Sollicitare n.º 20

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VII CONGRESSO DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

Sollicitare EDIÇÃO N.º 20 \ JUNHO – SETEMBRO 2017 \ €2,50

ENTREVISTA COM

JOSÉ DE FARIA COSTA

PROVEDOR DE JUSTIÇA À CONVERSA COM

ANA SOFIA ANTUNES

SECRETÁRIA DE ESTADO DA INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA REPORTAGEM VOANDO COM A FORÇA AÉREA PORTUGUESA

VÍTOR MANUEL GONÇALVES GOMES ENTREVISTA COM O PRESIDENTE DO

Supremo Tribunal Administrativo


FICHA TÉCNICA

Sollicitare

ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

Diretor José Carlos Resende Editor Carlos de Matos Editor executivo Luís Goes Pinheiro Chefe de Redação Rui Miguel Simão Redatores principais Ana Filipa Pinto, André Silva Colaboram nesta edição: António Costeira Faustino, António de Sousa Maia, Carla Franco Pereira, Daniel Sales, Débora Riobom dos Santos, Diana Andrade, Edite Gaspar, Elisabete Couto, Félix Rodrigues, João Aleixo Cândido, JSR, Luís Paiva, Luís Rua Teixeira, Marco Santos, Marta Silva, Miguel Ângelo Costa, Paulo Teixeira, Samuel Sousa, Sara Gonçalves, Sónia Sénica da Costa Moura e Vanessa Barrosa Conselho Geral Tel. 213 894 200 · Fax 213 534 870 geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 · Fax 222 054 140 c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 · Fax 213 534 834 c.r.lisboa@osae.pt Design: Atelier Gráficos à Lapa www.graficosalapa.pt Impressão: Lidergraf, Artes Gráficas, SA Tiragem: 9 000 Exemplares Periodicidade: Quadrimestral ISSN 1646-7914 Depósito legal 262853/07 Registo na ERC com o n.º 126585 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63, 1250 - 038 Lisboa N.º de Contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade: Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Rua Artilharia 1, n.º 63 1250-038 Lisboa – Portugal Tel. 213 894 200 · Fax 213 534 870 geral@osae.pt www.osae.pt Os artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os conteúdos publicitários são da exclusiva responsabilidade dos respetivos anunciantes. Os artigos e entrevistas remetidos para a redação da Sollicitare serão geridos e publicados consoante as temáticas abordadas em cada edição e o espaço disponível.

EDIÇÃO N.º 20 \ JUNHO – SETEMBRO 2017

REVISTA DA ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

ASSEMBLEIA GERAL PRESIDENTE Rui Carvalheiro (Lisboa)

 1.º SECRETÁRIO João Fonseca (Torres Vedras)

 2.º SECRETÁRIO Vítor de Oliveira Gonçalves (Vila Nova de Famalicão) CONSELHO GERAL PRESIDENTE José Carlos Resende (Viana do Castelo)

 1.º VICE-PRESIDENTE Paulo Teixeira (Matosinhos)

 2.ª VICE-PRESIDENTE Edite Gaspar (Lisboa)

 3.º VICE-PRESIDENTE Carlos de Matos (Lisboa)

 1.ª SECRETÁRIA Rute Baptista Pato (Benavente) 2.º SECRETÁRIO Rui Miguel Simão (Lisboa) TESOUREIRO João Capítulo (Sesimbra) VOGAIS João Coutinho (Figueira da Foz), Elizabete Pinto (Porto), Luís Rua Teixeira(Lousada), Carla Franco Pereira (Évora), Edna Nabais (Castelo Branco) CONSELHO FISCAL PRESIDENTE Miguel Ângelo Costa (Barcelos)

 SECRETÁRIA Dina Matos (Lisboa) VOGAL Mazars & Associados, Sroc, S.A. CONSELHO SUPERIOR PRESIDENTE António Brás Duarte (Lisboa)

 VICE-PRESIDENTE Jorge Cerdeira Gil (Évora) SECRETÁRIO Daniel Sales (Viana do Castelo) VOGAIS Palmira Valério (Arraiolos), Maria de Lurdes Paiva (Lamego), Carla Carlão (Porto), Maria Conceição Torres (Marinha Grande), Jorge Lapa (Coimbra), Graça Isabel Carreira (Alcobaça), Valter Rodrigues (Moita), Mário Couto (Porto) CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS SOLICITADORES PRESIDENTE Júlio Santos (Silves)

 VICE-PRESIDENTE Aventino Valdemar Martins de Lima (Lisboa)

 VOGAIS Fernando Rodrigues (Matosinhos), Marco Antunes (Vagos), Cláudio Serra (Guimarães) CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS AGENTES DE EXECUÇÃO PRESIDENTE Armando A. Oliveira (Braga) 

 VICE-PRESIDENTE Jacinto Neto (Loures)

 VOGAIS Mara Fernandes (Lisboa), Duarte Pinto (Porto), Otília Ferreira (Lamego) CONSELHO REGIONAL DO PORTO PRESIDENTE Joaquim Baleiras (Porto)

 SECRETÁRIA Lídia Coelho da Silva (Porto)

 TESOUREIRA Alexandra Ferreira (Porto) VOGAIS Paula Barbosa (Paredes), Alberto Godinho (Porto) CONSELHO REGIONAL DE COIMBRA PRESIDENTE Cristina Ferreira (Coimbra)

 SECRETÁRIO José Luís Fonseca (Coimbra) VOGAIS Maria dos Anjos Fernandes (Leiria), Carlos Almeida (Viseu), Amélia Saraiva (Guarda) CONSELHO REGIONAL DE LISBOA PRESIDENTE Armando Manuel de Oliveira (Lisboa)

 VICE-PRESIDENTE João Manuel Salvadinho Aleixo Cândido (Seixal)

 SECRETÁRIA Maria José Martins Palma Vieira dos Santos (Silves)

 TESOUREIRO António Serafim Correia Novo (Portalegre) VOGAIS Natércia Reigada (Lagos) Estatuto editorial disponível em: http://osae.pt/pt/pag/osae/estatutos-editoriais/1/1/1/361


