interesse do exequente na satisfação em tempo razoável do seu direito ou o interesse do executado em ver a oneração do seu património ser apenas a correspondente à da sua responsabilidade, sacrifica-se este último. Não há, portanto, dúvidas de que na ratio desta norma está o benefício do exequente, sendo-lhe assegurada a satisfação em tempo razoável do seu direito. Também com a aplicação desta norma se obtém celeridade processual, a qual é indispensável à legitimação dos tribunais perante a comunidade. Assim, pelos motivos referidos, mas igualmente por força do princípio da cooperação deve entender-se que esta exceção ao principio da proporcionalidade, não é de aplicar atendendo, somente à previsão legal das condições aí consagradas, mas conjugada com a vontade do exequente, o qual pode manifestar não pretender beneficiar desse regime. A conclusão a que chegamos, no sentido de que o AE não tem liberdade de decisão no âmbito do art. 751.º, n.º 3, parece ser confirmada através da conjugação com o disposto no art. 751.º, n.º 2 em que se prevê que o AE deve atender à vontade manifestada pelo exequente quanto aos bens a penhorar. 2.3 Imperativos legais Embora o AE na sua função de determinar os bens a penhorar deva respeitar as indicações do exequente sobre os bens que pretende ver prioritariamente penhorados, não o poderá fazer se aquelas violarem norma legal imperativa (art. 751.º, n.º 2). No art. 752.º encontramos consagrados imperativos legais que vinculam o AE na determinação do objeto da penhora, os quais analisaremos de seguida. 2.3.1 Bem onerado com garantia real O art. 752.º, n.º 1, refere-se à penhora de bem onerado com garantia real, ou seja, quando em virtude da constituição da garantia real, fica um bem do património do devedor ou pertencente a terceiro especialmente afeto ao cumprimento da obrigação. Estabelece aquele preceito que a penhora “inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair sobre outros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução”146. Esta vinculação, que determina que o tribunal territorialmente competente seja o da situação dos bens onerados (n.º 2 do art. 89.º) resulta do próprio título constitutivo da garantia, o qual, se não for o próprio título executivo, deve também ser junto com o requerimento executivo147. É necessário identificar os bens que constituem a garantia para que o AE conheça da sua existência e assim o exequente possa fazer valer, na execução pendente, a preferência resultante dessa garantia (art. 604.º, n.º 2, do CC). Importa salientar que esta vinculação sobre os bens a penhorar deve ser entendida como aplicação do princípio da subsidiariedade real, afirmado pelo art. 745.º, admitindo-se, portanto, que o regime ali estabelecido generaliza, para todos os casos de garantia real onerando bens do devedor, o que o CC dispõe diretamente para o caso de hipoteca (art. 697.º, do Tendo deixado de haver ato de nomeação de bens, com a RPC2003 a referência neste preceito à nomeação desapareceu. Falava-se no direito anterior em penhora oficiosa, sem necessidade de nomeação por parte do exequente ou do executado. Cfr. Anselmo de Castro, ob. cit., 125. 147 Cfr. Anselmo de Castro, ob. cit., 125. 146
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CC)148 e, por remissão, para o penhor (art. 678.º, do CC) e para o privilégio creditório (art. 753.º, do CC). Igualmente deverá esta vinculação ser aplicada aos bens arrestados, pois o art. 752.º, n.º 1 ao referir-se a garantia real, está a aludir a qualquer situação que possa atribuir uma preferência do exequente sobre o produto da venda dos bens149, resultando essa preferência no caso do arresto da conjugação dos arts. 622.º, n.º 2, e 822.º, n.º 1, ambos do CC. Além disso, e sem prejuízo de o arresto caducar, designadamente por não ter sido promovida a execução dos bens arrestados dentro dos dois meses subsequentes à obtenção na ação de cumprimento de sentença com trânsito em julgado (art. 395.º), não fazia sentido que o património do devedor fosse agredido, ainda que licitamente por meio daquela providência cautelar e essa agressão não se consolidasse, o que só vem a verificar-se por meio de penhora150. O exequente não está impedido de indicar à penhora, logo no requerimento executivo, outros bens do executado, para o caso de se demonstrar a insuficiência manifesta dos bens onerados para satisfação do seu crédito, sem necessidade de excutir previamente estes, face ao disposto no n.º 7 do art. 745.º. Assim, v. g. na execução de dívida garantida por hipoteca, o AE não pode penhorar de início outros bens indicados pelo exequente no requerimento executivo, sendo a indicação considerada para futuro reforço da penhora. Contudo, ainda que se entenda que não é necessário esperar pelo momento da venda para se concluir que o seu produto não chegará para pagamento da dívida, bastando que o exequente demonstre a insuficiência manifesta dos bens que devem responder em primeiro lugar151, entendemos que essa conclusão só se torna segura no momento da fixação pelo AE do valor de base152, que corresponderá, no caso dos bens imóveis, ao maior dos seguintes valores: valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos ou valor de mercado, e nos restantes bens ao seu valor de mercado (art. 812.º n.os 3 e 4). Note-se que apesar de o art. 752.º, n.º 1, se referir apenas à hipótese paradigmática de os bens onerados pertencerem ao devedor e de a ação executiva ser instaurada contra esse sujeito, o mesmo deve valer no caso de a garantia onerar bens de um terceiro e de a execução ser proposta contra este; também nesta situação a execução começa, independentemente de indicação, pelos bens onerados. Importa distinguir 3 hipóteses que se podem verificar: 1.ª – quando os bens onerados pertencem ao devedor e estão na sua posse; 2.ª – quando os bens onerados pertencem ao devedor mas estão na posse de terceiro; 3.ª – quando os bens onerados pertencem a terceiro ou foram por ele adquiridos depois de onerados. 148 O art. 697.º, do CC atribui ao dono da coisa hipotecada o direito de se opor não só a que os outros bens sejam penhorados na execução enquanto se não reconhecer a insuficiência da garantia, mas ainda a que, relativamente aos bens onerados, a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor. 149 Neste sentido, Teixeira de Sousa, Ação Executiva...cit., p. 236. 150 Quanto ao modo de efetuar a penhora dos bens arrestados, esta efetua-se por conversão, fazendo-se no registo predial o respetivo averbamento (art. 101.º, n.º 2, al. b), do CRP) nos termos do art. 762.º, no que concerne aos imóveis, mas extensível com as devidas adaptações, aos móveis e direitos, em conformidade com o que se dispõe nos arts. 772.º e 783.º. 151 A este propósito no ac. do TRL, de 11 de maio de 2006, proc. n.º 0632423, in www.dgsi.pt sustentou-se: “na subsidiariedade real não se exige a prévia excussão dos bens que respondem prioritariamente, mediante a realização das vendas ou adjudicações, para se poderem penhorar os bens que respondem em último lugar. Basta que o exequente demonstre a insuficiência manifesta dos bens que devem responder em primeiro lugar.” 152 Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro, ob. cit., p. 124.
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Na primeira hipótese não há dúvida quanto aos termos da aplicação deste imperativo legal, não podendo o exequente requerer que a penhora incida prioritariamente sobre os bens do devedor não onerados com a garantia real, mesmo que essa penhora lhe possibilite a realização mais rápida e segura do seu direito. Portanto, sendo do devedor o bem dado em garantia, não existe opção, devendo a penhora incidir, em primeiro lugar, sobre esse bem, pelo que só subsidiariamente é possível penhorar outros bens do devedor. Importa salientar que esta regra de penhorabilidade cessa quando tenha lugar a renúncia pelo credor exequente à garantia geral constituída, podendo este, desde logo, fazer incidir a penhora sobre outros bens do devedor. Essa renúncia só pode ter lugar pelas formas indicadas na lei civil153, entre as quais não se conta a mera propositura duma ação em que a garantia não seja invocada154. Na segunda hipótese, o devedor é o proprietário pleno do bem dado em garantia, mas este está na posse de terceiro. Neste caso, o credor pode propor a ação executiva só contra o devedor ou contra este e o possuidor, visto que em qualquer dos casos a penhora dos bens é possível, conforme resulta do n.º 4 do art. 54.º. Na terceira hipótese, estamos perante garantia real que incide sobre bens de terceiro, ou porque já assim tenha sido constituída ou porque, embora inicialmente constituída sobre bens do devedor, este os tenha posteriormente alienado, em data anterior à propositura da ação executiva. Dado não ser possível a penhora de bens pertencentes a pessoa que não tenha a posição de executado (art. 53.º), a ação executiva tem, na medida em que se quiser fazer atuar a garantia prestada, de ser proposta contra o proprietário do bem. Assim sendo, se o exequente propõe a ação contra o devedor, executando o crédito como crédito comum, estamos fora do âmbito de aplicação da vinculação em análise, não estando o AE vinculado a penhorar os bens onerados. Pretendendo o exequente fazer valer a garantia na execução, o art. 54.º, n.os 2 e 3, concede-lhe as seguintes opções: – a propositura da execução contra o terceiro e, mais tarde, se os mesmos bens forem insuficientes, o chamamento do devedor; – a propositura da execução, desde logo contra o terceiro e o devedor em litisconsórcio voluntário. Note-se, porém, que se o título executivo for uma sentença condenatória, a propositura da ação executiva contra o proprietário que sobre os bens haja constituído a garantia real pressupõe que contra ele tenha sido também proposta a ação de condenação e que nesta tenha sido declarada a existência da garantia (arts. 635.º, n.º 1, 667.º, n.º 2 e 717.º, n.º 2, todos do CC). 153 A renúncia à hipoteca ou à consignação de rendimentos, necessariamente expressa, está sujeita à forma exigida para a sua constituição (arts. 660.º, n.º 1, 663.º, n.º 3, 704.º, 708.º, 710.º, n.º 1, 714.º e 731.º, n.º 1, todos do CC), pelo que só nos casos excecionais em que a hipoteca, sendo voluntária, incide sobre bens móveis (688.º, n.º 1, al. f ), do CC) é que o credor pode, na petição da ação executiva, a ela renunciar, desde que o faça expressamente. A renúncia ao penhor, além de poder ter sempre lugar por forma expressa, pode também resultar da restituição da coisa empenhada ou de documento que dela confira a exclusiva disponibilidade (art. 677.º, do CC). Regime semelhante (sem hipótese de restituição de documento) é o do direito de retenção (art. 761.º, do CC) e próximo (sem hipótese de entrega) o do privilégio creditório (art. 752.º, do CC). A renúncia do exequente não tem, pois, de ser sempre prévia à execução. 154 Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva Á Luz…, ob. cit., p. 146.
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2.3.2 Quinhão em bens indivisos e em patrimónios autónomos Como se sabe, o quinhão, quota ou parte, do executado, em bens indivisos ( v. g. compropriedade, compropriedade das partes comuns na propriedade horizontal, co-usufruto), e em património autónomos155, pode ser objeto de penhora. Estabelece o n.º 1 do art. 743.º que não podem ser penhorados, a menos que a execução seja movida contra todos os titulares no caso de compropriedade em bem indiviso, uma parte especificada dele; e no caso de comunhão num património autónomo, os bens nele compreendidos ou uma fração de qualquer deles. No caso da compropriedade, concretizemos no que respeita à penhora de imóveis. A penhora de imóveis tem por objeto direitos reais de gozo em titularidade singular, sendo objeto da apreensão improprio sensu o imóvel em si mesmo; mas se esse imóvel passar a ter dois proprietários já o objeto quer da penhora, quer da apreensão improprio sensu é a quota-parte do consorte156 executado”157, que é em si mesma uma realidade ou quid de natureza jurídica, tal como resulta do ac. do TRP, de 9 de abril de 1992158. No que concerne à comunhão num património autónomo, apresentamos como exemplo a herança: como se sustenta no ac. do STJ, de 27 de outubro de 1998159 pode ser penhorado, v. g. o direito à meação da herança, já que não está materializado sobre o bem X ou o bem Y, ainda que se saiba que tais bens integram o património indiviso. Se, em contravenção ao referido, o AE penhorar uma parte especificada de bens indivisos ou de bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, em execução movida contra algum ou alguns dos contitulares, está-se perante penhora de bem de um terceiro (art. 735.º, n.º 2), podendo este embargar de terceiro nos termos dos arts. 342.º e ss.160. Com efeito, é preciso ter em consideração, por um lado, que os bens de terceiros só respondem na execução quando estejam vinculados à garantia do crédito ou no seguimento da procedência da impugnação pauliana (art. 818.º, do CC), e por outro lado, que a autonomia patrimonial resultante da separação de patrimónios perfila-se como uma limitação ao princípio geral da responsabilidade de todos os bens do devedor pelo cumprimento da obrigação (art. 601.º, do CC)161. O legislador prevê mecanismos que facilitam a venda da totalidade do património ou do bem em comunhão, estabelecendo o n.º 2 do art. 743.º que se realiza uma única venda que será feita “no âmbito do processo em que se tenha efetuado a primeira penhora”, com posterior divisão, segundo as regras do direito material, do produto ali obtido. Isto, claro, desde que não ocorra nenhuma das circunstâncias que obste à cumulação de execuções previstas no art. 709.º, n.º 1 (art. 267.º, n.º 5). Há aqui uma espécie de remessa das vendas para a execução mais antiga, que não se verificaria se tivesse sido constituída coligação passiva inicial de devedores Vimos já o que são patrimónios autónomos e exemplos no Capítulo II, 2. Nos termos do n.º 2 do art. 1403.º, do CC, presumem-se quantitativamente iguais as quotas dos comproprietários sobre a coisa comum. 157 Cfr. Rui Pinto, “Penhora e Alienação de outros Direitos, Execução Especializada sobre Créditos e Execução sobre Direitos não Creditícios na Reforma da Ação Executiva”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano IV, N.º 7 (2003), Lisboa, Almedina, p. 155. 158 BMJ n. º 416, p. 712. 159 Proc. n.º 98A960, in www.dgsi.pt. 160 Nomeado a penhora um oitavo de todos os bens que integram a herança e não o direito ao quinhão hereditário do executado (um oitavo) procedem os embargos de terceiro deduzidos pelos demais herdeiros (ac. do TRL, de 3 de dezembro de 1992, proc. n.º 0047376, in www.dgsi.pt). 161 Cfr., infra, Capítulo II, 2. 155
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entre si contitulares “de quinhões no mesmo património autónomo ou relativos ao mesmo bem indiviso, sobre os quais se faça incidir a penhora” como admite a al. c) do n.º 1 do art. 56.º Pretendendo o legislador que, sempre que possível, não seja levada à venda executiva apenas a quota, mas também a totalidade do bem, estatuiu no n.º 2 do art. 752.º que a penhora, a promover pelo AE, inicia-se por esse bem, se tal for “conveniente para os fins da execução”. A conveniência traduz-se numa opção que o AE deverá fazer entre a promoção preferencial do mecanismo da venda concentrada e única, começando logo pela penhora do quinhão, ou pela venda de outros bens, começando pela penhora destes. Com efeito, a prioridade da penhora de todas as quotas ou quinhões na dependência de um juízo de conveniência a formular, pertence, em primeira linha, ao AE uma vez que é quem procede à determinação dos bens a penhorar162. O n.º 1 do art. 743.º ressalva o disposto no n.º 4 do art. 781.º: é possível penhorar a totalidade do quinhão patrimonial ou do bem indiviso não só quando haja sido acionada a coligação possibilitada pela al. c) do n.º 1 do art. 56.º, mas também quando todos eles hajam feito a declaração prevista no n.º 2 do art. 781.º, 2.ª parte. Com efeito, feita a notificação ao administrador dos bens ou dos contitulares, com a expressa menção de que o direito do executado fica à ordem do AE, desde a data da primeira notificação efetuada (art. 781.º, n.º 1), podem os notificados declarar se pretendem que a venda tenha por objeto todo o património ou a totalidade do bem. Deste modo, libertam-se os contitulares da sujeição a uma aquisição por terceiro desconhecido e facilita-se a venda. Coloca-se, contudo, a questão: deverá o executado dar o seu consentimento, atenta a expressão do n.º 4, “todos os contitulares”? Tal como RUI PINTO, somos da opinião de que a resposta é no sentido negativo, já que, como se sabe, a venda é feita sem o concurso da vontade do executado163. Assim, se todos os contitulares fizerem a dita declaração, com exceção do executado, que pode dar ou não o seu consentimento, a venda terá por objeto todo o património ou a totalidade do bem, não podendo o juiz afastar a venda nesses termos por entender que é inconveniente para o fim da execução. Acresce que este regime da venda concentrada e única do património autónomo ou bem indiviso constante do art. 781.º, n.os 2, 2.ª parte e 4, deve ser aplicado, mutatis mutandis, à penhora do direito real de habitação periódica e de outros direitos reais cujo objeto não deva ser apreendido, isto é direitos reais singulares sem posse exclusiva. É o que se passa, designadamente, com a penhora da nua propriedade ou da propriedade do fundeiro. Tal resulta da remissão que o n.º 5 do art. 781.º faz para o disposto nos números anteriores, e que faz todo o sentido, já que a coisa em si não pode ser apreendida segundo o regime da penhora de imóveis ou móveis, por implicar a perda do gozo da coisa por terceiro titular do outro direito real. 2.4 Substituição ou reforço da Penhora Após a determinação dos bens sujeitos à penhora e da efetivação da mesma, pode verificar-se a necessidade de o AE reforçar ou substituir a penhora, o que pode acontecer nos casos previstos no n.º 4 do art. 751.º. 162 163
Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código…cit., p. 69. Cfr. Rui Pinto, “Penhora e Alienação…” cit., p. 161.
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O processamento e decisão dos incidentes de reforço e substituição é outra das competências do AE no âmbito do seu poder de determinação dos bens a penhorar. O mesmo sucede com o incidente de redução ou isenção da penhora nos termos do art. 738.º, n.os 6, mas que por não implicar uma outra decisão do AE sobre os bens a penhorar não será por nós analisada. Recorde-se que a substituição dos bens penhorados é inadmissível e deve ser indeferida se a execução se fundar em dívida provida de garantia que onere bens determinados, pois como já vimos a penhora começa precisamente por estes, nos termos do art. 752.º, n.º 1, e é imperativa164. Além disso, tenha-se em atenção que, com vista a garantir o interesse do exequente, em qualquer caso de substituição dos bens penhorados, só depois da nova penhora é que o AE pode levantar a que incide sobre os bens substituídos (art. 752.º, n.º 5). Visa-se, assim, evitar que, nos casos de substituição dos bens penhorados, um hiato entre o levantamento da penhora substituída e a efetivação da que a substitui possa ocasionar o desaparecimento, físico ou jurídico, dos bens que de ambas são objeto: a primeira garantia só se extingue depois de a segunda estar concluída165. No referido art. 752.º, n.º 5, estabelece-se, porém, que este regime não contende com o especialmente previsto no art. 745.º, n.º 4, pelo que no caso de o exequente não ter movido a execução contra o devedor principal e haja bens deste ou, tendo a execução sido movida contra ambos os devedores, sendo manifesta a suficiência dos bens do devedor principal para os fins da execução, o devedor subsidiário que invoca o benefício da excussão pode requerer o levantamento da penhora dos seus bens, logo que consumado o prazo de 10 dias, aí previsto166. O reforço ou substituição da penhora pode verificar-se a requerimento do executado, por iniciativa do AE ou a requerimento do exequente, como veremos de seguida. 2.4.1 A Requerimento do executado Efetuada a penhora, é admissível ao executado requerer a substituição dos bens penhorados por outros que igualmente assegurem os fins da execução desde que a isso não se oponha o exequente, tal como resulta da al. a) do n.º 4 do art. 751.º. O AE tem de se certificar se os bens que o executado pretende dar à penhora, em substituição, são de valor suficiente e terá, previamente a tomar uma posição, que notificar o exequente para que este deduza, querendo, oposição. Deduzida oposição pelo exequente, necessariamente terá que ser indeferida, pelo AE, a requerida substituição. Pois que, a não oposição do exequente é requisito legal para a realização de tal substituição167. Note-se que, se o executado deduzir também oposição à penhora, a decisão sobre a substituição requerida já não cabe ao AE, pois este deverá remeter ao juiz o requerimento apresentado e a oposição deduzida, para que aquele decida nos termos do n.º 5 do art. 751.º. Assim, a competência para a apreciação desta situação (que isoladamente seria da Cfr., supra, Capítulo III, 2.3.1. Cfr. Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, ob. cit., p. 397. 166 Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código…cit., p. 68. 167 Cfr. Eduardo Paiva/Helena Cabrita, ob. cit., p. 132. Com o DL n.º 226/2008, de 20 de novembro, desapareceu desta norma a necessidade de o exequente se opor a essa substituição “fundadamente”, pelo que sempre que o exequente se oponha à substituição essa não poderá ser efetuada pelo AE. 164 165
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competência do AE) passa a ser do juiz, por ter sido cumulativamente deduzida oposição à penhora, sendo as duas questões apreciadas simultaneamente pelo juiz168. Aquando da aludida remessa, efetuada pelo AE ao juiz, o incidente deverá estar apto a ser decidido, ou seja, exequente e executado hão de já ter fornecido os elementos em que sustentam as respetivas posições, sendo que é ao executado, requerente da substituição, que compete demonstrar que os bens que oferece em substituição dos penhorados, igualmente asseguram os fins da execução169. Nos termos do n.º 6 do referido art. 751.º, em alternativa, “o executado que se oponha à execução, pode, no ato da oposição, requerer a substituição da penhora por caução idónea que igualmente garanta os fins da execução”, cabendo ao juiz apreciar a idoneidade, conforme se extrai do art. 909.º. Note-se que a substituição tem de ser requerida no ato da oposição, não podendo ser através da apresentação de um requerimento autónomo ulterior. Nos casos em que o executado pode requerer a substituição dos bens penhorados por outros bens, o AE deixa de poder escolher os bens penhoráveis para a substituição. É o que sucede no caso de a execução ter sido movida apenas contra o devedor principal e os bens deste se revelarem insuficientes, fazendo o exequente a execução prosseguir contra o devedor subsidiário, nos termos do n.º 3 do art. 745.º. Os bens do devedor subsidiário que sejam penhorados deverão ser substituídos por bens do devedor principal, adquiridos posteriormente à penhora ou que não fossem conhecidos, após indicação do devedor subsidiário, tal como se extrai do n.º 4 do art. 745.º. 2.4.2 Por iniciativa do AE ou a requerimento do exequente Um problema que se pode levantar é o de saber se, com a evidente exceção da situação prevista no art. 751.º, n.º 4, al. a), o AE tem competência para, por sua própria iniciativa, proceder ao reforço ou substituição da penhora. Parece-nos que a resposta deve ser afirmativa, atendendo à competência genérica para as diligências do processo de execução que lhe é atribuída pelo art. 719.º, n.º 1. Assim, quer seja por sua própria iniciativa quer seja com base em requerimento do exequente, o AE pode penhorar outros bens, mantendo ou substituindo os bens já penhorados, nos seguintes casos:170: 1. Quando seja ou se torne manifesta a insuficiência dos bens penhorados [art. 751.º, n.º 4, al. b)]171; 2. Quando os bens penhorados não sejam livres e desembaraçados (por estarem onerados com qualquer tipo de garantia) e o executado tenha outros que o sejam [art. 751.º, n.º 4, al. c)]; 3. Quando sejam recebidos embargos de terceiro contra a penhora, com a automática consequência da suspensão da execução (art. 347.º) [art. 751.º, n.º 4, al. d), 1.ª parte]; Cfr. Eduardo Paiva/Helena Cabrita, ob. cit., p. 137. Cfr. ac. do TRC, de 29 de fevereiro de 2012, proc. n.º 5457/09.1TAGD-B.C1, in www.dgsi.pt. 170 Estes casos estavam previstos no art. 836.º na redação anterior à RPC2003, salvo a desistência da penhora pelo exequente, por sobre os bens penhorados incidir penhora anterior, a qual constava do n.º 3 do art. 871.º, também na redação anterior à RPC2003. 171 No ac. do TRL de 31 de outubro de 2000, proc. n.º 0052531, in www.dgsi.pt decidiu-se pela admissibilidade da penhora de novos bens enquanto se aguarda pela venda dos bens anteriormente penhorados, desde que se demonstre a insuficiência destes para cobrir as despesas da execução e assegurar o pagamento ao exequente. 168 169
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4. Quando a execução sobre os bens seja suspensa por oposição a esta deduzida pelo executado, com prestação de caução, nos termos do art. 785.º, n.º 3 [art. 751.º, n.º 4, al. d), 2.ª parte]; 5. Quando o exequente desista da penhora, por existir penhora anterior sobre os bens penhorados [art. 751.º, n.º 4, al. e)]; 6. Quando o devedor subsidiário, não previamente citado, invoque o benefício da excussão prévia [art. 751.º, n.º 4, al. f )]172.
3. MEIOS DE REAÇÃO À PENHORA DETERMINADA PELO AE 3.1 Notas prévias Como vimos, no nosso sistema destaca-se uma clara opção no sentido de aliviar o juiz da enorme carga burocrática, sendo a tipificação dos poderes do juiz de execução operada com a RPC2003 (art. 809.º, n.º 1 CPC2003), uma manifestação dessa opção. Por outro lado, com o DL n.º 226/2008, de 20 de novembro, o legislador aboliu a submissão da realização das diligências pelo AE ao controlo do juiz, tendo em consequência sido formalmente retirado ao juiz de execução o poder geral de controlo do processo (arts 808.º, n.º 1 e 809.º, n.º 1, 1.ª parte CPC2009). Este é igualmente o regime que vigora atualmente, pois que a atuação do AE continua sujeita a um efetivo controlo judicial: é o AE que atua e decide, mas dos seus atos e decisões reclama-se/impugna-se para o juiz de execução173. O juiz de execução exerce, assim, um poder de controlo que depende da iniciativa das partes e que é desempenhado apenas caso a caso174. O controlo processual a efetuar pelo juiz de execução verifica-se, no âmbito da determinação dos bens a penhorar, fundamentalmente depois da efetivação da penhora, já que não há, atualmente, nomeação de bens à penhora nem despacho ordenatório da mesma. Efetuada a penhora esta termina normalmente com a venda ou adjudicação do bem penhorado, podendo ser levantada antes de ocorrer essa alienação, nomeadamente pela procedência de oposição à penhora deduzida pelo executado ou por decisão do juiz de execução a reclamação do ato da penhora, situações em que se efetiva o controlo judicial. Contudo, nos casos em que é permitida a pronúncia sobre os bens a penhorar antes da apreensão, o referido controlo verifica-se previamente à realização da penhora, através do julgamento das impugnações da decisão do AE sobre os bens a penhorar. Tal pode suceder quando o executado, previamente citado (o que sucede nas execuções ordinárias), se opõe 172 Exceto quando, neste último caso, o exequente não haja movido a execução contra o devedor principal e haja bens deste ou, tendo a execução sido movida contra ambos os devedores, o devedor subsidiário indique bens do devedor principal suficientes para os fins da execução (art. 745.º, n.º 4), a penhora inicial, cuja substituição seja pedida, só é levantada depois de penhorados os novos bens, a fim de evitar a perda da garantia por ela conseguida (art. 751.º, n.º 6). 173 Teixeira de Sousa, “Novas Tendências de Desjudicialização na Ação Executiva: o Agente de Execução como Órgão da Execução”, Cadernos de Direito Privado, N.º Especial 01/dezembro 2010, p. 3. 174 Jorge Esteves, O Controlo Judicial do Processo e a Posição do Juiz face ao Agente de Execução e às Partes, 2009, in http:// tribunaldefamiliaemenoresdobarreiro.blogspot.pt/2009/04/o-controlo-judicial-do-processo-e.html.
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por requerimento, questionando a penhorabilidade dos bens indicados pelo exequente, no requerimento executivo,175 e quando o exequente impugna a decisão do AE sobre os bens a penhorar depois de notificado dessa mesma decisão. Seguidamente, analisaremos a oposição à penhora, reclamação/impugnação para o juiz de execução, em especial no que se refere aos seus fundamentos no âmbito da determinação dos bens a penhorar, fundamentos esses que têm na sua base a realização da penhora em desrespeito dos limites impostos para essa determinação176, por constituir um ato viciado de nulidade ex vi da cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 195.º, n.º 1. Importa, antes, ter presente que a oposição à penhora é o meio de reação ao dispor do executado contra a penhora determinada pelo AE, não podendo a reclamação para o juiz de execução, de atos praticados pelo AE, ser utilizada quando se possa recorrer àquele incidente. Neste sentido, afirma TEIXEIRA DE SOUSA, que a “reclamação para o juiz de execução e a oposição à penhora nunca podem ser considerados meios alternativos de impugnação da penhora”177. 3.2 Incidente de oposição à penhora O incidente de oposição à penhora constitui um meio de oposição privativo do executado e tem como pressuposto que os bens penhorados pertençam ao executado179. O momento e o prazo de dedução do incidente de oposição à penhora estão dependentes da forma do processo. Ocorrendo a penhora depois da citação para a execução (forma ordinária), a oposição será apresentada no prazo de 10 dias a contar da notificação do ato da penhora, nos termos do art. 785.º, n.º 1. Caso não haja cumulação de oposições – seja porque o executado foi citado antes da penhora (forma ordinária), seja porque foi citado depois da penhora (forma sumária), mas não se quis opor à execução – o incidente segue as disposições gerais dos incidentes da instância dos arts 293.º a 295.º e ainda, com as necessárias adaptações os n.os 1 e 3 do art. 732.º, normas previstas no âmbito da tramitação dos embargos de executado. Assim: – Com o requerimento de oposição, são oferecidos os meios de prova, sendo de cinco o limite do número de testemunhas (arts. 293.º e 294.º, n.º 2); – Há despacho liminar, indeferindo o juiz a oposição quando esta tenha sido deduzida fora de prazo, não se funde em causa de impenhorabilidade objetiva prevista no art. 784.º, n.º 1, ou seja, manifestamente improcedente (art. 732.º, n.º 1); 178
175 Neste caso, o executado levantará, em requerimento, a questão da impenhorabilidade, carreando para o processo os elementos indispensáveis à sua verificação e oferecendo a prova para tanto necessária. Ouvida a contraparte, essa prova será seguidamente produzida, juntamente com a que esta ofereça, decidindo o juiz em conformidade. Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva Á Luz…cit., p. 317. 176 Sobre estes limites da penhora, cfr., supra, Capítulo II, 4.1 e 4.2 e Capítulo III, 2.1 e 2.3. 177 A Reforma…cit., p. 172. 178 E do seu cônjuge, por via do disposto no art. 787.º, n.º 1. 179 “Sendo penhorados bens pertencentes ao executado…” (art. 784.º, n.º 1). O executado não pode, no incidente de oposição à penhora, opor-se à apreensão de bens alheios ou comuns que só respondam depois dos bens que lhe pertençam (em exclusividade). Cfr. Lebre de Freitas, A Ação Executiva Á Luz…ob. cit., pp. 317 e 318.
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– O exequente pode responder no prazo de dez dias, contados da data em que é notificado da oposição, oferecendo logo os meios de prova, com a mesma limitação do número de testemunhas (art. 293.º, n.os 1 e 2, e 294.º, n.º 1); – A falta de resposta ou a omissão de impugnação tem efeito cominatório semipleno, não sendo, porém, considerados provados os factos, dos alegados pelo executado, que estiverem em oposição com o que o exequente tenha dito no requerimento executivo ou com o que ele próprio ou outro sujeito com o poder de indicar bens180 haja dito no respetivo requerimento (arts. 732.º, n.º 3 ex vi art. 785.º, n.º 2 e 856.º, n.º 4). Realizando-se, por sua vez, a penhora antes da citação do executado (forma sumária), a oposição será apresentada, como impõe o art. 856.º, n.º 1, no prazo de 20 dias a contar da citação do executado e do ato da penhora. Aqui o executado tem o ónus de cumular a oposição à penhora com a oposição à execução que eventualmente venha a deduzir em igual prazo, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito. Neste caso, sendo a oposição à penhora cumulada com embargos de executado (art. 856.º, n.º 3), segue-se a tramitação prevista para os embargos de executado. A dedução da oposição à penhora não suspende a execução, salvo se o executado prestar caução181. Nesta hipótese, a suspensão atingirá apenas os bens aos quais a oposição respeita, o que significa que prosseguirá sobre os demais bens penhorados, relativamente aos quais não tenha sido deduzida oposição (art. 785.º, n.º 3). O n.º 4 do art. 785.º visa proteger a habitação efetiva do executado (consagrando no âmbito da oposição à penhora a solução prevista para o caso de execução de sentença pendente de recurso – art. 704.º, n.º 4 – e para o caso de terem sido deduzidos embargos de executado ainda a aguardar decisão em primeira instância – art. 733.º, n.º 5). Trata-se da possibilidade de, quando o bem penhorado for a casa de habitação efetiva do executado/ oponente, a requerimento deste, o juiz determinar que a venda aguarde a decisão a proferir em primeira instância sobre a oposição à penhora, se a venda for suscetível de causar prejuízo grave e dificilmente reparável. Prevê-se no art. 785.º, n.º 5 que na pendência da oposição à penhora, quando a execução prossiga os seus trâmites, nem o exequente nem qualquer outro credor poderá obter pagamento sem prestar caução. A procedência da oposição à penhora determina, ao abrigo do art. 785, n.º 6, o levantamento da penhora. Com efeito, visando o incidente de oposição reagir contra penhoras legalmente inadmissíveis, a sua procedência determina o levantamento de tais penhoras quanto aos bens relativamente aos quais haja sido deduzida, esclarecendo o referido preceito que é o AE que procede ao levantamento da penhora, bem como ao cancelamento de eventuais registos. Como resulta do art. 723.º, n.º 1, al. b), é da competência exclusiva do juiz de execução o julgamento da oposição à penhora, correndo este incidente no tribunal de execução, sem interferência do AE. Assim sendo, parece-nos que o requerimento de oposição deverá ser apresentado junto do tribunal e não ao AE. Só assim não ocorre quando o executado, nos termos da al. a) do Caso do devedor subsidiário com o benefício da excussão prévia que indique bens do devedor principal, ao abrigo do art. 745.º, n.º 5. 181 Sem prejuízo do reforço ou substituição da penhora – art. 851.º, n.º 4, al. d). 180
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n.º 4 do art. 751.º cumule, no requerimento, a oposição à penhora e o pedido de substituição dos bens penhorados, caso em que se o executado enviar para o AE tal requerimento, deverá este remetê-lo para o juiz que decidirá, tal como resulta do n.º 5 do art. 751.º. O incidente de oposição à penhora tem como fundamentos aqueles que estão previstos no art. 784.º, n.º 1. Desses fundamentos, aqueles que estão relacionados com a determinação dos bens a penhorar são: a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que foi realizada. Neste fundamento de oposição à penhora incluem-se as impenhorabilidades absolutas (v. g. penhora de túmulos), relativas (v. g. penhora de instrumentos de trabalho fora dos casos ressalvados nas als do n.º 2 do art. 737.º) ou parciais (v. g. penhora de vencimento na sua totalidade). b) a violação do princípio da proporcionalidade. Se forem penhorados mais bens do que os necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, isto é, para além dos limites gerais fixados pelo art. 735.º, n.º 3, pode o executado opor-se à penhora excedentária com fundamento na al. a), 2.ª parte, do n.º 1 do art. 784.º182. Tal acontecerá, desde logo, se for penhorado imóvel ou estabelecimento comercial em situação não abrangida pelo art. 751.º, n.º 3, e por isso constituir penhora excedentária não permitida por lei. O levantamento da penhora, na exata medida em que a mesma se revele desnecessária, deve ser da iniciativa do AE, no âmbito da sua competência genérica para a prática de todas as diligências de execução (n.º 1 do artigo 719.º). Contudo, sendo a questão suscitada pelo executado, em sede do incidente ora em análise, o levantamento será determinado pelo juiz de execução e não pelo AE, a quem competirá, no entanto, a sua realização. c) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda. A al. b) do n.º 1 do art. 784.º contempla situações em que o executado se pode opor à penhora de bens seus que só deviam responder na falta de outros (igualmente seus ou de outro património), se existindo estes, por eles não tiver começado a execução. Enquadra-se, desde logo, na supra referida norma a situação de penhorabilidade real constante do art. 752,º, n.º 1183: o executado pode opor-se à imediata penhora de bens seus que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda, sem previamente se ter verificado a insuficiência dos bens onerados com garantia real. Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ser atingidos pela diligência . Aponta-se aqui para os casos de limitação convencional e legal de responsabilidade184. 182 Tal como se sustenta no ac. do TRL, de 14 de julho de 2011Proc. n.º 28450/08.7YY.LSB-A.L1-7, in www.dgsi.pt. Neste sentido, também o ac. do STJ, de 4 de novembro de 2003, proc. n.º 03A3129, in www.dgsi.pt. 183 Vimos já que neste caso o AE está obrigado a penhorar os bens onerados com garantia real. Cfr., supra, Capítulo III, 2.3.1. 184 Ver capítulo II, 2.
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3.3 Reclamação/impugnação para o juiz O exequente pode reclamar do ato de penhora praticado pelo AE ou impugnar a sua decisão sobre os bens a penhorar (no caso de o AE ainda não ter procedido à penhora e depois de notificado dessa mesma decisão), por meio de requerimento dirigido ao juiz de execução. Quanto ao uso destes meios de reação pelo executado, este é restrito: apenas pode reclamar do ato da penhora se for inadequada a oposição à penhora, por não ter fundamento, e não poderá impugnar a decisão do AE sobre os bens a penhorar, uma vez que não é conhecedor desta antes da realização da penhora (o fator surpresa pode ser crucial para se atingir o fim da execução). Daqui extrai-se que, embora a oposição à penhora constitua um meio de oposição privativo do executado, não é o único. Determina a al. c) do n.º 1 do art. 723.º que ao juiz de execução compete julgar a reclamação ou impugnação, no prazo de dez dias. Do mesmo preceito resulta que o controlo jurisdicional da legalidade dos atos praticados pelo AE e/ou das decisões por ele tomadas, é exercido apenas em um grau, pelo juiz de execução, “sem possibilidade de recurso”, seja qual for a controvertibilidade da matéria em causa e os interesses em litígio185. Tenha-se em atenção que a reclamação do ato do AE ou a impugnação de uma sua decisão para o juiz de execução não suspendem os efeitos do ato ou da decisão de que se tenha reclamado ou impugnado, respetivamente, uma vez que a lei nada determina nesse sentido. No caso de o pedido de intervenção do juiz ser manifestamente injustificado, o juiz pode aplicar multa ao requerente fixada entre 0,5 e 5 UC (n.º 2 do art. 723.º). São suscetíveis de reclamação/impugnação para o juiz: a) O ato da penhora de bens não indicados pelo exequente. Uma vez que a indicação de bens pelo exequente é vinculativa para o AE186, faz todo o sentido que esta parte processual possa reclamar do ato da penhora ou da decisão do AE sobre os bens a penhorar quando, nesses casos, não seja respeitada a sua indicação. Com efeito, qualquer divergência entre o exequente e o AE quanto aos bens que foram ou devem ser penhorados pode ser resolvida com recurso ao juiz de execução. b) A decisão de indeferimento de requerimento dirigido ao AE Tanto o exequente como o executado poderão usar da faculdade de impugnar para o juiz as decisões do AE, nomeadamente quando este indefere requerimento por eles remetido, v. g., requerimento em que o exequente pede ao AE o reforço da penhora; requerimento em que o executado pede ao AE a substituição dos bens inicialmente penhorados (n.º 4 do art. 751.º)187.
185 Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 23.º ed. (atualizada), Lisboa, Ediforum Edições Jurídicas, Lda., 2011, p. 1235. 186 Cfr., supra, Capitulo III, 2.1. 187 Cfr. Rui Pinto, A Ação Executiva…cit., p. 135.
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CONCLUSÕES I. Solicitador e AE detêm conhecimentos em matéria de processo executivo e intervêm de diferente forma na ação executiva: o solicitador, enquanto mandatário do exequente ou do executado; o AE como aquele profissional que detém o poder geral de direção deste tipo de ações. II. A penhora constitui o ato central das execuções para pagamento de quantia certa, e com esta se obtém a individualização e apreensão efetiva dos bens que se destinam aos fins da execução, preparando-se o ato futuro de desapropriação, bem como a conservação dos bens assim individualizados na situação em que se encontram, evitando-se que sejam escondidos, deteriorados ou alienados em prejuízo da execução. III. Previamente à realização da penhora, terão de ser determinados os bens que dela serão objeto, tendo de ser tidos em conta em conta, designadamente, os desvios à regra de que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora: os regimes especialmente estaNo exercício da sua função de belecidos em consequência da separação de patrimódeterminar os bens que irá nios e as impenhorabilidades. sujeitar a penhora, o AE tem de respeitar dois importantes IV. Na vigência do CPC1939 até à RPC2003, era o exequente critérios legais: o princípio da que tinha a responsabilidade pelo sucesso da execução, proporcionalidade e o princípio já que mesmo nos casos em que o executado tinha o da adequação, por força do qual direito de nomear bens à penhora, esse direito transferiao AE deve começar pela penhora -se para o exequente face à inação por parte daquele. Por dos saldos bancários. sua vez, o tribunal limitava-se a reagir aos impulsos do exequente, numa perspetiva de controlo da legalidade. Para assegurar a legalidade da O CPC tem sofrido profundas alterações, desde o penhora efetuada pelo AE, CPC1939, no que toca à parte preliminar da fase da garante-se a intervenção do juiz penhora – determinação dos bens a penhorar – alterade execução no âmbito da ções essas que se revelam positivas. Por um lado, por determinação dos bens a permitirem a participação do exequente sem restrições penhorar. e imporem ao executado o dever de colaborar, sob pena de sujeição a sanção pecuniária compulsória, e por outro, por ter sido atribuído ao AE, um profissional independente e imparcial, a competência para identificar e localizar bens penhoráveis e decidir quais os bens que irá sujeitar à penhora V. Perante um quadro geral de ineficácia do sistema e visando a desjurisdicionalização do processo executivo, com a RPC2003 foi concentrada a atividade de identificação e localização de bens penhoráveis no AE, vulgo Solicitador de Execução (figura aí criada), tendo, nesse sentido, sido abolida a nomeação de bens à penhora com um caráter determinativo do objeto da mesma. A individualização de bens penhoráveis passou a ser
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feita pelo exequente em dois momentos: no requerimento executivo e depois de notificado pelo AE do resultado das consultas prévias à penhora, regime este que foi aperfeiçoado com o DL n.º 226/2008 de 20 de novembro e que foi transposto para o CPC atualmente em vigor. VI. No exercício da sua função de determinar os bens que irá sujeitar a penhora, o AE tem de respeitar dois importantes critérios legais: o princípio da proporcionalidade e o princípio da adequação, por força do qual o AE deve começar pela penhora dos saldos bancários. VII. Sendo o AE, que detém o poder de determinar os bens a penhorar desde a consagração, em 2003, de um novo paradigma da ação executiva, compete-lhe realizar as diligências prévias à penhora, nas quais se incluem a consulta ao registo informático de execuções e as diligências úteis à identificação e localização de bens penhoráveis. VIII. Exercendo o exequente o direito que a lei lhe faculta de indicar bens à penhora, o AE está também vinculado por essa indicação. Com efeito, se a penhora dos bens indicados pelo exequente não desrespeitar os critérios e imperativos legais deve o AE ter em consideração a vontade por ele manifestada. Essa vinculação torna-se ainda mais imperiosa quando com a indicação de bens, o exequente visa produzir um determinado efeito, designadamente beneficiar da dispensa de despacho liminar e de citação prévia, bem como afastar a possibilidade de reclamação de créditos fundada em privilégio creditório geral. IX. O AE está vinculado na sua função de determinar os bens a penhorar pelos imperativos legais constantes do art. 752.º: bens onerados com garantia real e quinhão em património autónomo ou direito em bem indiviso se aferir da conveniência dessa penhora. X. O art. 751.º, n.º 3, que consubstancia um afastamento lícito ao princípio da proporcionalidade, permite a penhora de imóveis ou estabelecimento comercial ainda que não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo desde que reunidos os requisitos previstos nas suas várias alíneas. Na sua aplicação pelo AE, deve a vontade do exequente ser determinante, pelo que se este não pretender dela beneficiar, deve o AE promover a penhora de outros bens que não aqueles. XI. Mesmo após a efetivação da penhora, pode verificar-se a necessidade de o AE a reforçar ou substituir, o que acontecerá em casos taxativamente previstos na lei. O processamento e decisão dos incidentes de reforço e substituição é outra das competências do AE no âmbito do seu poder de determinação dos bens a penhorar, exceto quando o executado requeira a substituição dos bens penhorados nos termos do art. 751.º, n.º 4, al. a) e também se oponha à penhora. Nessa situação, o AE remete o requerimento e a oposição ao juiz para decisão (art. 751.º, n.º 5).
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XII. Para assegurar a legalidade da penhora efetuada pelo AE, garante-se a intervenção do juiz de execução no âmbito da determinação dos bens a penhorar. Concretamente, essa intervenção concretiza-se após a insatisfação evidenciada pelo executado/exequente quanto ao ato da penhora: compete-lhe julgar as oposições à penhora, as reclamações do ato da penhora e impugnações da decisão do AE sobre os bens a penhorar. Estes são os meios de reação à penhora ao dispor das partes processuais, sendo a oposição à penhora um meio exclusivo do executado. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
– A Reforma da Ação Executiva, Lisboa, LEX, 2004. – “Aspetos Gerais da Reforma da Ação Executiva”, Cadernos de Direito Privado, N.º 4/OutubroDezembro (2003), Braga, CEJUR, pp. 3-25. – “ Novas Tendências de Desjudicialização na Ação Executiva: o Agente de Execução como Órgão da Execução”, Cadernos de Direito Privado, N.º Especial 01/dezembro 2010, pp. 3-9. – “Os Paradigmas da Ação Executiva”, Revista da Ordem dos Advogados, II, 2001, pp. 543-545 e 440-552. VARELA, J. Antunes, Das Obrigações em Geral, vol. II, reimpressão da 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003. VASCONCELOS, L. M. Pestana de, Direito das Garantias, Coimbra, Almedina, 2010. VV.AA., “Debate – A Reforma do Processo Civil 2012: Contributos”, Cadernos da Revista do Ministério Público, N.º 11 (2012), Lisboa, SMMP. – Julgar, Coimbra Editora, Lisboa, N.º 16 (JaneiroAbril 2012).
Diana Leiras
Lista de Jurisprudência Os acórdãos são indicados segundo a ordem com que foram mencionados no estudo, tendo em atenção a sua fonte. www.dgsi.net: – Ac. do TRG, de 22 de fevereiro de 2006, proc. n.º 192/06-2; – Ac. do STJ, de 23 de junho de 1992, proc. n.º 082647; – Ac. do STJ, de 15 de dezembro de 1998, proc. n.º 98A880; – Ac. do TRP, de 6 de maio de 1999, proc. n.º 9930610; – Ac. do TRP, de 2 de julho de 1998, proc. n.º 9850543; – Ac. do TRP, de 29 de março de 2011, proc. n.º 1921/07.5TBVCD.P1; – Ac. do TRE, de 17 de maio de 2007, proc. n.º 586/07-3; – Ac. do TRP, de 7 de dezembro de 1995, proc. n.º 9531017; – Ac. do TRL, de 25 de junho de 1998, proc. n.º 0030862; – Ac. do TRP, proc. n.º 0220783 de 18 de junho de 2002; – Ac. do TRC, de 5 de junho de 2001; – Ac. do TRL, de 11 de maio de 2006, in proc. n.º 0632423; – Ac. do STJ, de 27 de outubro de 1998, proc. n.º 98A960; – Ac. do TRL, de 3 de dezembro de 1992, proc. n.º 0047376; – Ac. do TRL, de 12 de Maio de 2009, proc. n.º 82051/05.6YYLSB-A.L1-1; – Ac. do TRL, de 15 de outubro de 2009, proc. n.º 21623/04.3YYLSB-A.L1-2; – Ac. do TRL, de 18 de junho de 2009, proc. n.º 47467/06.0YYLSB-B.L1-6;
– Ac. do TRL, de 24 de junho de 2008, proc. n.º 5213/2008-1; – Ac. do TRL, de 29 de novembro de 2007, proc. n.º 9974/2007-8; – Ac. do TRL, de 5 de março de 2009, proc. n.º 4490/06.0YYLSB-2; – Ac. do TRL, de 16 de junho de 2009, proc. n.º 10156/05.0YYLSB-A.L1-7; – Ac. do TRC, de 29 de fevereiro de 2012, proc. n.º 5457/09.1T”AGD-B.C1; – Ac. do TRP, de 17 de março de 2009, proc. n.º 0828012; – Ac. do TRL de 31 de outubro de 2000, proc. n.º 0052531; – Ac. do TRL, de 14 de julho de 2011, proc. n.º 28450/08.7YY.LSB-A.L1-7; – Ac. do STJ, de 4 de novembro de 2003, proc. n.º 03A3129; – Ac. do TRL, de 7 de julho de 2009, proc. n.º 9713/06.2YYLSB-B.L1. CJ/STJ, Ano XII, T.III/2004, pp. 98 ss: – Ac. do STJ, de 2 de novembro de 2004. BMJ n.º 251, p. 163: – Ac. do STJ, de 25 de novembro de 1975. BMJ, n.º 252, p. 123: – Ac. do STJ de 2 de dezembro de 1975. BMJ, n.º 416, p. 712: – Ac. do TRP, de 9 de abril de 1992.