EDITORIAL

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José Carlos Resende Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

ste número da nossa revista dá capa ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Juiz Conselheiro Vítor Manuel Gonçalves Gomes. É uma nota da importância que a jurisdição administrativa está a adquirir para os nossos associados, seja no mandato, seja nos serviços de agentes de execução. Estamos conscientes de que ainda há muito caminho a percorrer, nomeadamente em termos de formação, não sendo por acaso que insistimos em dar voz ao ensino superior, desta vez através da Universidade Católica. Realço a entrevista ao Provedor de Justiça, Professor Doutor José de Faria Costa. O Provedor assume um papel importantíssimo na nossa sociedade ao protagonizar, em permanência, a voz e o sentido daqueles que não conseguem ter voz ou cujos sons não chegam aos naturais recetores. Destaque-se o notável esforço que se tem desenvolvido para dignificar a situação dos reclusos, facto do qual também damos nota na reportagem sobre o Estabelecimento Prisional de Coimbra, bem como da aposta na reintegração. A nossa equipa brinda os leitores com diversos temas. O Capitão de Abril Vasco Lourenço, enquanto Presidente da Associação 25 de Abril, obriga-nos a refletir na sua entrevista. Passados todos estes anos, nunca é supérfluo realçar a importância da data que permitiu profundas alterações na nossa sociedade. Por vezes, só através das estatísticas se consegue perceber o que mudou: Na educação, na saúde, na assistência social, na habitação, nas acessibilidades, etc. Todavia, também é verdade que ainda temos grandes carências sociais e de cidadania, algo que se constata noutras peças, nomeadamente na entrevista a Ana Sofia Antunes, Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, ou a José Patrício, Presidente da Associação de Paralisia Cerebral Almada Seixal. Muito se conquistou mas o caminho ainda é longo. Saúdo particularmente a entrevista ao Presidente do Conselho Profissional dos Agentes de Execução, o meu amigo Armando A. Oliveira. Tem sido a alma de muitas das inovações que foram protagonizadas nos últimos anos pela Ordem e pelos seus associados. Mantem um espírito inovador constante. Aceita os desafios que se lhe propõem e inventa mais uns quantos, sempre com dinamismo e com o permanente voto de “Bom Natal”. Muitos outros temas são abordados, seja a missão da Força Aérea Portuguesa, o papel do árbitro ou a vivência do músico Rui Veloso. Mantém-se então o interesse em explorar temas diversificados e surpreendentes. A saída deste número da nossa revista coincide com a realização do VII Congresso da nossa Ordem que se realiza na cidade de Viana do Castelo. Embora possa ser suspeito, estou convicto que todos os congressistas vão perceber que a cidade tem ótimas condições para nos receber. Destaque-se o apoio da Câmara Municipal de Viana do Castelo e do seu Presidente, Eng. José Maria Costa, a quem, desde já, em nome da Ordem, manifesto profunda gratidão. Se é verdade que têm sido os diplomas legais como os Estatutos, a Lei dos Atos Próprios, o Código de Processo Civil e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos a marcar os nossos progressos, também não é menos correto dizer que os Congressos têm sido momentos de grande importância, não só pelo seu pendor mediático mas, essencialmente, porque se lançam pistas de reflexão para novas evoluções profissionais. Estou convicto que o VII Congresso vai demonstrar o quanto a nossa Ordem e os seus associados estão disponíveis para continuar a colaborar com a Justiça e com os cidadãos, usando as suas competências, a dedicação, a seriedade e também as novas tecnologias para corroborar a luta pelo respeito pelo ser humano, num permanente trabalho em prol do reforço da proximidade. : :

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Sollicitare índex

N.20 \ JUNSET. 2017

Vítor Manuel Gonçalves Gomes

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Presidente do Supremo Tribunal Administrativo Entrevista

Força Aérea Portuguesa

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As asas de um país Reportagem

José de Faria Costa

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Provedor de Justiça Entrevista

Estabelecimento Prisional de Coimbra

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Reaprender a viver Reportagem

Fotografia capa: Cláudia Teixeira

Editorial Sociedade Cartão Eletrónico Europeu de Serviços Convenção de Aarhus: Cidadania Ecológica Um manifesto exercício de mea culpa Dentro da caixa APCAS | Associação de Paralisia Cerebral Almada Seixal Se o cinema é a sétima arte… então quais são as outras? Profissão Trespasse. Uma breve reflexão Perda de chance – Uma nova via? Branqueamento de capitais e evolução legislativa A Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores: Uma trajetória ascendente Auto de Constatação. Porque no “constatar” é que está o ganho Solicitadores Ilustres: Álvaro Valente A tecnologia ao seu dispor

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1 47 63 69 74 76 86 27 33 39 43 49 60 82


Ana Sofia Antunes Teatro Nacional de São Carlos

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Armando A. Oliveira Nuno Garoupa

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Secretária Um Teatro de de Estado todos. da Inclusão das Pessoas com Deficiência Entrevista com a Maestrina Joana Carneiro

Presidente Presidentedo daConselho ComissãoProfissional Executiva do Colégio dos Agentes de ExecuçãoManuel da OSAE da Fundação Francisco dos Santos Entrevista

Vasco Lourenço Entrevista com Presidente da Associação Pedro Calado 25 de Abril

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Rui LuísVeloso Buchinho

70 80

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Entrevista Alto-Comissário para as Migrações

Uma conversa sobre músicas e histórias As linhas que cosem a carreira do estilista. Entrevista

Labor Improbus Omnia Vincit Ensino Superior Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Internacional L’ Union Européenne des Huissiers de Justice

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Sugestões Livros jurídicos Sugestões de leitura: O bom vício da leitura Vespas. Uma paixão sobre rodas These Boots Are Made For Walking Caminhos franceses II

Ordens O Conselho Nacional das Ordens Profissionais Qual o seu papel?

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Roteiro gastronómico O Batoque Taberna de Santo António

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Entrevista Pedro Henriques. O juiz dentro das quatro linhas

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Viagens Aljezur: "o paraíso da costa vicentina" Islândia. A ilha de gelo e fogo

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Reportagem Artimúsica. A arte de fazer o que faz música

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OSAE Do I ao VII Congresso: A história de uma instituição Pedro Gonçalves Grade. Uma vida que não cabe em estantes Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução acolhe reunião do CNOP com Primeiro-Ministro

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80 84 88 90

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ENTREVISTA

“Ser Presidente do Supremo Tribunal Administrativo (…) é uma honra e, em si mesmo, um desafio estimulante.”

VÍTOR MANUEL GONÇALVES GOMES J U I Z CO N S E LH E I RO E P RES I D ENTE D O SUP R E M O T RI BUNAL AD M I NI STRATI VO JUNTO À ENTRADA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, O OLHAR DIVIDE-SE. ORA SE AVISTAM AS ESCADAS QUE CONDUZEM OS PASSOS DE QUEM ENTRA NESTE EDIFÍCIO QUE DÁ MORADA À JUSTIÇA, ORA SE VÊ LISBOA QUE, COM A SUA LUZ E AS SUAS CORES, ENCHE A VISTA DE QUEM PASSA PELO MIRADOURO DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA. A VIDA VAI ACONTECENDO NOS DOIS LADOS DA RUA. O TEMPO NÃO PARA, O MUNDO TAMBÉM NÃO. E A JUSTIÇA, COMO PARTE DE TUDO ISTO, É DEPÓSITO DOS ANSEIOS DE QUEM NÃO TEM TEMPO, SÓ PRESSA. NUMA CONVERSA COM VÍTOR MANUEL GONÇALVES GOMES, JUIZ CONSELHEIRO E PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, FICAM A CONHECER-SE OS DESAFIOS QUE REVESTEM O CARGO E OS TEMPOS. DA JUSTIÇA E DO MUNDO.

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira

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ENTREVISTA COM VÍTOR MANUEL GONÇALVES GOMES

Como conseguiremos explicar o papel do Supremo Tribunal Administrativo ao cidadão? Em que casos é que se deverá recorrer a um Tribunal Administrativo e Fiscal? Aliás, considera que as fronteiras de competências entre tribunais estão suficientemente definidas? E em que medida é que se justificam as diferenças no regime dos tribunais administrativos face aos cíveis? O Supremo Tribunal Administrativo (STA) é o órgão de cúpula da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais. Com jurisdição sobre todo o território nacional, as suas competências estão elencadas nos artigos 24.º e 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Algumas como tribunal de primeira instância, respeitando a ações ou omissões em matéria administrativa de órgãos superiores do Estado, designadamente do Conselho de Ministros, do Primeiro-Ministro e dos órgãos de gestão das magistraturas do Ministério Público e dos juízes da própria ordem jurisdicional. E outras em via de recurso de decisões proferidas pelos tribunais administrativos e fiscais ou pelos tribunais centrais administrativos. São estas as de maior expressão quantitativa no trabalho do Tribunal. O recurso aos tribunais administrativos e fiscais impõe-se sempre que seja necessária a resolução de um litígio no âmbito de uma relação jurídica administrativa ou fiscal, sendo o sistema processual gizado para a plenitude de tutela jurisdicional nesse domínio, com amplos poderes de pronúncia por parte do tribunal, designadamente a condenação da Administração à prática do ato devido, sempre com respeito pela margem de conformação administrativa. A existência de uma jurisdição autónoma para apreciação dos litígios em matéria administrativa e fiscal corresponde a uma opção com larga tradição entre nós, que foi consagrada na Constituição e tem paralelo na organização do poder judicial da maior parte dos países da Europa continental. Além da especial complexidade, diversidade e constante mutação da legislação implicada, a exigir a existência de juízes especializados, acresce que o exercício de poderes de autoridade pública e a articulação entre interesse público e interesse privado subjacentes a muitos dos litígios apreciados nos tribunais administrativos constituem elementos distintivos face ao comum dos litígios submetidos aos tribunais comuns, com repercussões na tramitação processual, nos moldes da decisão judicial, e na respetiva execução, a exigir uma metódica própria. As fronteiras entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa estão definidas na lei com razoável clareza. Claro que é inerente à dualidade de jurisdições que surjam divergências

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quanto ao tribunal competente. Estas divergências são, em último termo, dirimidas pelo Tribunal dos Conflitos, órgão de composição mista, com juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo. Considera que a Justiça está, atualmente, mais credibilizada, próxima e acessível ao cidadão, nomeadamente no que respeita aos custos e procedimentos? O propósito da reforma desta jurisdição iniciada em 2002, recentemente reforçada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, foi o de proporcionar aos cidadãos e às empresas uma “justiça de qualidade”, uma justiça que, além da independência e imparcialidade dos juízes, que nunca estiveram em causa, fosse mais eficiente no que respeita à extensão da tutela jurisdicional, aos poderes dos tribunais, à execução das sentenças e à prontidão da decisão. Melhorou-se a proximidade e acessibilidade com o alargamento do número e a distribuição territorial dos TAF e a disponibilização ao cidadão e aos diversos operadores judiciários de informação sobre os dados processuais relevantes, alargando-se as funcionalidades do Sistema Informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais (SITAF) procurando dar resposta às necessidades reais dos cidadãos e reforçar, em termos gerais, a confiança do público no sistema judicial. Porque a dotação de meios não tem acompanhado o aumento e complexidade da procura, o que se fez sentir nesta jurisdição com particular intensidade no período da crise que atravessamos, não se tem conseguido tempos satisfatórios de duração dos processos apesar dos esforços, dedicação e competência da generalidade dos juízes que nela servem. Este é seguramente o fator que afeta a credibilidade da justiça administrativa e fiscal. A profissão de solicitador é reconhecida por “encurtar distâncias” e simplificar procedimentos. O que acha que poderia ser feito para reforçar a capacidade assumida por este profissional para representar o cidadão junto dos tribunais administrativos? Neste contexto, foi recentemente ponderado o papel do solicitador nos tribunais administrativos, com contributo desta Ordem no processo legislativo, passando a prever-se a intervenção do solicitador enquanto mandatário nos processos da competência dos Tribunais Administrativos, de acordo com o artigo 11.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não só em representação dos particulares como também das entidades públicas.


“A colaboração entre magistrados, funcionários judiciais e mandatários é um princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico (artigo 8.º do CPTA, e 7.º do Código de Processo Civil). Uma atitude de colaboração não contende com os deveres de independência e imparcialidade de uns, nem com a defesa intransigente dos direitos e interesses dos representados que aos outros compete.”

Os Tribunais Administrativos e Fiscais funcionam assentes num sistema informático distinto - o SITAF. Justifica-se a existência de um sistema próprio? Que projetos existem para este sistema? A comunicação entre os diferentes sistemas informáticos é eficiente? Se a hipótese fosse a de construção ex novo, penso que não se justificaria a existência de um sistema próprio. Mas o SITAF foi criado anteriormente ao CITUS e a migração para um sistema único teria custos financeiros, de tempo e de perturbação do funcionamento dos tribunais para os quais, ao menos neste momento, não vejo justificação nos benefícios esperados. O Ministério da Justiça, em março do ano passado, publicou um documento intitulado “Justiça +Próxima - Plano de Modernização e Tecnologia para uma Justiça mais ágil, transparente e próxima”, no qual são identificadas diversas medidas, a implementar ou recentemente implementadas, que visam a consolidação e modernização do sistema, entre elas, tornar mais fácil e eficiente o trabalho dos mandatários e da secretaria. Não obstante existirem opiniões que defendem o recurso a um único sistema informático, não me parece que, neste momento, os benefícios compensem os custos de um tal empreendimento. E, na realidade, o Ministério da Justiça propõe, no documento “Dossier Justiça-2017”, que se proceda a um reforço contínuo dos sistemas informáticos de gestão processual SITAF e CITIUS em estreita colaboração com os seus utilizadores, contemplando novas funcionalidades, com segurança, robustez e eficácia.