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Determinação Dos Bens A Penhorar (reflexões)
Abreviaturas ac. – acórdão al./als. alínea/alíneas art./arts. – artigo/artigos AE – Agente de Execução/Agentes de Execução BMJ – Boletim do Ministério da Justiça CC – Código Civil CCJ – Código das Custas Judiciais cfr. – Confira CIRE – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas CIMI – Código do Imposto Municipal sobre Imóveis cit. – citada CJ – Coletânea de Jurisprudência CPC – Código de Processo Civil em vigor, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho CPC1939 – Código de Processo Civil de 1939 CPC1961 – Código de Processo Civil de 1961 CPC1985 – Código de Processo Civil de 1985 CPC1995 – Código de Processo Civil de 1995 CPEE – Comissão Para a Eficácia das Execuções CPC2003 – Código de Processo Civil de 2003 CPC2009 – Código de Processo Civil com as alterações introduzidas pelo DL n.º 226/2008, de 20 de novembro CPPT – Código de Procedimento e Processo Tributário CRP – Código de Registo Predial
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
DL – Decreto-Lei ECS – Estatuto da Câmara dos Solicitadores Ed. – edição EIRL – Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada GPESE – Gestão Processual de Escritórios de Solicitadores de Execução n.º/n.os – número/números ob. – obra p./pp. – página/páginas Port. – Portaria proc. – processo SISAE – Sistema informático de suporte à atividade dos agentes de execução TRC – Tribunal da Relação de Coimbra TRE – Tribunal da Relação de Évora TRG – Tribunal da Relação de Guimarães TRL – Tribunal da Relação de Lisboa TRP – Tribunal da Relação do Porto RCP – Regulamento das Custas Processuais RPC2003 – Reforma de Processo Civil de 2003 Ss – seguintes STJ – Supremo Tribunal de Justiça UC – Unidade de Conta v. g. – verbi gratia (por exemplo) vol. – volume
O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL
FILIPA ISABEL SOARES DA SILVA VIEIRA Solicitadora e docente da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria.
TRABALHO DISTINGUIDO COM O SEGUNDO PRÉMIO
INTRODUÇÃO
É
amplamente reconhecido que o conhecimento e os níveis de educação da população são um fator chave na economia, sendo determinantes no crescimento económico registado pelos países mais avançados, ao ponto desta interligação ser analisada nas diversas teorias económicas existentes. Portugal tem um nível médio de escolaridade abaixo do da União Europeia, o que é visto por muitos como um dos fatores do fraco crescimento do nosso país. Nesse sentido foram desenvolvidos diversos mecanismos legais que permitem aos cidadãos adquirir formação técnica e profissional, bem como retomar e continuar os seus estudos com vista à obtenção de um grau académico. A existência de níveis de escolaridade mais elevados é sem dúvida uma mais-valia para a sociedade, em geral, e para o cidadão, em particular, pois permite que a população ativa tenha mais possibilidades de obtenção de emprego e, bem assim, aos que já trabalham permite aprender novos métodos de produção, reciclar conhecimentos, adaptar-se a novas funções, o que, por sua vez, traz 111
O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL
RESUMO O regime jurídico do trabalhador estudante promove a formação contínua do trabalhador através da compatibilização do estudo com o desenvolvimento da sua atividade profissional. No âmbito do referido regime encontram-se previstos diversos benefícios que o trabalhador estudante pode usufruir, se preencher os requisitos para a sua atribuição. Com este trabalho pretendemos analisar os direitos e deveres presentes no regime jurídico do trabalhador estudante português, espanhol e italiano e, consequentemente, compreender que implicações podem surgir na prestação da atividade laboral. Não podemos olvidar, contudo, que a consagração do regime do trabalhador estudante tem consequências na organização da atividade laboral da empresa, visto que o referido regime implica, na maioria das vezes, uma ausência do trabalhador do seu local de trabalho, o que nos levará a uma tentativa de encontrar um novo paradigma para a atribuição de benefícios ao trabalhador estudante, no qual tentamos consagrar não só direitos para o trabalhador mas também para a empresa. “Se acha que a educação é cara, experimente a ignorância” Dereck Bok
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
Filipa Isabel Soares Da Silva Vieira
benefícios para a competitividade das empresas, que estão em constante e rápida mutação e contribui para o desenvolvimento de uma sociedade mais equitativa. Os trabalhadores que pretendam ampliar as suas habilitações académicas têm ao seu dispor um regime jurídico que lhes permite a compatibilização dos estudos e do trabalho, podendo realizar, em conjunto, as duas atividades. Este regime, que vai ser o nosso objeto de estudo, ficou conhecido como o estatuto do trabalhador estudante. De facto, podíamos falar em “estatuto do trabalhador estudante” enquanto estava em vigor uma lei avulsa e autónoma que especificamente o criou. No entanto, apesar do legislador continuar a falar nalguns artigos do Código do Trabalho de “estatuto”, a partir do momento que se procedeu à codificação e sistematização das leis laborais num Código do Trabalho, em bom rigor, deixa de existir um estatuto do trabalhador estudante e passa a existir um regime jurídico que consagra um conjunto de normas específicas para os trabalhadores estudantes. A coexistência do estudo e do trabalho é facilitada por um conjunto de normas que preveem direitos para os trabaA coexistência do estudo lhadores estudantes e que se concretizam numa prestação e do trabalho é facilitada da atividade laboral mais flexível, nomeadamente no ajustapor um conjunto de normas mento do tempo de trabalho, no regime de faltas justificaque preveem direitos para os das para frequência a provas de avaliação e na marcação de trabalhadores estudantes e que férias e utilização da licença sem retribuição. se concretizam numa prestação A necessidade de Portugal possuir mão-de-obra mais da atividade laboral mais flexível. qualificada, pode determinar que mais trabalhadores pretendam beneficiar dos direitos previstos no regime jurídico do trabalhador estudante. Em consequência da atribuição desses direitos, podem surgir conflitos no interior das empresas porque estas se veem privadas dos seus trabalhadores, o que acarreta, por vezes, dificuldades e custos de funcionamento acrescidos para a empresa. Neste contexto, a contraposição dos direitos e deveres de ambas as partes da relação laboral, a sua forma de exercício e os conflitos que daí podem surgir levam-nos a considerar relevante o estudo do presente tema. Este trabalho tem como objetivo analisar o regime jurídico do trabalhador estudante, perceber a importância que o mesmo representa não só para os trabalhadores mas também para a sociedade, contextualizar a sua consagração na ordem jurídica portuguesa tendo por base diplomas internacionais ratificados por Portugal, compreender as suas implicações ao nível do funcionamento e organização interna das empresas e, bem assim, apresentar sugestões de alteração ao atual regime. No sentido de concretizarmos o nosso trabalho, o método utilizado apoia-se na revisão de literatura, no estudo do enquadramento legal do trabalhador estudante e na análise de jurisprudência. O presente trabalho encontra-se estruturado em quatro capítulos: – No primeiro capítulo pretendemos demonstrar a importância que a educação e o nível de qualificações das pessoas têm para o aumento da produtividade das empresas e para o crescimento de um país. Pretendemos também definir claramente o nosso objeto de estudo distinguindo-o de uma figura jurídica semelhante, a formação profissional.
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O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL
– No segundo capítulo contextualizamos o regime jurídico do trabalhador estudante ao nível das Convenções Internacionais, do Direito Europeu e da Constituição da República Portuguesa. – No terceiro capítulo analisamos os direitos e deveres que o referido regime contém e destarte abordamos os efeitos que o mesmo pode ter na composição do quadro de pessoal disponível de uma empresa. – No quarto e último capítulo pretendemos demonstrar que as normas do regime jurídico do trabalhador estudante não são contrárias à nossa Constituição mas, ainda assim, têm um grande impacto ao nível das empresas, principalmente nas micro e pequenas empresas. Nesse sentido, apresentamos algumas propostas com vista a compensar as empresas pelo facto de o trabalhador estudante ter menos disponibilidade de tempo para prestar trabalho.
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Filipa Isabel Soares Da Silva Vieira
CAPÍTULO 1
DA IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO E DO NÍVEL DE QUALIFICAÇÕES
Antes do início do estudo do regime jurídico do trabalhador estudante consideramos relevante fazer uma pequena análise das implicações que a educação e os níveis de escolaridade têm na produtividade e no crescimento económico e social, ajudando-nos a perceber a necessidade de criação de regras próprias para os trabalhadores estudantes.
1.1 A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO E CRESCIMENTO ECONÓMICO E SOCIAL Existem diversos fatores que contribuem para o crescimento e desenvolvimento económico, sendo generalizadamente aceite que a educação e a formação dos cidadãos ocupam um papel relevante na promoção do desenvolvimento económico e social. A relação entre o desenvolvimento dos recursos humanos (entenda-se formação e educação) e o crescimento económico assumiu particular importância no contexto da ciência económica na década de 60, com a human capital investment revolution in economic thought1. Ao falarmos da interligação entre recursos humanos e crescimento é incontornável a abordagem, ainda que sumária, das contribuições de alguns economistas sobre teorias de crescimento económico. Assim, Theodore Shultz e Gary Becker desenvolveram as Teorias do Capital Humano2, nas quais deram destaque à importância do capital humano no crescimento económico, ao passo que, Jacob Mincer desenvolveu o modelo de Mincer, no qual concluiu que o aumento do nível médio de escolaridade era determinante no aumento do rendimento salarial, o qual contribuía para o crescimento económico e, consequentemente, para uma melhoria do nível de vida3. Não obstante estas teorias, J. Benhabid e M. Spiegel, num estudo empírico, concluíram que, nalguns países, não é possível encontrar uma relação entre crescimento económico e evolução do capital humano. Esta controvérsia tem sido motivo de grande preocupação entre os investigadores económicos, dadas as suas implicações para a orientação das políticas governamentais. Ainda assim, a esmagadora maioria das teorias de crescimento e dos economistas atestam a favor dos efeitos altamente positivos do desenvolvimento da educação e do contributo positivo, para o crescimento económico, que as taxas de escolaridade elevadas proporcionam4. 1 RODRIGUES, Ana Sofia Domingues, «Ensaio sobre a literatura de análise dos efeitos da educação no crescimento económico», Gestão e Desenvolvimento, 12, Universidade Católica Portuguesa, Instituto Universitário de Desenvolvimento e Promoção Social, 2004, p. 200. 2 No sentido de uma análise mais detalhada, vide, BECKER, Gary, Human Capital: A theoretical and empirical analysis with special reference to education, 3rd edition, The University of Chicago Press, Chicago, 1993, e RODRIGUES, Ana Sofia Domingues, «Ensaio sobre …», op. cit., p. 200. 3 MINCER, Jacob, Schooling, experience and earnings, Columbia University Press, 1974, pp. 1-4 e 45, disponível em http://papers.nber.org/books/minc74-1, último acesso a 31/03/2014. 4 Para o desenvolvimento mais aprofundado das teorias de crescimento económico, vide, RODRIGUES, Ana Sofia Domingues, «Ensaio sobre…», op. cit., pp.199-218.
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O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL
Existe uma relação positiva entre os níveis de educação e o desenvolvimento de um país, porque o investimento na educação pode permitir alcançar um maior nível de desenvolvimento, uma vez que estimula a formação de mão-de-obra qualificada capaz de se adaptar às novas exigências das sociedades industriais e a consequente atualização do processo produtivo5. De igual modo, um nível de educação mais elevado permite aumentar as capacidades e oportunidades das populações, ajuda na criação de riqueza e redução da pobreza, o que contribui para uma sociedade mais justa e equitativa6. De igual modo, o Banco de Portugal7 reconhece que a educação é crucial no processo de desenvolvimento económico e social, afirmando que o crescimento económico requer uma população de trabalhadores, empresários e gestores com elevado nível de escolaridade, pois só dessa maneira se potencia a criação, adoção e desenvolvimento de novas ideias. A mesma Instituição reforça que a educação é um dos fatores que mais impacto tem na produtividade do trabalho, alertando que as economias que mais progrediram foram aquelas que investiram na educação da sua população ativa. Neste sentido a educação “é um meio de promover atitudes e comportamentos favoráveis ao desenvolvimento económico”8, pois possibilita a transformação dos padrões culturais que impedem a entrada da inovação exigida pelo crescimento económico (ou seja, permite uma abertura de mentalidades) e promove a criatividade, a iniciativa, a eficácia e permite desenvolver valores de empreendedorismo e de realização pessoal, que têm uma influência positiva no crescimento económico.
1.2 O ATRASO NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL E A FALTA DE PRODUTIVIDADE Tendencialmente, países economicamente mais evoluídos têm taxas de frequência escolar elevada em todos os níveis de ensino. Nesse sentido, o Conselho da União Europeia9, salienta que o investimento na educação e na formação para o desenvolvimento de competências dos cidadãos é essencial para estimular o crescimento e a competitividade, referindo que as competências profissionais são determinantes para a União Europeia aumentar a sua produtividade, podendo as competências adquiridas pelos cidadãos desenvolver a inovação e o crescimento, incrementar a produção e modelar o mercado de trabalho no futuro. GOMES, António Sousa, «O desenvolvimento socioeconómico e a Educação», Revista de Análise Social, n.º 7 e 8, Vol. II, 1964, pp. 654, 662, 666 e 667. 6 CALEIRO, António, «Educação e Desenvolvimento: que tipo de relação existe?», Livro de Atas do I Encontro Luso-Angolano em Economia, Sociologia e Desenvolvimento Rural, Organização do Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia, Ciências Agrárias Mediterrânicas e Federação das Associações Angolanas em Portugal, Universidade de Évora, Maio, 2009, pp. 136-139. 7 ALVES, Nuno, CENTENO, Mário e NOVO, Álvaro, «O Investimento em educação em Portugal: retornos e heterogeneidade», Boletim Económico do Banco de Portugal, Volume 16, n.º 1, Primavera, 2010, pp. 9-10, disponível em www. bportugal.pt, último acesso a 31/03/2014. 8 SILVA, M. e TAMEN, M. [Coord.], «Educação e desenvolvimento económico e social», Sistema de Ensino em Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981, pp. 564-565. 9 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, Conclusões do Conselho sobre o investimento na educação e na formação — Uma resposta à Comunicação Repensar a Educação: Investir nas competências para obter melhores resultados socioeconómicos e à Análise Anual do Crescimento de 2013, pp. 5-8. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2013:064:FULL:PT:PDF, último acesso a 31/03/2014. 5
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
Filipa Isabel Soares Da Silva Vieira
A mesma ideia é defendida na publicação regular da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, doravante designada OCDE, “Education Indicators in Focus”10, onde se refere que existem benefícios de longo prazo ao investir na educação de nível superior, tanto para os indivíduos como para os países, benefícios esses que vão muito além da sua contribuição para a empregabilidade ou aumento do salário dos trabalhadores. A título de curiosidade, a mesma publicação relata que, tendo como referência 25 países da OCDE, o ganho económico para as pessoas com educação de nível superior é duas vezes maior do que para aqueles que só possuem a educação secundária. Em média, nesses países da OCDE, a vantagem económica a longo prazo para um indivíduo que tenha o ensino superior, ao invés de apenas a educação secundária, é de mais de 175 000 dólares, para os homens, e de mais de 110 000 dólares, para as mulheres. Ainda assim é notório, não obstante o investimento, consciencialização e legislação emanada dos diversos organismos nacionais e europeus na promoção da igualdade de géneros, que as diferenças a nível salarial continuam bastante acentuadas. Tendo em conta todos estes aspetos, a OCDE analisou a educação portuguesa numa relação restrita com o mercado laboral e referiu, no seu Relatório sobre a Economia Portuguesa 201211, que a falta de produtividade em Portugal se deve aos baixos níveis de educação da mão-de-obra. Refere ainda que os baixos níveis de escolaridade impedem que os trabalhadores rapidamente aprendam e se adaptem a uma economia global que está em constantes mudanças. Não obstante os aspetos referidos, o mesmo organismo considera que, ainda assim, começamos a ver sinais positivos e evolutivos dos últimos anos de reformas, nomeadamente, nos resultados dos alunos portugueses no programa de avaliação internacional PISA12, que já nos aproximam da média da OCDE. Segundo a OCDE, Portugal é um dos países que apresenta maiores desigualdades salariais motivadas pelas habilitações literárias dos trabalhadores, sendo certo que pessoas que possuem níveis superiores de educação têm vantagens salariais significativas. Por conseguinte, defende aquela organização, que é necessário melhorar as oportunidades e resultados educativos das crianças de condições socioeconómicas mais desfavorecidas, devendo existir orientação vocacional adequada para os alunos e uma relação próxima entre as escolas e as empresas com o intuito de se garantir que a formação frequentada é relevante para o mercado de trabalho. No sentido de percebermos o alcance do relatório da OCDE e restantes recomendações, é conveniente compararmos as estatísticas, existentes em Portugal, ao nível da 10 OCDE, «Quais são os retornos do ensino superior para os indivíduos e para os países?» Education Indicators in Focus, Junho, 2012, pp. 1-4, disponível em http://www.oecd.org/edu/skills-beyond-school/INDICADORES%20EDUCACIONAIS%20EM%20FOCO%20N%C2%B06.pdf, último acesso a 31/03/2014 e OCDE, «Quais são os benefícios sociais da aprendizagem?», Education Indicators in Focus, Janeiro, 2013, pp. 1-4. Disponível em http://www.oecd.org/edu/skills-beyond-school/INDICADORES%20EDUCACIONAIS%20EM%20FOCO%20 N%C2%B010.pdf, último acesso a 31/03/2014. 11 OCDE, Economic Surveys: Portugal, Julho, 2012, p. 21, disponível em http://www.oecd.org/eco/surveys/PORTUGAL_2012_Overview.pdf, último acesso a 30/04/2014. 12 PISA – Programme for International Student Assessement, este programa pretende avaliar os sistemas educativos em mais de 70 países através de testes de leitura, matemática e ciências a crianças de 15 anos.
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O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL
educação, com a média da União Europeia (de ora em diante designada UE). Os gráficos seguintes foram por nós elaborados com base nos dados estatísticos do Eurostat, disponíveis em http://epp.eurostat.ec.europa.eu. GRÁFICO 1 Percentagem de abandono escolar ABANDONO ESCOLAR PORTUGAL ............... 20,8%
MÉDIA UE ............... 12,7%
Fonte: Eurostat
GRÁFICO 2: Percentagem de população com escolariedade abaixo do ensino secundário POPULAÇÃO COM ESCOLARIDADE ABAIXO DO ENSINO SECUNDÁRIO PORTUGAL ............... 62,4%
MÉDIA UE ............... 25,8%
Fonte: Eurostat
GRÁFICO 3: Percentagem de população que concluiu o ensino secundário POPULAÇÃO QUE CONCLUI O ENSINO SECUNDÁRIO PORTUGAL ............... 37,6%
Fonte: Eurostat 118
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MÉDIA UE ............... 74,2%
Filipa Isabel Soares Da Silva Vieira
GRÁFICO 4: Percentagem de população que concluiu o ensino superior POPULAÇÃO QUE CONCLUIU O ENSINO SUPERIOR PORTUGAL ............... 16,8%
MÉDIA UE ............... 24,4%
Fonte: Eurostat
Face aos resultados apresentados, continua a ser atual a afirmação de Roberto Carneiro, segundo o qual “é notória – e reconhecida- a exceção portuguesa em matéria de baixas qualificações, condição que tristemente distingue o nosso país dos demais países europeus”13, o que debilita uma economia em plena era da informação e do conhecimento. Efetivamente, os níveis de educação da população ativa portuguesa ainda estão muito abaixo da média europeia. As baixas qualificações afetam quer os mais velhos, quer uma significativa franja de jovens, e os valores ao nível do ensino secundário também têm que ser melhorados, o que deixa antever um longo caminho a percorrer14. No entanto, ao nível do ensino superior já verificamos uma maior proximidade de Portugal com a média da UE. Os motivos que orientam o ingresso no ensino superior são vários, nomeadamente: obtenção de um grau académico que permite uma melhor colocação no mercado de trabalho; realização pessoal; progressão da carreira; continuação dos estudos e alargar de conhecimentos, entre outros. O problema das baixas qualificações em Portugal é consensualmente reconhecido como um fator determinante, senão mesmo o mais determinante, para os reduzidos níveis de crescimento e para a perda de competitividade da economia portuguesa15. Estas debilidades das qualificações da população ativa são ainda mais graves quando assistimos a uma remodelação do padrão de especialização produtiva e à rápida transição de uma boa parte do tecido empresarial para um novo modelo de competitividade que já não apela à mão-de-obra barata e à contratação de trabalhadores com baixas qualificações. Vivemos hoje numa economia baseada no conhecimento, onde há uma preferência pelos trabalhadores mais qualificados, que estão melhor preparados para o trabalho, visto que detêm “competências gerais para lidar com o conhecimento codificado e podem ser 13 AAVV [CARNEIRO, Roberto (Coord.)], Estudo Comparado de qualificações (Skills Audit), Coleção Cogitum n.º 28, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Gabinete de Estratégia e Planeamento, Lisboa, 2007, [resumo]. 14 Para um maior aprofundamento do nível de qualificações em Portugal, vide, AAVV [MIGUÉNS, Manuel (Coord.)], Estado da Educação 2011. A qualificação dos Portugueses, Conselho Nacional de Educação, 2011. 15 AAVV [CARNEIRO, Roberto (Coord.)], Baixas qualificações em Portugal, Coleção Cogitum n.º 29, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Gabinete de Estratégia e Planeamento, Lisboa, 2007, p. 47.
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agentes fundamentais na geração de um próprio conhecimento”16. Nestes termos, qualquer política de desenvolvimento económico e de promoção de crescimento de um país exige mão-de-obra mais qualificada. Assim, no sentido de tentarmos aproximar o nível de qualificação dos nossos trabalhadores da média da UE, deve haver uma reorientação das políticas públicas e empresariais na área da educação, formação e qualificação profissional, de modo a podermos garantir uma melhor qualidade de emprego, aumentar a competitividade das nossas empresas e consequentemente aumentar a produtividade em Portugal. Neste contexto, a opção, entre outras, de aumentar a escolaridade obrigatória para o 12.º ano (considerado por muitos como o mínimo necessário), introduzida pela Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, acarreta um enorme potencial de transformação para o desenvolvimento sustentável17 da sociedade, além de permitir uma equidade e mobilidade social, pode levar a sociedade para padrões de maior riqueza produtiva e para limiares de mais justiça ao nível salarial do qual resultará uma melhoria do nível de vida, pois permite a redução da pobreza, melhora o acesso a cuidados de saúde, faculta o acesso a melhor educação e, em geral, permite uma melhoria generalizada do bem-estar pessoal e social. Também a aprendizagem ao longo da vida (de ora em diante, ALV) tem assumido cada vez mais importância no contexto social e empresarial. De facto, a ALV constitui um objetivo europeu estratégico, inicialmente definido na Estratégia de Lisboa, e confirmado na Estratégia Europa 202018. A ALV consiste em “toda e qualquer atividade de educação e formação proporcionada a uma pessoa ao longo da vida que lhe permite a aquisição, atualização e adaptação permanente dos seus conhecimentos, qualificações e competências”19. Neste sentido, a ALV é um conceito que compreende a participação em alguma atividade de educação formal (ministrada em instituições de ensino, conducente à obtenção de um nível de escolaridade) ou não formal (atividade organizada de formação, profissional ou outra, numa dada área de competências, mas que não equivale a um nível de escolaridade)20. O crescente interesse que tem sido dado a este novo conceito, deve-se à contribuição positiva que o investimento em capital humano (aumento das qualificações e competências da população ativa) tem sobre o crescimento económico, mas também pelos benefícios sociais que a formação adquirida ao longo da vida gera sobre os cidadãos de um país. AAVV [CARNEIRO, Roberto (Coord.)], Baixas qualificações…, op. cit., [resumo] e p.10. “A educação para o desenvolvimento sustentável é um processo em que se aprende a tomar decisões que tenham em consideração a igualdade, a economia e a ecologia de todas as comunidades. A educação fortalece a capacidade de reflexão orientada para o futuro.” Para um maior aprofundamento da relação entre educação e desenvolvimento sustentável, vide, relatório da UNESCO: Década da Educação das Nações Unidas para um Desenvolvimento Sustentável, 2005-2014: documento final do esquema internacional de implementação, UNESCO, Brasília, 2005, pp. 43-44, disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001399/139937por.pdf, último acesso a 01/04/2014. 18 INSTITUTO NACIONAL de ESTATÍSTICA, Aprendizagem ao Longo da Vida – Inquérito à formação e educação de adultos, Edição 2013, Lisboa, p. 15. 19 AAVV [COSTA, Júlia (Coord.)], Aprendizagem ao Longo da Vida, Coleção Cadernos Sociedade e Trabalho, 10, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Gabinete de Estratégia e Planeamento, 2007, p. 93. 20 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, Bruxelas, 2000, p. 9, disponível em https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000033814/, último acesso a 20/04/2014. Além destes dois tipos de aprendizagem o Memorando fala também de “Aprendizagem informal”, esta ocorre de forma natural na vida quotidiana e contrariamente à aprendizagem formal e não formal, este tipo de aprendizagem não é necessariamente intencional e, como tal, pode não ser reconhecida, como enriquecimento dos conhecimentos e aptidões de cada indivíduo. 16 17
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Deste modo, a importância da ALV para a competitividade, empregabilidade, cidadania e desenvolvimento pessoal é uma linha assumida nas orientações de política que norteiam o investimento em capital humano21. Neste contexto, a ALV é já considerada um pilar básico da cidadania e da empregabilidade, razão pela qual é importante aprofundar a sua relação com contextos de aprendizagem e de trabalho: só a ALV pode constituir o fundamento de uma empregabilidade ao longo da vida. O processo de aprendizagem contínua, ao longo do ciclo de vida das pessoas, é fundamental para manter e desenvolver competências, sendo considerado um mecanismo importante para a adaptação às mudanças estruturais do mercado de trabalho e da sociedade em geral, bem como ao progresso técnico e tecnológico, para a manutenção do emprego ou para melhorar as persO processo de aprendizagem petivas de carreira22, permitindo que cada pessoa se prepare contínua, ao longo do ciclo de para ser um ativo duradouro no mercado de trabalho. vida das pessoas, é fundamental Assim, o aumento do nível da educação permite fornecer à para manter e desenvolver sociedade mão-de-obra qualificada, que possibilita um maior competências, sendo considerado crescimento económico e consequentemente, o aumento da um mecanismo importante para a produtividade. A educação continua a ser a chave para a prosadaptação às mudanças peridade e coesão social, no entanto, mais qualificações estruturais do mercado de podem não ser sinónimo imediato de maior produtividade e trabalho e da sociedade de acrescida coesão social, visto existirem condicionantes culem geral. turais e organizacionais que nem sempre permitem observar os efeitos dessa interligação a curto prazo, por um lado, porque o impacto do investimento em educação pode ser diferente de país para país devido aos contextos institucionais específicos de cada um, e por outro lado, nalguns países, a qualidade do ensino é tão baixa, que não há efetiva transmissão de conhecimentos, podendo ocorrer, como refere Pritchett, que “vários anos de escolaridade não criam nenhum capital humano”23.
1.3 O REGIME JURÍDICO DO TRABALHADOR ESTUDANTE E FORMAÇÃO PROFISSIONAL CONTÍNUA DOS TRABALHADORES NO ÂMBITO DO CÓDIGO DO TRABALHO Compreendendo os aspetos sumariamente indicados, conseguimos perceber que a educação, o nível de qualificações e o aperfeiçoamento profissional se vão tornando fundamentais, não só em termos gerais para a produtividade de um país, mas cada vez mais, a título particular para cada cidadão. 21 Exemplos da importância da ALV são o Livro Branco que consagrou o ano de 1996 como “Ano Europeu da Educação e da Formação ao Longo da Vida”; o Memorando da Comissão das Comunidades Europeias sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, divulgado em Novembro de 2000 e o Inquérito à Educação e Formação de Adultos – Aprendizagem ao longo da vida do Instituto Nacional de Estatística de Portugal de 2013. 22 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, Memorando…, op. cit., pp. 3-4 e 7. 23 PRITCHETT, Lance, Where has all the education gone?, World Bank and Kennedy School of Government, revised December 2000, p. 1, disponível em http://www.hks.harvard.edu/fs/lpritch/Education%20-%20docs/ ED%20-%20Econ%20Growth,%20impact/where%20has%20all%20the%20education%20gone.pdf, último acesso a 30/04/2014.
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Interessa por isso criar, estatuir, legislar e concretizar diversas formas que possibilitem “dotar a mão-de-obra de competências, que correspondam às necessidades do sistema produtivo”24. Devido à urgência, assinalada por todos os organismos25, na qualificação e formação da população ativa, existe atualmente uma grande variedade de ofertas educativas e formativas para jovens, adultos, ativos empregados, ativos desempregados, ativos com necessidades especiais, entre outros. Havendo uma ampla diversidade de cursos e formações, vamos limitar a nossa abordagem inicial à distinção entre duas modalidades que podem ocorrer no contexto da empresa: a formação contínua por iniciativa do trabalhador e a formação contínua por iniciativa do empregador26. As empresas assumem através do desenvolvimento de modelos de organização e de investimento em formação profissional27 contínua28 um papel muito relevante. A mesma ideia é defendida por Pedro Romano Martinez que refere que é “imperativo que seja dada adequada formação profissional aos trabalhadores para aumentar a produtividade e diminuir os acidentes de trabalho”29.
24 CARVALHO, Catarina de Oliveira, Da Dimensão da Empresa no Direito do Trabalho, Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer, Coimbra, 2011, p. 323. 25 CARVALHO, Catarina de Oliveira, Da Dimensão…, op. cit., pp. 324-325, refere que diversos estados membros da UE começaram a adotar medidas de desenvolvimento de formação profissional, tendo sido criadas políticas de formação estimuladas pelo Fundo Social Europeu e pelo Comité Consultivo para a formação profissional. A nível nacional existiam muitas referências à necessidade de formação no seio das Pequenas e Médias Empresas tendo sido aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 173/2007, de 7 de novembro, relativa à reforma da formação profissional que deu posteriormente origem ao DL n.º 396/2007, de 31 de dezembro, que estabelece o Regime Jurídico do Sistema Nacional de Qualificações. 26 AFONSO, Maria da Conceição [Coord.] e FERREIRA, Fernanda, O Sistema de Educação e Formação Profissional em Portugal – descrição sumária, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Direção Geral do Emprego e das Relações de trabalho, Cedefop, 2007, pp. 31-32. 27 A noção de formação profissional e a delimitação do seu conceito tem-se mostrado difícil. Se atendermos ao que nos diz Luís Gomes Centeno, cada organismo tem o seu próprio conceito de formação profissional, tornando-se evidente que não existe uma definição única e comum, vide, AAVV [CENTENO, Luís Gomes (Coord.)], Estudo sobre o retorno da formação profissional, Coleção Cogitum n.º 30, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, Gabinete de Estratégia e Planeamento, Lisboa, 2007, pp. 8-9. Não obstante esse aspeto, J. Soares Ribeiro considera que a formação profissional “é o processo global e permanente através do qual jovens e adultos, a inserir ou inseridos na vida ativa, se preparam para o exercício de uma atividade profissional. Essa preparação consiste na aquisição e desenvolvimento das competências e atitudes mais adequadas ao desempenho profissional”. O mesmo autor refere ainda que “tanto é formação profissional a inserida no sistema educativo, como a inserida no mercado de trabalho”, vide, RIBEIRO, J. Soares, «Formação Contínua dos Trabalhadores», Minerva – Revista de Estudos Laborais, Ano VI, n.º 10, Março, 2007, p. 25. 28 Há, pelo menos, duas modalidades de formação profissional: a formação inicial, que visa a “aquisição de saberes, competências e capacidades indispensáveis para poder iniciar o exercício qualificado de uma atividade profissional” (art. 3.º, alínea j) do Decreto-Lei n.º 396/2007, de 31 de dezembro); e a formação contínua, que é definida amplamente como “a atividade de educação e formação empreendida após a saída do sistema de ensino ou após o ingresso no mercado de trabalho que permita ao indivíduo aprofundar competências profissionais e relacionais, tendo em vista o exercício de uma ou mais atividades profissionais, uma melhor adaptação às mutações tecnológicas e organizacionais e o reforço da sua empregabilidade” (alínea g) do mesmo artigo). No nosso estudo abordamos, sumariamente, a formação profissional contínua no contexto da empresa, que é aquela a que o nosso Código do Trabalho dá mais ênfase em termos de regulamentação, a qual podemos definir concretamente como a “formação realizada ao longo da vida profissional, e destinada a propiciar a adaptação às mutações tecnológicas, organizacionais ou outras, favorecer a promoção profissional, melhorar a qualidade do emprego e contribuir para o desenvolvimento cultural, económico e social”, vide, RIBEIRO, J. Soares, «Formação…», op. cit., p. 26. 29 MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código do Trabalho anotado, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 346.
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Quando falamos de formação contínua por iniciativa do trabalhador, estamos a falar de indivíduos que estão inseridos no mercado de trabalho e que exercem uma determinada atividade, mas por diversos motivos pretendem continuar a estudar, ingressando no sistema nacional de ensino. Para estes casos, a legislação consagra o regime jurídico do trabalhador estudante (adiante designado por RJTE). O RJTE vem previsto atualmente no Código do Trabalho, nos artigos 89.º a 96.º-A, e no art. 12.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro (Lei que regulamenta o Código do Trabalho). De forma muito sumária, visto ser alvo de análise aprofundada no terceiro capítulo, o RJTE consiste num conjunto de direitos (desde flexibilidade de horário de trabalho, dispensa de trabalho para frequência de aulas e provas, entre outros) e deveres que são atribuídos ao trabalhador, que por sua iniciativa, decide retomar os estudos, em qualquer dos seus níveis, quer seja por motivos profissionais, para aquisição ou desenvolvimento de conhecimentos e competências técnicas, com vista à progressão na empresa ou melhor desempenho na função que executa; quer seja por motivos de valorização pessoal, porque pretende numa dada altura da sua vida, com mais estabilidade financeira e profissional, obter uma habilitação académica que nunca teve possibilidade adquirir, podendo, frequentar um curso que em nada está relacionado com a atividade que atualmente exerce na empresa. Deste modo, o trabalhador pode desenvolver a sua qualificação profissional em função dos seus interesses e necessidades, suportando os custos inerentes a essa qualificação e beneficiando do regime jurídico acima mencionado. No que diz respeito à formação contínua por iniciativa do empregador, referimo-nos à formação profissional dos trabalhadores, prevista no Código do Trabalho, de ora em diante designado CT. O art. 131.º, n.º 1, alínea a), do CT, enquadra a formação profissional contínua no contexto das estratégias de incremento da produtividade e da competitividade da empresa. Numa economia em constante mudança é necessário o desenvolvimento de planos, de modo a criar produtos ou serviços que sejam de qualidade e cada vez mais inovadores. Para que as empresas possam adaptar-se rapidamente às exigências do mercado têm de empreender estratégias que deem primazia ao cliente, à qualidade, à inovação e à tecnologia, têm desse modo, de colocar como recurso primordial para o seu funcionamento os seus recursos humanos e a sua formação30. Assim, a formação contínua realizada no âmbito das empresas visa preparar os trabalhadores para melhorar as suas competências profissionais, atualizar os seus conhecimentos, alargar a gama de atividades realizadas e reaprender os processos produtivos. Tais situações irão permitir que haja uma flexibilidade técnica dos trabalhadores, exigida pelas novas tecnologias, de modo a estarem aptos a sustentar contínuos processos de adaptação da produção, associados à reestruturação económica e à mobilidade interprofissional31. De facto, o desenvolvimento de atividades que permitam aumentar as qualificações e as competências dos trabalhadores são marcadamente orientadas para a melhoria do 30 SOARES, Maria José, [et. al.], «A formação profissional: uma estratégia urgente para as organizações portuguesas», Jornal de Psicologia, Volume 11, n.º 1 e 2, Julho, 1993, p. 28. 31 Resolução do Conselho de Ministros n.º 173/2007, de 7 de novembro, relativa à reforma da formação profissional e ALMEIDA, António, «A formação profissional como instrumento de mudança», Organizações e Trabalho, n.º 7 e 8, Dezembro, 1992, pp. 96-97.
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desempenho das suas funções na empresa32, e assim, da sua produtividade, o que naturalmente terá reflexos positivos ao nível pessoal, ao nível da empresa e ao nível da sociedade33. Neste âmbito, o CT, nos artigos 131.º a 134.º, confere aos trabalhadores um direito individual à formação, através de um número mínimo anual de horas de formação, obtida mediante ações desenvolvidas pela empresa34. Estas ações de formação são normalmente desenvolvidas através de serviços internos da empresa ou consultores externos especializados e têm como características a sua curta duração (raramente excedendo as 35 horas/ano), a intensidade do ensino, o recurso a métodos pedagógicos ativos e a orientação do respetivo conteúdo para o trabalho (menos domínios técnico-científicos)35. No que se refere aos custos, existem formações financiadas pelo Fundo Social Europeu, não tendo assim o empregador custos com as mesmas ou podemos ter formações organizadas pela própria empresa, sem intervenção de apoios públicos, sendo, neste caso, o financiamento das formações da sua inteira responsabilidade. Após este enquadramento sumário do RJTE e da formação profissional prevista no CT, vamos elencar as suas principais diferenças: a) Ao nível sistemático, as temáticas do RJTE e da formação profissional foram tratadas de modo diferente, estando os dois conceitos previstos no CT e na Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, em artigos diferentes, o que desde logo nos permite concluir que são conceitos distintos. b) A formação profissional é um dever do empregador, devendo a mesma ser desenvolvida por sua iniciativa36, art. 127.º, n.º 1, alínea d), do CT, e é um direito do trabalhador, que por outro lado, tem o dever de participar de modo diligente nas ações de formação que lhe sejam proporcionadas pelo empregador, art. 128.º, n.º 1, alínea d), do CT, sob pena de praticar uma infração disciplinar. No caso do RJTE, a frequência do curso que está na base da atribuição dos benefícios nele contido é da iniciativa do trabalhador, não havendo nenhum dever do trabalhador em ter de frequentar qualquer nível de educação escolar. c) Os trabalhadores têm, em termos gerais, direito, em cada ano, a um número mínimo de 35 horas de formação contínua37, art. 131.º, n.º 2, do CT, cumprindo-se a 32 CARDIM, José Eduardo de Vasconcelos Casqueiro, Formação profissional: problemas e políticas, Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas, Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 2005, p. 26. 33 Para uma análise pormenorizada dos efeitos da formação profissional, vide, AAVV [CENTENO, Luís Gomes (Coord.)], Estudo sobre o retorno…, op. cit. 34 GONÇALVES, Luísa Andias, «A formação profissional no Código do Trabalho», Questões Laborais, 40, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 181. 35 CARDIM, José Eduardo de Vasconcelos Casqueiro, Formação…, op. cit., p. 27. 36 Apesar de a regra ser a formação profissional por iniciativa do empregador, pode a mesma ser da iniciativa do trabalhador quando as horas de formação se tenham convertido em créditos de horas, art. 132.º do CT. 37 No caso de contratos a termo por período inferior a 3 meses não há direito a horas de formação e no caso de contratos a termo com duração igual ou superior a 3 meses, o número de horas de formação é proporcional à duração do contrato nesse ano, art. 131.º, n.º 2, do CT. No caso do RJTE, os direitos atribuídos são iguais quer estejamos perante um contrato a termo ou por tempo indeterminado.
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obrigação de formação por parte da entidade empregadora com a promoção de formação contínua a 10% dos trabalhadores38, art. 131.º, n.º 5, do CT. Assim, como refere Luísa Andias Gonçalves, “para ser dado cumprimento à obrigação de formação, devem ser proporcionadas, pelo menos 35 horas de formação anual a, pelo menos, 10% dos trabalhadores”39. A aplicação do regime previsto para os trabalhadores estudantes não resulta automaticamente da condição de trabalhador, sendo necessário que este preencha os requisitos do art. 89.º e segs. do CT para poder beneficiar dos direitos compreendidos no referido regime. d) Na formação profissional, o número mínimo de horas de formação é atribuído por cada ano civil, vencendo-se o direito anual à formação no primeiro dia útil de cada ano civil, art. 131.º, n.º 2, do CT40. Já a manutenção dos direitos previstos no RJTE, depende de aproveitamento escolar no ano letivo anterior, art. 89.º, n.º 2, do CT. e) O empregador pode antecipar até dois ou cinco anos, dependendo dos casos, a efetivação do número mínimo de horas de formação profissional41, art. 131.º, n.os 6 e 7, do CT. No âmbito do RJTE, os benefícios por ele concedidos não se podem antecipar, só se podem usufruir no momento em que, simultaneamente, o trabalhador trabalha e estuda. f ) Nos termos do art. 132.º, n.º 1, do CT, se o empregador não assegurar ao trabalhador as horas de formação a que este tem direito, até ao termo dos dois anos posteriores ao do seu vencimento, as mesmas transformam-se em créditos de horas em igual número para formação por iniciativa do trabalhador42, devendo a área de formação ter
A diferença entre “o direito à formação, na titularidade de cada trabalhador, e o dever de formar, a cargo do empregador mas anualmente relativo a apenas 10% dos seus trabalhadores” é estabelecida por MONTEIRO, Luís Miguel, «O dever de formar e o direito à formação profissional no Código do Trabalho - breves reflexões», Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 76-77-78, Janeiro – Dezembro, 2007, pp. 272-273. 39 GONÇALVES, Luísa Andias, «A formação…», op. cit., p. 189, nota 20. 40 Para melhor compreensão sobre o direito à formação no ano de contratação do trabalhador e do entendimento como “ano civil ou ano de duração do contrato”, veja-se GONÇALVES, Luísa Andias, «A formação…», op. cit., pp. 183-184. 41 Questiona-se que direito terá a empresa caso tenha antecipado a formação do trabalhador e o contrato de trabalho cessar antes de esgotado o período a que as horas de formação antecipadas se reportam. Deverá a empresa ser ressarcida ou terá o trabalhador de permanecer na empresa pelo período a que as formações dizem respeito? Estamos perante uma lacuna visto que o Código do Trabalho não faz qualquer previsão desta situação, neste sentido, Luísa Andias Gonçalves, considera que a lei não prevê o ressarcimento do empregador mas também não obriga a permanência do trabalhador pelo período de tempo a que as horas de formação antecipada se referem. “Ao antecipar as horas de formação dos anos seguintes, o empregador perde voluntariamente o benefício do prazo”, vide, GONÇALVES, Luísa Andias, «A formação…», op. cit., p. 186, nota 14. 42 O crédito de horas é um mecanismo que permite a harmonização entre o direito dos trabalhadores às 35 horas de formação anuais e a obrigação da empresa em apenas ter de garantir a formação anual a 10% dos trabalhadores. Efetivamente o trabalhador não pode exigir ser incluído no grupo dos 10% a quem é anualmente prestada formação, visto que essa escolha cabe ao empregado, mas se ao fim de dois anos ainda não lhe tiver sido ministrada formação, este direito converte-se em crédito de horas de formação que o trabalhador pode utilizar para frequentar ações de formação por sua iniciativa. 38
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correspondência com a atividade prestada, art. 133.º, n.º 2, do CT, caducando esse direito passados 3 anos da sua constituição43, art. 132.º, n.º 6, do CT. No RJTE não há qualquer tipo de conversão em crédito de horas, porque, desde logo, a formação não é um dever do empregador. Estamos a falar de uma formação que foi o trabalhador que quis frequentar, daí que, se não a fizer, não fica com crédito de horas. g) Em caso de cessação do contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição correspondente ao número mínimo de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionado ou ao crédito de horas de se seja titular (desde que o crédito de horas não esteja caducado), art. 134.º do CT. Caso ocorra a cessação do contrato de trabalho de um trabalhador que beneficie do RJTE, ao trabalhador não assiste qualquer direito que derive de ter usufruído todos ou só alguns dos benefícios previstos no regime jurídico em causa. h) Outro aspeto que nos permite verificar que estamos perante dois conceitos diferentes é o facto de um trabalhador que beneficie do RJTE continuar a ter direito à formação profissional, art. 132.º, n.º 4, do CT, sendo no entanto, as horas de dispensa para frequência de aulas ou provas, que tem ao abrigo do RJTE, consideradas para efeitos de preenchimento no número de horas de formação profissional a que teria direito, independentemente da área em que o trabalhador se está a formar. i) Na formação profissional, a área de formação é escolhida por acordo entre empregador e trabalhador. Ou, na sua falta, é fixada pelo empregador, tendo, neste caso, de coincidir ou ser afim com a atividade prestada pelo trabalhador, art. 133.º, n.º 1, do CT. No caso do RJTE é o trabalhador que escolhe a área de formação que lhe interessa, podendo estar ou não relacionada com a atividade que desempenha na empresa44. j) Na formação profissional as ações de formação são normalmente curtas. No RJTE as formações frequentadas pelo trabalhador são tendencialmente mais longas. k) A ações de formação podem ser internas, realizadas pelo empregador na empresa45, art. 131.º, n.º 1, alínea b), do CT, ou externas, com recursos a uma entidade formadora certificada46, art. 131.º, n.º 3, do CT.
O trabalhador pode utilizar o crédito de horas para frequentar uma formação desde que comunique ao empregador com 10 dias de antecedência, art. 132.º, n.º 3, do CT. 44 Como refere Luís Miguel Monteiro, “não é o estatuto de trabalhador a determinar a frequência da formação, mas esta a dar origem a alterações das condições de trabalho”, vide, MONTEIRO, Luís Miguel, «O dever…», op. cit., p. 287. 45 Quando a formação contínua seja realizada pelo empregador, não sendo este entidade formadora certificada, o empregador deve comprovar aquela conclusão mediante certificado por si emitido, cfr. art. 7.º, n.º 8, do DL n.º 396/2007, de 31 de dezembro. 46 Entende-se por “Entidade formadora certificada” a entidade com personalidade jurídica, dotada de recursos e capacidade técnica e organizativa para desenvolver processos associados à formação, objeto de avaliação e reconhecimento oficiais de acordo com o referencial de qualidade estabelecido para o efeito, cfr. art. 3.º, alínea e), do DL n.º 396/2007, de 31 de dezembro. 43
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No caso do RJTE, a formação decorre em lugar externo à empresa, normalmente em instituições de ensino, art. 89.º, n.º 1, do CT. l) A formação profissional dá lugar à emissão de certificado e a registo na Caderneta Individual de Competências47, art. 131.º, n.º 3, do CT. No caso do RJTE, quando a formação terminar obter-se-á o diploma correspondente. m) O empregador tem de elaborar um plano de formação anual, onde indique os objetivos da formação, entidades formadoras e ações de formação. Esta obrigação só não existe se o empregador for uma microempresa, art. 13.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro. No âmbito do RJTE nada tem de estar afixado, visto a formação ser da responsabilidade do trabalhador e dependente do estabelecimento de ensino. n) O empregador deve incluir no relatório único anual sobre a atividade social da empresa, todos os elementos sobre a formação contínua ministrada, art. 32.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro. Nesse mesmo relatório nada se preenche relativamente ao número de trabalhadores que beneficiam do RJTE. Perante o exposto, podemos concluir que o envolvimento das empresas no esforço de qualificação dos seus trabalhadores é cada vez mais significativo e, não obstante termos definido conceitos distintos, ambos os tipos de formação pretendem atingir a mesma finalidade: dotar os trabalhadores de mais competências técnicas e sociais que permitam a sua realização pessoal e profissional e um melhor desempenho da sua atividade profissional (atual ou futura).
A caderneta individual de competências regista todas as competências que o indivíduo adquire ou desenvolve ao longo da vida (…), cfr. art. 8.º, n.º1, do DL n.º 396/2007, de 31 de dezembro.
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CAPÍTULO 2
O DIREITO À EDUCAÇÃO E AO ENSINO NO DIREITO INTERNACIONAL E NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Ao longo da história têm sido consagrados direitos fundamentais, considerados naturais e inalienáveis de cada indivíduo. Um dos direitos que tem vindo a ser reconhecido como uma condição básica do desenvolvimento humano e progresso da sociedade é o direito universal à educação48.
2.1 DO DIREITO À EDUCAÇÃO E AO ENSINO Ao tentarmos enquadrar o regime jurídico do trabalhador estudante no âmbito de Convenções Internacionais e ao nível da União Europeia, deparamo-nos com dificuldades em encontrar menções que refiram especificamente o direito do trabalhador beneficiar de um regime específico quando, simultaneamente, estude e trabalhe. De todos os documentos analisados, só a Convenção n.º 140 da Organização Internacional do Trabalho faz referência a uma licença remunerada para estudos, figura jurídica que mais proximidade parece ter com o nosso regime jurídico do trabalhador estudante. Nesse sentido, entendemos que o direito mais abrangente e no âmbito do qual o trabalhador pode exigir algum tipo de flexibilidade de horário e organização dos tempos de trabalho será o direito à educação e ao ensino, visto que, não obstante o trabalhador exercer uma atividade subordinada, não deixa de ser pessoa e, portanto, continua a ter presente na sua esfera jurídica aqueles direitos. O regime jurídico do trabalhador estudante permite ao trabalhador conciliar o trabalho com os estudos, garantindo-lhe o direito à igualdade de oportunidades e o acesso ao êxito escolar concretizando, assim, o direito universal à educação e ao estudo, transversal a todas pessoas, independentemente das suas características, nomeadamente, se já se encontram a exercer uma atividade profissional ou não. O direito à educação constitui uma condição indispensável ao processo de desenvolvimento pessoal de todos os cidadãos e à participação cívica de qualquer indivíduo, sendo entendido a nível internacional e constitucional como um direito que possibilita a diminuição das desigualdades entre os povos. A educação pode ser entendida como um mecanismo compensatório que o Estado deve desenvolver no sentido de eliminar as desigualdades sociais, visto que o acesso à educação permite ao cidadão uma condição essencial para a obtenção da sua efetiva liberdade e igualdade49. Face ao exposto, importa fazer referência às Convenções Internacionais, Direito Europeu e princípios constitucionais portugueses que regulam a matéria do direito à educação e ao estudo. ARROTEIA, Jorge Carvalho, Educação e Desenvolvimento: fundamentos e conceitos, Unidade de Investigação do Departamento de Ciências da Educação, Universidade de Aveiro, p. 145, disponível em http://www.adispor.pt/repositorio/pdfs/educacao_e_desenvolvimento.pdf, último acesso a 17/04/2014. 49 MIRÓN HERNÁNDEZ, Maria del Mar, El derecho a la formación professional del trabajador, Conselho Económico e Social, Madrid, 2000, p. 50. 48
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2.2 CONVENÇÕES INTERNACIONAIS A Declaração Universal dos Direitos do Homem50 (DUDH), proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas e publicada na I série do Diário da República no dia 9 de março de 1978, é considerada um pilar essencial para o fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, tendo um papel fundamental no ordenamento jurídico português, uma vez que a nossa Constituição, no seu art. 16.º, n.º 2, refere que: “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Da DUDH consta um vasto conjunto de direitos que se alinham no sentido do reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos e dos seus direitos, iguais e inalienáveis. Neste contexto, o art. 26.º estatui o direito à educação referindo o n.º 1 que “Toda a pessoa tem direito à educação”. Este direito é reforçado pela assinatura, em 1950, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem51, elaborada pelo Conselho da Europa52, e que determina, no art. 2.º do Protocolo adicional n.º 1 à referida Convenção, que “A ninguém pode ser negado o direito à instrução”. O Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais53 apresenta no art. 13.º um elenco de direitos relacionados com o direito à educação, mencionando o n.º 1 que “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação”. No âmbito da Carta Social Europeia54, aprovada pelo Conselho da Europa, existem algumas normas na Parte II, que podemos considerar estarem subjacentes ao RGTE, nomeadamente, o art. 1.º, n.º 4, refere que “Com vista a assegurar o exercício efetivo do direito ao trabalho, as Partes comprometem-se a assegurar ou a favorecer (…) uma formação apropriada (…)”. Também o art. 10.º menciona, no seu n.º 2, que as Partes se comprometem a assegurar ou a favorecer sistemas de aprendizagem e sistemas de formação de jovens, nos seus diversos empregos. Em sentido semelhante, a alínea a) do n.º 3 do art. 10.º determina que as Disponível em http://dre.pt/comum/html/legis/dudh.html, último acesso a 17/04/2014. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem foi assinada em Roma, a 4 de novembro de 1950, e, em Portugal, foi aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Ao longo dos anos a Convenção foi alvo de vários protocolos, podemos consultar a versão consolidada em http://www.ie.uminho.pt/Uploads/NEDH/conven%C3%A7aopara%20a%20proteccao%20do%20homem%20e%20 das%20liberdades%20fundamentais.pdf, último acesso a 19/04/2014. No nosso caso, foi o Protocolo 1, assinado em 1952, que veio instituir o direito à instrução. 52 O Conselho da Europa é uma organização internacional vocacionada para a defesa dos Direitos Humanos, é no âmbito do Conselho da Europa que se encontra o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. É importante não confundir o Conselho da Europa com o Conselho da União Europeia ou com o Conselho Europeu. O Conselho da União Europeia é uma instituição da União Europeia onde os ministros de cada Estado Membro se reúnem para adotarem legislação e assegurarem a coordenação das políticas da UE. O Conselho Europeu é outra instituição da UE, no âmbito da qual os chefes de Estado e de Governo dos países dos Estados Membros se reúnem, cerca de quatro vezes por ano, para debater as prioridades políticas da União Europeia, cfr., http://europa.eu/about-eu/ institutions-bodies/council-eu/index_pt.htm, último acesso a 19/04/2014. 53 O Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1966 e foi aprovado para ratificação em Portugal pela Lei n.º 45/78, de 11 de julho, publicada no Diário da República, I Série A, n.º 157/78, disponível em http://dre.pt/pdf1sdip/1978/07/15700/12801290. pdf, último acesso a 17/04/2014. 54 A Carta Social Europeia Revista, entrou em vigor na ordem jurídica internacional a 1 de julho de 1999, e, em Portugal, foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 64-A/2001, de 17 de outubro, publicada no Diário da República, I Série - A, n.º 241/2001, 1.º Suplemento, disponível em http://dre.pt/pdf1sdip/200 1/10/241A01/00020029.pdf, último acesso a 17/04/2014. 50 51
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Partes devem assegurar ou favorecer medidas apropriadas com vista à formação dos trabalhadores adultos. Para além de todos os documentos atrás analisados, que contêm, como vimos, princípios universais fundamentais, nunca podemos olvidar a existência de Convenções ou Recomendações emanadas da Organização Internacional do Trabalho (OIT)55 que sejam úteis e fundamento do nosso objeto de estudo. Deste modo, existem duas convenções relativas à educação e formação56: a Convenção n.º 142, designada como “Convenção sobre a Valorização dos Recursos Humanos”, e a Convenção n.º 140, designada como “Convenção Relativa à Licença Remunerada para Estudos”. A Convenção n.º 142 de 1975 foi ratificada por Portugal, em 09/01/1981, e apela à atenção dos Estados para a necessidade de estes desenvolverem e adotarem políticas e programas completos e coordenados de orientação e formação profissional para jovens e adultos, devendo essas políticas e programas serem elaboradas, entre outros, em colaboração com as organizações de empregadores e trabalhadores. Já a Convenção n.º 140 de 1974 tem na sua génese a Recomendação da OIT n.º 148 e o art. 26.º da DUDH (acima referido) e institui a licença remunerada para os estudos, sendo esta considerada no art. 1.º como a “licença concedida a um trabalhador para fins educativos por um determinado período, durante as horas de trabalho, com o pagamento de prestações financeiras adequadas”. De acordo com o art. 2.º da referida Convenção, os Estados que a ratificaram, devem formular e levar a cabo uma política para fomentar, segundo métodos apropriados às condições e usos nacionais, a concessão da licença remunerada para estudos. Portugal não ratificou esta convenção. De facto, o nosso ordenamento jurídico não prevê que o trabalhador, durante a execução do seu contrato de trabalho, possa tirar uma licença retribuída para estudos. Não obstante, o Estado concedeu aos trabalhadores estudantes o direito de poderem ausentar-se do trabalho para frequentar aulas (estudar) e para a prestação de provas de avaliação, sem perda de retribuição.
2.3 DIREITO EUROPEU A União Europeia, desde a sua constituição, reconheceu a importância da educação e da formação para o desenvolvimento comunitário. No âmbito da UE, os Tratados ocupam sempre um lugar de extrema importância em qualquer tipo de política. Nesse sentido, verificamos que o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia57 (antigo Tratado da Comunidade De acordo com João Leal Amado, a OIT é uma instituição especializada da Organização das Nações Unidas, através da qual se tenta promover o trabalho digno à escala universal. A OIT desenvolve a sua atividade através da Conferência Geral, que na sua reunião anual, toma decisões com vista à resolução de problemas da área laboral. Esta Conferência Geral pode aprovar Convenções e Recomendações, mas somente as Convenções se destinam a ser incorporadas no direito interno de cada Estado, mediante um processo de ratificação, vide, AMADO, João Leal, Contrato de Trabalho, 3.ª edição, Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer, Coimbra, 2011, p. 36. 56 Todas as convenções da Organização Internacional do Trabalho estão disponíveis em http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:12000:0::NO:::, no que diz respeito às convenções ratificadas por Portugal, estas podem ser consultadas em http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_convencoes_numero_pt.htm. 57 A numeração dos artigos é feita tendo em conta as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa. É possível consultar a versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em http://eur-lex.europa.eu/ LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2012:326:FULL:PT:PDF, último acesso a 19/04/2014. 55
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Europeia, TCE) refere no preâmbulo e no art. 9.º que a UE deve promover o amplo acesso à educação e à contínua atualização dos conhecimentos dos cidadãos, por forma a alcançar um nível elevado de educação e formação. Também o art. 145.º (ex-artigo 125.º TCE), menciona que os Estados-Membros e a União devem empenhar-se em desenvolver estratégias para o desenvolvimento e promoção de mão-de-obra qualificada e formada. No mesmo sentido, o art. 156.º (ex-artigo 140.º o TCE) prevê que a Comissão Europeia incentive a cooperação entre os Estados-Membros e facilite a coordenação das suas ações nos domínios da política social em questões relativas ao direito do trabalho, às condições de trabalho e à formação, entre outras. Também a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores58 representou um passo importante para o desenvolvimento da política comunitária de emprego e formação, referindo no ponto 15 que as autoridades públicas competentes, as empresas ou os parceiros sociais devem, cada um na esfera das suas competências, instituir dispositivos de formação contínua e permanente que permitam a qualquer pessoa reciclar-se, designadamente, beneficiando de licenças para formação, aperfeiçoando e adquirindo novos conhecimentos. No mesmo sentido, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia59 estatui, no art. 14.º, n.º 1, que todas as pessoas têm direito à educação e acesso a formação contínua.
2.4 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA Como já verificámos, o direito à educação e à formação dos trabalhadores tem sido objeto de reconhecimento expresso em normas internacionais, proclamadas em Tratados e em Convenções, que atuaram como referência aos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa (adiante designada por CRP). Deste modo, a CRP estabelece, no art. 73.º, n.º 1, que todos têm direito à educação e à cultura60, entendendo-se a educação como o “processo de aquisição e transmissão de conhecimentos e valores (através da escola e de outros meios formativos)”61. O n.º 2 do mesmo artigo sublinha que o Estado deve promover a educação de forma a contribuir para a igualdade de oportunidades e para a superação das desigualdades económicas sociais e culturais. “A educação tem assim uma função igualizadora”62. Adotada pelos membros da UE no Conselho Europeu de Estrasburgo de 09 de dezembro de 1989, cfr., http://ftp. infoeuropa.eurocid.pt/database/000043001-000044000/000043646.pdf, último acesso a 19/04/2014. 59 Cfr. http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0403:pt:PDF, último acesso a 19/04/2014. A Carta dos Direitos Fundamentais reconhece um conjunto de direitos pessoais, cívicos, políticos, económicos e sociais dos cidadãos e residentes na UE, incorporando-os no direito comunitário, foi elaborada por uma comissão composta por um representante de cada país da UE e da Comissão Europeia, bem como por deputados do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais. Foi formalmente adotada em Nice, em dezembro de 2000, pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho Europeu e pela Comissão Europeia. Em dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Carta foi investida de efeito jurídico vinculativo, à semelhança dos Tratados. Para o efeito, a Carta foi alterada e proclamada pela segunda vez em Dezembro de 2007, cfr. http://europa.eu/legislation_summaries/justice_freedom_security/combating_discrimination/l33501_pt.htm, último acesso a 19/04/2014. 60 O mesmo direito é reconhecido pela Constituição Espanhola, nos artigos 27.º, n.º 1 e 44.º, n.º 1 e pela Constituição Italiana, no art. 34.º. 61 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 889. 62 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição…, op. cit., p. 889. 58
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Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira63, a garantia fundamental do direito à educação é o direito ao ensino, ou seja, o direito à educação formal por via da escola. Assim, a CRP estabelece, no n.º 1 do art. 74.º, que todos têm direito ao ensino como garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar. Logicamente, como refere Jorge Miranda64, este artigo não significa que todos tenham de obter êxito, mas a todos devem ser concedidas as mesmas condições para ter aproveitamento escolar. O direito ao ensino implica para o Estado um conjunto de obrigações, previstas no n.º 2 do art. 74.º, das quais salientamos a necessidade deste garantir a educação permanente e a eliminação do analfabetismo [alínea c)], e ainda, a de garantir a todos os cidadãos o acesso a graus mais elevados de ensino [alínea d)]. De acordo com Albino Mendes Baptista, o direito ao ensino previsto no n.º 1 do art. 74.º é um direito fundamental de natureza análoga aos “direitos, liberdades e garantias”65. Os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos imediatamente eficazes por via da Constituição, isto é, não são meras normas para a produção de outras normas66 e, nos termos do art. 18.º da CRP, são diretamente aplicáveis, vinculando entidades públicas e privadas. A lei só pode restringir este tipo de direitos nos casos expressamente previstos na CRP, devendo as restrições que a esses direitos ocorram limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Por seu lado, os direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, são direitos que, embora não estejam no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, beneficiam de um regime jurídico-constitucional idêntico, tal como refere o art. 17.º da CRP67. Destarte, o direito ao ensino é um preceito diretamente aplicável, nos termos do art. 17.º e 18.º da CRP. Outro artigo Constitucional que se revela importante neste estudo é o art. 59.º. Se ao nível do n.º 1 estão previstos diversos direitos fundamentais dos trabalhadores, no âmbito do n.º 2 encontramos um conjunto de incumbências do Estado, com vista a assegurar as condições de trabalho a que os trabalhadores têm direito68. Ora, uma das obrigações do Estado é, nos termos da alínea f ) do n.º 2 do supra citado artigo, a proteção das condições de trabalho dos trabalhadores estudantes. Como refere Gomes Canotilho69, esta proteção incidirá nomeadamente sobre a flexibilidade de horários de trabalho, faltas para prestação de provas de avaliação, efeitos profissionais da valorização escolar, entre outras que iremos de seguida analisar. Também da alínea f ) do artigo 9.º e da alínea c) do n.º 2 do art. 58.º, ambos da CRP, podemos retirar que o ensino, a formação cultural e técnica e a valorização permanente, do cidadão em geral e dos trabalhadores em particular, são tarefas fundamentais do Estado, concretizadas, entre outras medidas, no regime jurídico do trabalhador estudante.
CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição…, op. cit., p. 889. MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 733. 65 BAPTISTA, Albino Mendes, «Considerações sobre o Estatuto do Trabalhador-Estudante», Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, a. 59, n.º 3, Dezembro, 1999, p. 1062; o mesmo entendimento tem CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição…, op. cit., p. 896. 66 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 438. 67 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional…, op. cit., p. 405. 68 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição…, op. cit., p. 611. 69 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição…, op. cit., p. 777. 63
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CAPÍTULO 3
O REGIME JURÍDICO DO TRABALHADOR ESTUDANTE NO CÓDIGO DO TRABALHO
O Código do Trabalho concretiza um conjunto de direitos constitucionais e internacionais que visam regular vários aspetos relacionados com o trabalhador e com a relação laboral (quer a nível individual, quer a nível coletivo). No presente capítulo iremos proceder à análise do regime jurídico do trabalhador estudante previsto no Código do Trabalho.
3.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS Tendo presente a necessidade e a importância que a formação contínua assume ao longo da vida de uma pessoa, cabe ao Estado criar as medidas necessárias para que os seus cidadãos possam eficazmente e com todas as condições, evoluir na sua formação e qualificação. Nesse sentido, uma das obrigações do Estado prevista no art. 59.º, n.º 2, alínea f ), da CRP é, como vimos, a criação de um regime de proteção das condições de trabalho dos trabalhadores estudantes. Esse regime encontra-se atualmente previsto do art. 89.º ao art. 96-A.º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, com as respetivas alterações supervenientes) e no art. 12.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro. Até há alguns anos o percurso tradicional de uma pessoa seria estudar e obter uma qualificação académica seguindo-se o ingresso natural no mercado de trabalho, onde permaneceria até à reforma (o chamado emprego para toda a vida). Cada vez mais, e por motivos diferenciados, assistimos a alterações a este percurso. Segundo Inmaculada Cebrián70 existe um determinado momento em que a primeira atividade desenvolvida pelo indivíduo é o estudo de forma quase generalizada. No entanto, nos jovens que se encontram no momento natural de estudar podemos identificar um grupo que compatibiliza os estudos e o trabalho. Neste caso, estamos perante jovens cuja atividade fundamental é o estudo mas que também trabalham. As razões pelas quais se opta por essa dupla atividade podem ser de diversa índole, nomeadamente, a necessidade de custear os estudos ou, simplesmente, uma forma de conseguirem, mais facilmente, a inserção no mercado de trabalho. Por outro lado, a mesma autora refere que há pessoas que, uma vez no mercado de trabalho, decidem continuar a sua formação. Neste caso, encontramos indivíduos, na sua maioria adultos (que já superaram a idade habitual para concluir os estudos), que exercem ou exerceram uma atividade profissional e que decidem retomar os estudos71. Também aqui os motivos podem ser de diversa natureza, nomeadamente, pode tratar-se de exigências da própria profissão (necessidade de reciclagem e apreensão de novos conhecimentos); pode o trabalhador encarar o regresso ao estudo como uma forma de conseguir 70 CEBRIÁN, Inmaculada, [et. al.], ¿Trabajar o estudar? El caso de los trabajadores españoles, Instituto Valenciano de Investigaciones Económicas, Septiembre, 2000, p. 3. 71 CEBRIÁN, Inmaculada, [et. al.], ¿Trabajar…, op. cit., p. 4.
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uma promoção ou garantir a sua continuidade no posto de trabalho que desempenha, aumentando a sua competitividade face a possíveis rivais; o desejo de continuar a investir em formação também pode ser justificado com a expetativa de um maior rendimento salarial no futuro; pode o trabalhador pretender mudar de profissão e para tal necessita de retomar os estudos de modo a obter as qualificações adequadas; pode tratar-se de um regresso aos estudos como forma de valorização pessoal, aumento do nível de qualificação ou busca de conhecimento, entre tantos outros motivos particulares que podem ocorrer e determinar o estudo e o trabalho simultâneo. Independentemente das situações, os trabalhadores estudantes são exemplos de empenho e coragem, são pessoas que não se deixaram acomodar na situação em que as vicissitudes da vida os colocaram, mas que continuam a lutar contra várias dificuldades e obstáculos na procura de uma Estes trabalhadores enfrentam qualificação, em qualquer dos seus níveis, e de uma realizauma tripla jornada: laboral, ção e desenvolvimento pessoal. Estes trabalhadores enfrenacadémica e de conciliação com tam uma tripla jornada: laboral, académica e de conciliação a vida familiar, esperando que com a vida familiar, esperando que as instituições de ensino, as instituições de ensino, a a entidade empregadora e o Estado lhes permitam compaentidade empregadora e tibilizar as referidas atividades com possibilidade de sucesso o Estado lhes permitam em todas elas. compatibilizar as referidas Desse modo, como refere Guilherme Dray72 o objetivo do atividades com possibilidade regime do trabalhador estudante é o de garantir mecanisde sucesso em todas elas. mos de conciliação entre a formação escolar e a atividade profissional do trabalhador estudante, através da criação de um regime especial de prestação de trabalho, nomeadamente quanto à organização do tempo de trabalho73. Com a criação de um regime jurídico essencial para os trabalhadores estudantes pretende-se estabelecer, em relação aos trabalhadores que estudam, um regime de maior proteção. A existência de um regime jurídico de proteção aos trabalhadores estudantes desde cedo começou a ter importância para o legislador. A primeira vez que se criaram direitos especiais para o trabalhador que, simultaneamente, trabalhava e estudava, foi com a Lei n.º 26/81, de 21 de agosto, que criou o estatuto do trabalhador estudante. Devido ao seu caracter inovador, esta Lei gerou alguma contestação, tendo sido requerida a apreciação da constitucionalidade de um artigo da mesma. O Tribunal Constitucional (TC) recusou essa pretensão74. A Lei de 1981 foi revogada pela Lei n.º 116/97, de 04 de novembro, que teve como objetivo adaptar as disposições do estatuto do trabalhador estudante ao contexto da educação existente na altura, pois tinham ocorrido diversas mudanças no panorama educativo e MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código…, op. cit., p. 263. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/01/2013 referiu que a qualidade de trabalhador estudante implica necessariamente uma menor disponibilidade de tempo para prestar trabalho. O mesmo Acórdão menciona que o motivo que levou o legislador a regular o regime jurídico do trabalhador estudante foi garantir mecanismos de conciliação entre a formação escolar e a académica e a atividade profissional do trabalhador estudante, através da criação de um regime especial de prestação do trabalho, disponível em www.dgsi.pt, último acesso a 03/05/2014. 74 Os aspetos mais importantes do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 454/97, que recusou a inconstitucionalidade do art. 6.º, n.º 1, alínea c), da Lei 26/81, de 21 de agosto, serão analisados no 4.º capítulo. 72 73
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laboral português desde 1981 até 1997. Neste sentido, as principais alterações apresentadas pelo novo estatuto foram a menção à frequência de cursos de pós-graduação, mestrados ou doutoramentos; introdução da dispensa de serviço para frequência a aulas até três horas nos casos em que a duração do período de trabalho semanal era entre vinte e vinte e nove horas; menção do limite máximo de duração do período normal de trabalho do trabalhador estudante e da prestação de trabalho suplementar; alteração do número de dias da licença sem retribuição a que o trabalhador tinha direito, bem como a introdução de prazos de aviso prévio para o uso da referida licença. Em 2003 houve a revisão e unificação das múltiplas leis que regulavam a prestação do trabalho subordinado, com a criação do Código Trabalho. O regime jurídico do trabalhador estudante passou a estar previsto no Código do Trabalho de 2003, nos arts. 79.º a 85.º, que enunciavam apenas a matéria substantiva (princípios gerais) e na Lei que regulamentou o Código do Trabalho de 2003 (Lei n.º 35/2004, de 29 de julho), que continha a matéria procedimental, nos arts. 147.º a 156.º, revogando-se a anterior Lei. Apesar de ter revogado a Lei de 1997, o Código do Trabalho de 2003 não trouxe alterações materiais significativas ao regime que existia. O Código do Trabalho de 2003 foi revogado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que instituiu o atual Código do Trabalho. O atual Código do Trabalho, ao contrário do anterior, procurou abarcar e concentrar numa única subsecção toda a matéria substantiva e procedimental relativa ao trabalhador estudante. Não obstante essa alteração a nível estrutural, os direitos consagrados são muito semelhantes ao que existiam no Código do Trabalho de 2003. Das alterações que o atual Código do Trabalho já sofreu, a única relevante em termos do regime jurídico do trabalhador estudante foi a feita pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, que aditou o artigo 96.º-A. Este artigo demostra a necessidade de um maior aprofundamento do regime aplicável aos trabalhadores estudantes através da criação de lei especial, complementar ao Código do Trabalho e à regulamentação já existente. Assim, as disposições sobre o trabalhador estudante deixarão de estar legalmente limitadas ao Código do Trabalho e à Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, e passarão a estar também em lei especial. Até ao momento esta lei especial, prevista no art. 96.º-A, ainda não foi publicada, embora esteja atualmente em apreciação, na Comissão de Segurança Social e Trabalho, o Projeto de Lei n.º 402/XII que pretende, mais uma vez75, a criação de um regime jurídico do trabalhador estudante autónomo. Se este Projeto de Lei será a lei especial a que o art. 96.º-A se refere, até ao momento não sabemos76.
3.2 NOÇÃO LEGAL E ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO REGIME JURÍDICO DO TRABALHADOR ESTUDANTE Nos termos do art. 89.º, n.º 1, do CT, considera-se trabalhador estudante o trabalhador que frequenta qualquer nível de educação escolar, bem como, curso de pós-graduação, 75 Desde 2009 que foram apresentados vários Projetos de Lei no sentido de criar um estatuto do trabalhador estudante autónomo, no entanto, as iniciativas caducaram sempre (Projeto de Lei n.º 880/X e n.º 187/XI). 76 Na exposição dos motivos do Projeto de Lei n.º 402/XII nada consta sobre a criação do estatuto do trabalhador estudante no sentido de concretizar o art. 96.º- A, no entanto, podem os grupos parlamentares e o governo entender que se trata de uma oportunidade para criar a lei especial em falta.
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mestrado ou doutoramento em instituição de ensino, ou ainda, curso de formação profissional ou programa de ocupação temporária de jovens com duração igual ou superior a seis meses. Refere o n.º 2 que a manutenção deste estatuto depende de aproveitamento escolar no ano letivo anterior. Desta noção salienta-se que para estar abrangido pelo regime jurídico do trabalhador estudante é necessário: i) ser trabalhador; ii) frequentar um qualquer nível de ensino, incluindo-se aqui os cursos de formação profissional de jovens ou programa de ocupação temporária de jovens com duração igual ou superior a seis meses; iii) ter aproveitamento escolar no ano letivo anterior. Consideramos importante decompor a noção apresentada e analisar o seu âmbito de aplicação, bem como, os requisitos para se poder beneficiar do regime jurídico do trabalhador estudante. i) O trabalhador Para beneficiar do RJTE, o interessado tem de ser trabalhador77 subordinado (não há mínimo de horas de trabalho para beneficiar do regime previsto para os trabalhadores estudantes). O trabalhador é assim, a pessoa que presta, de forma subordinada, uma atividade mediante retribuição. Atendendo ao art. 11.º do CT, conclui-se que o trabalhador será aquele que, mediante retribuição, presta uma atividade78 a outra pessoa sob a autoridade e direção desta79, ou seja, aquele que possa ser considerado trabalhador juridicamente subordinado. Quer isso dizer que, o trabalhador está perante o empregador numa posição de subordinação jurídica, isto é, está sujeito ao poder de direção do empregador “conformar, através de comandos e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou, definindo, como, quando, onde e com que meios esta deve ser executada”80, e está sujeito também ao poder disciplinar do empregador, no âmbito do qual este pode estabelecer regras de disciplina na empresa, bem como aplicar sanções disciplinares ao trabalhador em caso de incumprimento81. Verificamos que, ao abrigo da legislação em vigor, hodiernamente, os trabalhadores independentes ou por conta própria estão excluídas do âmbito de aplicação do regime jurídico dos trabalhadores estudantes previsto no Código do Trabalho. No entanto, tempos houve em que os mesmos puderam beneficiar, ainda que somente de alguns artigos, deste regime. Com efeito, a Lei n.º 116/97, de 04 de novembro, consagrava no art. 2.º, n.º 2, alínea a) esse direito, e também o Código do Trabalho de 2003 por força do disposto no art. 17.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, aplicava, com as necessárias adaptações, o regime do trabalhador estudante aos trabalhadores por conta própria82. Atualmente só o n.º 6 do art. 12.º da Lei 77 Para uma análise das diversas aceções da palavra “trabalhador”, vide, RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 323-331. 78 Essa atividade tanto pode ser intelectual como manual (atualmente o Código do Trabalho não faz referência ao tipo de atividade, por uma questão de igualdade entre trabalhadores). 79 MARTINEZ, Pedro Romano, Direito do Trabalho, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 120. 80 AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., p. 61. 81 RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I…, op. cit., p. 446. 82 Como refere Pedro Romano Martinez, para o Direito do Trabalho só interessa o regime do trabalhador estudante nas relações laborais, excluindo-se da sua aplicação, as situações de trabalhadores por conta própria, desempregados e frequentadores de curso de formação profissional, vide, MARTINEZ, Pedro Romano, Direito do…, op. cit., p. 365.
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n.º 105/2009, de 14 de setembro, faz referência à aplicação desse mesmo artigo também aos trabalhadores por conta própria, no entanto, se atendermos ao conteúdo do referido artigo verificamos (como referimos mais à frente) que o mesmo não contém normas direcionadas à entidade patronal, mas sim aos estabelecimentos de ensino. Estamos assim perante uma perda de direitos aparente, visto que, um trabalhador por conta própria tem como característica a autonomia na organização do trabalho que, em regra, engloba o facto de não estar sujeito a horário de início e de termo da prestação da sua atividade. Apesar do artigo não fazer qualquer referência à natureza privada ou pública do empregador, é conveniente esclarecer que este regime aplica-se a todos os trabalhadores de entidades privadas e também a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, por força da aliena f ) do art. 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Publicas aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho. ii) Frequência de nível de ensino Além de ter de ser trabalhador subordinado, outro dos requisitos previstos para se poder aplicar o regime dos trabalhadores estudantes é frequentar qualquer nível de educação escolar, incluindo curso de pós-graduação, mestrado ou doutoramento em instituição de ensino ou ainda curso de formação profissional de jovens ou programa de ocupação temporária de jovens com duração igual ou superior a seis meses83. Fazemos uma crítica ao facto do legislador atribuir os mesmos direitos a todos os trabalhadores estudantes independentemente do curso que frequentem, sem ter em conta as efetivas exigências de cada um deles. Não podemos olvidar que as características de uma licenciatura diferem das características de um mestrado ou de um doutoramento e as necessidades sentidas pelos trabalhadores estudantes serão também elas, necessariamente, diferentes. Verificamos, desde logo, que o artigo quando se refere a instituição de ensino não distingue entre instituições particulares, cooperativas ou públicas, pelo que, tem sido pacífico que o conceito abrange a frequência em qualquer uma delas84. Por outro lado, o regime abrange a educação escolar em qualquer grau, deixando de fora a formação profissional, exceto no caso dos jovens que estejam a frequentar curso de formação profissional ou programa de ocupação temporária com duração mínima de seis meses, não se exigindo em nenhuma destas situações qualquer conexão com a atividade do empregador. Efetivamente como refere Bernardo Lobo Xavier85, a lei garante uma compatibilização entre o exercício da profissão e o estudo, de modo a permitir o aumento de qualificação dos trabalhadores, mas este estudo ou formação não têm de se relacionar com a prestação laboral que o trabalhador exerce na empresa. Regista-se a inclusão na noção de mais uma modalidade de cursos educacionais dirigidos aos jovens. No Código do Trabalho de 2003 estes não se encontravam previstos no art. 79.º, no entanto, a lei já previa a aplicação do regime do trabalhador estudante a estas situações por força do disposto no art. 17.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto; situação semelhante também já era prevista no art. 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 116/97, de 4 de novembro. 84 A Lei n.º 116/97, de 04 de novembro, no art. 2.º, n.º 1 in fine, especificava que o estatuto se aplicava aos três tipos de instituições. 85 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, Lisboa, 2011, p. 857. 83
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Assim, por exemplo, um trabalhador administrativo de uma fábrica de moldes pode, no âmbito do contrato de trabalho, frequentar um curso de veterinária, beneficiando de um conjunto de direitos que são assegurados às custas da entidade patronal, tendo o trabalhador estudante muitas vezes o objetivo de, uma vez terminada a formação, passar a prestar o seu trabalho para outro empregador. Não obstante esta realidade, o empregador não pode proibir o trabalhador de usufruir deste estatuto, nem a atribuição do estatuto carece de autorização do empregador. Nesse sentido refere Diogo Vaz Marecos que “ao empregador não é lícito obstar a que o trabalhador possa beneficiar do regime do trabalhador estudante, afastando a aplicação das normas previstas no art. 89.º e segs. ainda que obtivesse o consentimento do trabalhador, porquanto tal constituiria um negócio contrário à lei, cuja consequência é a nulidade nos termos do n.º 1 do art. 280.º e art. 294.º do Código Civil”86. Verificamos, assim, que o legislador, ponderando os interesses em causa, privilegiou os do trabalhador estudante, permitindo-lhe obter qualificações, que no limite, o beneficiam a ele próprio mas também à sociedade. O mesmo preceito é defendido pela legislação espanhola. Efetivamente, o art. 23.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto de los Trabajadores, adiante designado ET, aprovado pelo Real Decreto Legislativo n.º 1/1995, de 24 de março, não menciona qualquer exigência do curso frequentado pelo trabalhador estar relacionado com a atividade da empresa. Nesse mesmo sentido, Yolanda García87 refere que os estudos que dão ao trabalhador o direito de disfrutar das facilidades do referido artigo, não têm que ter nenhuma relação com a atividade que o trabalhador desenvolve na empresa. De facto aquilo que o art. 23.º, n.º 1, alínea a), do ET exige para a atribuição dos direitos a ele inerente são dois requisitos cumulativos, por um lado, que o trabalhador frequente com regularidade os estudos (é necessário que os estudos se prolonguem de forma mais ou menos duradora no tempo) e por outro lado, que esses estudos sejam para a obtenção de um título académico ou profissional (isto é, tenham efeitos académicos ou habilitem para o exercício de uma atividade profissional). No entanto, vários problemas se colocam, pois o referido artigo não especifica o que é “frequentar com regularidade”, não estipula a duração dos estudos e também não especifica o tipo de curso frequentado, nem o carácter do título88. No sentido de esclarecer e de desenvolver o exercício deste direito devem estas questões ser reguladas em convenção coletiva. Aliás, iremos ver no decorrer deste trabalho que o art. 23.º, n.º 1, alínea a), do ET, é um artigo muito vago, que pode dar origem a diversas e amplas interpretações, deixando o legislador na disposição das convenções coletivas a regulamentação do exercício deste direito, art. 23.º, n.º 2, do ET. No que respeita ao regime jurídico italiano, o art. 10.º do Statuto dei Lavoratori (St. Lav.) aprovado pela Lei n.º 300, de 20 maio de 1970, reconhece direitos diferentes consoante os trabalhadores frequentem regularmente cursos em escola primária, secundária ou de qualificação profissional ou consoante frequentem cursos universitários. MARECOS, Diogo Vaz, Código do Trabalho Anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 224. VILLA GIL, Luis Henrique de la [Coord.], Comentarios al Estatuto de los Trabajadores, Iustel, Madrid, 2011, p. 485. MARTÍN PUEBLA, Eduardo, Formación profesional y contrato de trabajo - Un estudio sobre la adquisición de cualificación profesional a cargo de la empresa, La Ley, Madrid, 1998, pp. 196-197.
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iii) Aproveitamento escolar no ano letivo anterior O art. 89.º, n.º 2, do CT, exige que a manutenção do estatuto de trabalhador estudante dependa de aproveitamento escolar no ano letivo anterior. A noção de “aproveitamento escolar” está definida no art. 94.º, n.º 4 e n.º 5, do CT. Assim, considera-se aproveitamento escolar: i) a transição de ano; ii) a aprovação ou progressão em, pelo menos, metade das disciplinas em que o trabalhador estudante esteja matriculado89; iii) a aprovação ou validação de metade dos módulos ou unidades equivalentes de cada disciplina, definidos pela instituição de ensino ou entidade formadora para o ano letivo ou para o período anual de frequência, no caso de percursos educativos organizados em regime modular ou equivalente, que não definam condições de transição de ano ou progressão em disciplinas; ou iiii) considera-se ainda que tem aproveitamento escolar o trabalhador que não satisfaça o supra referido (ou seja, reprove) devido a acidente de trabalho ou doença profissional, doença prolongada, licença em situação de risco clínico durante a gravidez, ou por ter gozado licença parental inicial, licença por adoção ou licença parental complementar por período não inferior a um mês, no ano letivo em que se encontrava inscrito, devendo estas licenças e impedimentos ser comprovados mediante documento emitido pela segurança social. Nos termos do n.º 1 do art. 96.º do CT, o trabalhador estudante deve comprovar perante o empregador o respetivo aproveitamento escolar, no final de cada ano letivo. No nosso entendimento, deve faze-lo mediante certidão emitida pelo estabelecimento de ensino que indique as disciplinas a que o trabalhador estava inscrito e se o mesmo as concluiu com sucesso ou não. Apesar do CT nada referir, entendemos que este comprovativo deve ser exigido depois do trabalhador ter esgotado, num determinado ano letivo e no âmbito do seu estabelecimento de ensino, todas as épocas de avaliação que tinha ao seu dispor.
3.3 REQUISITOS PARA BENEFICIAR DO RJTE Para beneficiar do regime jurídico do trabalhador estudante, o trabalhador deve comprovar perante o empregador a sua condição de estudante (através do certificado de matrícula), devendo apresentar igualmente o horário das atividades educativas a frequentar (horário escolar), art. 94.º, n.º 1, do CT. Caso contrário, como refere Menezes Leitão90, o empregador não é obrigado a conceder este regime a quem não efetue esta comprovação. Acresce a estes elementos a prova do aproveitamento escolar atrás mencionada. O cumprimento dessa obrigação permite ao trabalhador manter os benefícios previstos no RJTE, nos termos do n.º 2 do art. 89.º do CT, já referido. De ressalvar que não são cumuláveis os direitos previstos relativamente ao trabalhador estudante com quaisquer regimes que tenham a mesma finalidade, nomeadamente no que respeita a dispensa de trabalho para frequência de aulas, licenças por motivos escolares ou faltas para prestação de provas de avaliação, art. 94.º, n.º 6, do CT. Como refere Albino Mendes Baptista, o facto de a aprovação de metade das disciplinas ser equiparado a aproveitamento escolar, pode potenciar situações de benefício do RJTE por um período dilatado, vide, BAPTISTA, Albino Mendes, «Considerações…», op. cit., p. 1071, um exemplo desta situação são os estudantes a tempo parcial. 90 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 185. 89
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3.4 O RJTE AO NÍVEL DA INSTITUIÇÃO DE ENSINO A análise do presente trabalho incide sobre os direitos que o trabalhador estudante tem no regime jurídico previsto no Código do Trabalho. No entanto, o trabalhador deve também beneficiar de um regime específico para trabalhadores estudantes ao nível do estabelecimento de ensino que frequenta. O art. 12.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, contém normas sobre especificidades da frequência de estabelecimento de ensino por trabalhador estudante, o qual infra se transcreve na íntegra: “Artigo 12.º Especificidades da frequência de estabelecimento de ensino por trabalhador estudante 1 – O trabalhador estudante não está sujeito: a) A frequência de um número mínimo de disciplinas de determinado curso, em graus de ensino em que isso seja possível, nem a regime de prescrição ou que implique mudança de estabelecimento de ensino; b) A qualquer disposição legal que faça depender o aproveitamento escolar de frequência de um número mínimo de aulas por disciplina; c) A limitação do número de exames a realizar em época de recurso. 2 – Caso não haja época de recurso, o trabalhador estudante tem direito, na medida em que seja legalmente admissível, a uma época especial de exame em todas as disciplinas. 3 – O estabelecimento de ensino com horários pós – laboral deve assegurar que os exames e as provas de avaliação, bem como um serviço mínimo de apoio ao trabalhador estudante decorram, na medida do possível, no mesmo horário. 4 – O trabalhador -estudante tem direito a aulas de compensação ou de apoio pedagógico que sejam consideradas imprescindíveis pelos órgãos do estabelecimento de ensino. 5 – O disposto nos números anteriores não é cumulável com qualquer outro regime que vise os mesmos fins. 6 – O regime previsto no presente capítulo aplica –se ao trabalhador por conta própria, bem como ao trabalhador que, estando abrangido pelo estatuto do trabalhador-estudante, se encontre entretanto em situação de desemprego involuntário, inscrito em centro de emprego de recurso.”
Este artigo apesar de estar inserido na Lei que regulamenta o Código do Trabalho não é dirigido às entidades empregadoras, mas sim aos estabelecimentos de ensino e entidades formadoras91. Ao nível dos estabelecimentos de ensino não há um estatuto do trabalhador estudante universal, quer isso dizer que cada instituição tem o seu regime específico a aplicar aos estudantes que trabalham. Como o referido estatuto não é de aplicação automática deve o trabalhador requerer o reconhecimento do estatuto do trabalhador estudante perante o estabelecimento de ensino, de modo a poder beneficiar das normas instituídas no respetivo regulamento. Nesse sentido, o n.º 2 do art. 94.º do CT determina que para concessão do estatuto junto do estabelecimento de ensino, o trabalhador estudante deve fazer prova, por 91 No mesmo sentido, Maria do Rosário Palma Ramalho refere que o art. 12.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, estabelece especificidades, de conteúdo não laboral, do trabalhador estudante na frequência do estabelecimento de ensino, vide, RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 356.
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qualquer meio legalmente admissível, da sua condição de trabalhador. Normalmente, os estabelecimentos de ensino, no seu regulamento interno do estatuto do trabalhador estudante, especificam os documentos que exigem para a atribuição do referido regime92. Assim, não obstante o trabalhador ter de preencher determinados requisitos para, na sua entidade patronal, poder beneficiar do estatuto do trabalhador estudante, o mesmo, se pretender beneficiar do estatuto ao nível da sua instituição de ensino, terá também de comprovar a sua situação de trabalhador através dos documentos que lhe forem exigidos. Quer isto dizer que o facto de o trabalhador beneficiar do RJTE ao nível do empregador não quer dizer que automaticamente beneficie do estatuto do trabalhador estudante ao nível do estabelecimento de ensino e vice-versa.
3.5 DIREITOS E DEVERES PREVISTOS DO REGIME JURÍDICO DO TRABALHADOR ESTUDANTE Como refere Bernardo Lobo Xavier93, o regime jurídico do trabalhador estudante traduz-se fundamentalmente em especificidades no regime da prestação da atividade laboral que se reportam a três áreas essenciais: organização do tempo de trabalho, justificação de faltas e regime de férias e licenças. 3.5.1 Organização do tempo de trabalho No que respeita à organização do tempo de trabalho94, o legislador pretende compatibilizar a atividade profissional e formativa do trabalhador através da harmonização do horário escolar com o horário de trabalho, mediante a dispensa ao trabalho para frequência de aulas 92 A Comissão Nacional de Proteção de Dados, numa nota enviada aos meios de comunicação em 26/11/2013, considerou que é desproporcionada e atentatória ao direito à vida privada a exigência, por parte do estabelecimento de ensino, aos trabalhadores estudantes da apresentação do recibo de vencimento e da declaração de inexistência de dívidas à Segurança Social. A referida Comissão sustentou que a imposição de apresentação de recibos de vencimento, ou recibos verdes, sem mais, constitui uma exigência desproporcionada, por implicar uma compressão desnecessária do direito à vida privada do estudante. Na nossa opinião, consideramos que a declaração de não divida à Segurança Social não deveria ser exigida, visto que esta nada atesta quanto ao exercício de uma atividade profissional. Quanto ao recibo de vencimento, é um facto que a instituição de ensino tem de saber de alguma forma se determinado estudante, que pretende beneficiar do estatuto do trabalhador estudante e assim ter acesso a mais momentos de avaliação, entre outras vantagens, exerce uma atividade profissional ou não. Poderá ser solicitado, em alternativa ao recibo de vencimento, um comprovativo atualizado da situação profissional do estudante a ser emitido pela segurança social. 93 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo, Manual…, op. cit., p. 858. 94 No sentido de uma clara compreensão do presente subtítulo afigura-nos conveniente definirmos alguns conceitos, assim, nos termos do art. 197.º, n.º 1, do CT, considera-se tempo de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador exerce a atividade ou permanece adstrito à realização da prestação, bem como as interrupções e os intervalos previstos no n.º 2 do mesmo artigo. Nos termos do art. 200.º, n.º 1, do CT, entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e do termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal. Desta noção surge-nos a necessidade de definir o conceito de período normal de trabalho, adiante designado PNT. Por conseguinte, o art. 198.º do CT diz-nos que o período normal de trabalho constitui o tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana, não podendo exceder oito horas por dia e quarenta horas por semana, art. 203.º, n.º 1, do CT. Sobre a noção e especificidades do tempo de trabalho, remete-se para FERNANDES, Francisco Liberal, O tempo de trabalho, comentário aos artigos 197.º a 236.º do Código do Trabalho (revisto pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho), Coimbra Editora, Coimbra, 2012.
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e dispensado o trabalhador de prestar determinadas formas de organização dos tempos de trabalho. A) Horário de trabalho O trabalhador estudante está, em primeiro lugar, obrigado a escolher, de entre as possibilidades existentes, o horário escolar mais compatível com o horário de trabalho, sob pena de não lhe ser reconhecido os direitos previstos no regime do trabalhador estudante, art. 94.º, n.º 3, do CT. Se o trabalhador estudante não conseguir um horário escolar compatível com o horário de trabalho, o n.º 1 do art. 90.º do CT estipula que, sempre que possível, o horário de trabalho do trabalhador estudante deve ser ajustado de modo a permitir a frequência das aulas e a deslocação para o estabelecimento de ensino. Ou seja, a adequação do horário de trabalho tem de ter em conta o tempo necessário para que o trabalhador estudante possa abandonar o local de trabalho e chegar ao estabelecimento de ensino para assistir às aulas por inteiro95. Coloca-se a questão de saber se o empregador, a dada altura e sem motivo justificativo, pode impor a um trabalhador estudante com horário flexível, o cumprimento de um horário de trabalho normal, ou se o trabalhador pode, unilateralmente, optar por exercer um horário diferente daquele que tinha antes de ser trabalhador estudante. Ambas as situações têm resposta negativa, e caso ocorra a primeira situação esta é fundamento para o trabalhador rescindir o seu contrato de trabalho96, caso ocorra a segunda situação, o trabalhador incorre em faltas injustificadas97. Revelando-se impossível o referido ajustamento, e desde que o respetivo horário escolar seja incompatível com o horário de trabalho, o n.º 2 do art. 90.º do CT, estipula que o trabalhador estudante tem direito a dispensa de trabalho para frequência das aulas. Nos termos do n.º 3 do art. 90.º do CT, esta dispensa de trabalho para frequência de aulas pode ser utilizada de uma só vez ou de forma fracionada, incumbindo a escolha, do modo como se fará a sua utilização, ao trabalhador estudante. A referida dispensa tem uma duração variável, subordinada ao período normal de trabalho semanal do próprio trabalhador, e deve observar os seguintes limites legais: a) Três horas de dispensa semanal para um período normal de trabalho igual ou superior a 20 horas e inferior a 30 horas; b) Quatro horas de dispensa semanal para um período normal de trabalho igual ou superior a 30 horas e inferior a 34 horas; c) Cinco horas de dispensa semanal para um período normal de trabalho igual ou superior a 34 horas e inferior a 38 horas; d) Seis horas de dispensa semanal para um período normal de trabalho igual ou superior a 38 horas. MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 227. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de maio de 1990, vide, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Coletânea de Jurisprudência, Ano XV, Tomo III, Palácio da Justiça, Coimbra, 1990, p. 186. 97 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de janeiro de 1994, vide, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Coletânea de Jurisprudência, Ano XIX, Tomo I, Palácio da Justiça, Coimbra, 1994, p. 68. 95
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Assim, a título de exemplo, um trabalhador estudante cujo período normal de trabalho semanal seja de 40 horas, tem direito a 6 horas de dispensa semanal para frequência a aulas e pode utilizar essas 6 horas num único dia de trabalho ou pode dividir essas 6 horas de dispensa pelos diversos dias da semana. É o trabalhador que escolhe como o quer fazer, relembrando que só tem este direito quando o horário das aulas e do trabalho se sobrepõe. Salientamos ainda que esta dispensa de trabalho para frequência de aulas do trabalhador estudante não implica perda de direitos e conta como prestação efetiva de trabalho, n.º 2 do art. 90.º in fine do CT, pelo que o empregador terá de proceder ao pagamento dos valores que sejam devidos ao trabalhador pelo período de tempo em que este se encontra a beneficiar da dispensa do trabalho. Ressalva, no entanto, o n.º 5 do art. 90.º do CT que sempre que os direitos supra mencionados (ajustamento de horário e dispensa de trabalho para frequência a aulas) comprometam manifestamente o funcionamento da empresa fixa-se por acordo entre o empregador, o trabalhador interessado e a comissão de trabalhadores ou, na sua falta, a comissão intersindical, comissões sindicais ou delegados sindicais, as condições em que é decidida a pretensão apresentada. Na falta de acordo, o empregador decide fundamentadamente, informando o trabalhador por escrito. Diogo Vaz Marecos considera que nada obsta a que o requisito da forma escrita possa ser concretizado mediante correio eletrónico para um endereço eletrónico, desde que a esse documento eletrónico seja aposta uma assinatura eletronicamente certificada por entidade certificadora credenciada, a qual equivale à assinatura autografa dos documentos com forma escrita sobre suporte de papel98. Pelo exposto, o empregador não fica obrigado a obter um acordo com a estrutura representativa dos trabalhadores. Tal acordo, ainda que desejável, pode não acontecer, tendo a última palavra o empregador. Em síntese, o empregador pode não permitir ao trabalhador usufruir dos direitos supra mencionados, no entanto, relembramos que tal só pode acontecer quando fundamentadamente estes comprometerem o normal funcionamento da empresa. Na referida disposição legal, o legislador apenas oferece uma situação que pode comprometer manifestamente o normal funcionamento da empresa: o número de trabalhadores estudantes existentes na própria empresa. No entanto, tal situação é meramente exemplificativa, podendo existir outras situações que, de igual modo, comprometam o normal funcionamento da empresa. Desta decisão poderão advir alguns litígios, visto o empregador poder entender que uma determinada situação compromete o normal funcionamento da empresa e o trabalhador não ter o mesmo entendimento. Em casos extremos estes conflitos serão resolvidos pela via judicial, no entanto, consideramos que estas questões poderão ser dirimidas de forma extrajudicial, recorrendo a meios de resolução alternativa de litígios, estando esta matéria no âmbito das competências da mediação laboral. B) Trabalho por turnos A organização do trabalho em regime de turnos é necessária sempre que o período de funcionamento de uma empresa ultrapasse os limites máximos do período normal de trabalho. Normalmente, tal situação acontece no caso de empresas com autorização para abrir ao 98
MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 229.