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ENTREVISTA COM VÍTOR MANUEL GONÇALVES GOMES

Nos processos administrativos há evidentes dificuldades nas execuções das decisões. Quais são as opções a encarar? Considera que seria importante a clarificação do papel do agente de execução nesta matéria? Com o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, já referido, traçou-se o papel interventivo do agente de execução no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, tendo em vista uma maior eficácia e celeridade. Assim, com esse diploma, passou a prever-se que, nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos e tributários, os agentes de execução desempenham as suas funções, sem prejuízo das competências próprias dos órgãos da administração tributária (artigos 44.º, n.º 3, 49.º, n.º 3, do ETAF, e 11.º, n.º 6, do CPTA), papel esse antes assegurado pelo oficial de justiça. Um dos problemas registados no funcionamento do nosso sistema judicial e que não afeta apenas a área administrativa e fiscal é o volume da pendência. Na sua perspetiva, quais as soluções mais urgentes que ainda estão por implementar? Falamos de uma situação cuja resolução dependeria apenas do reforço dos meios disponíveis? Considera que seria importante apostar na criação de uma instância dedicada à resolução de casos mais simples? Como encara os mecanismos de resolução alternativa de litígios? Embora a gravidade da situação não assuma a mesma proporção em todos os tribunais, tem de reconhecer-se que o grande número de processos pendentes na generalidade dos tribunais administrativos e fiscais constitui o problema de mais difícil resolução. Exige do legislador e dos órgãos de gestão medidas especiais e com urgência. No ano de 2016, a quantidade de processos findos superou a de processos entrados, mas ficaram pendentes, em primeira instância, 72.516 processos, o que é uma enormidade para a capacidade de resposta dos tribunais. A possibilidade de criação de uma instância destinada à resolução de casos mais simples esteve, de algum modo, presente na previsão legal de criação de juízos tributários especializados em função do valor. Suponho, porém, que não seja essa a via que está a ser encarada na preparação das reformas capazes de melhorar a capacidade de resolução dos tribunais administrativos e fiscais que o Ministério da Justiça tem em estudo e anunciará em breve. Quanto aos meios de resolução alternativa de litígios, designadamente conciliação, mediação e arbitragem, possibilitando uma resolução em alguns casos mais económica e seguramente mais célere dos conflitos, têm de ser encarados favoravelmente, sem preconceitos mas também sem expectativas exageradas. Sempre sem perder de vista que não libertam o Estado do dever de prestar justiça acessível e atempada. Na sua perspetiva, em Portugal, Economia e Justiça estão mais próximas do momento em que caminharão ao mesmo ritmo? O contexto socioeconómico,

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nomeadamente o registado nos últimos anos, tem tido reflexos no funcionamento da Justiça? Aliás, podemos pensar a Justiça Portuguesa como uma peça da sociedade adaptável à realidade? A crise económica que tem assolado o nosso país e a maior eficácia da máquina da Administração Fiscal refletiu-se no aumento da litigiosidade, com o consequente aumento de pendências nos tribunais tributários. Neste contexto, o Memorando de Entendimento assinado a 17 de maio de 2011, entre o Estado Português e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, consagrou a necessidade, para a sustentabilidade financeira do país, de eliminação de pendências nos tribunais tributários e de aceleração da resolução dos processos judiciais, em especial na área tributária. Uma das medidas então adotada, como é do conhecimento geral, foi a criação de equipas extraordinárias de juízes tributários para movimentarem os processos fiscais de valor superior a um milhão de euros. A jurisdição administrativa e fiscal está no âmago das preocupações da União Europeia quanto à criação em Portugal de um ambiente favorável à economia. Sente que também a formação dos diversos profissionais ligados ao universo judicial tem vindo a ser adaptada em função dos novos desafios? Como encararia a criação de um ramo de formação comum a todos os profissionais ligados à Justiça? A formação de magistrados tem tido em conta as novas áreas de conhecimento em Direito, a necessidade de acompanhamento do Direito Comunitário, bem como a evolução informática, nomeadamente os desafios inerentes à tramitação eletrónica dos processos. Essa mesma formação tecnológica tem sido assegurada aos funcionários judiciais, a par de formações específicas em matérias necessárias ao exercício das suas funções. A ideia de um tronco comum de formação pós-graduada das profissões forenses, que tem concretização noutros sistemas jurídicos e de que entre nós também surge de quando em vez, não me parece ter viabilidade prática. Antevejo-lhe efeitos positivos globais, mas tem obstáculos de toda a ordem que a afastam do horizonte próximo: de história e cultura profissional, estatutários, de organização das profissões, económicos… E existe diálogo suficiente entre os diversos profissionais? A colaboração entre magistrados, funcionários judiciais e mandatários é um princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico (artigo 8.º do CPTA, e 7.º do Código de Processo Civil). Uma atitude de colaboração não contende com os deveres de independência e imparcialidade de uns, nem com a defesa intransigente dos direitos e interesses dos representados que aos outros compete. Haverá certamente aspetos a melhorar, mas não tenho notícia de ambiente de especial crispação nos tribunais administrativos e fiscais. Estarei sempre atento a queixas e sugestões.