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público durante muitas horas, ou inseridas em espaços comerciais, em atividades de serviço de horário alargado ou em estabelecimentos de laboração contínua. Nos termos do art. 220.º do CT, considera-se trabalho por turnos qualquer organização do trabalho em equipa em que os trabalhadores ocupam sucessivamente os mesmos postos de trabalho, a um determinado ritmo, incluindo o rotativo, contínuo ou descontínuo, podendo executar o trabalho a horas diferentes num dado período de dias ou semanas. Refere o n.º 2 do art. 221.º do CT que os turnos devem ser organizados atendendo, tanto quanto possível, aos interesses e preferências manifestadas pelos trabalhadores. No que concerne aos trabalhadores estudantes que prestem trabalho em regime de turnos, estes têm direito a que o seu horário por turnos seja elaborado de modo a permitir-lhes a frequência às aulas e a deslocação para o estabelecimento de ensino, 1.ª parte do n.º 4 do art. 90.º do CT. Quando tal não for exequível, estes trabalhadores têm direito de preferência na ocupação de postos de trabalho compatíveis com a sua qualificação profissional e atividade escolar, n.º 4 do art. 90.º do CT, mas tal preferência só existe enquanto durar a incompatibilidade99. Chamamos a atenção de que o empregador não tem de criar um novo posto de trabalho para colocar o trabalhador estudante. A preferência da ocupação do posto de trabalho compatível encontra-se dependente da existência de um outro posto de trabalho que permita essa compatibilidade e pela vagatura desse mesmo posto de trabalho100. No ordenamento jurídico espanhol, um dos dois direitos que o trabalhador estudante tem, e que se encontra previsto no art. 23.º, n.º 1, alínea a), do ET, é o direito a preferir na escolha dos turnos de trabalho, desde que esse seja o regime de organização dos tempos de trabalho existente na empresa. Caso a empresa não labore com regime de turnos, desaparece a facilidade que é dada pelo referido artigo, não tendo o trabalhador qualquer outro direito ao nível de ajustamento de horário. Ainda assim, existindo a possibilidade do trabalhador escolher o turno de trabalho, esta preferência não é um direito absoluto, visto que o art. 36.º, n.º 3, do ET, estipula o princípio de rotação dos trabalhadores, o qual determina que nenhum trabalhador possa estar no turno da noite mais de duas semanas consecutivas. Quer isto dizer, por exemplo, que o trabalhador estudante não poderá escolher sempre o turno da manhã determinando que outros trabalhadores permanecem no turno da noite mais do que o limite legal previsto101. Também o regime jurídico italiano prevê na primeira parte do n.º 1 do art. 10.º do St. Lav. o direito do trabalhador estudante a ser colocado num turno que possibilite a frequência de aulas e a preparação para os exames. No entanto, este direito só existe se o trabalhador frequentar escola primária, secundária ou curso de qualificação profissional. Exclui-se do direito a mudança de turnos, o trabalhador que frequente cursos universitários. Tal situação tem sido muito discutida entre a doutrina italiana pois a maioria considera que esta disposição pode consubstanciar uma violação de direitos constitucionais de igualdade e de oportunidades, previstos no art. 3.º da Constituição Italiana 102. No entanto, esta questão acaba por ter O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/01/1999, mencionou que os trabalhadores estudantes deverão ser retirados das escalas e sujeitos a horário fixo para beneficiarem da dispensa semanal para assistência a aulas e/ou estudo, disponível em www.dgsi.pt, último acesso a 03/05/2014. 100 MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 228. 101 MARTÍN PUEBLA, Eduardo, Formación…, op. cit., p. 208. 102 GIUGNI, Gino [Coord.], Lo Statuto dei lavoratori – Commentario, Giuffrè Editore, 1979, p.131. 99
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pouca relevância jurídica porque, praticamente, todas as convenções coletivas estenderam este direito ao trabalhador que frequente curso universitário103. C) Trabalho noturno Nos termos do art. 223.º, n.º 1, do CT, considera-se trabalho noturno aquele que é prestado num período que tenha a duração mínima de sete horas e máxima de onze horas, compreendendo o intervalo entre as 0 horas e as 5 horas da manhã. O período de trabalho noturno é o compreendido entre as 22 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte, se outro não for estabelecido em Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho, art. 223.º, n.º 2, do CT. Como refere Menezes Leitão104, o trabalho noturno pode causar maiores danos aos trabalhadores devido à inadaptação do ser humano para trabalhar no período noturno, visto o nosso ritmo biológico normal considerar esse período como tempo de descanso. Nesse sentido, o Código do Trabalho estabelece regimes especiais de exclusão ou limitação do trabalho noturno a certas categorias de trabalhadores, nomeadamente: trabalhadoras grávidas, puérperas e lactantes (art. 60.º, n.º 1, do CT), trabalhadores menores (art. 76.º, n.º 1, do CT), e trabalhadores com deficiência ou doença crónica [art. 87.º, n.º 1, alínea b), do CT]. No caso dos trabalhadores estudantes não encontramos nenhuma menção à dispensa de trabalho noturno, nem no âmbito dos artigos que regulamentam o trabalhador estudante, nem no âmbito dos artigos que regulamentam o trabalho noturno. Atendendo à doutrina existente, a mesma só faz referência à dispensa de trabalho noturno para os trabalhadores das categorias supra mencionadas, nunca referindo essa dispensa para o trabalhador estudante. Tais situações levam-nos a concluir que o trabalhador estudante não está dispensado de realizar trabalho noturno. Caso estejamos perante um trabalhador estudante noturno deve aplicar-se as regras gerais do art. 90.º, n.º 1 e n.º 2, do CT (ajustamento do horário de trabalho e, supletivamente, dispensa do trabalho para frequência a aulas). D) Trabalho Suplementar O trabalho suplementar é todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho, art. 226.º, n.º 1, do CT. O trabalho suplementar significa um acréscimo da disponibilidade do trabalhador perante o empregador pois atua em prejuízo do seu descanso diário105. Desse modo, a lei confere um carácter excecional a este tipo de trabalho, visto só poder ser prestado em dois tipos de situações: quando a empresa tenha de fazer face a acréscimo eventual e transitório de trabalho e não se justifique para tal a admissão de trabalhador, n.º 1 do art. 227.º do CT (critério de necessidade); em caso de força maior106, ou quando seja indispensável para prevenir ou reparar prejuízo grave para a empresa ou para a sua viabilidade, n.º 2 do art. 227.º do CT (critério de indispensabilidade)107. LOFFREDO, Antonio, «Lavoratori Studenti», Diritti Lavori Mercati, fasciculo 3, Editoriale Scientifica, Napoli, 2010, p. 674. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito…, op. cit., p. 264. 105 RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II …, op. cit., p. 498. 106 Diogo Vaz Marecos entende que “força maior” é um evento imprevisível ou inevitável, dando como exemplo terramoto, incendio, inundação, intempérie, atentado terrorista, situação de guerra, falta de energia, impossibilidade de obtenção de matérias-primas, pandemia, entre outros, vide, MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 555. 107 AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., p. 279. 103
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O trabalhador é obrigado a prestar trabalho suplementar, salvo se, havendo motivos atendíveis, expressamente solicite a sua dispensa108, n.º 3 do art. 227.º do CT. Esta obrigatoriedade de prestar trabalho suplementar só existe se forem respeitadas as condições para prestação do mesmo, ou seja, desde que estejam preenchidos algum dos fundamentos justificativos acima referidos e dentro dos limites quantitativos previstos no art. 228.º do CT109. No caso concreto do trabalhador estudante, este não é obrigado a prestar trabalho suplementar sempre que este colida com o seu horário escolar ou com a prestação de provas de avaliação, exceto por motivo de força maior110, primeira parte do n.º 6 do art. 90.º do CT. A prestação de trabalho suplementar confere ao trabalhador o direito a um descanso compensatório remunerado e a um complemento remuneratório111. O descanso compensatório remunerado vem previsto no art. 229.º do CT que atualmente prevê as seguintes situações: i) O trabalho suplementar prestado que seja impeditivo do gozo do descanso diário112, confere ao trabalhador o direito ao descanso compensatório remunerado pelo período correspondente às horas de descanso em falta a gozar num dos três dias úteis seguintes (art. 229.º, n.º 3, do CT); ii) O trabalho suplementar prestado em dia de descanso semanal obrigatório113, confere ao trabalhador o direito a um dia Vários autores dão atenção ao conceito de “motivos atendíveis”, Francisco Liberal Fernandes refere que quando existirem motivos atendíveis ou quando não estejam preenchidos os requisitos da prestação do trabalho suplementar, o trabalhador fica desonerado do respetivo cumprimento, apesar da ordem do empregador nesse sentido. Contudo, sendo o empregador a única entidade competente para decidir da legalidade do recurso ao trabalho complementar, o regime acaba por compelir o trabalhador à respetiva execução. O mesmo autor também defende a ideia de que “motivos atendíveis” é um conceito indeterminado, devendo ser apurado casuisticamente o seu alcance, no entanto, como cabe ao empregador apreciar as razões invocadas, este pode restringir a efetividade do direito de escusa do trabalhador, vide, FERNANDES, Francisco Liberal, O tempo…, op. cit., pp. 242-243. A mesma ideia é defendida por João Leal Amado que refere que o conceito de motivos atendíveis é fortemente indeterminado, podendo uma recusa da prestação do trabalho suplementar representar um risco demasiado elevado para o trabalhador, vide, AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., pp. 279-280. Também Diogo Vaz Marecos menciona que “motivos atendíveis” é um conceito indeterminado e flexível, que permite adaptar-se às várias situações da vida prática do trabalhador, no entanto, incumbe ao empregador apreciar a admissibilidade dos motivos invocados pelo trabalhador, vide, MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 556. De igual modo, António Monteiro Fernandes considera que a dispensa do trabalhador para prestar trabalho suplementar pode ser recusada pelo empregador se este considerar que o pressuposto “motivos atendíveis” não está preenchido. Caso isso aconteça o trabalhador não tem legitimidade para desobedecer à ordem de prestar trabalho suplementar e, se não o prestar, pode incorrer em responsabilidade disciplinar, vide, FERNANDES, António Monteiro, Direito do Trabalho, 15.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 385-386. 109 FERNANDES, António Monteiro, Direito…, op. cit., p. 384. 110 FERNANDES, Francisco Liberal, O tempo…, op. cit., p. 236-237. 111 Com a Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, foram introduzidas várias alterações nos direitos dos trabalhadores por prestarem trabalho suplementar, nomeadamente a eliminação de descanso compensatório em determinadas situações e a redução da remuneração auferida pelas horas de trabalho suplementar prestadas. Face a isto foi suscitada a inconstitucionalidade das normas do atual art. 229.º e art. 268.º do CT, no entanto, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 602/2013 considerou que as mesmas não violam nenhuma disposição legal. Esta alteração surge na sequência do Memorando de Entendimento com a Troika e no sentido de trazer competitividade à economia nacional através da redução de custo das empresas. 112 Nos termos do art. 214.º do CT, o trabalhador tem direito a um período de descanso de, pelo menos, onze horas seguidas entre dois períodos diários de trabalho consecutivos. 113 O n.º 1 do art. 232.º do CT refere que o trabalhador tem direito a, pelo menos, um dia de descanso por semana. Normalmente esse dia é o domingo, no entanto, diz-nos o n.º 2 do mesmo artigo que o dia de descanso semanal obrigatório pode deixar de ser o domingo, além de noutros casos previstos em legislação especial, quando o trabalhador presta atividade: a) Em empresa ou sector de empresa dispensado de encerrar ou suspender o funcionamento um dia completo por semana, ou que seja obrigado a encerrar ou a suspender o funcionamento em dia diverso do domingo; b) Em empresa ou sector de empresa cujo funcionamento não possa ser interrompido; c) Em atividade que deva ter lugar em dia de descanso dos restantes trabalhadores; d) Em atividade de vigilância ou limpeza; e) Em exposição ou feira. 108
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de descanso compensatório remunerado a gozar num dos três dias úteis seguintes. (art. 229.º, n.º 4, do CT)114. No que respeita ao complemento remuneratório por prestar trabalho suplementar, o art. 268.º do CT estipula o seguinte: i) O trabalhador tem direito a receber 25 % pela primeira hora de trabalho suplementar ou fração desta e 37,5 % por hora ou fração subsequente, em dia útil; ii) O trabalhador tem direito a 50 % por cada hora ou fração de trabalho suplementar, em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar115, ou em feriado. Sempre que o trabalhador estudante prestar trabalho suplementar, para além dos direitos atrás mencionados, tem direito a um descanso compensatório correspondente a metade do número de horas de trabalho prestadas116, n.º 8 do art. 90.º do CT. Após a análise do regime geral e tendo em conta este direito específico previsto no RJTE, estamos perante dois regimes que se têm de articular, sob pena de se poderem contrariar. Para melhor compreender esta possível contradição daremos três exemplos de situações que podem ocorrer e que colocam dúvidas sobre qual o regime a aplicar. Exemplo 1: Um trabalhador estudante presta 8 horas de trabalho suplementar em dia de feriado. Pelo art. 229.º do CT não teria direito a descanso compensatório, pelo art. 90.º, n.º 8, do CT, já teria direito a metade das horas de trabalho prestado (4 horas). Exemplo 2: Um trabalhador estudante tem um horário de trabalho das 9 horas às 18 horas, com uma hora de intervalo de descanso e fez 5 horas de trabalho suplementar, com fundamento em motivos de força maior (até às 23 horas), como inicia o trabalho no dia seguinte às 9 horas, só pode descansar 10 horas (quando devia descansar 11 horas). Pelo art. 229.º, n.º 3, do CT, teria direito ao número de horas que não pode gozar do descanso diário (1 hora), no entanto pelo art. 90.º, n.º 8, do CT, teria direito a metade do número de horas de trabalho prestadas, ou seja, 2 horas e meia. Exemplo 3: Um trabalhador estudante tem um horário de trabalho das 7 horas às 19 horas com quatro horas de intervalo de descanso e fez 3 horas de trabalho suplementar, com fundamento em motivos de força maior (até às 22 horas), como inicia o trabalho no dia seguinte às 7 horas, só pode descansar 9 horas (quando devia descansar 11 horas). Pelo art. 229.º, n.º 3, do CT, teria direito ao número de horas que não pode gozar do descanso diário (2 horas), no entanto pelo art. 90.º, n.º 8, do CT, teria direito a metade do número de horas prestadas, ou seja 1 hora e meia. Não podemos dizer que o mais favorável é o regime previsto no art. 90.º, n.º 8, do CT, ou o regime do art. 229.º do CT. Entre aplicar o art. 229.º, n.º 4, do CT, e o art. 90.º, n.º 8, do CT, pensamos ser lógico que se o trabalhador prestar a sua atividade num dia de descanso obrigatório deverá ter direito a 114 Quer isto dizer que, o trabalho suplementar prestado em dia de descanso semanal complementar, em dia de feriado ou em dia útil, mas sem colidir com o descanso diário, não confere direito a descanso compensatório, vide, RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II…, op. cit., p. 501. 115 O n.º 3 do art. 232.º do CT refere que é possível existir um período de descanso semanal complementar, contínuo ou descontínuo, em todas ou algumas semanas do ano, podendo o mesmo ser implementado por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou contrato de trabalho, sendo, normalmente, o sábado. 116 Antes da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, o trabalhador estudante que prestasse trabalho suplementar tinha direito a um descanso compensatório igual ao número de horas de trabalho que prestasse.
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um dia de descanso compensatório equivalente, em vez de metade das horas trabalhadas. Neste caso o regime a aplicar será o do art. 229.º, n.º 4, do CT, caso contrário, o regime específico do trabalhador estudante consagraria menos direitos face ao regime geral, o que poderia colocar em causa a disposição constitucional prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 59.º da CRP, que garante a todos os trabalhadores o direito ao repouso e ao lazer e a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas. Ora, os direitos previstos nesta alínea constituem direitos sociais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, razão pela qual têm aplicabilidade direita nas relações entre os privados. Atendendo especificamente ao descanso semanal, a sua consagração visa não só satisfazer as necessidades do trabalhador porque permite que este recupere física e psiquicamente do desgaste sofrido ao longo da semana de trabalho, mas também satisfazer interesses do empregador porque reduz os riscos de acidentes de trabalho e ajuda na obtenção do rendimento esperado, os quais contribuem para o aumento de produtividade da empresa117. No caso do trabalhador estudante prestar trabalho suplementar em dia útil, feriado ou dia de descanso complementar, entendemos que se aplica o regime previsto para os trabalhadores estudantes do art. 90.º, n.º 8, do CT, e deste modo o trabalhador terá direito a um descanso compensatório com a duração de metade das horas prestadas, enquanto pelo regime geral não teria direito a nada. Atendendo à sua especial condição simultânea de trabalhador e de estudante o facto de prestar trabalho suplementar irá retirar-lhe tempo para os seus estudos e por esse facto deve existir a referida compensação. Mais difícil é a utilização entre o art. 90.º, n.º 8, do CT, e o art. 229.º, n.º 3 do CT, visto que por vezes é mais vantajoso um (exemplo 2) e noutras mais vantajoso outro (exemplo 3). Perante este confronto é necessário recorrer, novamente, à alínea d) do n.º 1 do art. 59.º da CRP, mais especificamente ao direito que a mesma estabelece em garantir a todos os trabalhadores o direito ao repouso e ao lazer e a um limite máximo da jornada de trabalho. Através da consagração deste direito pretendeu-se assegurar não só o descanso e a recuperação física do trabalhador entre dois dias de trabalho, de modo a que quando retome a sua atividade profissional possa cumprir satisfatoriamente os deveres emergentes do contrato de trabalho, mas também a compatibilização da vida profissional com a sua vida familiar e social e a proteção da família. Face ao exposto entendemos que deve ser utilizada a norma do Código do Trabalho que mais compense o trabalhador pelo facto de este ter visto diminuídas as suas horas de descanso diário. No que respeita ao acréscimo remuneratório o trabalhador estudante beneficia dos mesmos direitos dos trabalhadores previstos no art. 268.º do CT, já explicados. Também o regime italiano estatui, na parte final do n.º 1 do art. 10.º do St. Lav., que o trabalhador estudante não tem obrigação de prestar trabalho suplementar. De salientar que este direito só existe para o trabalhador que frequente escola primária, secundária ou curso de qualificação profissional, excluindo-se deste direito o trabalhador que frequente cursos universitários. Sobre esta problemática e a sua resolução vale todo o exposto no ponto B sobre o trabalho por turnos.
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FERNANDES, Francisco Liberal, O tempo…, op. cit., p. 284.
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E) Prestação de trabalho em regime de adaptabilidade, banco de horas e horário concentrado O regime da adaptabilidade encontra-se previsto no art. 204.º e segs do CT, o banco de horas encontra-se estabelecido no art. 208.º e segs do CT e o horário concentrado no art. 209.º do CT. Em regra, o tempo de trabalho corresponde a um modelo fixo de distribuição do período normal de trabalho diário e semanal. Este regime rígido tem consequências na gestão da organização produtiva, visto que não se adequa a atividades com desníveis de produção. Tal situação determina que nalgumas alturas os trabalhadores fiquem desocupados, enquanto noutras alturas, os trabalhadores não chegam para assegurar o serviço. Deste modo, e parafraseando Catarina de Oliveira Carvalho118, estes regimes foram previstos no sentido de aumentar a flexibilidade na organização do tempo de trabalho motivada pela necessidade de ajustamento das flutuações da produção à procura do consumidor. Os três regimes são formas de organização dos tempos de trabalho que assentam na maior flexibilidade do cumprimento dos limites máximos legais do período normal de trabalho diário e semanal, os quais deixam de ter de ser observados em termos rígidos em cada dia e em cada semana, para passarem a sê-lo, em termos médios, num plano cronológico mais dilatado, o chamado período de referência. No caso do regime de adaptabilidade119, o trabalhador poderá prestar mais horas de trabalho num determinado dia ou semana, desde que noutro dia ou semana trabalhe menos, de modo que a média do tempo de trabalho no período definido seja de oito horas diárias e quarenta horas semanais. Visto não haver alteração do período normal de trabalho não há lugar a qualquer acréscimo remuneratório. No banco de horas o cumprimento do período normal de trabalho pode ser realizado em termos médios, através de uma conta corrente, onde as horas de trabalho prestadas para além do período normal de trabalho são como que depositadas, para mais tarde serem convertidas em redução equivalente do tempo de trabalho, pagamento em dinheiro ou aumento do período de férias120. Confere-se ao empregador o poder de alargar o PNT diário e semanal até certo limite, de acordo com as necessidades da empresa, sendo o trabalhador “compensado” posteriormente por esse acréscimo de trabalho prestado. O regime da adaptabilidade e do banco de horas podem ser fixados por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, podemos ter adaptabilidade e banco de horas individual (mediante acordo ah hoc ou estabelecido no próprio contrato de trabalho), e também pode existir adaptabilidade e banco de horas grupal (é uma extensão de um destes dois regimes a aplicar a um grupo de trabalhadores da empresa)121. No horário concentrado há a possibilidade de aumentar o período normal de trabalho diário até ao máximo de 4 horas, a que inere um encurtamento do período de trabalho CARVALHO, Catarina de Oliveira, Da Dimensão…, op. cit., p. 267. Quando foi criado o regime da adaptabilidade como forma de organização do tempo de trabalho foi suscitada a inconstitucionalidade dos artigos que regulavam o regime da adaptabilidade individual e grupal, no entanto, o Tribunal Constitucional, considerou, no Acórdão n.º 338/2010, que os mesmos não sofriam de qualquer vício. 120 MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., pp. 505-506. 121 Foi pedida a declaração de inconstitucionalidade dos artigos referentes ao regime do banco de horas individual e grupal, instituídos pela Lei n.º 23/2012, de 25 junho, no entanto, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 602/2013 considerou que o mesmo regime não padecia de qualquer inconstitucionalidade. 118 119
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normal semanal que permite a sua concentração em quatro dias (se tiver origem em acordo individual ou em instrumento de regulamentação coletiva) ou em três dias (se tiver sido estipulado por instrumento de regulamentação coletiva)122. No que se refere a estes regimes de organização dos tempos de trabalho, não pode ser exigido ao trabalhador estudante a prestação de trabalho em regime de adaptabilidade, banco de horas ou horário concentrado, sempre que estes colidam com o seu horário escolar ou com a prestação de provas de avaliação, n.º 6 do art. 90.º do CT123. No caso de o trabalhador estudante prestar trabalho em regime de adaptabilidade, banco de horas ou horário concentrado é assegurado um dia por mês de dispensa, sem perda de direitos, contando como prestação efetiva de trabalho, pelo que o empregador terá de proceder ao pagamento dos valores que sejam devidos ao trabalhador pelo dia em que este se encontra a beneficiar da dispensa do trabalho, n.º 7 do art. 90.º do CT. No âmbito desta disposição legal surgem outras questões, para as quais o artigo não nos dá resposta, nomeadamente quem marca este dia de dispensa e se o mesmo pode ser gozado de forma interpolada. Tendo em atenção a redação do artigo, este dia de dispensa deve ser assegurado pelo empregador, devendo ser estipulado por acordo entre este e o trabalhador, não sendo possível esse acordo consideramos que cabe ao empregador (tal como acontece noutras situações do Código) determinar qual será o dia de dispensa que o trabalhador irá gozar, devendo ter em conta as necessidades da empresa. De igual modo se ambas as partes acordarem em que o dia em causa seja gozado de forma interpolada, parece-nos que tal situação é possível. Caso não haja acordo entre as partes e no sentido de permitir um maior descanso e recuperação por parte do trabalhador, bem como diminuir o impacto que possa ter ao nível da necessidade de organização no seio da empresa, entendemos que o dia em causa deve ser gozado de forma seguida. A violação dos direitos do trabalhador a horário ajustado, dispensa de trabalho para frequência de aulas e das disposições sobre a organização dos tempos de trabalho é considerada uma contraordenação grave124, n.º 9 do art. 90.º do CT. 3.5.2 Faltas para prestação de prova de avaliação Os trabalhadores estudantes beneficiam de um regime especial de faltas justificadas para prestação de provas de avaliação, previsto no art. 91.º do CT. A) O regime geral das faltas – breve abordagem O n.º 1 do art. 248.º do CT define a falta como a ausência do trabalhador do local em que devia desempenhar a atividade durante o período normal de trabalho diário. Como refere João Leal Amado125, a noção de falta pressupõe a conjugação de um elemento material (ausência física do local de trabalho) e de um elemento normativo (durante o período de FERNANDES, Francisco Liberal, O tempo…, op. cit., p. 114. A mesma posição é defendida por MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código…, op. cit., pp. 488, 500 e 504 e por FERNANDES, Francisco Liberal, O tempo…, op. cit., pp. 71, 105 e 114. 124 As contraordenações laborais podem ser classificadas de leves, graves e muito graves, tendo em conta a relevância dos interesses violados, art. 553.º do CT. 125 AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., p. 295. 122
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trabalho devido). Salientamos no entanto que a noção não é a mais correta, pois devemos considerar que a falta se reporta à ausência do trabalhador durante o horário de trabalho e não durante o período normal de trabalho. Se atendermos às noções de PNT e à noção de falta, numa interpretação literal, podíamos concluir que o trabalhador não estaria em falta desde que estivesse presente na empresa durante o número de horas de trabalho a que está diariamente obrigado126. Entendemos que uma interpretação neste sentido não está conforme à ratio da norma, pelo que esta deve reportar-se ao horário de trabalho. As faltas podem ser justificadas ou injustificadas, n.º 1 do art. 249.º do CT. As faltas justificadas estão enumeradas no n.º 2 do art. 249.º do CT, abrangendo ainda outras situações previstas no Código e noutros diplomas legais. De referir que para a falta ser justificada, não obstante ter de se enquadrar na enumeração do artigo referido, carece também de comunicação ao empregador. As faltas injustificadas são determinadas por exclusão, ou seja, abrangem todas as ausências do trabalhador que não constem da enumeração legal do n.º 2 do supra citado artigo ou de outros diplomas legais, art. 249.º, n.º 3, do CT. Neste contexto, a alínea c) do n.º 2 do art. 249.º do CT considera como falta justificada, a falta do trabalhador, motivada pela prestação de prova em estabelecimento de ensino, nos termos do art. 91.º do CT. No que diz respeito aos efeitos das faltas justificadas, estas podem implicar ou não perda de retribuição. A regra geral, prevista no n.º 1 do art. 255.º do CT, é a de que a falta não afeta qualquer direito do trabalhador, seja antiguidade, seja retribuição. No entanto, o legislador, no n.º 2 do supra citado artigo, estabeleceu diversas situações em que, apesar de a falta ser justificada, a retribuição não é devida. No que concerne às faltas injustificadas, estas constituem violação do dever de assiduidade e determinam perda da retribuição correspondente ao período de ausência, que não é contado na antiguidade do trabalhador, n.º 1 do art. 256.º do CT. No caso do trabalhador estudante, as faltas para prestação de provas de avaliação são consideradas faltas justificadas e visto não se encontrarem no elenco previsto no n.º 2 do art. 255.º do CT, podemos concluir que, a contrario sensu, não determinam perda de retribuição, nem afetam a antiguidade do trabalhador127. Visto que a falta do trabalhador para a prestação de provas de avaliação é justificada, consideramos também importante perceber o conceito de “provas de avaliação”. Assim, o n.º 7 do art. 91.º do CT considera prova de avaliação o exame ou outra prova, escrita ou oral, ou a apresentação de trabalho, quando este o substitua ou complemente e desde que determine direta ou indiretamente o aproveitamento escolar. B) As faltas do trabalhado estudante No que se refere ao regime do trabalhador estudante, consideram-se justificadas as faltas para prestação de provas de avaliação: i) No dia da prova e no dia imediatamente anterior, aí se incluindo dias de descanso semanal e feriados (normalmente, sábados domingos e RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II …, op. cit., p. 530. O art. 260.º do CT enumera, sem carater taxativo, as prestações incluídas ou excluídas da retribuição. No âmbito deste artigo podemos verificar que, em caso de falta para prestação de provas de avaliação, o trabalhador não tem direito a receber o subsídio de refeição do dia em que faltou. Para um maior aprofundamento da temática da retribuição: noção, elementos essenciais e complementos remuneratórios, vide, RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II …, op. cit., pp. 569-578. 126 127
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feriados), alínea a) e c) do n.º 1 do art. 91.º do CT; ii) No caso de provas em dias consecutivos ou de mais de uma prova no mesmo dia, os dias imediatamente anteriores são tantos quantas as provas de avaliação a prestar. Estão aqui incluídos dias de descanso semanal e feriados, alínea b) e c) do n.º 1 do art. 91.º do CT. Exemplo: Existe prova de avaliação à quinta-feira e à sexta-feira, o trabalhador estudante tem direito a faltar justificadamente aos dias das provas (quinta-feira e sexta-feira) e ainda aos dias anteriores. Neste caso, como tem duas provas de avaliação a presta, pode faltar também na terça-feira e na quarta-feira. No entanto, há a salientar que os direitos supra mencionados têm limites: i) As faltas dadas não podem exceder quatro dias por disciplina em cada ano letivo, alínea d) do n.º 1 do art. 91.º do CT; e ii) Estes direitos só podem ser exercidos em dois anos letivos relativamente a cada disciplina, n.º 2 do art. 91.º do CT. O artigo não especifica se os anos letivos são consecutivos ou interpolados, daí que possamos dizer que se aplicam estes direitos ainda que em anos letivos interpolados. O n.º 6 do art. 91.º do CT, atribui outro direito aos trabalhadores estudantes, que acresce aos previstos no n.º 1 do art. 91.º do CT, isto é, após o trabalhador ter esgotado a possibilidade de faltar justificadamente ao dia da prova de avaliação, o Código do Trabalho entende ainda como justificadas as faltas motivadas pela necessidade de deslocação para efeitos de prestação de provas de avaliação, sendo retribuídas até 10 faltas em cada ano letivo, independentemente do número de disciplinas. Significa isto que se o trabalhador estudante exceder as 10 faltas para deslocações em cada ano letivo, estas não deixam de ser consideradas justificadas, contudo implicam perda de retribuição. Atendendo mais uma vez ao ordenamento jurídico espanhol, o segundo e último direito que o trabalhador tem no âmbito da empresa para poder frequentar cursos para a obtenção de um título académico, além da preferência na escolha dos turnos (já referida), é o direito de gozar das licenças necessárias para realizar exames, art. 23.º, n.º 1, aliena a), do ET. Estamos, novamente, perante um preceito vago, este que não especifica o número de licenças a que o trabalhador espanhol tem direito, nem a duração dessas mesmas licenças, tão pouco a forma como o trabalhador deve comunicar ao empregador que as pretende gozar. Também não diz a noção de exame e nada refere quanto ao carácter retributivo ou não da licença concedida ao trabalhador. Mais uma vez a fixação dos procedimentos para o exercício deste direito é remetida para as convenções coletivas, art. 23.º, n.º 2, do ET. Nesse âmbito salientamos as principais diferenças da legislação espanhola relativamente ao regime jurídico português já apresentado: no que se refere ao número de licenças, as convenções coletivas espanholas, têm fixado, de um modo geral, o direito ao trabalhador a 10 dias por ano, independente do número de disciplinas128. No que diz respeito à duração da licença, há uma grande divergência mas tem-se entendido que deve ser concedida ao trabalhador uma licença equivalente ao tempo máximo de duração da prova, assim como, o tempo imprescindível para a deslocação para a realização da prova e o tempo necessário da volta da mesma para o local de trabalho129. Por último, o assunto que tem gerado mais dis128 129
MARTÍN PUEBLA, Eduardo, Formación..., op. cit., pp. 200-201. VILLA GIL, Luis Henrique de la [Coord.], Comentarios…, op. cit., p. 491.
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cussão é saber se a licença do trabalhador é ou não retribuída. O artigo nada diz, no entanto tanto a doutrina como a jurisprudência espanholas têm-se inclinado por interpretar o silêncio do legislador como sendo uma licença não retribuída130. Para tal justificam que as licenças retribuídas estão previstas no art. 37.º n.º 3 do ET e não estando esta licença elencada no referido artigo é porque o legislador não quis que a mesma fosse retribuída. Não obstante tal entendimento, é dada total liberdade às convenções coletivas para poderem estipular, caso queiram, as licenças para frequência de exames como retribuídas, estabelecendo assim um regime mais favorável ao trabalhador131. No caso da legislação italiana, o n.º 2 do art. 10.º do St. Lav. prevê o direito do trabalhador estudante a um usufruir de uma licença diária retribuída para realizar provas de avaliação. O trabalhador tem direito a faltar ao trabalho somente no dia da realização do exame e, ao contrário do que acontece em Espanha, esta licença é retribuída e tem-se entendido que o trabalhador não tem de voltar ao seu posto de trabalho após ter terminado a prova de avaliação132. Este direito tem um âmbito de aplicação mais amplo do que os dois direitos italianos enunciados até ao momento, visto que se estende a todos os trabalhadores estudantes, incluindo aqueles que frequentem cursos universitários. Enunciados os direitos previsto no art. 10.º do St. Lav., o n.º 3 do mesmo artigo refere que o empregador tem a faculdade de solicitar ao trabalhador a apresentação de um comprovativo que ateste a sua qualidade de estudante, de modo a este poder beneficiar de quaisquer dos direitos enunciados (mudança de turnos, dispensa de trabalho suplementar e falta para prestação de prova). A dispensa para frequência de provas acaba por ser um direito transversal aos vários ordenamentos jurídicos, as suas características, nomeadamente, duração, aviso prévio, retribuição, entre outras, é que acabam por variar. De facto, o regime português especifica praticamente tudo sobre essas faltas justificadas; o regime espanhol refere que há direito a elas mas como já verificámos é muito vago, remetendo a sua regulamentação para a contratação coletiva; por seu lado, o regime italiano apesar de conseguir especificar mais aspetos que a legislação espanhola, estes não são suficientes, sendo regulamentado, também, em convenção coletiva tudo o que for necessário para o exercício destes direitos. C) Comunicação ao empregador da ausência para prestação de provas de avaliação Como já referimos não basta que a falta seja justificada, exige-se que o trabalhador estudante comunique previamente à entidade empregadora a ausência para prestação de provas de avaliação. O legislador nada diz sobre essa comunicação, nem sobre o respetivo aviso prévio, pelo que, na falta de disposição específica, consideramos que deve ser aplicada a regra existente para a comunicação de faltas prevista no art. 253.º e segs. do CT. Sendo assim, o trabalhador deve comunicar previamente a sua falta quando previsível, acompanhada da indicação do motivo justificativo, com a antecedência mínima de cinco dias. Tratando-se de ausência imprevisível, pouco provável no nosso caso, deve comunicar logo que possível. MARTÍN PUEBLA, Eduardo, Formación..., op. cit., pp. 205-206. VILLA GIL, Luis Henrique de la [Coord.], Comentarios…, op. cit., p. 490. 132 MARTÍN PUEBLA, Eduardo, Formación…, op. cit., p. 203. 130 131
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No entanto como defende Albino Mendes Baptista133, a utilização do regime geral de comunicação de faltas para estas situações não será o mais adequado, visto que o calendário de exames é definido, normalmente no início do ano letivo. O mesmo autor considera ainda que no âmbito do princípio da boa-fé, impõe-se um aviso prévio mais dilatado, visto que o trabalhador estudante tem acesso, na maioria dos casos com grande antecedência, aos dias da realização das provas de avaliação. Assim, entendemos que o trabalhador estudante deve comunicar à entidade empregadora o calendário de avaliação logo que o mesmo seja do seu conhecimento, o que permitirá minimizar os efeitos da ausência do trabalhador na organização e estrutura produtiva da empresa. Caso, atendendo ao regime de avaliação específico de alguns cursos, não seja possível proceder à comunicação nos termos atrás mencionados então recorrer-se-á ao regime geral de comunicação de faltas já enunciado. D) O novo regime de cumulação introduzido pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho Em alternativa ao regime de faltas previsto n.º 1 do art. 91.º do CT, a Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, introduziu alterações nos n.os 3, 4 e 5 do referido artigo, nos quais veio admitir que, quando o curso que o trabalhador estudante se encontre a frequentar for organizado mediante o regime de sistema europeu de transferência e acumulação de créditos (ECTS), o trabalhador estudante pode optar por cumular os dias anteriores ao da prestação das provas de avaliação, num máximo de 3 dias seguidos ou interpolados, ou do correspondente em termos de meios-dias interpolados. Para que possa beneficiar desta cumulação, o trabalhador tem de avisar a entidade empregadora com a antecedência legal prevista de 48 horas em caso de um dia ou meio dia de falta ou 8 dias em caso de dois ou três dias de falta. Porém esta cumulação só é possível se os dias anteriores às provas de avaliação que o trabalhador estudante deixou de usufruir não tiverem sido dias de descanso semanal ou feriados. Mediante esta nova disposição o legislador pretendeu adaptar o regime do trabalhador estudante aos cursos que estejam organizados no regime de sistema europeu de transferência e acumulação de créditos (ECTS)134. Tal necessidade prende-se com o facto de estes cursos conterem disciplinas que valem, entre elas, um número diferenciado de ECTS: as disciplinas onde o aluno tem que trabalhar mais terão um maior número de créditos e, por isso, as suas notas terão um peso maior na média. Através desta disposição legal permite-se que o trabalhador possa usufruir de mais dias para disciplinas que valham mais ECTS e que tendencialmente serão mais difíceis. No entanto, se essa foi a vontade do legislador, este não faz distinção entre o valor de créditos atribuídos a cada disciplina para a utilização desta faculdade, antes pelo contrário, deixa no âmbito discricionário do trabalhador a utilização deste direito de acordo com as disciplinas que, particularmente, este considerar mais difíceis. A violação dos direitos do trabalhador a faltar justificadamente nos dias de prova e no dia imediatamente anterior, a faltar para deslocação para provas e à cumulação dos dias anteriores ao da prestação das provas é considerada uma contraordenação grave, n.º 8 do art. 91.º do CT. BAPTISTA, Albino Mendes, «Considerações…», op. cit., pp. 1068-1069. MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código…, op. cit., p. 2 da errata. ECTS, é a sigla para European Credit Transfer and Accumulation System.
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3.5.3 Controlo da assiduidade No sentido de verificar se efetivamente o trabalhador estudante utiliza a dispensa ao trabalho para frequentar as aulas há a possibilidade do empregador poder efetuar o controlo de assiduidade do trabalhador estudante. Assim, estabelece o n.º 2 art. 96.º do CT que, por acordo entre empregador e trabalhador estudante, o controlo de assiduidade pode ser efetuado diretamente pelo empregador, através dos serviços administrativos do estabelecimento de ensino, por correio eletrónico ou fax, no qual é aposta uma data e hora a partir da qual o trabalhador-estudante termina a sua responsabilidade escolar. Esta fiscalização pode ocorrer sempre que o empregador entender, não se limitando a um único momento, caso contrário “frustrar-se-ia a natureza da averiguação, que tem em vista aferir da frequência ou não das aulas, bem como da presença do trabalhador em prova de avaliação” 135. O n.º 3 do supra citado artigo refere a forma de controlo da assiduidade na falta de acordo entre empregador e trabalhador estudante. Nesta situação, para que o empregador proceda ao controlo da assiduidade do trabalhador estudante às aulas e às provas de avaliação, pode o primeiro, exigir ao trabalhador nos 15 dias seguintes à utilização da dispensa de trabalho para esse fim, a prova de que frequentou as aulas, bem como o comprovativo da presença nas provas de avaliação. De salientar que o exercício deste direito por parte do empregador está dependente do estabelecimento de ensino realizar o controlo de assiduidade aos seus estudantes. No âmbito deste controle, caso o empregador verifique que o trabalhador estudante utiliza a dispensa de trabalho para frequência de aulas e as faltas para prestação de provas de maneira indevida, devem os direitos inerentes ao referido estatuto cessar de imediato, de acordo com o art. 95.º, n.º 3, do CT. Além disso, entendemos que nestas situações não será descabido considerar que as faltas que foram dadas indevidamente devam ser consideradas faltas injustificadas com todas as suas consequências legais. 3.5.4 Férias e licença sem retribuição A concessão dos direitos do regime do trabalhador estudante além das vantagens ao nível dos horários e do regime de faltas para prestação de provas, confere ainda aos trabalhadores estudantes vantagens ao nível das férias e de uma licença sem retribuição, distinguindo-os dos demais trabalhadores. A) Férias O direito a férias é atualmente um direito reconhecido a todas as categorias de trabalhadores e deve ser exercido de modo a proporcionar ao trabalhador a sua recuperação física e psíquica, condições de disponibilidade pessoal, integração na vida familiar e participação social e cultural, n.º 4 do art. 237.º do CT. Deste modo, como refere João Leal Amado136, as férias analisam-se, por um lado, num tempo de recuperação de energias e, por outro, num tempo de auto disponibilidade do trabalhador-pessoa-cidadão. 135 136
MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 237. AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., p. 283.
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Regra geral, a época do ano em que o trabalhador usufrui das suas férias é marcada por acordo entre empregador e trabalhador (atualmente o período anual de férias tem a duração mínima de 22 dias úteis137); na falta de acordo, cabe ao empregador proceder unilateralmente à marcação das férias, após audição da estrutura representativa dos trabalhadores e dentro dos parâmetros estabelecidos no art. 241.º do CT. No sentido de assegurar um efetivo repouso do trabalhador, o ideal seria o gozo ininterrupto do período de férias, no entanto, o art. 241.º, n.º 8, do CT, permite que o gozo do período de férias possa ser interpolado, desde que haja acordo entre empregador e trabalhador, e desde que sejam gozados, no mínimo, 10 dias úteis consecutivos. No caso concreto dos trabalhadores estudantes, mais uma vez tem-se em consideração a mencionada lógica de conciliação entre a vida profissional e a vida estudantil e procura-se garantir que a prestação da atividade laboral é conciliável com a formação educacional do trabalhador138. De facto, nos termos do n.º 1 do art. 92.º do CT, o trabalhador estudante tem o direito a marcar o período de férias em conformidade com as suas necessidades escolares, podendo gozar até 15 dias úteis de férias interpoladas, sem prejuízo do número de férias a que tem direito, e na medida em que tal seja compatível com as exigências imperiosas do funcionamento da empresa. Este regime próprio de marcação de férias do trabalhador estudante afasta o previsto no art. 241.º, n.º 8, do CT. Ou seja, como já foi explicado, a lei permite o gozo interpolado das férias desde que haja acordo entre as partes e desde que o trabalhador goze pelo menos 10 dias úteis de férias consecutivos, assim, o trabalhador estudante tem regalias acrescidas nesse aspeto, visto que, tendo por base um período de férias de 22 dias úteis, é-lhe permitido gozar 15 dias interpolados o que determina que só possa ter o gozo consecutivo de 7 dias úteis. Para que o trabalhador estudante possa beneficiar desta derrogação especial é necessário que se verifique uma necessidade escolar, embora esta não seja difícil de provar como salienta Diogo Vaz Marecos139, sendo suficiente a preparação do trabalhador para uma prova de avaliação. A verdade é que cabe ao trabalhador alegar e provar que a marcação dos dias interpolados de férias a que tem direito se prende com as suas necessidades escolares140. Salientamos que a pretensão do trabalhador estudante em marcar as férias de acordo com o n.º 1 do art. 92.º do CT está também condicionada a que tal seja compatível com as Com a Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, foram revogados os preceitos do Código do Trabalho que estipulavam o direito à majoração das férias em mais 3 dias, tendo sido suscitada a inconstitucionalidade dessa revogação. No entanto, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 602/2013 considerou que o atual regime não padecia de qualquer inconstitucionalidade, visto que não estava em causa a alteração à duração mínima do período anual de férias, acrescentando que nada impedia que por convenção coletiva de trabalho ou contrato individual fossem consagrados períodos de férias mais amplos que o mínimo legal. Nesse sentido, considerou inconstitucional o n.º 3 do art. 7.º da Lei 23/2012, de 25 de junho, que pretendia reduzir as majorações do período anual de férias estabelecidas em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho ou cláusulas de contratos de trabalho em montante equivalente até três dias. 138 MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código…, op. cit., p. 269. 139 MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 232. 140 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/2008, disponível em www.dgsi.pt, último acesso a 03/05/2014. O mesmo acórdão refere ainda que caso o trabalhador não demostre que havia formulado o pedido das férias interpoladas para satisfazer as suas necessidades escolares, ao empregador é perfeitamente lícito não autorizar o gozo desses dias de férias, não existindo qualquer fundamento para o trabalhador considerar que o empregador está a agir com conduta culposa e não havendo motivo para rescisão do contrato por justa causa do trabalhador. 137
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exigências imperiosas do funcionamento da empresa, nomeadamente que seja conciliável com o período de encerramento da empresa para férias, que não ponha em causa a capacidade produtiva do empregador, entre outras. Quem afere se tal marcação de férias é compatível com as necessidades da empresa é o empregador, devendo justificar ao trabalhador sempre que não puder atender este pedido. Ainda que o empregador não cumpra o disposto no art. 92.º, n.º 1, do CT, não pode o trabalhador unilateralmente exercer esse direito a férias, se tal acontecer, incorre em faltas injustificadas, podendo-lhe ser instaurando um processo disciplinar e em último caso, tal situação pode constituir justa causa de despedimento. A violação do direito do trabalhador estudante a marcar os 15 dias de férias interpolados, preenchidos os requisitos do referido artigo, é considerada uma contraordenação grave, n.º 3 do art. 92.º do CT. B) Licença sem retribuição As licenças sem retribuição encontram-se previstas no art. 317.º do CT e têm como efeito a suspensão do contrato de trabalho (art. 317.º, n.º 4, do CT), o que determina a paralisação dos direitos e deveres decorrentes da efetiva prestação do trabalho, permanecendo, no entanto, o vínculo para determinados efeitos, nomeadamente, para a antiguidade do trabalhador e para o direito a retomar o seu posto de trabalho, no final do prazo da licença, art. 295.º do CT141. A licença sem retribuição é estabelecida, em regra, por acordo entre o empregador e o trabalhador e pode fundar-se em qualquer motivo, tendo o empregador a possibilidade de rejeitar a sua concessão, n.º 1 do art. 317.º do CT. Contudo, o legislador estabeleceu, no n.º 2 do art. 317.º do CT, determinadas situações em que a licença sem retribuição pode ser concedida ao trabalhador sem o acordo do empregador. Segundo este preceito legal, o trabalhador tem direito a usufruir de uma licença sem retribuição, com duração superior a 60 dias, para frequência de cursos de formação profissional ou para frequência de cursos ministrados em estabelecimento de ensino. Nestes casos, a licença sem retribuição resulta do exercício de um direito potestativo do trabalhador142, com vista à sua valorização profissional. Perante estas circunstâncias, o empregador apenas pode recusar a concessão destas licenças, se o trabalhador tiver beneficiado de licença para o mesmo fim nos últimos dois anos; se o trabalhador tiver uma antiguidade na empresa inferior a três anos; se estivermos perante uma micro ou pequena empresa e não seja possível substituir o funcionário, entre outras situações previstas no n.º 3 do art. 317.º do CT. Atendendo especificamente ao caso dos trabalhadores estudantes, estes continuam a poder beneficiar das regras estabelecidas para a concessão de uma licença sem retribuição nos termos gerais, às quais acresce o direito específico do n.º 2 do art. 92.º do CT, o qual determina que o trabalhador estudante, tem direito, em cada ano civil, a requerer, por motivos escolares, o gozo de uma licença sem vencimento, com duração até 10 dias úteis seguidos ou interpolados. Este direito permite ao trabalhador intercalar dias de licença tendo em conta as suas necessidades escolares, podendo, por exemplo, usufruir de um dia numa semana, outro dia noutra semana, do modo que lhe seja mais conveniente para os estudos. 141 142
XAVIER, Bernardo da Gama Lobo, Manual…, op. cit., p. 650. MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código…, op. cit., p. 680.
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Para beneficiar destes dias de licença sem retribuição, o trabalhador estudante deve solicitá-la com a antecedência legal prevista no art. 96.º, n.º 4, do CT: i) No caso de 1 dia de licença, esta deve ser solicitada com a antecedência de 48 horas, ou sendo inviável, logo que possível; ii) No caso de 2 a 5 dias de licença, esta deve ser solicitada com a antecedência de 8 dias; iii) No caso de mais de 5 dias de licença, esta deve ser solicitada com a antecedência de 15 dias. A violação do direito do trabalhador estudante poder usufruir dos 10 dias da licença sem retribuição é considerada contraordenação leve, n.º 3 do art. 92.º do CT. O Estatuto de los Trabajadores espanhol não prevê as licenças sem retribuição, podendo estas ser estabelecidas por acordo individual entre empregador e trabalhador ou por convenção coletiva de trabalho, com as mais diversas finalidades. No que respeita ao regime jurídico italiano, já referimos que o art. 10.º do St. Lav. contém direitos que os trabalhadores estudantes podem beneficiar, no entanto, tendo em conta que esta disposição legal não sofre alterações há mais de 40 anos, este artigo deve ser analisado conjuntamente com as convenções coletivas italianas e com a licença para formação, prevista na Lei n.º 53, de 8 de março de 2000, semelhante à nossa licença sem retribuição. De facto, é possível encontrar no art. 5.º da Lei n.º 53, de 8 de março de 2000, a possibilidade do trabalhador italiano poder usufruir de uma licença para formação sem retribuição, cuja duração não pode ser superior a 11 meses, contínuos ou fracionados, podendo ser direcionada para a conclusão da escolaridade obrigatória, obtenção de diploma ou grau universitário, sendo a regulamentação da sua utilização remetida para a contratação coletiva. Durante o tempo de exercício desta licença, o trabalhador mantém o direito ao seu posto de trabalho mas não recebe qualquer retribuição. Não obstante ser mais um direito para o trabalhador que pretenda estudar, acaba por ter uma eficácia prática muito reduzida, por um lado porque o trabalhador não recebe retribuição, por outro lado porque apenas os trabalhadores do sector público ou privado com contratos há mais de 5 anos é que podem usufruir desta licença, e, por último, porque o empregador pode recusar ou adiar a atribuição desta licença se em causa estiverem necessidades de funcionamento da empresa. Também a contratação coletiva italiana contém em si direitos que pretendem especificar e melhorar a proteção dos trabalhadores estudantes. Essa proteção é conseguida pela introdução generalizada nas contratações coletivas do mecanismo das 150 horas. Ou seja, os trabalhadores podem beneficiar de 150 horas para o exercício do direito ao estudo, sendo que estas horas estão configuradas como uma licença extraordinária retribuída que os trabalhadores podem utilizar para a frequência de cursos e aulas. Normalmente, estas horas são distribuídas por 3 anos (50 horas por ano), no entanto, os termos gerais da sua utilização estão previstos em cada contratação coletiva. Chamamos a atenção que quase todas as contratações coletivas limitam este direito aos trabalhadores com contrato por tempo indeterminado ou, ainda que seja a termo, que o mesmo tenha duração superior a um ano143. Entre nós esta licença, nestes termos, não existe, mas podemos encontrar algumas semelhanças com a dispensa de trabalho diária para frequência a aulas, nos termos da qual o trabalhador pode ausentar-se do trabalho no máximo 6 horas por semana, mantendo, o 143
LOFFREDO, António, «Lavoratori…», op. cit., p. 675.
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direito à sua retribuição144. Todavia, ainda assim em Portugal podem usufruir da dispensa do art. 90.º do CT todos os trabalhadores e não só aqueles que têm contrato por tempo indeterminado. 3.5.5 Promoção profissional Pode colocar-se a questão de saber se pelo facto do trabalhador obter um nível de qualificação mais elevado, a empresa está obrigada a promovê-lo ou a aumentar a sua retribuição. A resposta a esta situação está no art. 93.º do CT. O mesmo apenas contém uma disposição recomendatória dirigida ao empregador no sentido da promoção profissional do trabalhador estudante, de acordo com a valorização obtida no curso que frequentou145. Diogo Vaz Marecos146 considera que, nos termos deste artigo, o trabalhador não tem um verdadeiro direito à requalificação profissional pelo facto de ter adquirido maiores qualificações académicas, assim, nada impede que o trabalhador, mesmo após ter obtido melhor qualificação, continue a desempenhar as funções correspondentes à atividade para que se encontra contratado147. No nosso entendimento, caso sejam abertas vagas na empresa para a ocupação de posto de trabalho cujas habilitações exigidas são as que o trabalhador estudante obteve nessa qualidade deve o mesmo ter direito, em igualdade de condições, a concorrer para o preenchimento da vaga existente, mas não tem direito de preferência na sua ocupação148. 3.5.6 Cessação dos direitos inerentes ao regime jurídico do trabalhador estudante Determina o n.º 3 do art. 95.º do CT que os direitos do trabalhador estudante cessam imediatamente em caso de falsas declarações relativamente aos factos de que depende a concessão do estatuto ou a factos constitutivos de direitos, bem como, quando estes sejam utilizados para outros fins. O trabalhador que praticar algum desses factos incorre na violação do dever de lealdade, previsto na alínea f ) do n.º 1 do art. 128.º do CT, podendo o empregador instaurar o correspondente procedimento disciplinar e, em última instância, pode consubstanciar justa causa para despedimento. Por outro lado, o n.º 1 do art. 95.º do CT refere que cessa o direito ao horário de trabalho ajustado, à dispensa de trabalho para frequência de aulas, à marcação do período de férias de acordo com as necessidades escolares ou à licença sem retribuição, quando o trabalhador estudante não tenha obtido aproveitamento escolar no ano em que beneficiou desses direitos. Ainda assim, a nossa legislação é mais vantajosa porque se em Itália o trabalhador tem direito a 50 horas retribuídas por ano, se o nosso trabalhador usar as 6 horas por semana a que, no máximo, tem direito, em cerca de 3 meses atinge as 50 horas. 145 MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código…, op. cit., p. 270 e RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II …, op. cit., p. 358. 146 MARECOS, Diogo Vaz, Código…, op. cit., p. 233. 147 O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/10/2012 refere que do art. 93.º do CT decorre que a reclassificação profissional, em função das novas qualificações do trabalhador, não é automática. 148 A Lei n.º 26/81, de 21 de agosto, previa no n.º 2 do art. 8.º que o trabalhador tinha direito de preferência, em igualdade de condições, no preenchimento de cargos para que se achassem habilitados em virtude dos cursos obtidos na qualidade de trabalhador estudante. 144
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Os restantes direitos, ou seja, o direito de faltar justificadamente para prestação de provas e o direito do trabalhador estudante não ser obrigado a prestar trabalho suplementar, exceto por motivo de força maior, nem trabalho em regime de adaptabilidade, banco de horas ou horário concentrado quando os mesmos coincidam com o horário escolar ou com prova de avaliação, cessam quando o trabalhador estudante não tenha aproveitamento em dois anos consecutivos ou três interpolados, n.º 2 do art. 95.º do CT. Ainda assim o legislador, no n.º 4 do art. 95.º do CT, permite que o trabalhador estudante possa exercer de novo os direitos no ano letivo subsequente àquele em que os mesmos cessaram, não podendo esta situação ocorrer mais de duas vezes. A partir do momento que a referida disposição legal não especifica o motivo pelo qual os direitos cessaram, deve entender-se que a mesma abrange os direitos que tenham cessado com fundamento no n.º 3 do citado artigo, o que do nosso ponto de vista está incorreto. Após a análise do art. 95.º do CT, este pareceu-nos manifestamente incongruente se atendermos ao que nos diz o art. 89.º, n.º 2, do CT149. De forma a tentarmos esclarecer esta situação recorremos ao regime jurídico previsto no Código de Trabalho de 2003, analisámos a disposição legal que mais se assemelhava ao atual art. 95.º do CT e tentámos compreender qual era o objetivo do legislador com a sua consagração, chegando à conclusão de que, no regime jurídico atual, o art. 89.º, n.º 2, do CT, tem de ser entendido de harmonia com o art. 95.º do CT, ou seja, o “aproveitamento escolar no ano letivo anterior” não pode ser compreendido de forma isolada, tem de ter em conta o art. 95.º do CT, visto que o mesmo específica diferentes momentos para a cessação dos direitos previstos no regime do trabalhador estudante, em virtude da falta de aproveitamento escolar. Terminada a análise do estatuto do trabalhador estudante, verificamos que o legislador pretendeu criar um conjunto de direitos que permita ao trabalhador estudante tentar conciliar a vida profissional com o sucesso académico. Verificamos também que há pouca jurisprudência atual sobre esta matéria, o que indica que estamos perante um regime que não causa grande celeuma, ou que, não obstante estes direitos, os trabalhadores, se os virem limitados pelos seus empregadores, optam por não recorrer à via judicial por esse motivo. Por outro lado, da análise comparada com outros ordenamentos jurídicos europeus, verificámos que o regime previsto no nosso Código do Trabalho é, de longe, dos mais protetores do trabalhador estudante. O que, como diz Albino Mendes Baptista150, “em princípio não tem nada de errado”, no entanto, não podemos esquecer que Portugal opera num contexto económico onde as exigências de competitividade são cada vez mais elevadas e onde os níveis de concorrência são muito intensos, o que nos poderá levar a pensar que estamos perante um regime, talvez, um pouco desproporcional em relação a direitos e deveres para ambas as partes da relação jurídica laboral.
149 Exemplo: Se o art. 89.º, n.º 2, do CT, refere que o estatuto do trabalhador estudante só se mantém se houver aproveitamento escolar no ano letivo anterior, parece-nos uma contradição que o art. 95.º, n.º 2, do CT, diga que o direito a faltar para a realização de provas de avaliação cessa quando o trabalhador estudante não teve aproveitamento em dois anos letivos consecutivos. 150 BAPTISTA, Albino Mendes, «Considerações…», op. cit., p. 1079.
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CAPÍTULO 4
DA NECESSIDADE DE REPENSAR O REGIME JURÍDICO DO TRABALHADOR ESTUDANTE
É evidente que a qualificação profissional e académica dos trabalhadores é importante por todos os motivos já enunciados ao longo do nosso trabalho. No entanto, não nos podemos esquecer que vivemos numa sociedade cada vez mais globalizada, mais exigente em termos de mercado e onde a rápida resposta da produção às exigências do consumidor pode ser fundamental para a subsistência da laboração da empresa. Nesse sentido, entendemos que deveria existir um maior equilíbrio entre direitos e deveres do trabalhador e da empresa, Nesse sentido, entendemos ao nível do RJTE. que deveria existir um maior A ideia de que o nosso RJTE encerra em si direitos que equilíbrio entre direitos e deveres não existem em mais nenhum outro sistema jus laboral é do trabalhador e da empresa, também defendida por Bernardo Lobo Xavier151. Este autor ao nível do RJTE. considera que os direitos concedidos aos trabalhadores estudantes são desproporcionados relativamente a quaisquer finalidades previamente estabelecidas, que o legislador nunca enunciou. Refere ainda que o caráter completamente discricionário e ilimitado das opções e a falta de referências a prioridades para a sua atribuição tornam o regime legal do trabalhador estudante dispendioso para as empresas e considera-o de legitimidade duvidosa e eventualmente inconstitucional, por exceder o art. 59.º, n.º 2, alínea f), e o art. 73.º ambos da CRP e o respeito pela iniciativa e empresas privadas.
4.1. DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME JURÍDICO DO TRABALHADOR ESTUDANTE Efetivamente, em 1996, foi questionado o caráter inconstitucional de uma norma do estatuto do trabalhador estudante previsto na Lei n.º 26/81, de 21 de agosto. A norma em causa constava da alínea c) do n.º 1 do art. 6.º e basicamente concedia ao trabalhador a possibilidade de faltar, sem perda de vencimento ou de qualquer outra regalia, para prestação de exame ou provas de avaliação152. Não obstante o atual regime jurídico do trabalhador estudante ter preceitos diferentes, o elemento teológico da constituição do regime continua presente e, até ao momento, tem sido transversal a todas as alterações do RJTE, pelo que, apesar da norma que suscitou a inconstitucionalidade ser de uma Lei de 1981, a mesma tem hoje a sua XAVIER, Bernardo da Gama Lobo, Manual…, op. cit., p. 860. Transcreve-se a norma constante da alínea c) do n.º 1 do art. 6.º da Lei n.º 26/81, de 21 de agosto: “O trabalhador-estudante tem direito a ausentar‑se, sem perda de vencimento ou de qualquer outra regalia, para prestação de exame ou provas de avaliação, nos seguintes termos: Nos casos em que os exames finais tenham sido substituídos por testes ou provas de avaliação de conhecimentos, as ausências referidas poderão verificar-se desde que, traduzindo-se estas num crédito de quatro dias por disciplina, não seja ultrapassado este limite, nem o limite máximo de dois dias por cada prova, observando-se em tudo o mais o disposto nas alíneas anteriores”.
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concretização, com algumas alterações, no art. 91.º do CT. Desse modo, os fundamentos apresentados no pedido de inconstitucionalidade da norma e a posterior decisão do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 454/97 continuam, hoje, válidos e atuais, os quais passamos a enunciar. A requerente da inconstitucionalidade da norma defendeu que o regime do trabalhador estudante, previsto na Lei n.º 26/81, de 21 de agosto, ao impor às entidades empregadoras que remunerem as ausências dos seus trabalhadores para preparação de provas, qualquer que seja a duração das disciplinas e a respetiva necessidade de preparação, atentava contra os princípios da igualdade entre os trabalhadores (art. 13.º da CRP), da proporcionalidade dos ónus e da justiça (art. 266.º, n.º 2, da CRP), da plena utilização das forças produtivas, do equilíbrio da concorrência entre as empresas (artigo 81.º, alíneas c) e f ) da CRP) e do princípio de salário igual para trabalho igual, (art. 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP). Alegou ainda que o ensino era um dever do Estado e não das empresas, pelo que toda a transferência desse encargo para estas tinha de ser excecional e, logo, restrita, sob pena de violação do disposto no art. 73.º e art. 74.º ambos da CRP. Defendeu ainda a requerente que o trabalhador estudante ao beneficiar de dispensa para preparação de provas com direito “a remuneração e todas as demais alcavalas a encargo exclusivo da entidade patronal e sem qualquer contrapartida, viola todos os citados princípios e normas constitucionais, permite a aplicação de encargos desmedidos e desproporcionados e gera, em concreto, desigualdade de tratamento entre os trabalhadores, entre os estudantes trabalhadores e também entre as empresas, falseando ainda, nesta perspetiva, a livre concorrência”153. Todas estas alegações foram refutadas pelo Tribunal Constitucional que não considerou a norma inconstitucional. De forma sumária, o TC fundamentou a sua decisão afirmando que não resulta do princípio da igualdade qualquer imposição genérica de que situações diversas deverão ter tratamento diferente, pelo que este princípio não estaria violado. No que se refere ao dever da empresa prestar retribuição ao trabalhador sem que tenha sido efetuada a corresponde prestação de trabalho, o TC considera que existem outras situações, como as férias e os feriados em que isso também acontece e justifica-as porque entende que, no âmbito do contrato de trabalho, existe um risco que deve ser suportado pelo empregador e porque deve haver um dever da entidade empregadora de prestar assistência ao trabalhador em virtude de beneficiar da disponibilidade pessoal daquele. Considerou assim o TC que existe uma função social do trabalho, que tem como efeito a proteção dos direitos fundamentais do trabalhador, nomeadamente do direito à valorização cultural e profissional. O TC referiu ainda que a partir do momento que qualquer trabalhador possa beneficiar do RJTE e que qualquer empresa possa ter ao seu serviço trabalhadores com esse regime, não existe discriminação entre trabalhadores, nem entre empresas, pelo que não viola o princípio da livre concorrência entre as empresas. Por último, o TC considerou que a entidade empregadora também beneficia da valorização profissional e cultural do trabalhador, pelo que, se justifica que participe nos encargos 153 O Acórdão está disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970454.html, último acesso a 30/04/2014.
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inerentes à mesma. Referiu ainda que o Estado tem de criar condições de igualdade de acesso ao ensino dos cidadãos, mas tal, não significa que sobre o Estado recaiam todos os encargos inerentes à frequência letiva dos estudantes, quando certas entidades beneficiam do produto final do acesso ao ensino. Assim, defendeu o TC que deve existir uma repartição de encargos entre Estado e empregador e que não há qualquer transferência de deveres que incumbem constitucionalmente ao Estado para as empresas. Face aos direitos enunciados no capítulo 3 e face aos motivos apresentados pelo TC podemos afirmar que caso este tivesse decidido pela inconstitucionalidade da norma, decerto não teríamos um regime jurídico com os direitos e deveres como o conhecemos hoje. Efetivamente, os fundamentos supra mencionados retiram quaisquer dúvidas sobre a constitucionalidade do atual RJTE, no entanto, não podemos deixar de referir que algumas das razões enunciadas pelo TC merecem várias críticas e as situações por ele apresentadas não são tão lineares como aparentemente podem parecer. De facto, concordamos com Albino Mendes Batista154 quando este considera que nem sempre a empresa beneficia da valorização profissional do trabalhador, porque muitas vezes o trabalhador estudante termina os estudos e procura emprego noutra empresa já no âmbito da área em que se formou ou porque a frequência escolar não é suscetível de ser aproveitada pelo empregador, visto que, como já mencionamos, o curso frequentado pode nada ter a ver com a atividade desenvolvida pelo trabalhador. Deste modo, frequentemente o trabalhador estuda para mudar de emprego. O mesmo autor considera também que na realização da política de ensino o Estado deve garantir a todos os cidadãos o acesso a graus mais elevados de ensino, mas que tal incumbência não deve ser realizada por imposição de encargos às empresas, sem que estas recebam contrapartidas pela sua colaboração num dever que é estadual. Assim, defendemos que as empresas têm de cooperar com o Estado na valorização da população ativa, mas esta cooperação deverá ter como pressuposto a imposição de encargos proporcionais entre todas as partes - empregador, trabalhador e Estado -, o que, de momento, não acontece. 4.2 A DIMENSÃO DA EMPRESA E O RJTE Efetivamente, aliado a um dever do trabalhador em poder continuar os seus estudos não nos podemos esquecer da entidade empregadora e do impacto que os trabalhadores que beneficiem do RJTE podem ter na sua organização e no seu modo de funcionamento, principalmente se estivermos no contexto das micro e das pequenas empresas (cfr. art. 100.º, n.º 1, do CT). A importância que pretendemos transmitir de que Direito do Trabalho deveria modelar as suas normas em função da dimensão da empresa, enquadrando distintamente as relações de trabalho consoante estas se desenvolvam em empresas de pequeno, médio ou grande dimensão, há muito que é discutida no nosso ordenamento jurídico155. De facto, cada vez BAPTISTA, Albino Mendes, «Considerações…», op. cit., p. 1073. Para uma análise profunda sobre a importância e impacto da dimensão da empresa no Código do Trabalho, vide, CARVALHO, Catarina de Oliveira, Da Dimensão…, op. cit. 154 155
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mais a conceção de um regime jurídico-laboral único e uniforme tem vindo a perder-se a favor de ideias de diversidade normativa e de pluralidade de estatutos laborais156, que tenham em conta as particularidades que marcam o sujeito laboral trabalhador. No que se refere às características dos empregadores existe ainda uma grande relutância na aprovação de um diferente tratamento jurídico entre eles, no entanto, tem vindo a ser aceite que o contexto em que se desenvolvem as relações laborais nas Pequenas e Médias Empresas (vulgo designadas PME), em especial das micro e das pequenas empresas é diferente do das grandes empresas157. Deste modo, e ainda que de forma ténue, verificamos que o nosso ordenamento jurídico institui em vários aspetos um regime mais favorável às microempresas, o qual se traduz, em termos gerais, numa diminuição do nível de proteção dos trabalhadores (exemplo disso são os arts. 341.º, n.º 3; 317.º, n.º 3; 358.º e 346.º, n.º 4, todos do CT, entre outros). Justifica-se este regime jurídico mais favorável, por um lado, porque se tem considerado que estas empresas estão em desigualdade de concorrência em relação a grandes empresas; por outro lado, as microempresas são economicamente mais frágeis do que as grandes empresas; além disso, a complexidade da legislação laboral é mais dificilmente gerida nas pequenas empresas; e por último, tem-se entendido que as medidas de flexibilização das normas laborais para as empresas de dimensão reduzida são um passo importante para a criação e manutenção de emprego e para o crescimento económico158. Não obstante esta necessidade de as normas laborais terem em conta a dimensão da empresa na qual o trabalho é prestado, é importante agir com sensibilidade nesta matéria, pois estas mesmas normas não poderão violar o princípio constitucional da igualdade, introduzindo diferenciações discriminatórias entre trabalhadores e criando trabalhadores de segunda159. Tendo em atenção o nosso caso em concreto, Catarina de Oliveira Carvalho160 refere que frequentemente as PME têm problemas em proporcionar formação profissional aos seus trabalhadores visto terem dificuldades em prescindir dos seus serviços durante o tempo que estão em formação, ou em suportar os custos inerentes a uma eventual substituição. Também Maria do Rosário Palma Ramalho161 menciona que no âmbito da formação profissional não existe no Código do Trabalho qualquer diferença dimensional da empresa quanto ao número de horas de formação profissional, isto é, as horas de formação que as empresas têm de prestar aos seus trabalhadores é igual quer estejamos perante micro ou grandes empresas. Este facto é criticado pela autora e pela generalidade da doutrina que defende uma redução no número de horas de formação profissional nas microempresas. Apesar das situações mencionadas pelas duas autoras serem referentes à formação profissional, podemos facilmente recorrer aos mesmos argumentos e utilizá-los no âmbito do RJTE, o qual implica ainda mais horas de dispensa do trabalhador. De facto, indubitavelmente compreendemos a dificuldade que muitas micro e pequenas empresas têm em permitir AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., pp. 197-198. CARVALHO, Catarina de Oliveira, Da Dimensão…, op. cit., p. 64. 158 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito…, op. cit., pp. 189-190. 159 AMADO, João Leal, Contrato…, op. cit., pp. 204-205. 160 CARVALHO, Catarina de Oliveira, Da Dimensão…, op. cit., p. 326. 161 RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II…, op. cit., p. 567, nota 684. 156 157
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que os seus trabalhadores frequentem instituições de ensino, uma vez que isso corresponde, em muitos casos, a uma diminuição do quadro de pessoal disponível para a produção. Logicamente que as necessidades de organização e de reestruturação da produção de uma microempresa são completamente diferentes das de uma grande empresa. Normalmente, nas microempresas há um trabalhador para cada função e a entidade empregadora quando o contrata pressupõe que, dentro do seu horário de trabalho, pode contar com a prestação de trabalho dos seus funcionários. Ora, no âmbito do RJTE é mais difícil uma microempresa reestruturar o seu funcionamento e substituir um trabalhador por outro, do que numa grande empresa, pelo que, tal como se defende que o número de horas da formação profissional devia ter em conta a dimensão da empresa, entendemos que para a aplicação do RJTE nas microempresas também deveria existir uma disposição legal específica. Exemplificamos o impacto de alguns direitos de um trabalhador estudante que beneficie do referido regime e que tenha provas de avaliação numa terça-feira e numa sexta-feira: o trabalhador pode faltar justificadamente no dia da prova e no dia imediatamente anterior. Neste caso, poderia faltar na Indubitavelmente segunda, na terça, na quinta e na sexta-feira, mas se necessicompreendemos a dificuldade tar, pode ainda marcar a quarta-feira como dia de férias, que muitas micro e pequenas ficando a entidade empregadora uma semana sem poder empresas têm em permitir que contar com a prestação de trabalho do trabalhador. Se situaos seus trabalhadores frequentem ção semelhante ocorrer na semana seguinte o trabalhador instituições de ensino, uma vez poderá adotar exatamente o mesmo procedimento. que isso corresponde, em muitos No exemplo dado, a entidade empregadora fica sem a casos, a uma diminuição prestação laboral do seu trabalhador durante, pelo menos, do quadro de pessoal 15 dias. Ora, se estivermos no âmbito de uma empresa com disponível para 4 trabalhadores, o facto de não poder contar com um deles a produção. para desenvolver a sua atividade pode ser muito complicado para o seu normal funcionamento. Se formos mais longe, a empresa depois de suportar todo este custo, tem o trabalhador a frequentar um curso numa área que em nada está relacionada com a função que exerce e posteriormente, esse mesmo trabalhador irá procurar emprego noutra empresa dentro da sua nova área. Deste modo, muitas vezes as empresas vêm este tipo de regime mais como um gasto do que como um investimento. Mas o impacto que o RJTE pode ter numa empresa não se limita às dificuldades de funcionamento que possam ser sentidas por esta. Apesar de não haver grande expressão jurisprudencial, a aplicação deste regime pode criar vários conflitos internos na empresa. Desde logo pode criar conflitos entre os próprios trabalhadores, porque aqueles que não usufruem do regime podem considerar que os trabalhadores abrangidos são muito beneficiados, visto que, não só estes recebem a mesma retribuição, como os primeiros têm muitas vezes de ir fazer o trabalho daqueles que se ausentaram para o estudo, o que muitos podem considerar injusto. Por outro lado, pode criar um acréscimo de custos para o empregador, porque este pode ter de contratar novos funcionários para colmatar as ausências do trabalhador que beneficie do RJTE, no sentido de continuar a laborar num regime de normalidade e a cumprir prazos de produção. Além de que, por vezes, pode haver um aproveitamento excessivo das valências do regime para fins lúdicos do 165
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trabalhador. Face ao exposto é importante encontrar soluções para que cada empregador possa olhar para os trabalhadores que pretendam estudar como uma mais-valia, vendo-os como um acréscimo de know-how para a empresa e não como uma despesa ou perda que têm de suportar. 4.3 UM NOVO PARADIGMA DO RJTE Após a análise do RJTE entendemos que este, apesar de ter como objetivo claro a conciliação da atividade profissional com a atividade estudantil, não distribui de forma igualitária os direitos e deveres entre trabalhadores, empregadores e Estado. Pensamos que, pelo exposto, é percetível que a ausência do trabalhador estudante do seu local de trabalho é, muitas vezes, um sacrifício para o empregador. Assim, entendemos que poderia compensar-se o empregador da ausência laboral do seu trabalhador estudante concedendo-lhe alguns incentivos económicos. Poderia ser instituída uma redução da Taxa Social Única devida pela empresa em relação a cada trabalhador estudante que tivesse ao seu serviço. Deste modo, compensava-se a empresa pela ausência do trabalhador e simultaneamente incentiva-se a qualificação dos trabalhadores dessa empresa (o que, como vimos no início do nosso trabalho, é também um dos objetivos da União Europeia). Como defende o Projeto de Lei n.º 402/XII, atualmente em discussão, poderia ser concedido um apoio financeiro anual sob a forma de um subsídio não reembolsável à entidade empregadora, por cada trabalhador estudante que tivesse a seu cargo. Seria necessário de igual modo, criar condições de prova de que efetivamente o trabalhador estudante frequenta um nível de ensino e que tem aproveitamento escolar, sob pena de esse subsídio ser cortado à empresa. Pretende-se assim evitar situações de conluio que possam surgir entre empregador e trabalhador. O mesmo Projeto de Lei defende também que a empresa deveria promover a contratualização com o trabalhador estudante para que após a conclusão do nível de ensino este seja revalorizado e requalificado profissionalmente, sendo concedido também um apoio financeiro, sob a forma de um subsídio, à empresa por cada trabalhador estudante revalorizado e requalificado. Parece-nos que esta situação seria mais difícil de controlar, visto que o empregador até poderia promover o trabalhador, mas esta promoção poderia ser fictícia porque na prática a entidade empregadora podia dar instruções ao trabalhador para que este continuasse a desempenhar a função que, até aí, já exercia. Outro aspeto que poderia ser instituído no regime do trabalhador estudante era que a formação escolar cuja frequência permitisse, cumpridos os requisitos, beneficiar do referido regime, pudesse simultaneamente contar e ser reconhecida como formação profissional, dispensando a entidade empregadora de investir duplamente em formação profissional e ainda conceder os benefícios previsto no RJTE. Ainda assim, o Código do Trabalho no n.º 4 do art. 131.º já aborda, parcialmente, essa possibilidade ao considerar, para efeitos da contagem das 35 horas de formação anual a que o trabalhador tem direito, as horas de dispensa de trabalho para frequência de aulas e as faltas para prestação de exames. Outra hipótese seria o recurso ao pacto de permanência, no sentido de evitar a fuga do trabalhador para outra empresa, aquando do terminus do curso para o qual tenha 166
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beneficiado do RJTE, e de compensar a empresa por eventuais custos produtivos que tenha suportado com a atribuição ao trabalhador dos direitos inerentes ao referido regime. O pacto de permanência é um acordo entre empregador e trabalhador, no âmbito do qual este último se obriga a não denunciar o seu contrato de trabalho, por um determinado período de tempo, como compensação das avultadas quantias despendidas pelo empregador na sua formação. Através deste pacto o empregador pretende obter o retorno do seu significativo investimento na formação do trabalhador162. Como se trata de uma cláusula de limitação do princípio constitucional da liberdade de trabalho, previsto no art. 47.º, n.º 1, da CRP, (porque limita a liberdade de denúncia do contrato de trabalho pelo trabalhador), Maria do Rosário Palma Ramalho163 considera que os requisitos para a utilização do pacto de permanência, previstos no art. 137.º do CT, asseguram que o mesmo esteja em conformidade com o referido princípio constitucional, pois: i) o pacto só é permitido em circunstâncias bem definidas (compensar o empregador por despesas avultadas por ele feitas na formação profissional do trabalhador); ii) tem um alcance temporal limitado (a duraApós a análise do RJTE ção máxima do pacto é de três anos) e iii) permite-se, ainda entendemos que este, apesar assim, a desvinculação antecipada do trabalhador mediante de ter como objetivo claro a a restituição ao empregador das importâncias por ele desconciliação da atividade pendidas na sua formação. profissional com a atividade Após os requisitos enunciados, e atendendo ao caso estudantil, não distribui de forma concreto dos trabalhadores estudantes, consideramos que igualitária os direitos e deveres não há nestes casos despesas avultadas suportadas pelo entre trabalhadores, empregador, pois o curso que o trabalhador frequenta é empregadores e Estado. pago pelo próprio, não obstante, o fazer a expensas de dispensas para frequência de aulas e de faltas justificadas para a preparação e prestação de exames, sem perda de retribuição. Além disso, se o trabalhador estudasse ao longo de toda a sua vida, podíamos correr o risco de termos pactos de permanência perpétuos. No que se refere à desvinculação antecipada do trabalhador, esta possibilidade tem de existir sempre pois é o que permite a imediata retoma pelo trabalhador do seu direito de denunciar o contrato, corolário da liberdade de trabalho constitucionalmente consagrada164, como já referimos. Assim, consideramos que não está preenchido o requisito mais importante e subjacente ao pacto de permanência (despesas avultadas), não podendo o mesmo ser utilizado no caso de trabalhador estudante que tenha beneficiado do RJTE. Outra alternativa poderia ser a criação de uma norma legal de limitação temporal, (a par do que ocorre com a licença sem retribuição) que determinasse que, na mesma entidade empregadora, um trabalhador estudante, que já houvesse beneficiado do RJTE, só pode voltar a usufruir dos direitos nele contido, decorrido que esteja metade do tempo de duração do último período em que beneficiou do referido regime jurídico.
VASCONCELOS, Joana, «Pacto de permanência, liberdade de trabalho e desvinculação do Trabalhador», Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Almedina, Coimbra, 2012, p. 821. 163 RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II…, op. cit., p. 211. 164 MARTINEZ, Pedro Romano, [et. al.], Código do Trabalho anotado, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 355. 162
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Uma outra conceção, esta talvez mais duvidosa na sua aplicação, seria fazer depender a atribuição do RJTE ao trabalhador consoante o tipo de curso que este frequentasse. Ou seja, o RJTE só seria concedido se o curso que o trabalhador estivesse a frequentar fosse na área constante do objeto social da empresa, ou em área conexa, ou na área referente à função exercida pelo trabalhador. Temos consciência de que esta hipótese necessitaria de ser melhor concretizada e que poderia ser uma norma inconstitucional por, pretensamente, violar o direito ao ensino que é garantido a todos os cidadãos, no entanto, não nos podemos esquecer que, não obstante este direito estar previsto na Constituição, também se instituíram os numerus clausus e os mesmos também limitam o direito ao ensino. Apresentámos algumas ideias e sugestões que poderiam ser tidas em conta no regime do trabalhador estudante, as mesmas não tinham de ser todas concedidas simultaneamente às empresas, sob pena de se voltar a desequilibrar a dicotomia direitos e deveres entre as partes. Assim, todas as empresas iriam beneficiar da possibilidade de estarem dispensadas de formação profissional do trabalhador que se encontrasse a beneficiar do regime do trabalhador estudante, teriam a possibilidade de usufruir da norma de limitação temporal do RJTE e beneficiariam da atribuição do subsidio por cada trabalhador requalificado profissionalmente. No que diz respeito à taxa social única e ao subsídio a conceder por cada trabalhador que beneficiasse do RJTE, os mesmos não podiam ser concedidos simultaneamente, ficando na disponibilidade da empresa optar por qual das situações pretendia. Caso não fosse possível criar nenhuma destes direitos, podia-se em último caso, colocar como requisito de atribuição do RJTE a frequência dos cursos nos termos já supra apresentados. Independente das opções consagradas não nos podemos esquecer que o objetivo pretendido é a adoção de medidas com vista ao equilibro do regime jurídico do trabalhador estudante. Não obstante as hipóteses apresentadas poderem ser aplicadas, como referimos, a todo tipo de empresas, entendemos que o Código do Trabalho ao criar o regime do trabalhador estudante não teve em conta as dificuldades e as necessidades de organização das micro e das pequenas empresa e que essa lacuna deveria ser colmatada. A mesma ideia é defendida por Albino Mendes Batista165 que refere que ao estabelecer-se um regime do trabalhador estudante que recai sobre todas as empresas da mesma maneira, podem determinadas empresas sentir os direitos do trabalhador nele contido de forma particularmente pesada. Não obstante a existência do n.º 5 do art. 90.º do CT que pode desencadear alguns conflitos e que só se aplica nos casos de dispensa de trabalho para a frequência de aulas, o legislador esqueceu-se de contemplar um regime especial dos trabalhadores estudantes para as micro e pequenas empresas. De facto, se o legislador permite que seja recusada uma licença sem retribuição, superior a 60 dias, para frequência de curso de formação profissional ou de curso ministrado em instituição de ensino, com o fundamento de se tratar de microempresa, é porque tem plena consciência do impacto que essa licença tem na organização de uma empresa de dimensão reduzida. Se há a possibilidade do empregador recusar a concessão desta licença sem retribuição devido à dimensão da empresa, entendemos que deveria ter sido previsto um tratamento semelhante aquando da concessão do regime do trabalhador estudante. Este 165
BAPTISTA, Albino Mendes, «Considerações…», op. cit., p. 1075.
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tratamento semelhante não teria de passar por uma recusa total de exercício dos direitos do referido regime mas por uma previsão legal da limitação de alguns direitos ou o seu exercício de forma diferente do atualmente previsto. Verificamos que o RJTE contém em si direitos importantíssimos para o trabalhador que, ainda que contestados por alguns autores, não são inconstitucionais, na ótica do TC. No entanto, consideramos que deveria existir uma adequada alteração do referido regime, adaptando-o à realidade e necessidades, não só do trabalhador, mas também da empresa. Deveria, na nossa opinião, o RJTE contemplar exceções na sua aplicação, às empresas de reduzida dimensão, microempresas e pequenas empresas, podendo tal regime ser ainda acompanhado de outras soluções que compensem todas as empresas que tenham nos seus quadros trabalhadores estudantes.
CONCLUSÃO A educação proporciona benefícios para a sociedade que excedem os benefícios individuais. Desde logo, tem um papel importante no crescimento económico e na coesão e igualdade das sociedades. De facto, em termos gerais, países com uma população pouco instruída tendem a ter uma produtividade baixa e a um desenvolvimento mais lento. Pelo contrário, países com uma população ativa qualificada conseguem obter uma maior produtividade e consequentemente um desenvolvimento mais célere. Em termos pessoais, a educação pode contribuir para a satisfação profissional das pessoas, assim como, para melhorar as suas condições de vida e o seu nível de realização pessoal. É praticamente unânime que Portugal tem como uma das causas essenciais do seu fraco desenvolvimento, a insuficiente formação e qualificação de base dos recursos humanos das empresas, situação que influencia e determina muitos dos inúmeros problemas que existem atualmente no país, onde a desigualdade salarial e de oportunidades entre a população ativa é enorme. A criação de regras laborais especiais para os trabalhadores que, por sua iniciativa, decidem estudar, teve a sua justificação originária no interesse geral de promover a educação dos trabalhadores portugueses. Não obstante terem passado vários anos, o motivo da sua criação continua muito presente, visto que, apesar do nível de escolaridade ter aumentado, este ainda não é suficiente. De facto, cada vez mais as pessoas retomam os seus estudos com vista, por um lado, a conseguir novas oportunidades e, por outro, a renovar os seus conhecimentos. A finalidade das normas dedicadas ao trabalhador estudante é a de facilitar a formação geral do trabalhador, permitindo-lhe que possa continuar o seu processo de aquisição de novos conhecimentos, processo este que pode encontrar obstáculos pelo facto do trabalhador desenvolver em simultâneo uma atividade laboral numa empresa. É, por isso, necessário dotar estes trabalhadores com um conjunto de direitos especiais. Trata-se de um tipo de formação alheia ao desenvolvimento da prestação de trabalho e desenvolvida por vontade do trabalhador, mas que é para ser prosseguida coincidindo com ela. Apesar do regime do trabalhador estudante ter sido alterado ao longo dos anos, os direitos que hoje se encontram consagrados são muitos semelhantes aos que existiam na 169
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primeira Lei que criou o estatuto do trabalhador estudante; no entanto, entendemos que o contexto económico em que a Lei de 1981 foi criada era diferente do contexto económico de hoje. O tecido empresarial português era diferente, a nossa posição nos mercados internacionais também era diferente, e apesar de toda a envolvência se ter alterado, os direitos dos trabalhadores estudantes continuam estanques. O regime do trabalhador estudante continua a ser importante, mas a par da evolução e da dimensão das empresas deveria ser feita uma adaptação de alguns aspetos do seu regime, colocando-o mais próximo dos contextos reais das empresas e interiorizando que, não obstante o trabalhador ser, tendencialmente, a parte mais fraca da relação laboral, este também não subsiste sem um local de trabalho que seja estável, competitivo e que consiga impor-se no mercado. Ora, isso não será possível se a empresa tiver de alterar todo o seu método de funcionamento e tiver de se adaptar constantemente às inúmeras ausências, retribuídas, dos seus trabalhadores, sem receber qualquer contrapartida. A presunção de que o empregador beneficia mais tarde ou mais cedo do aumento de qualificações do trabalhador, quanto a nós, é ilusória. Já referimos que as áreas de trabalho e de estudo não têm de estar conectadas e, muitas vezes, o trabalhador estuda para mudar de emprego. O legislador ao criar o regime jurídico do trabalhador estudante pretendeu tutelar o interesse pessoal dos próprios trabalhadores na melhoria das suas habilitações e da sua cultura e esqueceu o impacto que tal regime pode ter nas empresas, principalmente nas de pequena dimensão. Por isso propusemos várias medidas que no nosso entender, iriam melhorar o referido regime, nomeadamente, adoção de um regime específico para as microempresas, baixa da taxa social única, subsídio por cada trabalhador que beneficie do RJTE e por cada trabalhador requalificado, contagem para efeitos de formação profissional, entre outras. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico
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Filipa Isabel Soares Da Silva Vieira
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O TRABALHADOR ESTUDANTE – ESPECIFICIDADES NO REGIME DA PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
OIT – Organização Internacional do Trabalho Op. Cit. – Obra citada p. / pp. – Página / Páginas PISA – Programme for International Student Assessement PME – Pequenas e Médias Empresas PNT – Período normal de trabalho RJTE – Regime jurídico do trabalhador estudante Segs. – Seguintes St. Lav. – Statuto dei Lavoratori TC – Tribunal Constitucional TCE – Tratado da Comunidade Europeia UE – União Europeia Vide – Ver Vol. – Volume
MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO * CELINA S. FRANCISCO Solicitadora.
TRABALHO DISTINGUIDO COM MENÇÃO HONROSA
IN LIMINE Joana nasceu sem útero, escreveu aos deputados do Parlamento que estão a analisar a mudança da lei, porque diz que esta é a única forma de vir a ser mãe. Já existe uma versão consensualizada entre PS e PSD. A ausência de menstruação nunca a preocupou muito, é verdade que já tinha 17 anos mas à irmã mais velha também tudo tinha acontecido tarde e ela não tinha nenhum problema de saúde. Mas foi esse o primeiro sinal, aquele que a levou ao médico que lhe disse que tinha nascido sem útero e que nunca poderia vir a engravidar. O diagnóstico veio sob a forma de “um palavrão”, Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hause (MRKH). Há dois anos que Joana espera que o Parlamento avance com a legalização da maternidade de substituição, também conhecida como “barrigas de aluguer”. O deputado social-democrata, Miguel Santos, que lidera o grupo de trabalho sobre as alterações à lei sobre procriação medicamente assistida, onde se inclui esta questão, diz que, se tudo correr como previsto, este processo legislativo poderá estar concluído em maio. Em janeiro de 2012 entraram no Parlamento dois projetos de lei, um do Partido Socialista, outro do Partido Social Democrata, que pretendem legalizar a maternidade de substituição, uma prática que é proibida pela atual lei sobre procriação medicamente assistida e sancionada com uma pena que pode ir até aos dois anos de prisão. É definida como qualquer situação em que uma mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando dos seus direitos de mãe. * Redigido atendendo à legislação em vigor e aos trabalhos parlamentares até 30.06.2014.
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Maternidade De Substituição
Joana, que tem 27 anos e trabalha em marketing, não se limitou a assistir ao processo legislativo de fora. Ela e uma amiga com o mesmo problema – não têm útero mas têm ovários e óvulos e por isso podem ter filhos biológicos, desde que seja outra mulher a passar pela gravidez – escreveram aos deputados do grupo de trabalho, aos líderes parlamentares, à presidente do Parlamento.
“Escrevo-lhe em meu nome e em nome de todas as mulheres portadoras do Síndrome MRKH, uma anomalia congénita que se caracteriza pela ausência ou a má formação do útero, condição que afeta uma em cada 4500 mulheres. Este síndrome para nós significa ‘extorsão‘ de um sonho… O de sermos mães.” O deputado Miguel Santos justifica o atraso com “a complexidade da matéria”. Diz que já existe uma versão consensualizada entre os dois partidos que apresentaram os projetos de lei. Mas ainda há três artigos que levantam dúvidas e que levaram ao pedido de um parecer junto do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. Uma das questões em causa diz respeito à formulação sobre as situações em que passará a ser permitida, excecionalmente, a maternidade de substituição: a questão da ausência do útero é ponto aceite, está nos dois projetos de lei; depois, coloca-se a questão de também se autorizar a maternidade de substituição quando há lesão ou doença do útero que impeçam a gravidez, como prevê a proposta do PS. O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, Eurico Reis, diz que irão responder aos deputados que a questão de base é “a infuncionalidade do útero”, quer se deva a questões congénitas, lesões ou doenças. O responsável diz que o parecer será entregue dentro do prazo.
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
Celina S. Francisco
Outra das questões que levantam dúvidas está relacionada com a moldura penal que se aplica a quem fizer contratos de maternidade de substituição pagos. A maternidade de substituição terá sempre de ter natureza gratuita, prevendo-se pena de prisão de dois anos ou de 240 dias de multa para quem não cumpre, a mesma moldura prevista para quem incentive este tipo de contrato. A dúvida é se a celebração e a promoção deste tipo de contratos deve ter o mesmo tipo de penalização, explica o deputado Miguel Santos. Por fim, a outra questão técnica diz respeito ao momento em que se considera que começa a terapêutica de procriação medicamente assistida. REUNIÃO A 29 DE ABRIL O deputado social-democrata espera que o parecer do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida chegue dia 28 de abril, a tempo da reunião do grupo de trabalho parlamentar que está agendada para o dia seguinte. “Se tudo correr bem, seria essa a última reunião do grupo.” Depois, o projeto terá que ser votado na comissão parlamentar de saúde e só depois no plenário. O deputado prevê que tudo esteja concluído em duas ou três semanas, supostamente ainda no mês de maio. Na carta dirigida aos deputados, Joana e a amiga, que já foram recebidas no Parlamento, escrevem:
“Reconhecemos a complexidade de legislar sobre a matéria, mas a nós compete-nos dar voz a situações reais, de jovens casais que têm a legítima expectativa de lhes ser reconhecido o direito às possibilidades que a ciência e a medicina dispõem para tratamento desta situação particular de infertilidade.” Notícia publicada no jornal Público, a 21 de abril de 2014 » (adaptado ao novo acordo ortográfico).
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Maternidade De Substituição
RESUMO Aprovada em 2006, a Lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei n.o 32/2006, de 26 de julho), atualmente com nove anos de vigência, e até à presente data (18.12.2015), apenas conheceu uma alteração legislativa, perpetrada pela Lei n.o 59/2007, de 4 de setembro, a qual aditou o seu art. 43.º-A. Com o início de funções do XXI Governo Constitucional, juntamente com os demais partidos de esquerda com assento parlamentar, trouxeram, consigo, (de novo) a iniciativa de proceder à sua, (para alguns tão desejada) segunda alteração. A vontade de alterar este diploma, nomeadamente alargando o universo de beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida, não se trata de uma questão nova. Porquanto, após a rejeição do Projeto de Lei 131/XII, na votação na generalidade; da retirada do Projeto de Lei 138/XII; a que se somaram a rejeição do Projeto de Lei 122/XII, na votação na generalidade; e da rejeição do Projeto de Lei 137/XII, também na votação na generalidade, regressa, mais uma vez, à atividade parlamentar, o debate em torno de alguns aspetos controversos que envolvem a procriação medicamente assistida (a par da discussão em torno das alterações ao regime da adoção, apadrinhamento civil e demais relações jurídicas familiares por casais do mesmo sexo). Deste modo, encontram-se em discussão, no Parlamento, o Projeto de Lei 6/XIII, apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Socialista (segunda alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, alargando o
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
âmbito dos beneficiários das técnicas de Procriação Medicamente Assistida); o Projeto de Lei 29/XIII, apresentado pelo PAN – Pessoas-Animais-Natureza (assegura a igualdade de direitos no acesso a técnicas de Procriação Medicamente Assistida, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 32/2006 de 26 de julho); o Projeto de Lei 36/XIII, apresentado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda (garante o acesso de todas as mulheres à Procriação Medicamente Assistida e regula o acesso à gestação de substituição, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho) e o Projeto de Lei 51/XIII, apresentado pelo grupo parlamentar Os Verdes (alarga as condições de admissibilidade e o universo dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida, alterando a Lei n.º 32/2006, de 26 de julho) os quais vêm demonstrar a atualidade e pertinência do tema ora tratado. O presente texto foi apresentado ao concurso respeitante ao Prémio Solicitador Daniel Lopes Cardoso, em junho de 2014, o qual visa abordar a problemática da maternidade de substituição. Assim, foi considerada a doutrina e jurisprudência em vigor até àquela data.