Já em relação à ponte com a sociedade, na sua perspetiva, qual a relação que deveria existir entre Justiça, comunicação social e cidadãos? É sabido que o tempo e o modo dos tribunais se ajustam mal aos da comunicação social. Mas aos juízes compete julgar sem consideração de outros ditames senão os da lei e da sua consciência. Aos meios de comunicação social cumpre informar. Posto isto, observados os limites legais e deontológicos, os tribunais têm de saber lidar com esta realidade da sociedade democrática. Ser Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, no contexto atual, reveste-se de que significado e desafios? Ser presidente do Supremo Tribunal Administrativo, no termo de uma carreira na magistratura em larga parte dedicada ao direito público, é uma honra e, em si mesmo, um desafio estimulante. O tribunal tem uma história prestigiada no panorama jurídico nacional e é constituído por um elenco de magistrados de elevada craveira intelectual e cívica com prestígio adquirido ao longo de carreiras extensas e diversificadas. Com um ou outro natural sobressalto, funciona de molde a não suscitar especiais preocupações. Costuma dizer-se que o presidente é apenas um primus inter pares. Sucede que a esse cargo vem associado, por inerência, o de Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com responsabilidade nas tarefas de gestão que a este órgão competem quanto ao conjunto da jurisdição. Ora, apesar de o futuro poder encarar-se com otimismo realista quanto à capacidade do sistema para lidar com a procura corrente, das pendências acumuladas emergem preocupações constantes. Esse é o principal desafio e, dentro dos limites constitucionalmente impostos, não dever ser excluída à partida qualquer solução sensata que possa contribuir para uma justiça administrativa e fiscal de qualidade também neste aspeto. : :

“O tribunal tem uma história prestigiada no panorama jurídico nacional e é constituído por um elenco de magistrados de elevada craveira intelectual e cívica com prestígio adquirido ao longo de carreiras extensas e diversificadas.”

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FORÇA AÉREA PORTUGUESA

AS ASAS DE UM PAÍS Texto Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt


REPORTAGEM

O

miúdo estava à janela, em Viana do Castelo. Olhar perdido nas ruas, nas vidas das gentes que nos encontrões se encontravam. Concentrado no que ia acontecendo lá em baixo, deu por isso a querer olhar para o céu. Ruidoso, enorme mas dono de uma agilidade sem igual, quase delicada. Assim era o gigante que cruzava as nuvens, um avião da Força Aérea Portuguesa. O miúdo sorriu com espanto e acenou. Não pode jurar mas acredita que o piloto retribuiu. Nesse momento teve a sua primeira certeza: seria piloto na Força Aérea Portuguesa. Esta é a história de Mário Viana, o miúdo que hoje é Capitão e piloto-aviador na Esquadra 502. Ou melhor, o início de uma história que levantou voo para só aterrar numa História que dura há 65 anos: a História da Força Aérea Portuguesa. Entre as árvores que cobrem a planície, a conversa distrai e nem deixa perceber a distância. Já se avistam os majestosos C-295. “Temos um leque de missões muito vasto. Embora o nosso foco esteja mais direcionado para busca e salvamento e transporte de doentes, fazemos patrulhamento marítimo, largada de paraquedistas, largada de carga, evacuações aeromédicas, transporte aéreo geral e VIP, transporte de órgãos… E tudo isto requer recursos materiais e humanos”, conta Mário Viana, acrescentando à lista as colaborações interna-

cionais que também asseguram. Neste vaivém, há sorrisos rasgados, abraços apertados, olhares de gratidão, nervos à flor da pele. Mas não só. “Temos a noção que fazemos das tripas coração para darmos o nosso melhor. Porque também temos consciência que do nosso trabalho dependem muitas vidas. Entre histórias felizes e tristes, fazemos uma gestão constante dos sucessos e insucessos. E, sinceramente, não há dinheiro que pague aqueles abraços”. Os óculos de sol escondem o olhar mas há emoção em cada memória resgatada. São homens, de carne e osso, que, embora sujeitos aos mais exigentes testes físicos e psicológicos, não esquecem aquele nascimento a bordo em que o pai deu ao filho os nomes dos pilotos.


Na cabine da aeronave está tudo pronto para a decolagem que pode acontecer a qualquer momento. E até nesses momentos, feitos daquela ansiedade que se alimenta do desconhecido, eles mantêm a calma. “Se um motor se incendiar, temos que pensar que existem dois.” Contudo, apesar de todos os reforços tecnológicos que hoje marcam a aviação e inundam o cockpit e de uma atualização constante de conhecimentos, Mário Viana não tem dúvidas quanto ao papel fundamental do ser humano: “A intervenção humana faz toda a diferença quando surge a palavra ‘fail’. Se o automatismo falha e o ser humano não estiver… Não há nada a fazer”. É essa a diferença: para estes homens há sempre algo mais que se possa fazer, há sempre mais uma hipótese, mais uma alternativa, mais uma oportunidade. Talvez por isso os portugueses sejam olhados com respeito e admiração: “Sim, nós somos reconhecidos internacionalmente. Participamos, cada vez mais, em missões internacionais e com performances melhores do que os outros. Conseguimos com poucos meios fazer muitas coisas. Temos uma grande capacidade de adaptação, somos versáteis, somos empenhados. Portugal deve orgulhar-se da Força Aérea que tem”, afirma Manuel Costa, Tenente-Coronel e admirador assumido da História da instituição a que pertence. Na sua perspetiva, todos os anos são marcos na vida da Força Aérea Portuguesa. E, embora não esconda o sacrifício que se exige diariamente a todos que escolhem este caminho, não hesita em proteger a razão que alimenta a vontade de seguir

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em frente, levantar voo mais uma vez e aterrar sem medo: “Somos um ramo jovem e dinâmico e temos o que consideramos mais importante: o poder de conseguir ajudar Portugal. E é o que fazemos há 65 anos”. Entra-se no carro. O caminho é longo até à Esquadra 751. E grande parte faz-se na companhia do Tejo e da vista sobre Lisboa. À entrada da Esquadra “dos helicópteros” está uma placa. Até ao momento da fotografia, 3656 vidas tinham sido salvas. Caminha-se em direção ao bar. As paredes estão forradas a recordações: “O bar da esquadra fala por si. Cada elemento nesta parede simboliza uma missão: coletes, garrafas de oxigénio, talas, chapéus, capacetes. E nos armários temos um bocadinho da história da esquadra: medalhas, condecorações, imagens de missões… Gostamos deste espaço”, explica Rodolfo Curto, Tenente e piloto-aviador rendido à magia dos helicópteros e à missão que o move: “A missão principal é salvar vidas, fazer jus ao lema ‘Para que outros vivam’. Naqueles momentos em que o tempo obriga os aeroportos a fechar, voa o helicóptero. E sentimos que as populações reconhecem este nosso papel. E sim, voa porque tem uma tripulação muito competente e treinada”. Encontram-se rostos jovens, rostos que deixam antever que a História vai continuar. E Manuel Costa não tem dúvidas quanto ao que virá: “Continuarão a ser voos seguros e muito sólidos. Somos um ramo jovem. E acho que o futuro vai ser sorridente porque continuamos a apostar na atualização dos