Celina S. Francisco
I – A PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA
1. Considerações propedêuticas: pertinência do tema e o famigerado “the best interest of the child”
O
s contínuos desafios que a profissão enfrenta, sempre exigentes e complexos; a consciência da necessária necessidade de os enfrentar de frente, sempre com um constante aperfeiçoamento técnico, ético e deontológico, levou à eleição do tema “Maternidade de Substituição” para ser a questão abordada neste trabalho, candidato ao Prémio Daniel Lopes Cardoso, mui distinto Solicitador. De facto, trata-se, a par do tema da co-adoção por casais homossexuais, um dos assuntos que mais questões têm levantado na sociedade civil e que promete futuros desenvolvimentos, a curto prazo, no âmbito do direito da família. Nestas razões se encontrou a pertinência deste trabalho, uma vez (...) o solicitador, enquanto que o solicitador, enquanto profissional forense que tamprofissional forense que bém atua junto das famílias, não pode estar à margem da também atua junto das evolução legislativa, em especial, num ramo do direito que famílias, não pode estar à nos é muito caro, o Direito da Família. margem da evolução Esta pequena exposição que agora se oferece, conforme legislativa, em especial, num resulta da notícia extraída do jornal Público, e que se transramo do direito que nos é creveu supra, pretende levantar um pouco o véu à matéria muito caro, o Direito da problemática que aqui se pretende abordar, a maternidade Família. de substituição, visando trazer da neblina uma das questões mais polémicas que apaixona a sociedade civil. (...) existe um verdadeiro De facto, o encanto da maternidade (e, claro, da paternidireito a ser mãe/pai? dade), o desejo de educar e criar um filho, para grande parte E, se existe, até onde das mulheres (e dos homens também), constitui um dos se pode ir para se alcançar acontecimentos mais realizadores da pessoa humana. No a realização do mesmo? entanto, a vontade de ser mãe (e pai), para muitas mulheres (e homens), não passa, senão, de um verdadeiro pesadelo. A questão que se coloca a mais das vezes, ao se tentar definir os limites até onde pode intervir a ciência e a tecnologia na reprodução humana, prende-se em saber se existe um verdadeiro direito a ser mãe/pai? E, se existe, até onde se pode ir para se alcançar a realização do mesmo? Aqui, abordar-se-á a questão das famigeradas “barrigas de aluguer”, sendo que, e não fosse este um trabalho realizado por um jurista, utilizaremos o termo jurídico adotado pelo legislador, ou seja “a maternidade de substituição”, sendo que se salientará, com especial toque de relevo, a perspetiva da criança que irá nascer, em resultado do recurso a estas técnicas de procriação medicamente assistida, e que aqui abordaremos. Assim, pegando neste trecho e lançando mão à norma normarum, refere o art. 69.º, da Constituição da República Prortuguesa (adiante designada por C.R.P.), que as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, 179
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especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições1. O superior interesse da criança, comummente designado por the best interest of the child, constitui a pedra angular de todo o direito da família, bem como incorpora um dos princípios mais relevantes daquele ramo do direito. Enquanto conceito indeterminado, o superior interesse da criança deve ser concretizado em cada caso concreto e, com ele, pretende-se assegurar um desenvolvimento harmonioso da criança ou jovem, tendo em conta as suas necessidades, bem como a capacidade dos pais para as satisfazer e ainda os valores dominantes no meio envolvente2. O superior interesse da criança deve ser realizado, tanto quanto possível, dentro do seu enquadramento familiar natural. A materialização deste princípio tem-se pautado por definir um conjunto de direitos da criança, cuja infração ou desrespeito faz com que decorra uma situação de prejuízo ou perigo, para esta, podendo fazer funcionar a aplicação de medidas de proteção que afastem o perigo para a saúde, segurança, formação moral ou educação da criança, sempre visando a prossecução do seu desenvolvimento integral, bem jurídico garantido pelo art.º 69.º, da Lei constitucional. Mencionando-se as ilustres palavras do Procurador da República CELSO MANATA, “como já se estabelecia na Declaração dos Direitos da Criança3, o interesse superior do menor deve ser entendido como o direito deste ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Tal interesse só pode ser encontrado em função de um caso concreto, situado no tempo e no espaço, através de uma perspetiva sistémica e multidisciplinar e que não pode nunca esquecer e deixar de ponderar o grau de desenvolvimento sócio psicológico do menor, já que o processo de desenvolvimento é uma sucessão de estádios, com características e necessidades próprias”4. Em douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça5, refere-se que o superior interesse do menor, enquanto conceito aberto que carece de concretização, por parte do Juiz, deve ter em linha de conta a disponibilidade afetiva demonstrada pelos progenitores, ou terceira pessoa, a capacidade, ou não, dos progenitores em promoverem o harmonioso desenvolvimento do menor e de se adaptar às suas necessidades. Para uma análise mais profícua sobre esta norma, vide JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, pp. 1379 a 1387, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, e J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, pp. 867 a 872, Coimbra Editora, Coimbra, 2007. 2 Neste sentido se expressa o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc.: 232/10.3TBAVV-B.G1, datado de 11-07-2013. Veja-se também o artigo intitulado “O Superior Interesse da Criança”, disponível em <http://www.oa.pt/cd/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?sidc=31634&idc=8351&idsc=21852&ida=75761>, consultado a 12.05.2014. 3 A Convenção Sobre os Direitos da Criança foi assinada em Nova Iorque, a 26.01.1990, e foi ratificada por Portugal através da Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de setembro. Sobre este diploma, vide LUIS SILVEIRA, Os Menores face à Convenção da ONU, pp. 247 a 257, Themis, Ano IX, N.º 17, Almedina, 2010. 4 Conforme texto disponível em <www.cnpcjr.pt/preview_documentos.asp?r=2249&m=DOC>, In “…no superior interesse da criança”, Seminário Direitos das Crianças e Intervenção que Competências? Centro Ismaili, 24 de abril de 2008, sublinhado nosso. 5 Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc.: n.º 1110/05.3TBSCD.C2.S1, datado de 04-02-2010. 1
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Mais adita que é o superior interesse da criança que norteia toda a regulação do exercício do poder paternal, e, modernamente, tem-se entendido que o fator relevante para determinar esse interesse é constituído pela regra da figura primária de referência, segundo a qual a criança deve ser confiada à pessoa que cuida dela no dia-a-dia. Ora, esta breve referência ao superior interesse da criança não é uma questão despicienda para o tema analisando que aqui nos trás. O superior interesse da criança, como se disse, enquanto princípio transversal em todas as questões relacionadas com o direito dos menores, é um princípio que também norteia (ou, pelo menos, assim deveria nortear) os limites que se estabelecem ao recurso às técnicas de procriação medicamente assistida. Ao analisar-se a questão da (in)admissibilidade da maternidade de substituição, há sempre um (contra)ponto a ter-se como referência: o superior interesse da criança que irá nascer, fruto do recurso àquelas técnicas reprodutivas. Assim, e antes de passarmos à análise, em pormenor, das técnicas de procriação medicamente assistida, no geral, e da maternidade de substituição, em especial, façamos uma breve referência ao regime jurídico da filiação estabelecida na lei civilista.
II – A FILIAÇÃO 1. Noção Como refere JORGE DUARTE PINHEIRO6, poderemos lançar mão ao conceito de filiação, num sentido estrito, e num sentido amplo. Num sentido amplo, a noção de filiação corresponderá, quer à relação jurídica familiar constituída pela procriação, quer à relação jurídica que, não tendo origem no fenómeno da procriação, produz efeitos jurídicos familiares, como será o exemplo da filiação constituída por sentença de adoção. Num sentido estrito, a filiação é uma espécie da relação de parentesco7, definindo-se como a relação juridicamente estabelecida entre as pessoas que procriaram e aquelas que foram geradas. 2. Regime legal A filiação encontra-se, grosso modo, regulamentada no Título III, do Livro IV, do Código Civil, tendo o legislador desdobrado este título em dois capítulos, com as suas respetivas secções, contendo o primeiro capítulo os modos de estabelecimento da filiação (art.s 1796.º a 1873.º) e o capítulo segundo os efeitos daquela (art.s 1874.º a 1972.º)8. Cfr. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, p. 119, AAFDL, Lisboa, 2013. Como referem FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, as relações de parentesco são aquelas que se estabelecem entre pessoas que têm o mesmo sangue, porque descendem umas das outras, ou porque ambas provêm de um progenitor comum, daí também se apelidando de consanguinidade – in Curso de Direito da Família, Introdução, Direito Matrimonial, Volume I, 4.ª Edição, pp. 32 e 41, Coimbra Editora, Coimbra, 2008. 8 Sobre todo o regime jurídico da filiação, consulte-se PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1995. 6
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3. Modalidades da filiação Quanto às modalidades da filiação, aqui se seguindo, de muito perto, a exposição do Professor JORGE DUARTE PINHEIRO, segundo o critério da fonte do vínculo, poderemos detetar as seguintes modalidades de filiação: i. a filiação biológica; ii. a filiação adotiva iii. a filiação por consentimento não adotivo. Passemos, de forma sumária, à análise de cada uma delas. – A filiação biológica (ou filiação stricto sensu) será aquela que resulta do ato sexual praticado entre duas pessoas de sexo diferente ou mediante procriação medicamente assistida e da qual resulta o parentesco no 1.º grau da linha reta, sendo, por isso, uma relação familiar nominada (cfr. art. 1578.º, do Código Civil, adiante designado por C.C.)9. Trata-se da modalidade de estabelecimento da filiação por excelência, sendo as demais subsidiárias, a qual privilegia o princípio da verdade biológica. – A filiação adotiva será aquela que, apesar dos laços de sangue, se constitui por uma sentença proferida num processo judicial de adoção (cfr. art. 1973.º, n.º 1., do C.C.), correspondendo também a uma relação familiar nominada, mas sem caráter retroativo10. – Por sua vez, a filiação por consentimento não adotivo ocorrerá sempre que a filiação se estabeleça com o consentimento do indivíduo que irá assumir a posição jurídica de pai, independentemente dos laços de sangue e sem que tenha sido proferida uma sentença judicial de adoção. Trata-se, pois, de uma relação familiar inominada11. Como teremos oportunidade para analisar, em tempo oportuno, a procriação medicamente assistida (e a maternidade de substituição num plano peculiar) suscita questões que assumem contornos de delicadeza extrema, no campo do estabelecimento da filiação, o que levou o legislador a consagrar algumas normas que visam estabelecer a filiação (maternidade e paternidade) do bebé que vai nascer em resultado da utilização daquelas técnicas. Sobre esta questão, nos pronunciaremos infra.
9 Cfr. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, p. 127, AAFDL, Lisboa, 2013. 10 Idem, p. 128. A adoção encontra-se regulamentada nos art.s 1586.º e 1973.º e seg.s, do C.C.; art. 36.º, n.º 7., da Constituição da República Portuguesa (adiante designada por C.R.P.); nos art.s 162.º a 173.º-G, da Organização Tutelar de Menores, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27.10; no Regime Jurídico da Adoção, previsto no Decreto-Lei n.º 185/93, de 22.05 e na Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças, assinada em Estrasburgo, a 24.04.1967, ratificada pela Assembleia da República, através da Resolução da Assembleia da República n.º 4/90, de 31.01.1990. 11 Ibidem.
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Celina S. Francisco
4. Estabelecimento da filiação (Remissão) Quanto à matéria do estabelecimento da filiação, e para o que nos importa, o legislador civilista (conjugado com o disposto no Código do Registo Civil) regulamentou quais os modos de estabelecimento da maternidade e da paternidade. Assim, quanto ao estabelecimento da maternidade, dispõe o art. 1796.º, n.º 1., do C.C., que, relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento – mater semper certa est – e estabelece-se nos termos dos art.s 1803.º a 1825.º (ou seja, por declaração; por averiguação oficiosa e por reconhecimento judicial)12. Quanto ao estabelecimento da paternidade, dispõe o n.º 2., que esta se presume em relação ao marido da mãe – pater is est quod nuptias demonstrant – e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se por reconhecimento. Termos em que a paternidade poderá ser estabelecida por presunção; por reconhecimento; por averiguação oficiosa ou por reconhecimento judicial (art.s 1826.º a 1873.º)13. Uma vez que não constitui objeto do presente trabalho estudar, em particular, a filiação, iremos abordar a problemática do estabelecimento desta no âmbito da maternidade de substituição mais adiante, pelo que esta questão será novamente retomada. 5. O direito à filiação, enquanto direito fundamental constitucionalmente tutelado Prescreve o art. 36.º, n.º 1., da C.R.P., que todos têm o direito de constituir família em condições de plena igualdade. O direito a constituir família compreende o direito de procriar (de procriar ou não procriar, sendo que a procriação está limitada pelo interesse da futura criança a nascer, como vimos supra) e o direito de constituir um vínculo de filiação. Dispõe o art. 67.º, n.º 2., al. e) que incumbe, designadamente, ao Estado para proteção da família regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana. Esta alínea foi aditada pela 4.ª revisão constitucional, através da Lei de Revisão Constitucional de 1997. Referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que esta norma visa resolver a questão da admissibilidade constitucional da procriação assistida, assim como visa excluir formas de procriação assistida lesivas da dignidade da pessoa humana, indo assim ao encontro o artigo primeiro da lei fundamental. Os professores FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA fazem uma distinção entre estabelecimento da maternidade por indicação e por declaração. Sobre o estabelecimento da maternidade, quanto a estes autores, vide Curso de Direito da Família, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação, Adoção, pp. 57 a 85, Coimbra Editora, Coimbra, 2006. Sobre esta questão (estabelecimento da maternidade) vide JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, pp. 135 a 147, AAFDL, Lisboa, 2013. 13 Sobre o estabelecimento da paternidade, vide FRANCISCO PEREIRA COELHO / GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação, Adoção, pp. 86 a 259, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, pp. 148 a 182, AAFDL, Lisboa, 2013. 12
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Esta norma constitucional visa salvaguardar os direitos das pessoas que mais diretamente poderão estar em causa por efeito da aplicação de técnicas de procriação assistida, ou seja, não apenas os beneficiários e as pessoas envolvidas como participantes no processo, mas também as pessoas nascidas na sequência da aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida e, em especial visa a salvaguarda: – Do direito à integridade física e moral (consagrado no artigo 25.º); – Do direito à identidade pessoal (o qual abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por si, um direito à investigação da paternidade e da maternidade, por forma a que todos os indivíduos tenham a possibilidade de estabelecer o seu próprio vínculo de filiação jurídica com base no vínculo biológico – neste sentido GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA14), à identidade genética, ao desenvolvimento da personalidade e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (consagrados no artigo 26.º); – Do direito a constituir família (nos termos do artigo 36.º), e, ainda, – Do direito à saúde (artigo 64.º). De facto, o art. 26.º, n.º 3., da C.R.P., consagra que a lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica. Neste sentido, o art. 2.º, da Convenção de Oviedo15, sob a epígrafe “Primado do ser humano” estatui que o interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência.
III. PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA 1. Breve bosquejo Como resulta da notícia que transcrevemos, e que serviu de mero aperitivo para esta exposição, múltiplos são os fatores e doenças que provocam problemas de infertilidade e que dificultam a conceção de um embrião, sua gestação e posterior parto. No entanto, vários e significativos têm sido os progressos da ciência neste campo, no sentido de ajudarem os casais inférteis. No ordenamento jurídico português, o paradigma de família centraliza-se na biparentalidade (pai e mãe) heterossexual. Idem. Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da biologia e da medicina: convenção sobre os direitos do homem e a biomedicina, aprovada por ratificação da Assembleia da República, através da Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001. 14 15
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Esquematicamente, poderemos desenhar um breve esquema elucidativo:
HOMÓLOGA (espermatozóides + ovócitos do próprio casal)
ASSISTIDA (recurso às técnicas de PMA)
HETERÓLOGA (doação de espermatozóides e/ou ovócitos)
PROCRIAÇÃO SEXUADA (espermatozóide + ovócito)
TOTAL
PARCIAL
(doação de espermatozóides + ovócitos)
(doação de espermatozóides ou ovócitos)
NATURAL
Tocando já o “dedo na ferida”, poderemos começar por referir que a procriação medicamente assistida (vulgo, PMA) encontra-se regulamentada, no ordenamento jurídico português, pela Lei n.º 32/2006, de 26.07.2006 (abreviadamente, iremos designar por LPMA), a qual teve origem nos projeNo ordenamento jurídico tos de lei n.º 141/X, do Bloco de Esquerda (BE); n.º 151/X, do português, o paradigma de Partido Socialista (PS); n.º 172/X, do Partido Comunista Porfamília centraliza-se na tuguês (PCP) e n.º 176/X, do Partido Social-Democrata biparentalidade (pai e mãe) (PSD), a qual foi aprovada na vigência do XVII Governo heterossexual. Constitucional16. Como se referiu supra, sendo o conceito da família centralizado na figura do casal heterossexual, vamos verificar que o diploma regulamentador das técnicas de procriação medicamente assistida também vem concretizar este Sobre a matéria da procriação assistida, veja-se AMÉLIA COSTA, Perspetiva Jurídica de um Ato de Amor, A Procriação Assistida, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 2000.
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paradigma, não sendo possível o recurso àquelas por casais homossexuais ou por indivíduos que não se encontrem casados nem vivam em união de facto com outro par do sexo oposto. Assim, e antes de mais, passemos à análise aos principais aspetos da mesma. 2. A lei da procriação medicamente assistida – principais aspetos A Lei n.º 32/2006, de 26.07, regulamenta a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida, sendo aplicável às seguintes técnicas: a) Inseminação artificial (art.s 19.º e seg.s)17; b) Fertilização in vitro (art.s 24.º e seg.s); c) Injeção intracitoplasmática de espermatozóides – vulgo ICSI (art. 47.º)18; d) Transferência de embriões (art. 47.º); e) Diagnóstico genético pré-implantação – vulgo, DGPI – (art.s 28.º e seg.s)19; f ) Outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias (art. 47.º). Este diploma tem subjacente alguns princípios, dos quais destacamos: i. o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 3.º, da LPMA20, o qual deverá ser relacionado com o art. 67.º, n.º 2., al. e) e art. 1.º, da CRP]; ii. o princípio da proibição da discriminação (art.s 3.º e 15.º, n.º 5., da LPMA, e art. 13.º, da CRP); iii. o princípio da subsidiariedade da PMA (art. 4.º21), e
17 A inseminação artificial consiste na introdução de esperma nos órgãos genitais femininos através de técnicas médicas, e não por via de cópula. 18 Introduzida em 1992, a microinjecção intracitoplasmática de espermatozóides, também conhecida por ICSI (sigla inglesa para intracytoplasmic sperm injection), é uma técnica de reprodução medicamente assistida que consiste na injeção de um único espermatozóide no citoplasma do ovócito II, evitando assim as dificuldades do processo natural em que espermatozóide tem que passar a “barreira” do ovócito para nele penetrar. 19 O diagnóstico genético pré-implantação (vulgo, DGPI) é definido, pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, como o estudo genético de embriões, quando estes foram obtidos por fecundação “in vitro”, durante os primeiros dias de desenvolvimento, antes de serem implantados no útero – cfr. Relatório n.º 51 sobre “Diagnóstico Genético Pré-implantação, acedido através do seguinte link <http://www.cnecv.pt/admin/files/data/ docs/1273054214_P051_RelatorioDGPI.pdf>, consultado a 10.05.2014. 20 O qual refere que as técnicas de PMA devem respeitar a dignidade humana, sendo proibida a discriminação com base no património genético ou no facto de se ter nascido em resultado da utilização de técnicas de PMA. 21 Devido ao respeito pela dignidade da pessoa humana e à sua não instrumentalização, refere esta norma que as técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação, só podendo ser utilizadas mediante diagnóstico de infertilidade ou ainda, sendo caso disso, para tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras. O aresto do Tribunal Constitucional (TC), Ac. n.º 101/2009, Proc. 963/2009, Relator: Juiz Conselheiro CARLOS FERNANDES CADILHA, veio julgar esta norma conforme à Constituição, na parte respeitante à indeterminabilidade do inciso “outras”, porquanto as outras doenças a que essa norma se refere, in fine, são aquelas relativamente às quais se venha a verificar, futuramente, ser possível prevenir o risco de transmissão por meio de uma técnica de PMA, quando se trate de uma doença grave (ainda que não seja uma doença genética ou infecciosa) e não seja possível o mesmo resultado por um outro método de prática clínica. Ficam assim excluídos os motivos fúteis ou censuráveis como justificativos do recurso a estas técnicas médicas.
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iv. o princípio da confidencialidade (art. 15.º)22. Da análise ao diploma, também destacamos alguns pressupostos, positivos e negativos de aplicabilidade das técnicas de PMA. Assim, em termos de pressupostos positivos destacamos: a) Quem pode ser beneficiário (art. 6.º): Só as pessoas casadas que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos, podem recorrer a técnicas de PMA. Estas técnicas só podem ser utilizadas em benefício de quem tenha, pelo menos, 18 anos de idade e não se encontre interdito ou inabilitado por anomalia psíquica. 22 Refere esta norma, no seu n.º 1., que todos aqueles que, por alguma forma, tomarem conhecimento do recurso a técnicas de PMA ou da identidade de qualquer dos participantes nos respectivos processos estão obrigados a manter sigilo sobre a identidade dos mesmos e sobre o próprio acto da PMA. Acrescenta o seu n.º 2. que as pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões podem, junto dos competentes serviços de saúde, obter as informações de natureza genética que lhes digam respeito, excluindo a identificação do dador. Deveremos conjugar este n.º 2., com o n.º 4., o qual refere que podem ainda ser obtidas informações sobre a identidade do dador por razões ponderosas reconhecidas por sentença judicial. Em termos de direito comparado, o princípio do anonimato é consagrado na lei espanhola (Ley n.º 14/2006, art. 5.º, n.º 5., o qual prevê a confidencialidade dos dados relativos aos dadores, consentindo, no entanto, que os filhos nascidos de procriação heteróloga, ou seja, com recurso à doação de ovócitos/espermatozóides, acedam a informações gerais sobre os dadores, dados estes que não incluam a sua identidade, exceto em casos extraordinários, que comportem perigo para a vida ou para a saúde do filho) ou ainda no ordenamento jurídico francês (nos art.s 1244-6 e 1244-7 do Code de la Santé Publique). No entanto, vários países têm vindo a abandonar o princípio do anonimato do dador, como sejam alguns países nórdicos [como a Suécia, a Suíça (cfr. art. 119.º, al. g), da Constituição Federal) e o Reino Unido (secção 31ZA, § 2 (a), na redação do Human Fertilisation am Embriology Act, de 2008)] e anglo-saxónicos, permitindo à pessoa nascida de PMA, quando tenha atingido um grau suficiente de maturidade, tenha a possibilidade de conhecer a identidade dos dadores. Quanto à doutrina nacional, alguns autores repugnam a regra do anonimato, v. g., DIOGO LEITE DE CAMPOS (o qual defende que a regra do sigilo sobre o dador viola o disposto nos art.s 2.°, 12.°, n.º 1., 13.°, n.os 1. e 3., da Constituição – in “A Procriação Medicamente Assistida Heteróloga e o Sigilo Sobre o Dador – ou a Omnipotência do Sujeito”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66 – Vol III – Dezembro, 2006, disponível em <www.oa.pt>) ou ainda PAULO OTERO, in Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano: um perfil constitucional da Bioética, pp. 71 e seg.s, Almedina, Coimbra, 1999. Do ponto de vista jurídico-constitucional estão aqui em tensão diferentes direitos fundamentais. Por um lado, o direito fundamental da pessoa nascida de PMA à identidade pessoal, do qual parece decorrer um direito ao conhecimento da sua ascendência genética (artigo 26.º, n.os 1. e 3., da Constituição), e, por outro, o direito a constituir família e o direito à intimidade da vida privada e familiar (previstos, respetivamente, nos artigos 36.º, n.º 1., e 26.º, n.º 1., da Constituição). Da outra banda, há autores que admitem a regra do sigilo, uma vez que o direito ao conhecimento das origens genéticas não assume um caráter absoluto, uma vez que deverá existir um equilíbrio com outros interesses ou valores conflituantes, como a defesa da paz da família. Neste sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, Aspetos Jurídicos da Procriação Medicamente Assistida, Temas de Direito da Medicina, p. 18, Coimbra Editora, Coimbra, 2005. Quanto a esta matéria, veja-se o aresto do TC, Acórdão n.º 23/06, no qual se salientou que o direito à identidade pessoal, na sua vertente da historicidade pessoal, implica a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos, reconhecendo-se, no entanto, que “outros valores, para além da ilimitada receção à averiguação da verdade biológica da filiação (...) possam intervir na ponderação dos interesses em causa, como que comprimindo a revelação da verdade biológica”. Neste sentido, também se pronunciou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (abreviadamente, TEDH), no caso Odièvre v. France, o qual aceitou, a respeito do regime legal francês do chamado “parto anónimo”, que pudesse haver limites ao direito ao conhecimento das origens genéticas e que, nesta matéria, os Estados pudessem estabelecer restrições que assegurem a realização, segundo critérios de proporcionalidade, de todos os interesses em presença (acórdão de 13 de fevereiro de 2003). O Tribunal Constitucional julgou a norma do art. 15.º não desconforme com a CRP, no seu aresto n.º 101/2009, ao estabelecer a regra do anonimato do dador e, como exceção, a possibilidade de conhecimento da identidade.
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Do seu âmbito de aplicação ficam, pois, excluídos os casais do mesmo sexo (esta lei é de 2006, altura em que apenas era admissível o casamento entre pessoas de sexo diferente, sendo que a Lei n.º 9/2010, de 31.05, nada dispôs sobre esta matéria) bem como as pessoas sem companheiro do sexo oposto (esta norma, na sequência do por nós já referido, vem assim concretizar a ideia da biparentalidade heterossexual)23. De realçar que o legislador apenas fixa um limite mínimo e não um teto máximo para se poder recorrer às técnicas de PMA24. b) A Liberdade de consentimento (art. 14.º) – sendo a declaração de vontade do candidato a pai um elemento mínimo e indispensável à constituição do vinculo da filiação que não derive da prática de um ato sexual. Quanto aos pressupostos negativos realçamos: a) As finalidades proibidas da PME (art. 7.º)25, e b) A investigação cientifica (art. 9.º)26. O Professor JORGE DUARTE PINHEIRO defende que deveriam ser aplicáveis os requisitos exigidos pelo art. 1979.º, n.º 1., da lei civil, aos beneficiários das técnicas de PMA – em O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, p. 224, AAFDL, Lisboa, 2013. Este autor refere ainda que as restrições no acesso à PMA de mulheres sós e de casais do mesmo sexo não são absolutas, podendo ceder em nome do princípio in dubio pro embrião, sustentando a sua posição também PAMPLONA CORTE-REAL, o qual aponta para uma inconstitucionalidade material do art. 6.º, da LPMA – idem, p. 225. 24 Quanto ao direito comparado, há ordenamentos jurídicos em que se optou por estabelecer um teto máximo, v. g.: a Áustria e Luxemburgo (40 anos); Bélgica (42 anos); Eslovénia (43 anos); Dinamarca (45 anos). Em Espanha, por exemplo, regulamentou-se no sentido das técnicas de procriação assistida apenas poderem ser aplicadas quando haja possibilidades razoáveis de êxito e não impliquem risco grave para a saúde, física ou psíquica, da mulher ou da possível descendência (dispondo a já referida Ley n.º 14/6006, no seu art. 3.º, n.º 1., que “Las técnicas de reproducción asistida se realizarán solamente cuando haya posibilidades razonables de éxito, no supongan riesgo grave para la salud, física o psíquica, de la mujer o la posible descendencia y previa aceptación libre y consciente de su aplicación por parte de la mujer, que deberá haber sido anterior y debidamente informada de sus posibilidades de éxito, así como de sus riesgos y de las condiciones de dicha aplicación”. Quanto a esta norma, refere o TC, no Acórdão n.º 101/2009, que o “limite de idade está implícito no próprio regime legal decorrente do já analisado artigo 4.º da mesma Lei. As técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação e só poderão ser utilizadas quando tenha sido efetuado um prévio diagnóstico de infertilidade, o que tem pressuposta a ideia de que a mulher beneficiária se encontra em idade em que normalmente poderia procriar se não existisse um fator inibitório de natureza clínica que tenha afectado um dos membros do casal”. 25 Quanto aos art.s 7.º, n.º 3, e 30.º, n.º 2, alínea q), o TC também se pronunciou quanto à possibilidade de criação de embriões-medicamento. Em termos de direito comparado, o ordenamento jurídico espanhol autoriza o recurso ao Diagnóstico genético pré-implantação (DGPI) para seleção dos embriões com base no grupo HLA (human leukocyte antigen), para fins terapêuticos de terceiros, embora estabeleça a obrigatoriedade de aprovação do procedimento, caso a caso, pela Comissão Nacional de Reprodução Humana Assistida. Recentemente, o também o ordenamento jurídico francês veio autorizar a seleção de embriões através do DGPI. O TC julgou que a solução normativa que se contém na Lei se enquadra num critério de ponderação e harmonização com outros valores constitucionalmente protegidos, sem colocar em causa, de forma evidente, a dignidade das pessoas diretamente envolvidas, e assegura, desse modo, em atenção aos objetivos que se pretende atingir, uma proteção adequada do embrião – Ac. 101/2009. 26 O ordenamento jurídico italiano proíbe qualquer experimentação com embriões humanos, sendo permitida ainda que em estritos limites, em Espanha, na França ou no Reino Unido. É ainda autorizada na Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Holanda e Suécia. Quanto a esta norma, o TC concluiu que a utilização, em investigação científica, de embriões obtidos sem recurso à fecundação por espermatozóide (id est, clonagem terapêutica não reprodutiva), está sujeita ao mesmo grau de proteção que está reservado para as demais situações legalmente previstas. Mais realça que se mantém a exigência de apreciação e aprovação do projeto de investigação por parte do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, sendo proibida e sancionada criminalmente a clonagem com fins reprodutivos (artigo 36.º), proibição que decorre da necessidade de proteger direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, não sendo, por isso, inconstitucional. 23
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2.1 Normas imperativas de destaque Como referimos, as técnicas de procriação medicamente assistida são de aplicação subsidiária, devendo ser respeitadoras da dignidade da pessoa humana (art.s 3.º e 4.º, da LPMA). Afim de evitar a violação daqueles princípios e o respeito pelos seus pressupostos, quer positivos, quer negativos, o legislador estabeleceu algumas normas imperativas, que convém aqui referir. Assim, o art. 8.º estatui que são nulos os negócios jurídicos, (…) são nulos os negócios gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição. jurídicos, gratuitos ou onerosos, Mais acrescenta o seu art. 18.º que é proibida a compra ou de maternidade de substituição. venda de óvulos, sémen ou embriões ou de qualquer material biológico decorrente da aplicação de técnicas de PMA. Ou ainda o art. 8.º, n.º 3., o qual refere que a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer. 3. A regulamentação do estabelecimento da filiação na lei da procriação medicamente assistida Do recurso às técnicas de PMA, por vezes, surgem grandes disputas judiciais pelo bebé que nasceu (ou que irá nascer), quer pelos próprios beneficiários, quer entre estes e terceiros intervenientes. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida firmou o entendimento de que, sendo preferível, em princípio, a utilização exclusiva de gâmetas do casal, no âmbito das técnicas de PMA, “excecionalmente e por ponderadas razões estritamente médicas, quando esteja em causa a saúde reprodutiva do casal, poderá ser considerado o recurso a doação singular de gâmetas”27. No que respeita à doação de sémen, atualmente, só o direito italiano a proíbe, dentro de um contexto de proibição geral de todo e qualquer tipo de reprodução heteróloga, conforme decorre do art. 4.º, n.º 3., da Legge 19 febbraio 2004, n.º 4028. Já no que se refere à doação de ovócitos, ela é proibida por outros ordenamentos jurídicos, para além do italiano, como o ordenamento alemão, sendo a mesma solução seguida noutros países como a Áustria, a Suíça ou a Noruega. A Ley 14/2006 admite, no seu art. 5.º, quer a doação de espermatozóides, quer a doação de ovócitos, prescrevendo que “La donación de gametos y preembriones para las finalidades autorizadas por esta Ley es un contrato gratuito, formal y confidencial concertado entre el donante y el centro autorizado”. O direito português permite, no artigo 10.º, da Lei n.º 32/2006, tanto a doação de gâmetas masculinos e femininos como a doação de embriões, assemelhando-se ao direito espanhol e ao inglês. Parecer n.º 44, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, relativo ao tema Procriação Medicamente Assistida, cit. conclusão 8.ª, p. 4. 28 O qual estipula que “È vietato il ricorso a tecniche di procreazione medicalmente assistita di tipo eterologo”. 27
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Estabelece o art. 1796.º, n.º 1., do C.C., que a maternidade resulta do nascimento, consagrando assim o princípio mater semper certa est. Neste sentido, também o art. 8.º, n.º 3., da LPME, refere que a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer. Quanto ao estabelecimento da paternidade, já referimos a presunção resultante da conceção germânica do brocado “pater is est quod nuptias demonstrant”, consagrada nos art.s 1796.º, n.º 2.; 1826.º, n.º 1.; 1830.º; 1831.º e 1834.º, todos da lei civilista. Quando haja recurso às técnicas de PMA, deveremos lançar mão a um conjunto de normas criadas pelo legislador e introduzidas nos art.s 20.º; 10.º, n.º 2; 21.º e 23, da LPMA. Salientaria o art. 20.º, n.º 1., o qual refere que, se da inseminação in vitro, vier a resultar o nascimento de um filho, é este (…) a mulher que suportar havido como filho do marido ou daquele vivendo em união de uma gravidez de substituição facto com a mulher inseminada, desde que tenha havido conde outrem é havida, para todos sentimento na inseminação, nos termos do artigo 14.º, sem os efeitos legais, como a mãe prejuízo da presunção estabelecida no artigo 1826.º do da criança que vier a nascer. Código Civil (estamos, pois, perante um exemplo de filiação por consentimento não adotivo). Refere JORGE DUARTE PINHEIRO que «[n]a procriação assistida heteróloga, não é razoável insistir no critério biológico, atribuindo ou impondo situações jurídicas paternais a alguém que é um mero dador de material genético. O vínculo de filiação deve ser, em alternativa, constituído em relação ao beneficiário da PMA que não contribuiu, para o processo, com as suas células reprodutoras, desde que ele tenha consentido validamente na formação desse vínculo. Tanto mais que ele teve um papel causal determinante no nascimento. Foi a sua decisão que desencadeou o processo de procriação»29. O TC também afirma que estas disposições são conformes a CRP, no seu Acórdão n.º 101/09.
IV. MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO 1. Conceito Dispõe o art. 8.º, n.º 2., da LPMA, que se entende-se por “maternidade de substituição” qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade30. A maternidade de substituição é expressamente proibida em Portugal, sendo nulos todos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição (art. 8.º, n.º 1.). A lei espanhola, sob a epígrafe “Gestación por sustitución”, também proíbe a maternidade de substituição, no art. 10.º, o qual estatui que “Será nulo de pleno derecho el contrato por el 29 Cfr. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, cit. pp. 254 e 255, AAFDL, Lisboa, 2013. 30 Sobre esta matéria, vide MARTA COSTA e CATARINA SARAIVA LIMA, A Maternidade de Substituição à Luz dos Direitos Fundamentais de Personalidade, pp. 237 a 289, Revista Lusíada, Direito, N.º 10, Lisboa, 2012.
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que se convenga la gestación, con o sin precio, a cargo de una mujer que renuncia a la filiación materna a favor del contratante o de un tercero”. Neste sentido, também a lei italiana, no contexto de proibição de todo o tipo de procriação heteróloga, estatui que “È vietato il ricorso a tecniche di procreazione medicalmente assistita di tipo eterologo” (art. 4.º, n.º 3., da Legge 19 febbraio 2004, n.º 40.º). Para J. P. REMÉDIO MARQUES, trata-se de um negócio jurídico pelo qual uma mulher se obriga a suportar uma gravidez por conta de outrem, sendo que, após o parto, se obriga a entregar a criança, renunciando aos poderes-deveres ou às responsabilidades parentais31. Para o Prof. JORGE DUARTE PINHEIRO, “na maternidade de substituição, uma mulher dispõe-se a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto a outra mulher, reconhecendo a esta a qualidade jurídica de mãe”32. De facto, não estamos perante um fenómeno do século XXI. A questão da maternidade de substituição, ou da maternidade sub-rogada, é muito antiga, registando-se alguns episódios da ocorrência da mesma, no Antigo Testamento Bíblico, como são os casos de Sarai, mulher de Abrãao, que recorreu à sua escrava Agar para ter um filho, Ismael, ou de Raquel e Jacó, que tiveram dois filhos (Dã e Naftali) por meio de duas gravidezes de Bila. Um caso que correu mundo foi o norte-americano do Bebé M (em 1988). William Stern, casado com Elizabeth Stern, recorreram a Mary Beth Whitehead para que engravidasse e, posteriormente, entregasse o bebé àquele casal. Destarte, após o nascimento, Mary Beth decidiu ficar com a criança. William e Elizabeth Stern iniciaram uma luta judicial, pretendendo serem reconhecidos como pais legais da criança. O tribunal de New Jersey decidiu que o contrato de sub-rogação celebrado era inválido de acordo com a ordem pública norte-americana, reconhecendo Mary Beth Whitehead como a mãe legal da criança. No entanto, por outras razões relacionadas com Mary Beth e por se ter considerado que o casal Stern proporcionaria um crescimento mais estável e equilibrado à criança, foi-lhe atribuída a custódia, ficando Mary Beth com direitos de visita. Outro caso mediático, que correu muita tinta nos media, foi o da Sr.ª Tina Cade, em 2004, mulher norte-americana, de 55 anos, que gerou 3 gémeos para a filha. Aqui, nesta situação, a gestante será, simultaneamente, gestante e avó. Poderíamos ainda apontar a história das três irmãs Charlotte Pestell, (gémea de) Alex Patrick e Helen Ritchie. Alex Patrick encontrava-se impossibilitada, fisicamente, de ter filhos, devido a uma doença, de cariz oncológica, que sofreu no passado. Charlotte Pestell, sua irmã gémea, doou um óvulo seu, o qual foi fecundado com esperma do marido de Alex. Helen Ritchie colheu, no seu ventre, o ovo fecundado, dando à luz, em 2005, Charlie, o qual passaria a ser filho de Alex e seu marido Shaun. Shaun e Alex foram reconhecidos como pais de Charlie em novembro de 2005, por decisão do tribunal londrino. Estes são alguns dos milhares de casos que ocorrem todos os dias por todo o mundo. Neste campo, há que fazer algumas delimitações de conceitos. 31 32
In O Regime Jurídico da Procriação Medicamente Assistida em Portugal e a Utilização dos Embriões – Notas Breves. Idem, p. 233.
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A doutrina tem vindo a adotar a seguinte terminologia: · Mãe genitrix – como sendo a mãe genética/biológica; · Mãe gestatrix – ou seja, a mulher que gera no seu organismo o embrião resultante da fecundação do óvulo da mãe genitrix, e o dá à luz); · Mãe social ou afetiva (mulher que cria e educa a criança); · Dador do espermatozóide; · Pai social ou efetivo. O Professor JORGE DUARTE PINHEIRO adota os conceitos de mãe de gestação e de mãe de receção. Já o Professor OLIVEIRA ASCENÇÃO utiliza a terminologia de mãe destino ou mãe social. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida defende que se deve optar por um conceito mais rigoroso, ou seja, deverá falar-se em “gestação de substituição” e “gestante de substituição”33, posição que subscrevemos. Destarte, para efeitos do presente trabalho, usaremos, de forma indiferenciada, “gestação de substituição” e “maternidade de substituição” (este último conceito por ter sido o acolhido pelo legislador) e “gestante de substituição”. JORGE DUARTE PINHEIRO identifica três fases na maternidade de substituição: – a negociação; – a celebração de acordo; – o cumprimento com a entrega do recém-nascido e no reconhecimento de que a mãe de receção é, para todos os efeitos legais, a mãe e de que o marido/companheiro da gestante não é o pai da criança. Do ponto de vista da gestante, a fase do cumprimento compreende: – Conceção (ou implantação de embrião); – Gravidez; – Parto; – Entrega da criança com o reconhecimento de que esta é a titular das situações jurídicas maternais em relação a esta e, quanto às situações jurídicas parentais, serão tituladas pelo marido/companheiro da mãe de receção34. A doutrina tem adotado várias classificações doutrinais, a fim de fazer a destrinça entre as várias ocorrências que poderão ocorrer na maternidade de substituição, esquematicamente, agrupámos as seguintes: 33 In Parecer n.º 63 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição, p. 8, março de 2012. 34 Ibidem, pp. 233 e 234.
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Resultante da prática de ato sexual
Resultante das técnicas de PMA Gestação de substituição genética (se o óvulo pertencer à gestante)
Gestação de substituição puramente gestacional (se o óvulo não pertence à gestante de substituição) GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO Gestação de substituição a título oneroso
Gestação de substituição a título gratuito
Gestação de substituição extrafamiliar
Gestação de substituição intrafamiliar (v. g., Brasil)
A doutrina tem colocado algumas questões sobre a maternidade de substituição: – Estamos perante um contrato? Uma relação obrigacional? – Que tipo de contrato? De compra e venda? De doação? De aluger? De comodato? VERA LÚCIA RAPOSO, defende que se está perante a contratação de um serviço e não o produto final35. Também JORGE DUARTE PINHEIRO considera que se está diante um contrato. O qual será um contrato de prestação de serviços atípico, que consiste numa gestação por conta de outrem36. Vários são os quesitos que provocam acesos debates, maxime: – Se os pais beneficiários falecerem? O que acontecerá à criança? – Se a gestante de substituição adotar comportamentos de risco durante a gravidez? Poderá falar-se em incumprimento ou em cumprimento defeituoso da obrigação? Poderá haver resolução contratual? É exigível indemnização para compensação dos danos patrimoniais e morais? 35 36
Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 88., março, 2012, pp. 26 e 27. Ibidem, pp. 236 e 237.
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– E se a mãe beneficiária se recusar a ficar com a criança, por ela ser portadora de uma deficiência ou malformação do feto, não imputáveis à gestante? – E se os pais beneficiários desistirem daquele projeto de parentalidade, qual o destino do bebé, quais as consequências legais que podem advir do incumprimento contratual da banda dos beneficiários? Pode a gestante ficar com o bebé? – E se a gestante se recusar a entregar a criança? Pode-se coagir a mãe a entregar o bebé? Há direito à execução específica do contrato? – Quantas vezes pode a mesma mulher ser grávida de substituição? (na Holanda, duas vezes) – Qual deverá ser a relação entre a grávida de substituição e o casal beneficiário? É ou não desejável que haja laços anteriores entre os três intervenientes? – Pode a gestante de substituição amamentar a criança? – Pode a gestante de substituição, no início da gravidez, decidindo que não quer dar à luz, recorrer à Interrupção Voluntária da Gravidez? – Pode a gestante ter direito a visitas à criança ou obter informações acerca dela? Quanto aos principais argumentos a favor da gestação de substituição, a doutrina tem esgrimido, grosso modo, dois: por um lado, visa-se assegurar o direito de procriar em condições de igualdade, estando de harmonia com o princípio da autonomia privada; e, por outro, só este contrato faculta o acesso à maternidade por parte de mulheres que não conseguem completar a sua gravidez com sucesso. Da outra banda, os argumentos contra a gestação de substituição pautam-se pelos seguintes: a criação da vida humana e a procriação não são valores absolutos, estando limitados pelo interesse da futura criança que irá nascer (v. g., a gestante pode ser avó/tia da criança); a gestação de substituição provoca uma intensa instrumentalização do corpo de uma mulher, para que outra pessoa venha a receber um filho; ou ainda a posição do Professor GUILHERME DE OLIVEIRA, o qual refere que, ao ser estipulada a entrega (de facto e de direito) da criança que venha a nascer a alguém que não é a mãe de gestação, tais contratos violam o princípio da taxatividade dos meios de regular o destino dos menores, e o consentimento da mãe de gestação, quanto à entrega da criança, sendo prestado antes da conceção, ofende o art. 1982.º, n.º 3., do C.C., o qual prevê que o consentimento para a adoção só pode ser dado pela mãe do adotando decorridas seis semanas após o parto, aplicável analogicamente ao consentimento estruturante do contrato de gestação37. Para além destes argumentos acresce o facto de, apesar do legislador ter consagrado o princípio da liberdade contratual, no art. 405.º, da lei civilista, a verdade é que o art. 280.º, n.º 2., fere de nulidade os contratos contrários à ordem pública, ou ofensivos dos bons costumes. Em termos de direito comparado, há regimes jurídicos que proíbem a maternidade de substituição, como os casos já mencionados da Espanha e Itália, e também na Alemanha (§1 (1) 7 da Embryonschutzgesetz), seja por força de disposição legal expressa, seja por meio das cláusulas gerais de nulidade dos negócios contrários aos “bons costumes” ou à “ordem pública”. 37 Cfr. GUILHERME DE OLIVEIRA, Mãe há só uma (duas): O Contrato de Gestação, pp. 60 e seg.s, Coimbra Editora, Coimbra, 1992.
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Quanto aos países que a autorizam, temos a Grécia, o Reino Unido (Surrogate mothers), o Canadá, e alguns Estados federados dos Estados Unidos da América (v. g. o Arkansas, Califórnia, Massachusetts, New Jersey e Washington). Também a Índia, Israel, a Austrália, a Rússia admitem a maternidade de substituição38. O Brasil admite a gravidez de substituição, mas com elevadas restrições, apenas permitindo em casos de doença ou infertilidade da mãe, que não lhe permita gerar o próprio filho e que a mulher gestora seja parente até ao 2.º grau (Resolução do Conselho Federal de Medicina do Brasil – Resolução n.º 1975/2010/CFM). J. P. REMÉDIO MARQUES refere que estes negócios “são expressamente fulminados com a nulidade, quer sejam negócios gratuitos ou onerosos. Esta invalidade já decorreria, ao que se crê, do disposto no artigo 280.º/2 do Código Civil (negócios contrários à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes) e no artigo 1982.º/3 do mesmo Código (renúncia antecipada ao estatuto jurídico de mãe, por ocasião do consentimento para a adoção)”39. 2. Estabelecimento da maternidade Estabelece o art. 8.º, n.º 3., da LPMA, que a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer. OLIVEIRA ASCENSÃO considera que se trata de uma sanção pela prática deste ato ilícito. J. P. REMÉDIO MARQUES refere que a mãe uterina é sempre a mãe jurídica40. JORGE DUARTE PINHEIRO critica esta solução legal, uma vez que, caso se esteja perante uma gestação de substituição puramente gestacional (ou seja, em que a gestante apenas leva a cabo a gravidez, não sendo seu o óvulo fecundado), a filiação deveria ser estabelecida em relação aos membros do casal de receção, caso contrário, está-se a criar uma relação de filiação em relação a uma mãe que não tem nenhuma relação biológica com a criança, o que poderá colocar em cheque o superior interesse da criança, podendo potenciar uma situação de risco para a mesma41. Ainda nesta matéria, um outro problema que, por vezes, surge prende-se com o recurso à gestação de substituição no estrangeiro, por portugueses. O Instituto dos Registos e do Notariado, para efeitos do registo do assento de nascimento do nascido no estrangeiro através de uma gestante de substituição, tomou posição, quanto a esta questão, no parecer do Conselho Técnico, P.º C.C. 96/2010 SJC. Das suas conclusões destaca-se o facto de vigorar, na nossa ordem jurídica interna, o princípio da verdade biológica, resultando o estabelecimento da filiação materna do facto nascimento, devendo ser feita prova, aquando do registo, da ocorrência do parto e da identificação da parturiente, nos termos do art.º 1796.º, n.º 1., do C.C., e art.º 102.º, n.os 5. e 6., e art.º 113.º, do Código do Registo Civil. Em alguns países onde a gestação de substituição é admitida, justifica-se, por vezes, ou por deveres religiosos, ou devido à ideia de se estar a cumprir uma obrigação patriótica. 39 In O Regime Jurídico da Procriação Medicamente Assistida em Portugal e a Utilização dos Embriões – Notas Breves, cit. p. 32. 40 Idem, p. 33. 41 Cfr. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lições, 4.ª Edição, cit. pp. 250 e 251, AAFDL, Lisboa, 2013. 38
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Sendo nulos os negócios jurídicos de maternidade de substituição (ex vi art.º 8.º, n.º 1., da Lei n.º 32/2006), a mulher que suportar uma gravidez de substituição é havida, para todos os efeitos legais, como mãe da criança que vier a nascer (art.º 8.º, n.º 3.). Recorrendo às normas de conflitos, aquele Conselho Técnico conclui que na ordem jurídica nacional não é reconhecida eficácia ao contrato de maternidade de substituição, ainda que outorgado em país estrangeiro que o admita (nos termos dos art.os 41.º,42.º, 56.º, n.º 1. e 22.º do Código Civil). (…) na ordem jurídica nacional Assim, se no momento da declaração de nascimento atrinão é reconhecida eficácia butiva da nacionalidade portuguesa, se levantarem dúvidas ao contrato de maternidade sobre a identidade ou veracidade das declarações prestadas de substituição, ainda que quanto à parturiente, deve ser solicitada a identificação desta outorgado em país estrangeiro para ficar a constar como mãe no registo e, sendo desconheque o admita (…) cida a sua identidade, não resultando dos documentos apresentados a sua identificação, da declaração de nascimento ficará a constar apenas a filiação paterna. 3. Os filhos da grávida de substituição O antropólogo francês MAURICE GODELIER é dos poucos profissionais da área a preocupar-se com o estudo da influência de uma gravidez de substituição nos filhos biológicos da gestante, que acompanham a gravidez da mãe. Aquele defende que há crianças que se interrogam se poderiam ficar com o bebé que a sua mãe tem ou teve no útero de substituição, para tanto, se necessário, “recomprando-o” aos pais beneficiários42. No sentido inverso, um estudo do Centre for family research at the university of Cambridge conclui que a gravidez de substituição não tem impacto negativo nos filhos sociais da grávida de substituição43. 4. Responsabilidade criminal Quanto à criminalização da maternidade de substituição, prescreve o art. 39.º, da LPMA, que quem concretizar contratos de maternidade de substituição a título oneroso é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias (n.º 1). Cfr. MAURICE GODELIER, Métamorphoses de la Parenté, p. 574, Librairie Arthème Fayard, Paris, 2004. Estudo intitulado por Children of surrogate mothers: an investigation into their experiences and psychological health, cujo o resultado se transcreve “All children had a positive view of their mother’s involvement in surrogacy. Ten children (6/9 gestational and 4/7 genetic) were in contact with the surrogacy child and reported good relationships with him/her. A similar proportion of children of gestational carriers (4/9) referred to the surrogacy child as a sibling compared to children of genetic carriers (3/7), despite not having a genetic link to the child. The majority of children (12/16) discussed surrogacy with their friends, most of whom (11/12) reacted positively. Children of genetic and gestational surrogates did not differ on questionnaire assessments of psychological health and most children scored within the normal range for self-esteem”. Com este estudo, concluiu-se que “Contrary to concerns raised over the impact of surrogacy for the surrogates’ own children, these findings suggest that children do not experience negative consequences as a result of their mother’s decision to be a surrogate”. Sobre esta questão, veja-se o Relatório sobre a Procriação Medicamente Assistida (PMA) e Gravidez de Substituição, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, março de 2012, p. 34.
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Quem promover, por qualquer meio, designadamente através de convite direto ou por interposta pessoa, ou de anúncio público, a maternidade de substituição a título oneroso é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias (n.º 2). Uma crítica que se tem apontado a esta norma, é o facto de não contemplar a punibilidade dos contratos de maternidade de substituição a título gratuito. A posição assumida pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 101/2009, vai no sentido de que a maternidade de substituição gratuita tende a ser vista como menos censurável que a substituição onerosa, uma vez que revela altruísmo e solidariedade da mãe gestante para com a mulher infértil, e por não haver, da parte desta, um desrespeito pela dignidade da mãe gestante, por não ocorrer aqui nenhuma tentativa de instrumentalização de uma pessoa economicamente carenciada, por meio da fixação de um “preço”, como ocorre nas situações de maternidade de substituição onerosa. Esta terá sido uma das razões para que o legislador tivesse optado por não criminalizar este tipo de condutas, as quais se situam em contextos pessoais e emocionais complexos, dificultando a formulação de um juízo de censura e a sua consequente criminalização Termos em que aquele alto Tribunal não se pronunciou pela inconstitucionalidade da não punibilidade da maternidade de substituição ilícita gratuita, não porque a punibilidade fosse inconstitucional, mas porque a Constituição a não impõe. VERA LÚCIA RAPOSO defende que a criminalização pressupõe um bem jurídico criminal. Segundo esta, na celebração de contratos de maternidade de substituição celebrados onerosamente não há bem jurídico. A dignidade humana não é um bem jurídico criminal, pelo que, deste ponto de vista, é suscetível de fundamentar a sua criminalização. Termos em que defende que a celebração deste tipo de contratos onerosos poderia ser punível, mas sem ser crime44.
V. OS VENTOS DA MUDANÇA NA LPMA
O Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda apresentou, no fecho de 2011, nos termos do art. 167.º, da Constituição, o Projeto de Lei n.º 122/XII/1.ª. Propõe-se a alteração de vários artigos da LPMA, sendo que, quanto à maternidade de substituição, propõe-se a alteração ao art. 8.º, no sentido de passar a admitir, a título excecional, a celebração de negócios jurídicos, a título gratuito, de maternidade de substituição nos casos de ausência de útero e de lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher. Para além daquelas situações, e sempre a título excecional, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, ouvida previamente a Ordem dos Médicos, pode autorizar a celebração de negócios jurídicos de maternidade de substituição em situações clínicas que o justifiquem.
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Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 88., março, 2012, pp. 26 e 27.
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Propõe-se ainda a alteração ao art. 39.º, no sentido de ser também penalizada, criminalmente, a celebração de contratos de maternidade de substituição a título gratuito fora dos condicionalismos fixados no art. 8.º No entanto, este Projeto de Lei foi rejeitado em votação na generalidade, na votação da Reunião Plenária n.º 62 . Seguiu-se o Projeto de Lei n.º 131/XII, apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Socialista. Também neste Projeto de Lei se propõe a admissibilidade do recurso à maternidade de substituição, contudo, só a título excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero e de lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem. Propõe-se que a maternidade de substituição só poderá ser autorizada através de uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respetivos beneficiários, carecendo da autorização prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, que supervisiona todo o processo. Propõe-se a proibição de qualquer tipo de pagamento ou doação de qualquer bem ou quantia dos beneficiários à mãe de substituição pela gestação da criança, exceto o valor correspondente às despesas médicas. A criança que nascer através do recurso à maternidade de substituição é tida como filho dos respetivos beneficiários. Também se propõe uma alteração ao art. 39.º, de modo a criminalizar os contratos de maternidade de substituição, a título gratuito, fora dos casos previstos nos n.º 2 a 5 do artigo 8.º Foi também apresentado o Projeto de Lei n.º 137/XII, pelos Senhores Deputados Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira, Rui Duarte, Maria Antónia Almeida Santos e Elza Pais, do Partido Socialista. Também este Projeto de Lei foi rejeitado em votação na generalidade, na votação da Reunião Plenária n.º 62. Por fim, foi ainda apresentado o Projeto de Lei n.º 138/XII, pelo Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata. Neste Projeto de Lei também se admite, a título excecional, a celebração de negócios jurídicos gratuitos de maternidade de substituição, nos casos de ausência de útero na parceira feminina do casal. Para além desta situação, e sempre a título excecional, o Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida, ouvida previamente a Ordem dos Médicos, pode autorizar a celebração de negócios jurídicos gratuitos de maternidade de substituição em situações clínicas que o justifiquem e desde que se encontrem preenchidas as demais condições legalmente previstas. Mais se propõe a proibição de qualquer tipo de pagamento, benefício ou doação de qualquer bem ou quantia à mãe de substituição pela gestação da criança, exceto o valor correspondente às despesas de saúde efetivamente realizadas e desde que devidamente tituladas em documento próprio. Este diploma também propõe esclarecer que só as pessoas casadas que, sendo de sexo diferente, e não se encontrando separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há, pelo menos, dois anos, é que podem recorrer a técnicas de PMA. 198
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Propõe-se ainda uma alteração ao art. 39.º, de modo a criminalizar a maternidade de substituição gratuita, fora dos condicionalismos legais. Neste momento, são os Projetos de Lei apresentados pelos Grupos Parlamentares do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata (Projetos de Lei n.º 131/XII e n.º 138/XII) que aguardam a votação na comissão parlamentar de saúde, sendo que, à presente data (27.06.2014), já foi solicitada a prorrogação do prazo para nova apreciação na generalidade por 10 (dez) vezes à Excelentíssima Senhora Presidente da Assembleia da república, o que faz transparecer a dificuldade em encontrar consenso político sobre determinados pontos desta matéria. Em recentes declarações à Agência Lusa45, JOÃO SEMEDO, deputado pelo Bloco de Esquerda, referiu que “há um conjunto de informações que permitem saber que o PSD está a preparar-se para, em matéria de procriação medicamente assistida e de maternidade de substituição, recuar na sua intenção inicial de aprovar essas alterações ainda nesta sessão legislativa”. Mais acrescenta que “[a] concretizar-se, esse recuo do PSD significaria, do ponto de vista do BE, a violação grosseira de um compromisso que se estabeleceu publicamente com mulheres e casais, a quem se anunciou esta possibilidade, o último recurso para essas pessoas terem os seus filhos. Seria uma violação de tudo aquilo que foi prometido a essas famílias”. No exercício do contraditório, MIGUEL SANTOS, deputado parlamentar pelo PSD, referiu ao jornal I46 que “[n]inguém do PSD afirmou não querer resolver a matéria nesta sessão legislativa. Se o PS e o BE pensam isso, essa é uma conclusão deles”, o qual acrescentou que “[v] amos reunir o grupo parlamentar no dia 8 porque é a data em que conseguimos ter maior participação”, não tendo a reunião acontecido antes “(…)porque o texto não estava pronto. Mas temos muita vontade de fazer esta reunião. Este é um tema apaixonante, difícil, que divide muito as pessoas e é preciso explicá-lo bem, porque muitos deputados não conhecem a matéria na sua substância.” Na sequência da apresentação daqueles projetos, o CNECV elaborou o Parecer n.º 63., de março de 2012, no qual se refere que este órgão aceita, execionalmente, a gestação de substituição, desde que a lei garanta a observância da totalidade de 13 condições indicadas neste parecer47. Para terminar esta exposição, tendo sido, recentemente, realizada a Conferência Episcopal Portuguesa (vulgo, CEP), a qual teve lugar em Fátima, a 1 de maio de 2014, foi divulgado o Comunicado final da Assembleia Plenária da CEP, sendo que, do seu ponto 9., consta que “estando em apreciação na Assembleia da República uma proposta de alteração legislativa no sentido da legalização, em determinadas condições, da maternidade de substituição (vulgarmente conhecida por «barriga de aluguer»), os Bispos não podem deixar de manifestar o seu total desacordo a essa proposta. A natural aspiração à maternidade e paternidade não pode traduzir-se num pretenso direito ao filho, como se este pudesse ser reduzido a instrumento. A criança nascida de uma mãe contratualmente obrigada a abandoná-la não pode deixar de sofrer com o trauma desse abandono, conhecidos que são, cada vez mais, os laços que se criam entre mãe e filho durante a gestação. 45 Conforme notícia de 27.06.2014, disponível em <http://www.publico.pt/sociedade/noticia/be-vai-requerer-votacao-de-maternidade-de-substituicao-na-comissao-de-saude-1660765>. 46 Conforme notícia que pode ser consultada em <http://www.ionline.pt/artigos/portugal/psd-discute-maternidade-substituicao-no-dia-8>. 47 As quais podem ser consultadas em <http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1333387220-parecer-63-cnecv2012-apr.pdf>, pp. 9. e 10.
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A mãe gestante não pode, também ela, ser instrumentalizada e reduzida a uma incubadora, como se a gravidez não envolvesse profundamente todas as dimensões da sua pessoa e a obrigação de abandono do seu filho não contrariasse o mais forte, natural e espontâneo dos deveres de cuidado. A experiência revela que só o desespero de mulheres gravemente carenciadas as leva a aceitar tão traumatizante prática, sendo ilusório pensar que o fazem de bom grado ou gratuitamente”48.
CONCLUSÃO Após a análise supra efetuada, é tempo de balanços. Penso que a questão da maternidade de substituição tem de ser analisada do ponto de que partimos, ou seja, do ponto de vista do superior interesse da criança. Por um lado, os fortes vínculos de afetividade e proteção que se estabelecem entre a gestante e o bebé e a sua abrupta interrupção, e, por outro, os sérios problemas que poderão surgir, no caso de arrependimento ou incumprimento de qualquer um dos intervenientes, podendo dar lugar a um conflito pela perfilhação da criança, ambos colocando em causa o seu superior interesse (no sentido por nós adotado neste trabalho) levantam-nos muitas dúvidas sobre a admissibilidade legal da gestação de substituição. A gestante de substituição vive toda a gravidez sem ter qualquer interesse em ser mãe daquela criança, tendo em vista a sua posterior entrega a outrem (realizando, assim, o seu superior interesse?), configurando-se, do nosso ponto de vista, uma instrumentalização limite do corpo humano e do bebé que vai nascer. De facto, por vezes argumenta-se, também, a livre disponibilidade do nosso próprio corpo, mas poderá dispor-se livremente do ser humano que irá nascer? Cremos que esta livre disponibilidade não salvaguarda a dignidade da pessoa humana, consagrada na Constituição e que analisamos detalhadamente. A fim de concretizar esta ideia, basta referir que a criança que vier a nascer pode ter, no limite, cinco progenitores (a mãe genitrix; a mãe gestatrix; a mãe social ou afetiva; o dador do espermatozóide e o pai social ou afetivo). Em nossa opinião, sempre com a devida vénia pelas posições doutrinárias contrárias, a maternidade de substituição viola a dignidade da pessoa humana, não sendo conforme ao texto Constitucional, aqui se acompanhando o Parecer da Ordem dos Advogados49, não podendo a maternidade ser objeto de negócios jurídicos, não se vislumbrando a constitucionalidade do “contrato de gestação”. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico
O qual pode ser consultado em <http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?&id=100202>, acedido a 11.05.2014. Sublinhado nosso. 49 Disponível em http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d5630 4c334e706447567a4c31684a5355786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e316257567564473 97a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c7a55335957566d59325a684c5755344d7a51744e44468596930354f546c6c4c544d35596a49314e4759324d6a426d5a5335775a47593d&fich=57aefcfa-e834-43ab-999e39b254f620fe.pdf&Inline=true>, consultado a 12.05.2014. 48
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Celina S. Francisco
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Jurisprudência Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc.: 232/10.3TBAVV-B.G1, datado de 11-07-2013 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc.: n.º 1110/05.3TBSCD.C2.S1, datado de 04-02-2010
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/06 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/09 Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Odièvre v. France
Abrevisaturas e Siglas Ac. – Acórdão art. – artigo art.s – artigos BE – Bloco de Esquerda CEP – Conferência Episcopal Portuguesa C.C. – Código Civil CNECV – Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida C.R.P. – Constituição da República Portuguesa DGPI – Diagnóstico Genético Pré-Implantação ICSI – intracytoplasmic sperm injection LPMA – Lei da Procriação Medicamente Assistida MRKH – Mayer-Rokitansky-Kuster-Hause
n.º – número n.os – números p. – página PCP – Partido Comunista Português PMA – Procriação Medicamente Assistida pp. – páginas Proc. – Processo PS – Partido Socialista PSD – Partido Social-democrata seg.s – seguintes TC – Tribunal Constitucional TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem v. g. – verbi gratia
Link’s www.cnpcjr.pt/preview_documentos.asp?r=2249&m=DOC http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1273054214_P051_RelatorioDGPI.pdf http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?&id=100202 http://www.oa.pt/cd/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?sidc=31634&idc=8351&idsc=21852&ida=75761 http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c2012324679626d56304c334e706447 567a4c31684a5355786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c7a55335957566d59325a684c5755344d7a51744e444e68596930354f546c6c4c544d35596 a49314e4759324d6a426d5a5335775a47593d&fich=57aefcfa-e834-43ab-999e-39b254f620fe.pdf&Inline=true http://www.ionline.pt/artigos/portugal/psd-discute-maternidade-substituicao-no-dia-8 http://www.publico.pt/sociedade/noticia/be-vai-requerer-votacao-de-maternidade-de-substituicao-na-comissao-de-saude-1660765 http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1333387220-parecer-63-cnecv-2012-apr.pdf
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A ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS EMERGENTES DE CONTRATOS CLÁUDIA PEREIRA Licenciada em Solicitadoria e Administração pelo Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC). Empregada forense. TRABALHO DISTINGUIDO COM MENÇÃO HONROSA
“ Ignorantia juris neminem excusat.”.1 INTRODUÇÃO
A
Câmara dos Solicitadores, no uso das suas faculdades, regulou a atribuição do Prémio Daniel Lopes Cardoso dirigido a todos os associados, incluindo os inscritos como estagiários, bem como aos alunos do Curso de Solicitadoria. O Prémio Daniel Lopes Cardoso tem como principais objectivos homenagear o Solicitador Daniel Lopes Cardoso e incentivar ao desenvolvimento de estudos em torno da solicitadoria.
Joel Timóteo Ramos Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, Volume I, Processo Civil Declarativo, Lisboa: Quid Juris, 2005, pág. 13 – Vocábulo do latim que significa: “A ignorância da lei não é desculpável.”.
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RESUMO A A.E.C.O.P.E.C. regulada pelo Decreto-lei 269/98, de 1 de Setembro é um processo que tem como principal objectivo o reconhecimento e a cobrança de dívidas de uma forma simples e célere. Os solicitadores enquanto mandatários judiciai, têm plena competência para exercer o mandato judicial, neste processo, desde que a causa não exceda o valor de 5.000€. Actualmente a grande maioria das acções são de reduzido valor, concluindo assim, que os solicitadores podem exercer de forma plena o mandato judicial, conforme se pretende demonstrar com o presente artigo.
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O Solicitador Daniel Lopes Cardoso no exercício da sua profissão foi destacado como uma pessoa exemplar, dedicada, sempre pronta a ajudar de uma forma perfeitamente desinteressada, incentivando os colegas a exercer a actividade da solicitadoria de forma digna, pautada principalmente pelos valores ético-morais que, actualmente em muito se perderam. Neste sentido, participou activamente na Câmara dos Solicitadores, no qual foi Presidente no mandato compreendido entre os anos de 1989-1991, marcando profundamente a vida desta instituição. A sua memória nunca será esquecida e nada melhor que através da atribuição do Prémio Daniel Lopes Cardoso, cujo o nome do prémio seu nome herdou, para que tal memória continue presente, através da elaboração de trabalhos literários de carácter técnico, que em muito contribuem para melhorar a actividade profissional da solicitadoria. E será neste sentido, melhorar a actividade profissional da solicitadoria, que será desenvolvido o presente trabalho que incidirá sobre o estudo da Acção Especial de Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos aprovada pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro. O presente trabalho terá como objectivo demonstrar que os solicitadores, enquanto mandatários judiciais, podem exercer esta competência desde que a causa não obrigue à constituição de advogado, ou seja, desde que o valor da acção não seja superior a 5.000€ [Art.º 40.º n.º 1 al. a) a contrário do CPC]. Neste sentido, pretender-se-á demonstrar que numa A.E.C.O.P.E.C. de valor não superior a 5.000€ os solicitadores podem intervir como mandatários judiciais, sem quaisquer restrições, podendo até levantar questões de direito (Art.º 42.º do CPC).
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CAPÍTULO I
ACÇÃO DECLARATIVA PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS EMERGENTES DE CONTRATOS
1. APROVAÇÃO Hoje em dia, é elevadíssimo o número de acções propostas de baixa densidade para reconhecimento e cobrança de dívidas, principalmente as derivadas dos serviços que negoceiam com milhares de consumidores. Neste sentido, o Estado sentiu a necessidade de criar mecanismos que facilitem o reconhecimento e o cumprimento de um direito de uma forma mais simples e célere. Nasce assim, a Acção Declarativa Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos de valor não superior a 15.000€, criada pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro2. Este regime só é aplicável às obrigações pecuniárias directamente emergentes de contratos, pelo que não tem competências para exigir de obrigações pecuniárias provenientes, de por exemplo, responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, de enriquecimento sem causa, de relação de condomínios. A A.E.C.O.P.E.C. pode surgir de duas formas: através da entrega da Petição Inicial em Tribunal onde o Autor requer que a causa seja julgada por esta forma de processo, ou através da distribuição do procedimento de Injunção, também ele regulado pelo diploma em análise. O procedimento de injunção vai à distribuição, seguindo a forma de uma A.E.C.O.P.E.C., sempre que haja uma de duas situações: o valor da causa não exceda os 15.000€ e tenha sido deduzido pelo requerido oposição à injunção, ou então se tenha frustrado a citação do requerido e o requerente tenha indicado no requerimento de injunção que, nesse caso, o processo vai à distribuição (Art.º 15.º n.º 1, 16.º n.º 1 todos do diploma em análise). O regime da A.E.C.O.P.E.C. é composto por normas cujo objectivo principal é o da celeridade e simplicidade processual, visto que este tipo de acção se caracteriza por se concentrar todo ele assente em duas fases processuais: a fase dos articulados e a fase do julgamento. Para além disso, há requisitos especiais da relação jurídica que são fundamentais para assegurar depois uma rápida tramitação no tribunal, dos quais destacamos, a possibilidade de as partes poderem fixarem, nos contratos, os seus domicílios para efeito de citações e notificações; a consequência da recusa do não recebimento da citação ou notificação; o regime dos prazos processuais que diverge do regime aplicável ao processo declarativo comum. Seguidamente, será explicada a tramitação da A.E.C.O.P.E.C. de valor não superior a 5.000€, uma vez que os solicitadores têm competência plena para o exercício do mandato judicial.
2 Actualmente com 15 alterações posteriores à publicação do referido diploma, sendo a mais recente a do DL n.º 226/08, de 20 de Novembro.
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CAPITULO II
ARTICULADOS
2. NOÇÃO Dizem-se articulados, as peças processuais nas quais as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes (Art.º 147.º do CPC). Segundo o Art.º 147.º, n.º 2, no processo comum as peças processuais nas quais haja constituição de mandatário, é obrigatória a sua narração por artigos, sem prejuízo da lei dispensar tal formalismo. Ora, na A.E.C.O.P.E.C. tal formalismo é dispensado pelo disposto no Art.º 1.º, n.º 3 do diploma em análise. Contudo, as partes podem narrá-los de forma articulada, permitindo que as peças sejam mais sintéticas, concisas e, por via disso, mais exactas e claras. No CPC estão previstos quatro espécies de articulados3; no entanto, o regime jurídico da A.E.C.O.P.E.C. só admite a formu(…) não será intenção do lação de Articulados Normais, que são a Petição Inicial aprelegislador alterar o Art.º 1.º n.º 3 sentada pelo Autor e a Contestação na qual o Réu deduz a sua do diploma em análise, uma vez defesa (Art.º 1.º n.º 1, 2 e 3 do diploma em análise). que há uma clara contradição, Nos termos do Art.º 1.º, n.º 3, que nos remete para o actual quanto à forma de entrega das Art.º 148.º n.º 1 do CPC, os articulados devem ser apresentados peças processuais entre este em duplicado, oferecendo-se tantos duplicados quantos os artigo e o estipulado pelos actuais interessados na causa. Por sua vez, o actual Art.º 148.º tipifica o Art.os 132.º e 144.º, do CPC? modo de entrega das peças processuais nos casos em que não haja constituição de mandatário. Contudo, o que se pretende demonstrar é a forma como os mandatários devem praticar os actos. E neste sentido, os Art.os 132.º e 144.º, do CPC e Art.º 1.º e 2.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto4, obrigam a que a tramitação dos processos, incluindo a entrega das peças processuais, seja feita electronicamente, através da aplicação informática designada Citius, sempre que a parte se faça representar por mandatários, dispensando-os de apresentar os respectivos duplicados ( Art.º 148.º n.º 6 do CPC e Art.º 4.º n.º 1 da referida Portaria). Neste sentido, não será intenção do legislador alterar o Art.º 1.º n.º 3 do diploma em análise, uma vez que há uma clara contradição, quanto à forma de entrega das peças processuais entre este artigo e o estipulado pelos actuais Art.os 132.º e 144.º, do CPC?
3. PETIÇÃO INICIAL 3.1 Conceito, Natureza e Importância: No direito antigo, o que é hoje conhecido por Petição Inicial, chamava-se Libelo. 3 As quatro espécies de articulados previstas no CPC são: Articulados Normais, Eventuais, Supervenientes e Judicialmente Estimulados. 4 A referida Portaria que regula a Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2013, aquando da entrada do Novo Código de Processo Civil, revogando a Portaria 114/2008, de 6 de Fevereiro.
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A Petição Inicial é o primeiro articulado no qual o Autor expressa a sua vontade de que o Tribunal tome conhecimento do direito violado e que tome uma decisão. Esta vontade é suficiente para obrigar o Tribunal a exercer a sua função – a função jurisdicional. O Autor ao intentar uma acção, está sujeito ao Principio do Dispositivo (Art.º 3.º n.º 1, 1.ª parte e Art.º 5.º n.º 1 do CPC) segundo o qual a acção está dependente da livre disponibilidade das partes, podendo estas instaurá-las ou não. Este princípio assume particular relevância em três questões essências: no impulso processual, visto que a acção só existe a partir do momento em que é apresentada a Petição Inicial e tal apresentação é expressão da vontade particular; na delimitação do objecto do litígio, onde as partes definem os contornos do litígio, alegando factos que o descrevem e nos limites da sentença, porque o Tribunal não pode concluir quanto a objecto diverso do pedido ou em quantidade superior à solicitada pelo Autor. 3.2 Estrutura Conforme resulta do disposto no Art.º 552.º do CPC, aqui aplicável por força do n.º 1 do Art.º 549.º do mesmo diploma, a Petição Inicial desenvolve-se através de quatro elementos: o cabeçalho, a narração, a conclusão e os elementos complementares. Do cabeçalho consta a designação do Tribunal onde a acção é proposta, a identificação das partes e a indicação da forma do processo. A competência do Tribunal resulta da combinação das regras de competência material, territorial e funcional. Contudo, as partes podem convencionar o foro competente para a resolução do litígio conforme refere o Art.º 2.º n.º 1 do diploma em análise, que se encontra melhor explicado no ponto 5 do presente trabalho. A identificação das partes, ou seja, do Autor e do Réu, deve conter a indicação dos seus nomes, residência ou sede, e sempre que possível, a identificação civil, identificação fiscal e locais de trabalho [Art.º 552.º n.º 1 al. a) do CPC]. Por fim, o Autor deve indicar a forma do processo, sendo esta indicação relevante em sede de distribuição (Art.º 212.º do CPC) e autuação. Seguidamente, a narração – ponto mais importante da Petição Inicial –, contém a indicação dos factos que integram a causa de pedir. Esta, deve ser feita de uma forma breve, clara e verdadeira para que qualquer pessoa possa lê-la e entender o que nela se encontra escrito. O Autor, deve indicar os factos concretos e essenciais que fundamentam o seu pedido e as normas jurídicas que servem de fundamento à acção [Art.º 552.º n.º 1 al. d) do CPC]. Em relação à alegação de facto, o regime jurídico da A.E.C.O.P.E.C. diz que a exposição dos factos deve ser de forma sucinta, breve e concisa (Art.º 1.º n.º 1 do diploma em análise). Quanto à alegação de direito, apesar de o Art.º 552.º n.º 1 al. d) do CPC fazer menção da sua presença na narração, a sua não presença não é motivo desfavorável para as partes, porque o juiz nos termos do Art.º 5.º do CPC não está sujeito às alegações de direito, mas apenas aos factos articulados pelas mesmas, para além daquelas que são considerados pelo juiz nos termos do n.º 2 do Art.º 5.º do CPC. No que respeita à Conclusão. Também esta deve ser clara, certa e congruente. Na conclusão é enunciado o pedido da acção, que corresponde ao efeito jurídico que o Autor pretende obter da acção, ou seja, a providência requerida pelo Autor ao Tribunal – Art.º 552.º 208
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n.º 1 al. e) e Art.º 609.º n.º 1, do CPC). A formulação do pedido reveste a maior importância, porque o juiz não pode condenar em quantidade superior ao objecto diverso do que lhe pedido (Art.º 609.º do CPC). Na Petição Inicial é necessário mencionar várias indicações complementares relativas ao valor da causa, à juntada e à indicação do domicílio profissional do solicitador, bem como a assinatura deste. Em relação à indicação do valor da causa [Art.º 552.º n.º 1 al. f ) do CPC] trata-se de um elemento de importância capital, quer para efeito de custas do processo, quer para fixação da forma do processo aplicável à acção, quer para efeito de admissibilidade de recurso e, ainda para aferir a competência do Tribunal. No que respeita ao valor da causa, resulta do Art.º 296.º do CPC, que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo em moeda local o que permite de imediato verificar o valor do pedido. O Autor deve proceder à soma do valor concreto da dívida e dos Juros de Mora vencidos para alcançar o valor pedido. Os Juros de Mora são uma penalização pelo incumprimento da obrigação pecuniária, considerando-se um incentivo ao cumprimento das obrigações (Art.º 806.º do CC) e são calculados através de uma fórmula: multiplicamos o capital em divida pela taxa de juro, dividimos por 365 e, depois, multiplicamos pelos dias em mora. Conforme o disposto no Art.º 102§ 3 do Comercial, a taxa de juros moratórios comerciais aplica-se no que diz respeito a créditos de que sejam titulares empresas comerciais e é fixada por Portaria conjunta do Ministério da Justiça e das Finanças. A taxa de juro comercial para o primeiro semestre do ano de 2014 é de 7,25% conforme Aviso n.º 1019/2014 de 21 de Janeiro, publicado no D.R., II Série. Por sua vez, às restantes causas é aplicável a taxa de juro civil que se fixa em 4% desde 1 de Maio de 2003, segundo a Portaria n.º 291/2003, de 08 de Abril (Art.º 559.º do CC). Quanto à juntada, com a Petição Inicial, anexam-se, a procuração forense5,o Documento Único de Cobrança da taxa de justiça, o comprovativo do seu pagamento ou a decisão da concessão do benefício de apoio judiciário, que no ponto seguinte será explicado de forma mais detalhada. Se o Autor não juntar o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial, estando obrigado a tal pagamento, beneficia ainda de um prazo subsequente à notificação de tal falta para juntar o respectivo comprovativo. Caso não o faça, o articulado é recusado [Art.º 560.º e 558.º al. f ), do CPC]. Caso existam documentos, que comprovem qualquer facto alegado no articulado, nomeadamente o contrato devem também ser juntos. Se a Petição Inicial for enviada via electrónica, sendo que tal envio é obrigatório sempre que haja constituição de mandatário, conforme anteriormente já referido, os documentos que acompanham a peça processual devem ser digitalizados e anexados ao articulados, ficando a parte dispensada de remeter os originais (Art.º 144.º n.º 3 do CPC), tendo estes a mesma força probatória que os originais (Art.º 144.º n.º 4 do CPC). No entanto, deve o mandatário da parte guardar os originais dos documentos, pois o Juiz pode sempre solicitar a qualquer momento a exibição dos referidos documentos (Art.º 144.º n.º 5.º do CPC). A procuração forense é o documento na qual a parte confere ao solicitador os poderes necessários para a resolução da causa. A procuração tanto pode ter uma natureza comum ou especial. A Procuração Comum confere ao solicitador todo o tipo de poderes necessários à resolução da causa. Por sua vez, a procuração com poderes especiais acrescenta aos poderes gerais, outros que o mandante deveria exercer pessoalmente, como por exemplo os poderes para confessar, transigir ou desistir.
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E por fim, a indicação do domicílio do escritório do solicitador e a assinatura deste, marcando assim o terminus do articulado. Em relação à assinatura da peça processual, a mesma é feita digitalmente através do certificado de assinatura electrónica que garante de forma permanente a qualidade profissional do signatário6. 3.3 Pagamento da taxa de justiça ou benefício de apoio judiciário: Todos os processos judiciais estão sujeitos a custas judiciais – cfr. Art.º 1.º n.º 1 do RCP (aprovado pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro7) e Art.º 529.º e seguintes do CPC. As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (Art.º 3.º n.º 1 do RCP e Art.º 529.º n.º 1 do CPC). Neste momento, o que nos interessa é o pagamento da taxa de justiça que é devido pelo impulso processual do Autor (Art.º 6.º n.º 1 do RCP e Art.º 530 n.º 1 do CPC) a qual é expressa com recurso à unidade de conta processual, que neste momento se fixa em 102€8. O montante devido é fixado em função do valor e complexidade da causa de acordo com o RCP (Art.º 5.º n.º 1 e Art.º 6.º n.º 1 do RCP). A taxa de justiça paga na A.E.C.O.P.E.C. é fixada nos termos da Tabela 1-A. Contudo, se o responsável pelo pagamento da taxa de justiça for uma sociedade comercial que no ano anterior tenha dado entrada de 200 ou mais acções, os chamados grandes litigantes, a taxa de justiça é fixada de acordo com a Tabela I-C9 (Art.º 13.º n.º 3 do RCP). Por exemplo, para uma A.E.C.O.P.E.C. com um valor processual de 3.500€, o valor da taxa de justiça a pagar de acordo com a Tabela I-A, é de 2 UC, ou seja, 204€. Por sua vez, tratando-se de um grande litigante, já não pagaria os 204€ mas sim, 306€ correspondente a 3UC. Contudo, o processo da A.E.C.O.P.E.C. na maioria das vezes só surge após a distribuição do Procedimento de Injunção, uma vez que a fase inicial desta acção coincide com a possibilidade que a Injunção já confere. Neste sentido, a A.E.C.O.P.E.C. surge através de uma Injunção, quando é deduzida oposição pelo requerido ou frustra-se a citação deste e o requerente tenha requerido, que o processo vá à distribuição ( Art.º 15.º e 16.º 1.º do diploma em analise). Neste caso, Autor e Réu, caso tenha deduzido oposição, após a distribuição e no prazo de 10 dias devem pagar a taxa de justiça devida nos termos do Art.º 6.º n.º 1 do RCP, 6 Regulada pelo DL n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, alterada pelo DL n.º 62/2003 de 3 de Abril, e DL n.º 165/2004 de 6 de Julho e Regulamentada pelo Decreto Regulamentar n.º 25/04, de 16 de Julho que regula o Regime Jurídico dos Documentos Electrónicos e da Assinatura Digital. O sistema jurídico português não tem sido excepção ao tentar adequar-se aos novos padrões tecnológicos, mostrando-se muito vantajoso. Desde logo para os solicitadores uma vez que o envio das peças processuais pelos meios electrónicos – CITIUS – “alargam” o prazo da prática do acto. Por exemplo, um solicitador tem de entregar uma contestação até ao dia x. Com a possibilidade da entrega via electrónica, este, deixa de estar condicionado pela hora do encerramento da secretaria do Tribunal ou dos CTT’s, podendo proceder à referida entrega até às 23h59 do dia x. Tudo isto é possível pelo facto de os documentos enviados conterem uma assinatura digital que garante a sua autenticidade, integridade e confidencialidade. Autenticidade no sentido de que apenas o solicitador em causa deve ser capaz de reproduzir a sua assinatura digital. Integridade, uma vez que assinado o documento, este não pode ser alterado por outra pessoa. Confidencialidade porque apenas têm acesso ao documento o emissor e o verificador, ou seja, o solicitador e o Tribunal. 7 Actualmente com uma rectificação pela Declaração de Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março. 8 De acordo com a al. a) do Art.º 113.º aa Lei n.º 83-C/2013, de 31/12 (Orçamento do Estado para 2014) que determina a suspensão do regime de Actualização do Valor de Indexante de Apoios Sociais. Neste sentido, o valor da Unidade de conta mantem-se inalterado desde 2009. 9 Anualmente é publicado pelo Ministério da Justiça na 2.ª Serié do D.R. sob forma de aviso, uma listagem das sociedades comerciais que até 31 de Dezembro do ano anterior, tenham dado entrada de 200 ou mais acções em Tribunais, secretárias Judiciais ou Balcões.
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descontando-se no caso do Autor, o valor que pago aquando da entrada do requerimento de injunção, pagando simplesmente o valor remanescente (Art.º 7.º n.º 4 e 6 do RCP). No entanto, não deve ser negado o acesso ao direito e aos tribunais a uma pessoa que se encontre a viver com insuficiência de meios económicos, uma vez que esse acesso é um direito constitucionalmente consagrado (Art.º 20.º da CRP. e Art.º 1.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho10). Assim, sempre que uma pessoa se encontrar a viver em insuficiência económica11, deverá pedir protecção jurídica nas modalidades de apoio judiciário (Art.º 6.º n.º 1 da Lei em análise). A protecção jurídica é revestida pelas modalidades elencadas no Art.º 16.º, devendo o interessado requerer qual a modalidade que pretende através do preenchimento de requerimento de apoio judiciário disponível em qualquer balcão do Instituto da Segurança Social, ou através do A protecção jurídica confere a endereço electrónico http://www4.segsocial.pt/formularios?k possibilidade ao requerente (…) w=protec%C3%A7%C3%A3o+juridica. Depois de preenchido de ver o seu direito defendido e anexados todos os documentos que comprovem as inforde forma gratuita através da mações prestadas, o interessado deve entregar o requerinomeação e pagamento de mento num serviço do Instituto da Segurança Social e patrono que segundo a Lei em aguardar a respectiva decisão. análise só poderá ser exercida A protecção jurídica confere a possibilidade ao requerenpor um advogado que é te de intervir num processo sem despender quaisquer quannomeado pela Ordem dos tia – dispensa do pagamento de taxas de justiça e demais Advogados. (…) é nossa opinião encargos com o processo –, e mesmo a possibilidade de ver o que também os solicitadores seu direito defendido de forma gratuita através da nomeadeveriam ter acesso a tal ção e pagamento de patrono que segundo a Lei em análise faculdade, uma vez que têm só poderá ser exercida por um advogado que é nomeado competências para exercer o pela Ordem dos Advogados. mandato judicial. (…) visto que Quanto a esta questão – nomeação de advogado –, é ambos são profissionais do nossa opinião que também os solicitadores deveriam ter direito, devendo ter o mesmo acesso a tal faculdade, uma vez que têm competências para direito de igualdade consagrado exercer o mandato judicial12. E quando o requerente solicita pelo Art.º 13.º da CRP. à Segurança Social que lhe seja nomeado e pago um patrono, no requerimento indica o tipo e valor da acção. Logo, segundo estes dois critérios é possível aferir se um solicitador pode ou não intervir como patrono, devendo nestas situações as nomeações serem repartidas entre os advogados e solicitadores de forma igual, visto que ambos são profissionais do direito, devendo ter o mesmo direito de igualdade consagrado pelo Art.º 13.º da CRP. Um dever do solicitador quando representa uma parte em litígio é o de aferir se a mesma tem ou não possibilidade de custear as despesas inerentes ao processo e informa-la, caso não tenha conhecimento, da possibilidade de pedir apoio judiciário nas modalidades de
Alterada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto. Considera-se que se encontra a viver em insuficiência económica, uma pessoa que não tenha condições de suportar os custos inerentes com uma acção em tribunal (Art.º 8.º da Lei 34/2004, de 29/07). 12 Os Art.os 40.º e 58.º do CPC referem quais as causas em que é obrigatória a constituição de advogado. Fora destas causas, as partes podem fazer-se representar por solicitadores (Art.º 42.º do CPC). 10 11
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dispensa ou pagamento faseado de taxas de justiça e demais encargos com o processo uma vez que a resolução do litígio ficará menos dispendiosa. 3.4 A Entrada em Tribunal A entrega da Petição Inicial na secretaria do Tribunal a que é dirigida, marca o momento exacto da propositura da acção (Art.º 259.º n.º 1 do CPC). A entrada do articulado marca o início solene e oficial da vida de uma acção. Com o acto material da entrega da petição, preenche-se o princípio fundamental da iniciativa da parte, expressamente consignado na primeira parte do n.º 1 do Art.º 3.º do CPC. A entrega da Petição Inicial em juízo e conforme já foi referido anteriormente, é feita através da transmissão electrónica de dados, designadamente pela aplicação informática Citius, uma vez que há constituição de mandatário e a lei impõem tal obrigatoriedade ( Art.º 132.º, 144.º n.º 1 e 7 a contrario, do CPC e Art.º 1.º e 2.º Da Portaria 280/2013). 3.5 Recusa pela Secretaria: Elaborada a Petição Inicial, a mesma deve ser enviada ao Tribunal para dar início ao processo. Recebida pela secretaria, esta pode recusar o seu recebimento quando apresente deficiências que impeçam a sua aceitação, indicando por escrito o fundamento da sua rejeição, fundamentos esses que estão elencados no Art.º 558.º do CPC. No entanto, do acto da recusa cabe reclamação para o juiz no prazo de 10 dias (Art.º 559.º n.º 1 do CPC e 149.º n.º 1 do CPC).
4. DISTRIBUIÇÃO A distribuição é o acto que permite repartir com igualdade o serviço do Tribunal pelas diferentes secções de processo (se o Tribunal assim for constituído) ou pelos diversos juízos. Conforme o Art.º 208.º do CPC que nos remete para o Art.º 16.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, a distribuição é feita diariamente e de forma automática através do sistema informático. Nos termos do disposto no Art.º 212.º do CPC, existem várias espécies na distribuição. A A.E.C.O.P.E.C., acção objecto deste estudo, corresponde à segunda espécie: acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e acções no âmbito do procedimento especial de despejo. Com a distribuição é atribuído um número ao processo. Este número, é composto por letras e números que têm a sua razão de ser. Supondo que um determinado articulado deu entrada no Tribunal e após a distribuição lhe foi atribuído o número: 2468/14.1TBPRT, tal expressão combinada tem o seguinte significado: 2468 – Número de contagem crescente dos processos; 14 – Indica o ano em que o processo foi instaurado; .1 – Número aleatório escolhido automaticamente pelo sistema que pode variar de “0” a “9”; TBPRT – Identificação do Tribunal. 212
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Contudo, não haverá lugar à atribuição do número de processo nos casos em que o Procedimento de Injunção é remetido ao Tribunal para distribuição, mantendo, nesta situação, o número inicialmente atribuído pelo Balcão Nacional de Injunções. Terminada a distribuição, os resultados da mesma são publicados diariamente no endereço electrónico http://www.tribunaisnet.mj.pt e o respectivo processo é remetido para a secção ou juízo correspondente, onde se procede de imediato à sua autuação e elaboração da capa do processo. 5. CITAÇÃO Segundo o Art.º 219.º n.º 1. do CPC, a citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao Réu de que foi proposta contra ele determinada acção, chamando-o ao processo para se defender. Com a citação, permite-se que o réu exerça o direito do contraditório, possibilitando ao Réu contestar o alegado pelo Autor (Art.º 3.º n.º 1. in fine do CPC). O princípio do contraditório não é mais do que a possibilidade concedida a cada uma das partes de intervir no processo e defender-se. Juntamente com este princípio, reconhece-se o direito de defesa que se divide em: direito à escolha de um advogado ou solicitador, direito ao conhecimento prévio do pedido, direito à Contestação, direito à última palavra e direito a que a decisão se torne congruente com o pedido e com a defesa. Este princípio manifesta-se ao longo do processo. A citação, pode ser feita em qualquer sítio em que o destinatário se encontre, concretamente na sua residência ou no seu local de trabalho. No entanto, ninguém pode ser citado dentro de um templo ou enquanto estiver ocupado em acto de serviço público que não deva ser interrompido (Art.º 224.º do CPC). Nos termos do Art.º 137.º n.º 2 do CPC, as citações podem fazer-se em qualquer altura, inclusivamente nas férias judiciais e mesmo nos dias em que o Tribunal esteja encerrado. Em regra, a citação é feita oficiosamente pela secretaria (Art.º 226.º n.º 1 do CPC) contendo os seguintes elementos (Art.º 227.º do CPC): número do processo, secção, juízo e Tribunal; prazo dentro da qual pode exercer a defesa, com menção ao modo como este prazo deverá ser contado e a consequência da não Contestação; necessidade ou não de constituir advogado e o envio do duplicado da Petição Inicial e dos documentos que a acompanham. Contudo, a forma de citação diverge consoante tenha sido convencionado ou não o domicílio. O domicílio convencionado, segundo o Art.º 2.º do diploma em análise, consagra a possibilidade de as partes poderem fixar o seu domicílio para efeito de citações ou notificações. A convenção do domicílio só é possível nos contratos reduzidos a escrito, visto que deve constar numa cláusula em que cada uma das partes aceita que o domicílio indicado no contrato valha para o efeito de receber citações ou notificações, para o caso de um litígio derivado do mesmo contrato. Tal convenção não vincula só as pessoas singulares mas também as pessoas colectivas, incluindo naturalmente as sociedades. A referida cláusula de domicílio tem como vantagem a celeridade do procedimento que tenha por objecto o litígio decorrente do contrato. E isto porquê? Segundo o Art.º 1-A do diploma em análise, a citação ou notificação, em caso de domicílio convencionado, faz-se de acordo com o preceituado nos n.os 3 a 5 do Art.º 229.º do CPC. 213
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Analisando este artigo, verificamos que a citação é feita por meio de carta registada com aviso de recepção para a morada que o réu convencionou. No caso de pessoa singular, a carta deve ser entregue ao citando ou a qualquer pessoa que se encontre na morada indicada, comprometendo-se a entregá-la ao citando, sob pena de incorrer em responsabilidade. Quanto aos inabilitados13, são citados na pessoa do curador e na sua própria pessoa, sob pena de nulidade do acto de citação (Art.º 223.º n.º 1 que nos remete para o Art.º 19.º do CPC). Por sua vez, tratando-se de pessoa colectiva, a citação é efectuada nos seus legais representantes ou qualquer empregado que se encontre no local, ficando com o compromisso de entregar a carta aos legais representantes da sociedade, sob pena de incorrer em responsabilidade (Art.º 223. n.º 1 e 3 do CPC). Chegado o distribuidor postal à morada indicada, pode acontecer uma de três situações. A primeira é o réu receber a carta, considerando-se citado no dia em que assina o aviso de recepção (Art.º 230.º n.º 1 do CPC). Contudo, o distribuidor postal antes de entregar a carta, procede à identificação do citando ou do terceiro a quem a carta seja entregue, anotando os elementos constantes do Bilhete de Identidade ou Cartão de Cidadão ou de outro documento oficial que permita a identificação (Art.º 228.º n.º 3 do CPC). A segunda situação é a de o réu não se encontrar presente e ser deixado um aviso postal para ir levantar a carta à estação de correios da área da morada (Art.º 228.º n.º 5 do CPC). Se o réu não proceder ao levantamento da correspondência, dentro do prazo estabelecido para o efeito, a mesma é devolvida ao Tribunal, que providencia nova citação, através de nova carta registada com aviso de recepção, advertindo das cominações do n.º 2 do Art.º 230.º do CPC. Não se encontrando novamente o citando, o distribuidor postal deposita a carta na caixa do correio, preenche o aviso de recepção que acompanha a carta, certificando a data e o local exacto onde depositou o expediente, e remete o referido aviso de recepção ao Tribunal, considerando-se efectuada a citação no próprio dia do depósito da correspondência (Art.º 229.º n.º 4 e 5 do CPC). A terceira e última situação possível é a recusa pelo réu do recebimento do expediente. Nessa situação, o distribuidor postal lavra uma nota de incidente antes de devolver a carta, considerando-se efectuada a citação ou notificação nessa altura (Art.os 229.º n.º 3 do CPC). Idêntico regime está previsto no Art.º 3.º do diploma em análise, que consagra expressamente “se o citando ou o notificando recusarem a assinatura do aviso de recepção ou recebimento da carta, o distribuidor postal lavra nota de incidente antes de a devolver, considerando-se efectuada a citação ou notificação face à certidão da ocorrência” ( sublinhado e negrito nosso). Podemos dizer que no caso de domicílio convencionado a citação ou notificação são mais céleres, visto que o réu não tem grande margem de manobra para poder furtar-se a tal acto. Contudo, o Autor só deve invocar na Petição Inicial o domicílio convencionado se efectivamente as partes o tiverem convencionado no contrato escrito, não devendo invocá-lo apenas com o intuito de beneficiar da facilidade da citação do réu. É que este regime que permite citar de forma mais célere e eficaz dá, em contrapartida, menores garantias de segurança quanto à efectividade da citação. Na verdade existem muitas situações em que o réu só tem conhecimento que correu contra si uma A.E.C.O.P.E.C., quando é já citado em acção 13
Os inabilitados, segundo o Art.º 19.º do CPC podem intervir como parte num processo.