FORÇA AÉREA PORTUGUESA

“(...) somos reconhecidos internacionalmente. Participamos, cada vez mais, em missões internacionais e com performances melhores do que os outros. Conseguimos com poucos meios fazer muitas coisas. Temos uma grande capacidade de adaptação, somos versáteis, somos empenhados. Portugal deve orgulhar-se da Força Aérea que tem.”

meios e a ter jovens motivados e muito bem preparados”. Só assim se faz frente aos avanços tecnológicos que acontecem à velocidade de um F16 e que também invadem os helicópteros. Mas, apesar de hoje as máquinas já oferecerem a possibilidade de ativação do modo “piloto automático”, quem controla um helicóptero quase se funde com ele. Mãos e pés conduzem aquele ponto no céu que se chama EH-101 e que, afinal, suporta toneladas. “Pilotar um helicóptero é diferente e exige o envolvimento de todos os membros. Na mão esquerda está a alavanca de potência (para subir e descer), com a mão direita

consigo fazer o helicóptero andar para a frente e para trás, para a esquerda e para a direita. Com os meus pedais não acelero nem travo. Com o helicóptero em estacionário e graças a estes pedais, faço o nariz rodar pela direita ou rodar pela esquerda. Para pilotar, todos os membros do meu corpo estão ocupados e sempre que faço algo, têm que haver reações com os outros comandos. E havendo a possibilidade de estacionar o voo, de estar parado sobre um ponto, temos mais um desafio que passa por tentarmos estar parados em relação, por exemplo, a um barco que está em movimento e com um homem pendurado que estamos a tentar colocar em espaços ínfimos (por vezes, falamos de barcos com 12, 13 metros)”. E é incrível como, de repente, o filme de ontem, com todos aqueles efeitos especiais, parece pouco impressionante ao lado de descrições que fazem o queixo cair e as palavras falhar. No ar, de asas abertas ou pás a girar, o tempo está contado e a adrenalina vem do mais natural instinto: salvar vidas. Recebem-se as indicações, vestem-se os equipamentos, inspeciona-se a máquina, aguardam-se as autorizações. Escorre uma gota de suor, respira-se fundo e parte-se. Mais uma vez. Porquê? “Porque somos felizes no que fazemos. Dificilmente se consegue uma recompensa parecida àquela que sentimos quando salvamos mais uma vida. Sim, a máquina consome 900 quilos de combustível por hora. Sim, é verdade. Mas, como costumo dizer, quem conseguir quantificar o preço de uma vida… Que o faça. Nós nunca o faremos”. : :

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ENTREVISTA

“Nós não trabalhamos para as estatísticas, mas sim para resolver os problemas dos cidadãos”

JOSÉ DE FARIA COSTA PROVEDOR DE JUSTIÇA

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

Foram mais de 38 mil as solicitações que chegaram ao Provedor de Justiça ao longo do ano de 2016. Guardam problemas de cidadãos revestidos de desabafos, dúvidas, receios. Deste lado, abrindo o e-mail ou a carta, estará a busca do diálogo, de alternativas e de consensos que, acima de tudo, representem uma resposta para quem é movido por aquela interrogação, por vezes diluída num sentimento de frustração e injustiça. No fundo, a missão de quem está deste lado acaba por se resumir numa só palavra: resolver. Assim o defende José de Faria Costa, Provedor de Justiça. Como é que nós explicamos a missão do Provedor de Justiça? Vivemos num mundo que não é perfeito e, por esse motivo, o homem criou o Estado. Uma entidade moral que procura resolver os problemas da convivência individual e coletiva. Todavia, esse mesmo Estado reconhece que, em muitas circunstâncias, tem pequenas particularidades que não funcionam bem. É nesse momento que aparece a figura do Provedor para resolver os problemas complexos de uma forma informal, sendo este um órgão absolutamente independente, com uma legitimidade indireta do voto popular (dois terços dos votos da Assembleia da República). Podemos encontrar, ainda, outras funções, nomeadamente na apresentação de pedidos de inconstitucionalidade sucessivos ao Tribunal Constitucional. Não estou dependente das queixas que os cidadãos me tragam. Eu posso, por motu proprio, desenvolver atividades ou fazer sugestões à Assembleia da República para melhoria das leis. Este órgão não julga, não governa e não legisla. O núcleo essencial do Provedor não é fazer recomendações. A missão primacial do Provedor é resolver os problemas de quem faz queixa. Se conseguir resolver esse problema a montante, não precisa chegar a jusante com uma recomendação. Nós não trabalhamos para as estatísticas, mas sim para resolver os problemas dos cidadãos e isso faz-se melhor através de meios informais.

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Considera que a missão tem vindo a adaptar-se às necessidades dos novos tempos? Claro que sim. Temos de estar sempre atentos aos sinais dos tempos que são o salva-vidas. Ai daquele que se acomoda. Toda e qualquer instituição é sempre suscetível de ser melhorada. Aquilo que, na minha compreensão, tenho de fazer divide-se em três parâmetros: a lei, a Constituição e a minha consciência. E o avanço tecnológico é um desafio constante mas também um auxiliar? Todo o procedimento deste órgão está digitalizado. Praticamente não temos papel. Mesmo as queixas, 60% são feitas pela via eletrónica. Aquelas que nos chegam em papel ou presencialmente são tratadas digitalmente e entram num processo totalmente desmaterializado. Através das queixas submetidas por via eletrónica conseguimos detetar muitos aspetos interessantes. Por exemplo, conseguimos perceber que existem imensas queixas que são feitas por pessoas que passam a maior parte do tempo sozinhas e que, às 3 ou 4 horas da manhã, fazem a sua queixa, mas encontramos também queixas que, pelo modo de escrita, são feitas por uma criança em nome, por exemplo, dos seus avós. O facto de o processo estar desmaterializado não significa que esteja desumanizado. A busca do mediatismo que marca a atualidade também se reflete no trabalho do Provedor de Justiça? Sou bastante imune ao mediatismo, basta ver a forma discreta com que exerci a minha função nestes quatro anos, mas eficiente e altamente interventiva. Já o imediatismo é quase uma necessidade do viver coletivo, mas é preciso que haja uma certa medida nas coisas. Este é um órgão de recato. Nós temos de manter o anonimato das queixas que nos chegam, por exemplo. Uma excessiva exposição não é muito favorável. Contudo, tenho, simultaneamente, de mostrar o que é o Provedor, nas suas diversas competências, mas também de forma recatada para que este órgão possa fazer o seu trabalho de uma forma serena, firme, imparcial e independente relativamente a todo e qualquer poder.

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“Temos de estar sempre atentos aos sinais dos tempos que são o salva-vidas. Ai daquele que se acomoda. Toda e qualquer instituição é sempre suscetível de ser melhorada. Aquilo que, na minha compreensão, tenho de fazer divide-se em três parâmetros: a lei, a Constituição e a minha consciência.”


ENTREVISTA COM JOSÉ DE FARIA COSTA

Sente que quem se queixa está mais informado acerca dos seus direitos? Esta ideia de aculturação constante relativamente à formação dos direitos é qualquer coisa que não nasce de um dia para o outro. Isto é uma cadeia de pequenas sensibilidades que se vão conjugando. Por ser um órgão unipessoal impõe uma leitura e um estilo próprio. Nada disso tem importância, pois nós passamos, mas a instituição fica. E por onde passará o amanhã da Provedoria de Justiça? Passa por tudo o que fizemos até agora e por melhorar. Podemos fazer sempre melhor. Dar mais ou menos intensidade a certos pontos. Até porque os Provedores estão balizados por duas coisas: a lei e a consciência ética. E neste contexto, o que se espera dos agentes do universo judiciário, nomeadamente dos solicitadores e dos agentes de execução? As instituições são sempre suscetíveis de melhorar. Os solicitadores e os agentes de execução podem sempre fazer melhor. Basta que apliquem a lei e se entreguem de corpo e alma ao que estão a fazer.

Podemos então acreditar que, no futuro, a prevenção será mesmo a atitude mais presente? O grande desígnio de toda e qualquer atividade humana é a prevenção. Se pensarmos na saúde, o que ouvimos dizer? Vamos prevenir. É sempre muito melhor prevenir do que atuar depois. Temos de acreditar que a prevenção é um elemento essencial. Ao mesmo tempo temos de acreditar que vivemos num mundo imperfeito. E, nesse mundo, mesmo prevenindo, temos de atuar. Sempre que alguém ou alguma sociedade quis criar um homem perfeito, a história foi madrasta. Em vez desse homem novo apareceram ditaduras brutais. É conhecido o seu gosto pela escrita. Se a Justiça fosse uma personagem como é que a idealizaria? A Justiça não pode ser uma figura. A Justiça é muito mais do que isso e muito menos do que isso. Sob o ponto de vista ficcional, eu posso escrever um romance, uma ficção ou poema e, em vários momentos dessa novela, apareceriam pedaços de Justiça. O grande mito da sociedade ocidental foi sempre querer absolutizar tudo e a Justiça não é absolutizável. Ela perde-se em mil e uma coisas. : :

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ESTABELECIMENTO PRISIONAL DE COIMBRA

REAPRENDER A VIVER Texto Ana Filipa Pinto Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt

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REPORTAGEM

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ara lá do muro do Estabelecimento Prisional de Coimbra, as vidas que entram não param. Continuam. Tal como o tempo que continua a ser livre para passar. E foi em 1901 que aqui entraram as primeiras vidas. O mundo e o país eram diferentes. As prisões também. Os reclusos cumpriam a pena num regime de isolamento e silêncio. Considerava-se ser esta a garantia da reflexão que conduziria ao arrependimento. O aumento do número de casos de doenças psiquiátricas registados entre reclusos conduziu a uma mudança: só em 1915 surgiram as primeiras oficinas, já após a abolição do capuz, cujo uso foi obrigatório até 1913 para que o rosto fosse ocultado aquando das saídas das celas para despejar o balde dos dejetos. Assim, mantendo-se a obrigatoriedade do silêncio, percebeu-se que a necessidade de mudança começava a falar ainda mais alto. Hoje, tudo é diferente: “Atualmente, exige-se muito mais à prisão. Noutros tempos, as exigências estavam associadas, acima de tudo, à garantia de segurança. Hoje exige-se que, para além disso, se garanta a aquisição de competências por parte dos reclusos e se prepare a sua reintegração na sociedade”, explica Orlando Carvalho, Diretor do Estabelecimento Prisional de Coimbra. Cá dentro, não se pede que as pessoas esqueçam como é a vida para lá do muro. Apenas que reaprendam a viver. Afinal de contas, o mundo não gira ao sabor da chave que, tal como o mundo, também gira para trancar e destrancar as portas que separam quem chega de quem parte. Por aqui, o dia é feito de hábitos, rotinas e horários. “O dia a dia está perfeitamente definido, com horários fixos que existem para ser cumpridos. A abertura ocorre às 8 horas da manhã. Depois, às 9 horas, têm início as atividades, sobretudo as escolares e as oficinas, terminando pelas 11h30 para as tarefas de alimentação, apoio clínico e de fornecimento de medicação. Às 14 horas reinicia-se a atividade que termina pelas 17 horas, seguindo-se a alimentação para que o encerramento ocorra pelas 19 horas, hora em que todos regressam aos seus espaços onde permanecem até à manhã seguinte. Caso haja, por exemplo, medicação que deva ser tomada após a hora de encerramento, um enfermeiro ficará encarregue de, sempre acompanhado por um guarda prisional, percorrer as celas e de distribuir essa mesma medicação”, descreve Orlando Carvalho. São estas as regras.

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Neste estabelecimento, cuja torre central, fiel ao que sempre foi, denuncia os anos passados sobre as fotos a preto e branco, estão, neste momento, 531 reclusos. “São indivíduos condenados a longas penas de prisão. Cerca de 60 % dos indivíduos são reincidentes, tendo uma grande parte sido condenada por crimes contra pessoas. Este estabelecimento é legalmente classificado de nível de segurança alta. Assim, como também clarifica o Diretor do Estabelecimento Prisional, é importante assegurar um caminho gradual em direção à liberdade, demonstrando-se essencial apostar numa lógica de “progressão” que, mesmo após a saída da prisão, implica o acompanhamento do indivíduo pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em prol da construção da sua autonomia. Isto é, “quando o indivíduo chega a beneficiar da liberdade condicional já teve várias oportunidades de contacto com o exterior, as quais visam permitir que vá garantindo a sua adaptação e criando condições para as fases seguintes”. E tudo começa numa primeira avaliação daquilo que são as capacidades e as necessidades de cada pessoa: “Nós garantimos a avaliação do indivíduo e, nessa avaliação, feita pelos serviços técnicos, são elencadas as necessidades, visando poder contribuir para o reforço das suas capacidades, nomeadamente através da formação e, posteriormente, do trabalho. Nós recebemos muitas pessoas sem o ensino básico concluído e é importante dotá-las de competências para que depois possam ter condições para concorrer na sociedade com outros trabalhadores. Feita essa avaliação, é definido um