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executiva, para pagar ou deduzir embargos de executado, visto que a falta de contestação na AECOPEC, leva a conferir força executória à petição inicial apresentada pelo autor (Art.º 2.º do diploma em analise). Nestas situações não resta outra hipótese ao réu senão deduzir embargos de executado, arguindo a nulidade da citação invocando e provando a ausência de convenção do domicílio (Art.º 187.º do CPC). No caso de não haver domicílio convencionado, a primeira e a terceira situação acima descritas aplicam-se igualmente nos termos dos artigos do CPC ali indicados. Mas, quanto à segunda situação, existe um desvio deste regime especial, conforme veremos de seguida. Assim, nas citações em que não haja domicilio convencionado e frustrada a citação através de carta registada com aviso A citação edital neste tipo de recepção para a morada indicada no articulado. (Art.º 228.º de acção, até à entrada no novo do CPC), segue-se a citação através de agente de execução ou CPC, não era admissível uma vez Funcionário Judicial14 nos termos do Art.º 231.º do CPC. Se for que o antigo Art.º 248.º n.º 4 também frustrada esta citação, prosseguir-se-á para o disposestabelecia que “Não se publicam to no Art.º 232.º do CPC, ou seja, a citação com hora certa. anúncios no processo Por fim, no caso de todas as modalidades de citação se sumaríssimo e em todos os casos revelarem frustradas, procede-se a citação edital (Art.º 225.º de diminuta importância em que n.º 6 do CPC). Este tipo de citação tem lugar quando existe: o juiz os considere dispensáveis”. incerteza do lugar (Art.º 236.º e Art.º 240.º do CPC) e/ou Uma vez que a A.E.C.O.P.E.C. era incerteza das pessoas (Art.º 243.º do CPC). A citação edital um processo que seguia a forma é feita pela afixação de edital, na porta da casa da última sumaríssima, concluía-se que a residência ou sede que o citando teve no pais. Afixado os citação edital não era admissível. editais serão publicados anúncios numa página informátiContudo, a entrada do novo CPC, ca criada para o efeito ( Art.º 240.º do CPC). alterou o referido artigo, A citação edital neste tipo de acção, até à entrada no fazendo-nos concluir que novo CPC, não era admissível uma vez que o antigo Art.º actualmente a citação 248.º n.º 4 estabelecia que “Não se publicam anúncios no proedital é admissível cesso sumaríssimo e em todos os casos de diminuta importânneste tipo de processo. cia em que o juiz os considere dispensáveis”. Uma vez que a A.E.C.O.P.E.C. era um processo que seguia a forma sumaríssima, concluía-se que a citação edital não era admissível. Contudo, a entrada do novo CPC, alterou o referido artigo, fazendo-nos concluir que actualmente a citação edital é admissível neste tipo de processo.
6. CONTESTAÇÃO: 6.1 Prazos Processuais: Os prazos processuais são o lapso de determinado tempo dentro do qual deve ser exercido um direito, praticado determinado acto ou produzido um efeito jurídico. Os prazos 14 A citação só será feita por Funcionário Judicial se o Autor declarar tal facto na Petição Inicial pagando a taxa de justiça no montante de 1UC de acordo com o disposto no n.º 1 do Art.º 9 do RCP ou não haja Agente de Execução inscrito ou registado em qualquer uma das comarcas pertencentes à área de competência do respectivo Tribunal da Relação.
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podem ser convencionados pelas partes num determinado negócio jurídico, fixados pela lei ou pelos tribunais. O que aqui nos interessa são os prazos fixados pela lei ou por despacho do juiz para a prática de um determinado acto processual, nomeadamente na acção que é objecto do nosso estudo. O Art.º 3.º do diploma em análise, estipula que à contagem dos prazos (…) são aplicáveis as regras do Código de Processo Civil, sem qualquer dilação” (negrito nosso). Em relação à contagem dos prazos, são aplicáveis as disposições constantes do CPC. Concretamente, o Art.º 138.º do CPC, ou seja, o prazo para da apresentação da contestação, começa-se a contar a partir do dia em que o réu foi citado (Art.º 230.º n.º 1 do CPC), sendo o mesmo contínuo, suspendendo-se no entanto, durante as férias judiciais. As férias judiciais encontram-se estabelecidas no Art.º 12.º da LOFTJ15 decorrendo de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, do domingo de ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 31 de Agosto. Sempre que a prática do acto termine em dia que os Tribunais estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte (Art.º 138.º n.º 2 do CPC). Contudo, a entrega da contestação ainda pode ser feita fora do prazo, em caso de justo impedimento (Art.º 139.º n.º 4 que nos remete para o Art.º 140.º do CPC) ou então dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo fixado. Contudo, a sua validade depende do pagamento de uma multa, fixada nos termos das als. do n.º 5 do Art.º 139.º do CPC. Por sua vez, quanto à não aplicabilidade do prazo dilatório ao prazo peremptório, o Art.º 2.º é muito claro ao estipula-lo, visto que o artigo consagra que ao prazo peremptório fixado, não acresce qualquer prazo dilatório semelhante ao fixado para os casos constantes do Art.º 245.º-A do CPC. A título de exemplo, imaginemos que a citação é feita em pessoa diversa do Réu. Aplicando o regime comum, para além do prazo peremptório, o Réu dispunha de mais cinco dias para contestar [Art.º 245.º-A n.º 1. al. a) do CPC]. Contudo, na A.E.C.O.P.E.C., se a citação for feita em pessoa diversa do Réu não é aplicável qualquer dilação16. 6.2 Conceito, Natureza e Importância: A Contestação é o articulado pelo qual o Réu, uma vez chamado a juízo para se defender, responde à Petição Inicial apresentada pelo Autor. O Réu, chamado a juízo através da citação, pode ter dois comportamentos: Contestar ou não contestar a Petição Inicial. Na A.E.C.O.P.E.C., o Réu dispõe de dois prazos para contestar: 15 dias quando o valor da acção não excede a alçada do Tribunal de 1.ª Instância (5.000€, Art.º 31.º LOFTJ) e 20 dias nos restantes casos (Art.º 1.º n.º 3 do diploma em análise). Contudo e cingindo-nos ao objecto do presente trabalho, apenas o primeiro prazo nos interessa. A Contestação é composta por três partes fundamentais: a introdução, a narração e a conclusão. Ao contrário do que acontece na Petição Inicial, não existe nenhum artigo onde surjam enumerados os requisitos a que a Contestação deva obedecer, mas pode concluir-se que serão os mesmos. 15 16
Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/2010 de 13 de Janeiro de 2010.
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Contudo, o Art.º 572.º do CPC, indica os elementos a que esta deve obedecer: individualização da causa, exposição das razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do Autor e especificação de forma separada das excepções que apresente. Com a elaboração da Contestação, estamos perante dois princípios fundamentais: o princípio da concentração de defesa e o princípio do ónus de impugnação. O princípio da concentração de defesa ou da preclusão (Art.º 573.º do CPC), diz-nos que toda a defesa deve ser deduzida na Contestação. O segundo princípio, o princípio do ónus da impugnação, é aplicável à defesa do Réu na Contestação dos factos articulados na petição. O Réu, ao elaborar a Contestação, tem que tomar posição definida perante os factos narrados pelo Autor, como fundamento da sua pretensão. Não pode remeter-se a uma posição cómoda de silêncio ou de inércia. Pelo contrário, tem que declarar, no articulado da sua defesa, se aceita esses factos como reais ou se os repele como inexistentes. Como já foi referido, a Contestação deve ser deduzida no prazo de 15 a contar da citação. Contudo, havendo mais do que um Réu, a Contestação pode ser apresentada por qualquer dos Réus até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar (Art.º 569.º n.º 2. do CPC), beneficiando assim todos os Réus do último prazo. E no caso de o réu solicitar apoio judiciário nas modalidades de nomeação e pagamento ou de nomeação e pagamento faseado de patrono, o prazo para apresentar contestação fica suspenso até lhe ser nomeado um patrono ou ser notificado da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono (Art.º 24.º n.º 4 e 5 da Lei 34/2004, de 29 de Junho). Em relação à elaboração da Contestação, esta, conforme já acontecia na Petição Inicial, não necessita de ser articulada aplicando-se o princípio da simplificação e da desburocratização. Contudo, no interesse das próprias partes, os dois articulados devem ser feitos na forma de artigos, porque facilita a exposição, a compreensão dos termos do litígio e o oferecimento da produção de prova (Art.º 1.º n.º 3.º do diploma em análise). No momento da Contestação, já são conhecidos os seguintes elementos: o Tribunal competente, o juízo, a secção, o número e forma de processo. Assim, na elaboração da Contestação, estes elementos devem ser enumerados no preâmbulo. Seguidamente, passar-se-á para a narração, onde o Réu expõe os factos que ache adequados a contradizer os que foram articulados pelo Autor. O Réu deve saber qual o tipo de defesa a utilizar. A nossa lei permite dois tipos de defesa: a defesa por impugnação e a defesa por excepção (Art.º 571.º n.º 1. do CPC). A defesa por impugnação, ou defesa directa, é aquela em que o Réu “nega de frente” os factos articulados pelo Autor ou em que, sem afastar a realidade desses factos, contradiz o efeito jurídico que o Autor pretende extrair deles – Art.º 571.º n.º 2. do CPC. Por sua vez, defende-se por excepção quando, sem negar propriamente a realidade dos factos articulados na petição, nem atacar isoladamente o efeito jurídico que deles se pretende extrair, assenta na alegação de factos novos tendentes a impedir a pretensão do Autor. De uma “forma mais simplista”, poder-se-á dizer que o Autor se defende por excepção quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da causa (excepções dilatórias – Art.º 576.º n.º 2. do CPC) ou alega factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo Autor e que determinam a improcedência total ou parcial do pedido (excepções peremptórias – Art.º 576.º n.º 3. do CPC). 217
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Após a fundamentação da Contestação, passamos para a Conclusão. Como já foi referido anteriormente, esta deve ser clara e concisa. Nesta fase, o Réu indica as conclusões retiradas da defesa que utilizou na narração, pedindo geralmente pela improcedência da acção. No fim de elaborada a conclusão serão apostos os elementos complementares, que, dada a natureza do presente trabalho não se repetem, pois foram já indicados no ponto 3.2. no que respeita à Petição Inicial. 6.3 Inadmissibilidade da Reconvenção A admissibilidade da reconvenção neste processo especial tem sido um tema de grande discussão. Sendo o regime da A.E.C.O.P.E.C., caracterizado pela simplificação e celeridade processual, e a reconvenção caracterizada pelo reconhecimento de um direito a favor do Réu, de uma situação jurídica, em regra, distinta da que é pretendida pelo Autor, fica a questão de saber se a mesma deve ou não ser admissível, visto que a possibilidade de reconvenção não contende com o direito de defesa do Réu. Da análise do diploma normativo, resulta que o mesmo faz referência apenas a dois articulados – a Petição Inicial e a Contestação –, estabelecendo que este último só é notificado ao Autor aquando da notificação que lhe for feita do despacho a designar data para julgamento. Pelo exposto, conclui-se que na acção em causa, é legalmente inadmissível o pedido reconvencional, pois não é possível ao Autor responder à matéria de reconvenção em articulado próprio. Além disso este parece ser o regime que mais se adequa à celeridade processual que caracteriza esta forma de processo especial. 6.4 Entrega em Tribunal Depois de elaborada a Contestação, esta é remetida para o Tribunal nos mesmos termos em que a Petição Inicial o é para ser junta ao processo já existente. 6.5 Falta de Contestação A falta de contestação conduz à revelia do réu que, no processo comum tem como consequência directa a confissão dos factos articulados pelo autor (Art.º 567.º do CPC), devendo a causa ser julgada conforme for de direito e com base nos factos declarados pelo autor. No entanto, o diploma em análise vai mais longe ao estipular no seu Art.º 2 que “ Se o Réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executória à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente”. Analisando o artigo, desde logo destacamos um primeiro pressuposto – que o Réu tenha sido citado pessoalmente. Podemos concluir que, se o Réu citado editalmente, não pode ser aposta fórmula executiva à Petição Inicial, tendo o processo de correr os seus termos, devendo ser marcada uma data para a audiência de discussão e julgamento, onde o Juiz proferirá de imediato sentença.
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O mencionado artigo indica-nos duas outras situações em que o juiz também não pode conferir força executória à Petição Inicial: quando ocorreram excepções dilatórias de forma evidente e quando o pedido seja manifestamente improcedente. As excepções dilatórias vêm, exemplificativamente, referidas no Art.º 577.º do CPC e, conforme resulta do disposto no n.º 2 do Art.º 576.º do CPC, “obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal”. Logo, fácil é concluir quais as razões porque não pode o juiz, nestas situações, conferir força executiva à Petição Inicial. Relativamente à manifesta improcedência do pedido, verifica-se quando a lei não acolhe ou não se justifica, do ponto de vista do direito substantivo, as razões ou pretensões deduzidas pelo Autor. Assim, não obstante a citação do Réu ter sido feita pessoalmente e este não ter contestado, o juiz tem que verificar se está presente alguma das situações previstas no Art.º 2.º do anexo do diploma em análise que o impede de conferir força executiva à Petição Inicial . A admissibilidade da Para além das três situações tipificadas no artigo em anáreconvenção neste processo lise, coloca-se a questão de saber se o Juiz ao analisar a Petiespecial tem sido um tema de ção Inicial para lhe conferir força executiva, deve aplicar o grande discussão. disposto no n.º 3 do Art.º 590.º do CPC, ou seja, se o juiz deve ou não conhecer das insuficiências e imprecisões da matéria de facto, convidando o autor a suprir o referido vício ou irregularidade, através da apresentação de uma nova Petição Inicial na qual complete inicialmente oferecido. Ao analisar a disposição do CPC, deparamo-nos que o Art.º 590.º, encontra-se no Titulo II que trata da gestão inicial do processo e da audiência prévia, findo os Articulados, pressupondo que a seguir à Petição Inicial, o réu exerceu o princípio do contraditório, apresentado a competente Contestação. No caso em concreto, não tendo sido apresentado a contestação, não tem qualquer fundamento o juiz conhecer da insuficiência e imprecisão da matéria de facto visto que a apresentação de uma nova Petição Inicial implicaria o réu ser notificado para exercer o princípio do contraditório, proporcionando-lhe a possibilidade de apresentação de uma resposta (Art.º 590.º n.º 4 e 5 do CPC), conduzindo o processo para uma fase que até à revelia do réu não existia – a fase do julgamento –, indo contra o estabelecido no Art.º 567.º do CPC. Assim, conclui-se que o disposto no .º 3 do Art.º 590.º do CPC, não se aplica quando o réu se haja constituído em revelia.17
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Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Fevereiro de 2002, 6.ª Secção, no Recurso de Apelação n.º 1345/2002.
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CAPITULO III
SANEAMENTO E MARCAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO
7. SANEAMENTO DOS AUTOS Terminada a fase dos articulados, nos casos em que tal é admitido, o processo segue para a fase seguinte: o saneamento dos autos. Segundo o Art.º 3.º do diploma em análise tipifica o n.º 1 que “Se a acção tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa”. Analisando o normativo, conclui-se que terminada a fase dos articulados e antes de designar data para a audiência de discussão e julgamento, o Juiz deve analisar os articulados e conhecer das referidas excepções e nulidades ou do mérito da causa. Quanto às excepções dilatórias, as mesmas já foram explicadas no ponto 6.2 do presente trabalho, fazendo-se a devida remissão. Em relação às nulidades processuais, as mesmas vêm enumeradas nos Art.º 186.º e seguintes do CPC, sendo que o Tribunal só conhece oficiosamente das elencadas no Art.º 196.º, devendo todas as restantes ser invocadas pelo interessado ( Art.os 196 e 197.º do CPC). No que concerne ao mérito da causa, o juiz deve decidir a relação jurídica material que constitui o objecto do processo e ver se têm ou não fundamento legal para prosseguir. Terminada esta fase, coloca-se a questão de saber se neste tipo de acção, o juiz deve proferir despacho pré-saneador. Os fins do despacho pré saneador vêm estipulados no n.º 2 do Art.º 590.º do CPC. Resulta essencialmente deste normativo que o juiz, findo os articulados, sendo caso disso, deve proferir despacho com o objectivo de suprir quaisquer excepção dilatória, convidar as partes a colmatar as irregularidades dos articulados, fixando-lhe um prazo para o efeito ou determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação das excepções dilatórias ou do conhecimento, em todo ou em parte do mérito da causa. Estando perante uma acção que visa a exigência de um cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a 5.000€ onde estão em causa interesses de menor relevo visto que o objecto da acção é saber se existe ou não existe uma determinada divida. Sendo um processo característico pela sua simplicidade face à acção de processo declarativo comum regulada pelo CPC, e indo ao encontro do consagrado no diploma em análise mais concretamente no Art.º 3.º N.º 1 que nos diz que “ Se a acção tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma excepção dilatória que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa” e no n.º 2 estipula que “ A audiência de julgamento realiza-se dentro dos 30 dias (…)”, (negrito nosso) concluímos que não é admissível o despacho pré-saneador. Além disso, sempre que o juiz no decorrer da audiência de discussão, achar indispensável, para uma boa decisão da causa, a realização de alguma diligência, poderá suspender a audiência na altura que achar mais conveniente e desde logo marcará dia para a realização da diligência (Art.º 4.º n.º 5 do diploma em análise). 220
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Uma outra questão que se coloca neste tipo de acções é saber se se deve realizar audiência prévia e proceder à elaboração do despacho saneador. A audiência prévia encontra-se regulada no Art.º 591.º do CPC e tem como finalidade as elencadas no n.º 1 do citado artigo. Por sua vez, o despacho saneador encontra-se tipificado no art.º 595.º e tem como finalidade a verificação da regularidade da instância e o conhecimento do mérito da causa. Conforme já referido, este tipo de acção é caracterizado pela sua simplicidade e mais uma vez resulta claramente da lei tal facto, uma vez que a lei não prevê expressamente a realização de audiência prévia nem a elaboração de despacho saneador, naturalmente, porque a sua estrutura de admissibilidade se revela incompatível. Neste sentido, e face aos termos em que a lei estrutura o processo, conclui-se que findos os articulados, o juiz deve conhecer e decidir as excepções dilatórias ou nulidades processuais, caso existam e depois proceder de imediato à marcação da data para a audiência de discussão e julga(…) face aos termos em que mento sendo insusceptível de comportar elaboração de a lei estrutura o processo, despacho pré-saneador, despacho saneador e realização conclui-se que findos os de audiência prévia. articulados, o juiz deve conhecer e decidir as excepções dilatórias ou nulidades processuais, caso 8. MARCAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO existam e depois proceder de E JULGAMENTO E INADMISSIBILIDADE imediato à marcação da data DO SEU ADIAMENTO para a audiência de discussão e julgamento sendo insusceptível Segundo o disposto no Art.º 3.º n.º 1 “A audiência de de comportar elaboração de julgamento realiza-se dentro de 30 dias, não sendo aplicável despacho pré-saneador, o disposto nos n.os 1 a 3 do Art.º 151.º do Código de Processo despacho saneador e realização Civil às acções de valor superior à alçada do tribunal de 1.ª de audiência prévia. instância.” Neste sentido, findo os articulados, o juiz deve marcar a audiência de discussão e julgamento no prazo de 30 dias, sendo este prazo contado de forma contínua, suspendendo-se durante as férias judiciais. Contudo e dado o volume de serviço de muitos tribunais, os juízes dificilmente conseguem cumprir este prazo, marcando consoante a disponibilidade de agenda do tribunal o que leva em muitos casos, o prazo fixado dos 30 dias ser em muito ultrapassado. Marcada a audiência, a secretária notifica as partes ou seus mandatários da data da audiência de julgamento. No caso do autor, na pessoa do seu mandatário, aquando da notificação da data é também notificado da contestação apresentada pelo réu (Art.º 1.º n.º 1 do diploma em análise). Na presente acção não é admissível o disposto nos n.os 1 a 3 do Art.º 151.º, do CPC, sempre que a causa não exceda o valor da alçada do Tribunal da 1.ª Instância, ou seja, 5.000€. Em bom rigor, o juiz deveria providenciar pela marcação da audiência mediante prévio acordo com os mandatários das partes, podendo encarregar a secretaria do Tribunal de realizar os contactos prévios necessários, mesmo que fosse por via telefónica, a obter uma data coincidente com todos os intervenientes do processo (Art.º 151.º n.º 1 do CPC). E isto porquê? 221
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Em primeiro lugar, trata-se de uma solução inspirada no princípio da celeridade processual e em segundo, não havendo este contacto prévio os mandatários ao serem notificados não estariam impedidos em consequência de outro serviço judicial. Não havendo este contacto prévio, o mandatário ao ser notificado, poderá já estar impedido em virtude de estar presente noutro serviço judicial. E imaginemos que não havendo este contacto prévio, o mandatário ao ser notificado se depara com uma diligência já anteriormente marcada. Segundo o disposto no Art.º 3.º n.º 2, não é possível ao mandatário impedido comunicar tal facto ao tribunal, propondo datas alternativas mesmo que previamente acordadas com o (…) deveria ser permitido mandatário da outra parte. Encontrando-se impedido e não pelo diploma em análise, ao podendo propor datas alternativas, o que deve fazer o manTribunal contactar os datário nesta situação? mandatários das partes com o É que a falta do mandatário de uma das partes ou mesmo objectivo de encontrarem até das partes, ainda que justificada, não é motivo de adiauma data coincidente para a mento da audiência, ficando a parte desprotegida na sua realização da audiência, tudo defesa, caso o mandatário não possa estar presente (Art.º 4.º isto em prol do direito à n.º 2 do diploma em analise). defesa das partes mesmo Assim, e visto que este contacto prévio não é possível no quando os interesses caso de estarmos perante uma acção de valor inferior a económicos não são de valor 5.000€, visto que o diploma em analise é muito explicito ao elevado, e sobretudo em prol consagrar que o Art.º 151.º n.º 1 a 3 não se aplica, a única do direito à Justiça solução do mandatário, caso esteja já impedido numa outra tecnicamente acompanhado. diligência é a de substabelecer18 os poderes conferidos num outro colega que o faça representar na audiência de discussão de julgamento. Neste sentido, deveria ser permitido pelo diploma em análise, ao Tribunal contactar os mandatários das partes com o objectivo de encontrarem uma data coincidente para a realização da audiência, tudo isto em prol do direito à defesa das partes mesmo quando os interesses económicos não são de valor elevado, e sobretudo em prol do direito à Justiça tecnicamente acompanhado.
Através de um substabelecimento, onde o mandatário com ou sem reserva substabelece num colega os poderes conferidos pelo seu cliente. Perante esta situação, o substabelecimento deve ser com reserva, visto que a intervenção do colega é simplesmente para o representar na audiência de discussão e julgamento em virtude de estar impedido.
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CAPITULO IV:
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO, OFERECIMENTO E PRODUÇÃO DA PROVA E SENTENÇA
9. JUSTO IMPEDIMENTO No dia e hora designada para a audiência as partes e os respectivos mandatários devem estar presentes para iniciar a penúltima fase do processo – a produção da prova. Como já foi referido, se a causa não exceder a alçada do tribunal da 1.ª Instancia, a falta de uma das partes ou mesmo de um dos mandatários, ainda que justificada, não é motivo de adiamento. Contudo, imaginemos que o mandatário de uma das partes ao deslocar-se para o Tribunal é surpreendido por um grave acidente de viação que teve como consequência directa o corte da estrada, ficando preso no engarrafamento. Nesta situação estamos perante um justo impedimento19. Conforme já foi referido, não estando presente um dos mandatários das partes, não é motivo de adiamento, prosseguindo o julgamento, sendo por exemplo a inquirição das testemunhas feitas pelo juiz (Art.º 4.º n.º 4 do diploma em análise. Porém, o mandatário nesta situação deve contactar imediatamente o tribunal a explicar o sucedido comunicando que não irá conseguir estar presente na audiência. Tal facto deve ser logo comunicado ao Juiz e será ele a decidir se irá cumprir escrupulosamente a lei, não adiando a audiência ou se a mesma é adiada face ao justo impedimento alegado, sendo certo que o mesmo deve ser provado através da apresentação de provas.
10 . TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO Iniciada a diligência, o juiz numa primeira fase deve tentar conciliar as partes, conforme o disposto no n.º 1 do Art.º 4.º do diploma em análise. Na tentativa de conciliação o juiz tem como função a de conduzir as partes a dialogar e a ponderar mutuamente uma conciliação. Contudo, esta diligência também poderá levar a uma confissão do pedido por parte do réu ou à desistência do pedido por parte do autor, ou ainda a uma transacção, caso em que os termos da mesma são lavrados em acta que o juiz homologará como sentença, condenando nos precisos termos em que foi acordado (Art.º 290.º n.º 4 do CPC).
11. AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO, OFERECIMENTO E PRODUÇÃO DA PROVA: Não sendo possível a conciliação das partes, o juiz prosseguirá com a produção das provas. A audiência dever ser concentrada numa só sessão, reunindo nesta diligência todo o 19 Considera-se justo impedimento, o acontecimento imprevisível alheio à vontade da parte ou do seu representante de praticarem atempadamente determinado acto (Art.º 140.º do CPC), devendo no momento da alegação de tal facto impeditivo oferecer prova (n.º 2).
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conteúdo do processo com vista ao cumprimento do princípio da concentração, oralidade e identidade do juiz. Segundo o disposto no Art.º 3.º N.º 3 “ As provas são oferecidas na audiência (…)”. Esta norma coincide com o Novo Código de Processo Civil, na qual nos diz que a apresentação de todas provas que a parte pretende ver produzidas devem ser requeridas e indicadas nos articulados, que no presente caso seria a Petição Inicial e a Contestação. E coloca-se a questão de saber, neste preciso momento, se a apresentação das provas se faz nos articulados, conforme o estipula o novo CPC ou se se continua a apresentar no início da audiência? É porque antes da entrada deste novo Código de Processo Civil, havia uma fase processual própria para as partes apresentarem os seus requerimentos probatórios – após o proferimento do despacho saneador. E se analisarmos conjuntamente o anterior Código de Processo Civil e o diploma em análise, na A.E.C.O.P.E.C., não há a Uma outra questão fase do despacho saneador, pelas razões já anteriormente que se coloca por estar em indicadas, logo, poderia fazer sentido as partes apresentacontradição com o novo CPC rem as provas no início da audiência, sendo que nos articué a gravação das audiências lados, não havia nenhuma referência a tal facto. de discussão e julgamento. Agora com o novo CPC, onde fixa um momento próprio Segundo o diploma em análise, para a apresentação das provas, será intenção do legislador a gravação da audiência pode continuar a permitir que as provas neste tipo de acção posser requerida por qualquer sam ser apresentadas só na audiência, não alterando o artiuma das partes no caso de go em questão? ser admissível recurso Fica a questão… ordinário (Art.º 3.º n.º 3). Contudo, indo à letra do artigo e porque se trata de um processo especial, as partes não são obrigadas a apresentar e a requerer as provas na fase dos articulados, podendo somente fazê-lo no início da audiência, visto que é o diploma que regula a acção objecto deste estudo, remetendo-nos simplesmente para o CPC, no que for omisso. Uma outra questão que se coloca por estar em contradição com o novo CPC é a gravação das audiências de discussão e julgamento. Segundo o diploma em análise, a gravação da audiência pode ser requerida por qualquer uma das partes no caso de ser admissível recurso ordinário (Art.º 3.º n.º 3). Contudo, o novo CPC, diz que todas as audiências são gravadas (Art.º 155.º n.º 1 do CPC), independentemente de ser ou não admissível recurso. Será que também nesta situação, não será intenção do legislador proceder à alteração deste artigo? Fica mais uma questão… Passando ao início da audiência e seguindo o diploma em análise, as partes devem indicar quais as provas que pretendem ver produzidas no decorrer da audiência, desde documental, confissão, declarações das partes e testemunhal. Quanto à prova pericial coloca-se a questão de saber se a mesma é não admissível. Também no início da audiência devem requerer se pretendem a gravação da audiência, sendo que a mesma só é admissível caso seja admitido recurso.
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Em relação à prova documental20,nos termos do processo comum, a mesma deve ser apresentada com os articulados em que sejam alegados os factos correspondentes (Art.º 423.º n.º 1 do CPC). A violação deste dever dá direito a uma multa, fixada pelo juiz. Contudo, as partes podem apresenta-las até ao encerramento da audiência, desde que tal apresentação não tenha sido possível até àquele momento ou a sua apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (Art.º 423.º n.º 3 do CPC). Sendo apresentada prova documental na audiência, o mandatário deve ir munido das respectivas cópias de forma a ficar uma para o processo e entregar outra à parte contrária. Sempre que forem juntos documentos na audiência deve ser facultado à parte contrária a possibilidade de analisá-los com a suspensão dos trabalhos pelo tempo necessário (Art.º 424.º do CPC). Quanto à prova por confissão das partes, a mesma consiste numa declaração feita por uma ou pelas partes sobre determinado facto. Qualquer uma das partes ou até mesmo o Juiz pode requerer que a parte ou partes prestem depoimento sobre informações ou esclarecimentos de factos que interessem à decisão da causa. Se o depoimento for requerido por uma das partes, deve desde Contudo, o novo CPC, diz logo indicar-se de forma discriminada os factos sobre os que todas as audiências são quais o depoimento irá recair (Art.º 452.º do CPC). gravadas (Art.º 155.º n.º 1 do Por sua vez, a parte ou as partes podem prestar declaraCPC), independentemente de ções de parte. Trata-se de um novo meio de prova introser ou não admissível recurso. duzido com as mais recentes alterações do CPC, que faculSerá que também nesta ta às próprias partes a possibilidade de prestarem situação, não será intenção declarações sobre factos em que tenham intervindo pesdo legislador proceder à soalmente ou de tenham conhecimento directo (Art.º 466.º alteração deste artigo? n.º 1 do CPC). A ordem de depoimento no caso de ambas as partes deporem, segundo o estipulado no Art.º 458.º n.º 1 do CPC, é de que primeiro depõem o réu e depois o autor. No caso de haver mais do que uma declaração de cada lado, as partes não podem assistir ao depoimento, aguardando pela sua vez numa sala ( n.º 2 do Art.º 458.º do CPC). Isto para garantir um depoimento com imparcialidade e espontaneidade. A prova testemunhal é a única a que o diploma em análise faz referência ao restringir a cada parte a possibilidade de apresentar até três testemunhas (Art.º 3.º n.º 5). São testemunhas, as pessoas que intervêm no processo, não sendo partes nele, ajudando assim à descoberta da verdade material. Conforme o disposto no Art.º 495.º n.º 1 do CPC, têm capacidade para depor todas as pessoas que não sofram de anomalia psíquica, tendo assim, capacidade física e mental para depor, analisando o tribunal livremente o testemunho apresentado ( Art.º 396.º do CC) e incumbindo ao Juiz verificar a capacidade natural das pessoas, com vista a avaliar a admissibilidade e credibilidade do seu depoimento (Art.º 495.º n.º 1 do CPC). Antes de começar o depoimento, o Juiz exige às testemunhas e mesmos às partes, que prestem juramento, advertindo-as que se prestarem falsas declarações incorrem num processo-crime (Art.º 459.º do CPC). Feito o juramento, inicia-se o seu depoimento, na qual devem responder com precisão e clareza às perguntas feitas, podendo no entanto, a A prova documental é o meio de prova mais usual, juntamente com a prova testemunhal. Nos termos do Art.º 362.º Do CC, considera-se documento “ qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, uma coisa ou facto.”
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testemunha ou o depoente consultar algum documento que estejam no processo ou que traga consigo. As testemunhas são inquiridas no Tribunal onde se encontra pendente o processo. No entanto e segundo o Art.º 502.º do CPC, sempre que uma testemunha resida fora da área da comarca ou mesmo nas regiões autónomas, a sua inquirição é possível através de videoconferência. Para que uma testemunha seja ouvida através de videoconferência, a sua indicação como testemunha deve ser logo feita nos articulados, requerendo-se que essa testemunha seja ouvida no tribunal da área da sua residência de forma a que o Juiz quando proceda à marcação da audiência, comunique ao Tribunal onde a testemunha irá prestar depoimento do dia e da hora da sua inquirição. A prova testemunhal pode ainda ser feita através de depoimento apresentado por escrito, nos termos do Art.º 5.º do diploma em análise. A possibilidade de depoimento por escrito, é facultado às testemunhas que tenham conhecimento directo dos factos pelo exercício das suas funções e quando a sua percepção ocorreu no âmbito da sua actividade profissional, pública ou privada. Esta forma de depoimento também está consagrada nos Art.os 518.º e 519.º do CPC. O seu depoimento é feito através de um documento escrito, no qual o depoente deve identificar o tribunal, o juízo ou secção, o número do processo, respectivo nome, estado civil, profissão e residência. Deve também indicar se existe alguma relação de parentesco, afinidade, amizade, dependência com as partes ou interesse na acção e deve ainda declarar expressamente que está consciente de que se prestar falsas declarações, incorrerá em responsabilidade criminal. Depois, descreverá discriminadamente a razão dos factos sobre que depõem, as circunstancias que justificam o seu conhecimento em relação, incluindo lugar e modo como teve conhecimento deles. Terminará o seu depoimento com a assinatura conforme a de documento de identificação que deverá juntar fotocópia. Por fim, a prova pericial que é a obtida pelo exame ou apreciação de factos por pessoas especialmente competentes, designados de peritos. Este tipo de prova pode ser requerido pelas partes ou ordenada pelo Juiz (Art.º 467.º n.º 1 do CPC). Em regra este tipo de prova é usada em acções que comportem questões de grande complexidade e onde é pretendido saber factos muito específicos e técnicos, como por exemplo, saber quais são as irregularidades na execução de uma cobertura numa casa, visto que a mesma já foi reparada várias vezes e continua a haver infiltrações e a empresa executante diz que cumpriu todos os formalismos. Neste tipo de acção que ora analisamos, parece-nos que a prova pericial mais frequente será a que visa apurar a genuinidade de documentos e assinaturas mas nada impede que os factos alegados exijam a intervenção de peritos. Assim, se o juiz achar que para uma boa decisão é necessário a intervenção de técnicos especializados com vista à descoberta da verdade material, poderá suspender a audiência e requerer tal diligência.
12. ALEGAÇÕES ORAIS Finda a produção de todas as provas, o Juiz concede aos mandatários das partes a faculdade de fazerem uma breve alegação oral (Art.º 4.º n.º 6 do diploma em análise).
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Assim, deveremos socorrer-nos do CPC, concretamente do Art.º 604.n.os 3 al. e), e n.os 4 e 5 para compreendermos a forma como tais alegações são produzidas e qual a sua finalidade. Assim, e analisando o citado artigo, verificamos que nas alegações orais, os mandatários das partes expõem as conclusões, de facto e de direito que tenham extraído de toda a prova produzida. É dada primeiro a palavra ao mandatário do Autor e depois ao mandatário do Réu, podendo cada um deles replicar uma vez, sendo que cada mandatário não pode exceder mais de uma hora nas alegações e trinta minutos nas réplicas. Nas alegações de facto os mandatários farão uma análise crítica de toda a prova produzida, de modo a concluir sobre os factos, que na sua opinião, devem e os que não devem ser dados como provados. Segue-se na mesma alegação, a perspectiva do mandatário sobre a selecção das normas jurídicas aplicáveis ao caso, a sua interpretação e a subsunção nelas dos factos considerados assentes. Contudo, não poderemos deixar de referir uma incongruência do artigo supra referenciado, ao referir advogado quando deveria aludir mandatário das partes. Isto porque, os solicitadores, nas causas em que não seja obrigatória a constituição de mandatário, podem pleitear em tribunal, sem qualquer restrição imposta pela lei, podendo até levantar questões de direito ( Art.º 42.º do CPC).
13. SENTENÇA Finda a audiência de julgamento será proferida sentença. A sentença é o acto pelo qual o juiz resolve total ou parcialmente, o objecto em litígio, obstando assim a que a matéria possa ser de novo apreciada na mesma instância. Conforme o Art.º 4.º n.º 7, a sentença é logo ditada para a acta. Contudo, na prática, o juiz dá por encerrada a audiência, comunicando que a sentença será redigida e depois notificada aos mandatários das partes. Esta prática, permite que os juízes reflictam sobre a produção da prova feita em julgamento analisando detalhadamente todo o objecto da acção, proferindo uma sentença ponderada. A sentença deve obedecer a três partes fundamentais: o relatório, a fundamentação e a decisão. No relatório, o juiz identifica as partes, o objecto do litígio e as questões que o Tribunal quer ver solucionadas (Art.º 607.º n.º 2 do CPC). Na fundamentação, o juiz indica quais os factos provados e os não provados, analisando criticamente as provas produzidas, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes (Art.º 607.º n.º 2 e 3 do CPC). Na decisão o juiz absolve o réu da instância ou condena-o total ou parcialmente no pedido formulado pelo autor. No final da sentença, o juiz deve condenar em custas a parte que lhe tenha dado causa, na respectiva proporção em que o for, ou não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito (Art.º 607.º n.º 6 e 527.ºdo CPC). Proferida a sentença, o poder jurisdicional do juiz termina quanto à matéria em causa (Art.º 613.º n.º 1 do CPC) e deve a secretaria oficiosamente notificar as partes da respectiva decisão para que dela tomem conhecimento. 227
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Na acção em análise e após notificação da sentença, as partes podem ainda reclamar no prazo de 10 dias de algum vício, nulidade ou se a mesma necessita de ser reformulada (Art.º 613.º n.º 2 e Art.º 149.º, do CPC). Findo este prazo, a sentença transita em julgado (Art.º 628.º do CPC), passando a ter força de caso julgado (Art.º 620.º n.º 1 e 621.º, do CPC).
14. CUSTAS DE PARTE Conforme já foi referido, a sentença deve condenar em custas a parte que tenha dada azo ao processo, na respectiva proporção do vencimento ou não o havendo, quem do processo tirou proveito (Art.º 607.º n.º 6 e 527.º, do CPC). A regra geral da responsabilidade pelo pagamento das custas assenta no princípio da causalidade e subsidiariamente no da vantagem ou proveito processual indicado pelo princípio da sucumbência, pelo que deverá pagar as custas a parte vencida, na respectiva proporção. Neste sentido, a parte vencedora tem direito a pedir à parte vencida o que despendeu com o processo, com as limitações impostas pela lei, através das custas de parte. As custas de parte consistem num quantitativo monetário que a parte vencedora tem direito a receber da parte vencida para ser compensada do que teve de despender com o processo, sendo a referida compensação limitada pela lei e conforme a proporção do vencimento na acção. Assim, as partes não têm direito a exigir tudo o que despenderam com o processo mas sim aquilo que resulta da lei, designadamente do Regulamento das Custas Processuais (Art.º 529.º n.º 4 do CPC). A parte vencedora deve pedir à parte vencida as custas de parte mesmo que esta seja isenta de custas, beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, ou mesmo que a parte vencida seja o Ministério Público. As pessoas isentas de custas, que se encontram consagradas no Art.º 4.º do RCP, apesar de gozarem de uma isenção subjectiva de custas, ficam obrigadas a suportar o pagamento à parte vencedora dos valores que ela tenha despendido com o processo a título de custas de parte ( Art.º 4.º n.º 7.º do RCP). Em relação às pessoas que beneficiem de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo ou a parte vencida seja o Ministério Público, a parte vencedora deve pedir o reembolso das taxas de justiça e só das taxas de justiça que efectivamente pagou ao Instituto de Gestão Financeira e Infra-Estruturas da Justiça, I.P, não podendo pedir a compensação para honorários de mandatário. Nada sendo dito na lei, as sociedades comerciais litigantes em massa21 também podem pedir custas de parte sempre que sejam partes vencedoras num processo ou ser-lhes pedido caso sejam parte vencida. Contudo, não pode ser pedido a título de taxas de justiça o valor do agravamento a que estão sujeitas. Por exemplo, numa acção de 3.500€, um grande litigante paga de taxa de justiça 3UC, ou seja, 306,00€. No entanto, na nota de custas de parte, não se pode pedir os 306€ que efectivamente pagou mas sim 204,00€, conforme o disposto no n.º 4 do Art.º 26.º do RCP. 21
E que na maioria das vezes são partes neste tipo de acções.
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A parte vencedora que tenha direito a custas de parte deve pedi-las até aos 5 dias após o trânsito em julgado da sentença, enviando para a parte vencida e para o tribunal a respectiva nota discriminativa e justificativa de custas de parte (Art.º 25.º n.º 1 do RCP). Assim, destacamos três requisitos a ter em consideração e que se cumulam entre si. O primeiro requisito é a elaboração da nota discriminativa e justificativa de custas de parte. O Art.º 25.º n.º 3 conjugado com o Art.º 26.º n.º 3 elenca os elementos e os requisitos que a parte deve obedecer e mencionar na respectiva nota discriminativa de custas de parte. Assim, a nota discriminativa de custas de parte deve começar por indicar a partes, os seus respectivos mandatários, caso haja constituição de mandatário, o tipo e número de processo [Art.º 25.º n.º 2 al. a) do RCP]. Numa outra rubrica deve indicar os valores efectivamente pagos a título de taxas de justiça pagos pela parte vencedora [Art.º 25.º n.º 2 al. b) e Art.º 26.º n.º 3 al. a), do RCP]. Sempre que haja encargos22 com o processo a parte deve indicar noutra rubrica os montantes efectivamente pagos [Art.º 25.º n.º 2 al. c) e Art.º 26.º n.º 3 al. b) ambos do RCP]. Ainda em rubrica autónoma, a parte vencedora pode pedir a quantia paga a título de honorários de mandatário, se o seu montante não exceder 50% do somatório da totalidade das taxas de justiça pagas pela parte vencedora e pela parte vencida. Caso exceda, a parte vencedora pode pedir 50% do somatório da totalidade das taxas de justiça pagas pela parte vencedora e pela parte vencida, para compensação da parte vencedora face às despesas com os honorários do mandatário [Art.º 25.º n.º 2 al. d) e Art.º 26.º n.º 3 al. c) , do RCP]. Indicados todos estes requisitos, a parte deve indicar qual o montante a receber por parte da parte vencida, tendo em consideração a condenação que foi feita na sentença e na respectiva proporção. Contudo, a parte vencedora pode na própria nota discriminativa requerer que tal pagamento seja feito por quaisquer quantias que se encontrem depositadas à ordem do tribunal e que devam ser devolvidas à parte vencida, salvaguardando o seu recebimento (Art.º 29.º n.º 1 e 2 da referida Portaria). O seguindo requisito a ter em linha de conta é o prazo que a parte vencedora dispõem para pedir as custas de parte, sob pena de extemporaneidade que conduz à caducidade do direito de pedir custas de parte. Assim, as custas de parte neste tipo de processo só devem ser pedidas até 5 dias após ter-se dado o trânsito em julgado da sentença que ocorre quando a causa não seja susceptível de recurso ou de reclamação. Assim, a parte vencedora notificada da sentença, conta o prazo para o respectivo trânsito e dando-se o trânsito, conta mais 5 dias para apresentar a nota de custas de parte. Por fim, o último requisito, a parte vencedora enviar a nota de custas de parte para a parte vencedora e para o Tribunal. Não pode enviar só para o Tribunal ou só para a parte, deve ter em linha de conta que a nota de custas de parte tem de simultaneamente ser enviada para a parte e para o Tribunal. Em relação à parte e sempre que intervier mandatário a representar a parte contrária, a parte vencedora, através do seu mandatário, deve enviar a 22 Os encargos admissíveis em termos de custas de parte são os que se encontram elencados no Art.º 16.º Do RCP. A título de mero exemplo, no Código das Custas Processuais era admissível à parte vencedora pedir da parte vencida a título de encargos os montantes pagos com as fotocópias, registos postais, deslocações de mandatários. No actual RCP este tipo de despesas/encargos não são admissíveis, sendo por exemplo admissíveis, os custos suportados com uma perícia.
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nota de custas de parte para o mandatário da parte vencida, visto que o art.º 247.º do CPC nos diz que “As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários”, devendo na respectiva nota fazer menção de tal facto para que não haja qualquer equívoco. No caso em que a parte vencida litigue com apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo ou o Ministério Público, a nota de custas de parte apenas com a discriminação das taxas de justiça pagas pelo vencedor deve ser enviada ao tribunal com o pedido de que o respectivo pagamento seja feito pelo Instituto de Gestão e Infra-estruturas da Justiça, I.P., achando que nesta situação não é necessário notificar a parte contrário, visto que a mesma não é responsável pelo o referido pagamento. Notificada a parte vencida da nota discriminativa, dispõem de 10 dias para pagar voluntariamente ou reclamar da respectiva nota (Art.º 28.º n.º 1 e Art.º 33.ºn .º 1 ambos da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril). Terminado o prazo sem que a parte tenha pago ou reclamado, a nota discriminativa é tacitamente deferida (Art.º 29.º n.º 3 da Portaria ora citada). No entanto, a parte vencida pode sempre reclamar da nota discriminativa de custas de parte no prazo de 10 dias após a sua notificação. Contudo, a referida reclamação implica que seja depositado à ordem do Tribunal, a totalidade do valor da nota, sendo condição de admissão (Art.º 33.º n.º 2 da referida Portaria). Para além do depósito da nota, a parte deve proceder ao pagamento de uma taxa de justiça, pelo incidente23 que se cifra em 0,5UC (Art.º 7.º n.º 4 do RCP). A reclamação da nota é decidida pelo Juiz em igual prazo e notificada às partes, cabendo desta decisão recurso em um grau sempre que a nota exceder 50 UC (Art.º 33.º n.º 3 da referida Portaria), o que nestas acções nunca acontecerá. Não sendo pago voluntariamente dentro do prazo estipulado, a parte vendedora dispõem de um título executivo (sentença + nota discriminativa e justificava de custas de parte + comprovativo de notificação) para poder executar o referido valor em sede de acção executiva. Artigo escrito segundo o antigo acordo ortográfico
23 Salvador da Costa, em Regulamento das Custas Processuais, Coimbra, Almedina, 4.ª edição, na página 245, considera incidente de um grosso modo como “uma sequência de actos processuais tendentes à resolução de questões relacionadas com o objecto do processo em causa, mas que pela sua particularidade, extravasa da sua tramitação normal.”
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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #3
Cláudia Pereira
Bibliografia COSTA, Salvador da; A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Coimbra, 2003. FREITAS, José Lebre de; A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, 2013. LEITÃO, Hélder Martins; Da Contestação, Réplica, Tréplica e Articulados Supervenientes, Porto, 2004. LEITÃO, Hélder Martins; Da Petição Inicial, da elaboração à citação, Porto, 2004.
LEITÃO, Hélder Martins; Dos Princípios Básicos em Processo Civil, Porto, 1999. PEREIRA, Joel Timóteo Ramos; Prontuário de Formulários e Tramites, Volume I, Processo Civil Declarativo, Lisboa, 2005. VALLES, Edgar; Cobrança Judicial de Dívida, Injunções e Respectivas Execuções, Coimbra, 2011.
Lista de Siglas A.E.C.O.P.E.C. – Acção Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos Al.) – Alínea Art.º – Artigo Art.ºs - Artigos CC – Código Civil CComercial – Código Comercial Cfr. – Confrontar CPC – Código de Processo Civil CRP – Constituição da República Portuguesa
D.R.- Diário da República DL – Decreto-Lei LOFTJ – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais. N.º – Número N.ºs – Números Pág. – Página RCP – Regulamento das Custas Processuais UC – Unidade de Conta
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Ao longo do tempo, muitos trabalhos têm vindo a ser desenvolvidos no âmbito das mais diversas áreas de estudo associadas à solicitadoria e à ação executiva. Assim sendo, pretendendo-se conservar esses contributos intelectuais e ambicionando-se que também as gerações vindouras venham a conhecê-los, considerou-se que a melhor alternativa para alcançar tais objetivos seria compilar os mesmos numa edição anual.
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