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percurso para esse indivíduo, sendo esse percurso traduzido num instrumento que é o plano individual de reabilitação, o qual é apresentado e negociado com o indivíduo, sendo depois remetido ao tribunal de execução de penas que o avalia e homologa. A partir desse momento, a execução da pena seguirá as matrizes definidas nesse documento que, obviamente, estará sempre sujeito a reavaliações. Se, por exemplo, já existir uma atividade profissional, tentaremos que o indivíduo possa continuar a exercer essa atividade”. Oficina de serralharia, de marcenaria, de ferragens, de mecânica, de empalhamento, de estufaria, de sapataria, de restauro de encadernações, de pintura de azulejo e louças, de arranjo de móveis… Paula Sobral, Técnica Superior de Reeducação da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, ocupando, atualmente, o cargo de Substituta Legal do Diretor no Estabelecimento Prisional de Coimbra, vai na frente e guia, sem hesitações, por corredores, escadas e portas que não abrem porque sim ou por mero acaso. A cada passo, um «Olá, boa tarde. Como está?». Conhece cada pessoa com quem se cruza, sabe o nome e a sua história. E diz que é assim que tem que ser. Em cada oficina que se entra, as mãos grandes e aparentemente grosseiras dominam a arte que emana da delicadeza de cada peça. E é tanto o que se produz por aqui que corredores e salas viram montras. A prova disso passa pelo facto de algumas empresas aqui instalarem as suas secções de manutenção e arranjos, mediante a celebração de parcerias. Garantida uma primeira formação, são os próprios que depois fazem


ESTABELECIMENTO PRISIONAL DE COIMBRA

“ATUALMENTE, EXIGESE MUITO MAIS À PRISÃO. NOUTROS TEMPOS, AS EXIGÊNCIAS ESTAVAM ASSOCIADAS, ACIMA DE TUDO, À GARANTIA DE SEGURANÇA. HOJE EXIGESE QUE, PARA ALÉM DISSO, SE GARANTA A AQUISIÇÃO DE COMPETÊNCIAS POR PARTE DOS RECLUSOS E SE PREPARE A SUA REINTEGRAÇÃO NA SOCIEDADE.”

o conhecimento girar. E, para além destas oficinas que se distinguem, acima de tudo, pela execução de trabalhos raros e de natureza manual ou especializada, proporcionam-se ainda as possibilidades de frequência de cursos profissionais e de conclusão de um grau de escolaridade, chegando alguns reclusos a ingressar no ensino superior. Paula Sobral termina o percurso num salão onde estão expostos alguns dos trabalhos para venda. Sem dúvidas quanto aos resultados destes projetos, bem maiores do que as peças que ali se veem, não esconde que são muitas e diárias as dificuldades que surgem e que obrigam a uma constante gestão de recursos que, contrariamente à vontade, esgotam. Como sublinha Orlando Carvalho, este “não é um sistema perfeito, nem é um projeto acabado. Temos muito a melhorar. Mas, apesar de estarmos conscientes disso, hoje somos vistos pelas entidades internacionais de uma forma mais positiva”. Num Estabelecimento Prisional procura-se uma oportunidade de recomeçar sem esquecer. “Aquilo que é pedido à prisão é que o indivíduo, uma vez preso, possa sair da prisão em melhores condições para reiniciar a sua vida, sem voltar a olhar para o crime como uma solução. E é isto que orienta o nosso trabalho: criar ferramentas e condições para que os indivíduos, que o queiram e que, obviamente, se esforcem, possam sair daqui mais capazes de refazer a sua vida”. Atravessa-se o portão da saída. A chave girou. O mundo também. E, para lá do muro, reaprende-se a viver. : :

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ENTREVISTA

“A sociedade tem de conhecer a deficiência”

ANA SOFIA ANTUNES SECRETÁRIA DE ESTADO DA INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

A diferença mora ao lado, mora junto, mora em cada um. Por vezes, é mais “envergonhada” e quase parece igual ao que, afinal, também é diferente. Mas está lá. Sempre. Ana Sofia Antunes, Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, acredita que só quando a diferença virar rotina, a sociedade perceberá que a igualdade é mais do que uma palavra. Nesta Secretaria de Estado trabalhase em prol desse dia, do dia em que “sermos todos iguais” significará, afinal, reconhecermos, sem tabus, nem medos, que, na verdade, “somos todos diferentes”. Nascer com uma deficiência em Portugal ainda é sinónimo de uma vida condicionada? É sinónimo de ter de se preparar para uma vida com mais luta e resiliência para superar todas as barreiras de diversas índoles que ainda existem e que, provavelmente, se manterão por mais algum tempo. O nosso papel é tornar esse percurso mais fácil. E a evolução conseguida até agora foi enorme. Algumas das limitações que existiam estão, neste momento, muito diluídas. Isto não passa apenas pela sociedade, mas também pela nossa capacidade de lutar e de fazermos valer os nossos direitos. Há uma frase muito comum: “Não se mudam mentalidades por decreto”. Esta é uma das áreas em que os resultados só se verificam a longo prazo? Os decretos ajudam porque reconhecem direitos, põem no papel e chamam as realidades pelos nomes. Por exemplo, há uns dias discutíamos se devíamos ou não criminalizar determinados comportamentos relacionados com a discriminação em razão da deficiência. Os decretos ajudam nesse sentido, a colocar preto no branco determinadas realidades.

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Começamos a saber incluir sem excluir? Felizmente já começámos esse percurso há muito tempo e a segregação já não é um problema em Portugal. Claro que existem casos e, provavelmente, sempre existirão. Em Portugal, podemos falar de uma sociedade solidária, relativamente aberta, que não esconde os seus problemas e que, progressivamente, tem aprendido a lidar com eles. Durante muitos anos falámos do paradigma da integração das pessoas com deficiência, segundo o qual caberia às próprias pessoas fazer um esforço para estar na sociedade e para ter a sua própria realidade de inclusão. No fundo, punha-se toda a carga do esforço nos ombros da pessoa com deficiência. Perceber que nem tudo pode estar sobre os ombros dessas pessoas foi um grande passo. A pessoa com deficiência sozinha não consegue, por maior que seja a vontade. Tem também de ser a sociedade a fazer o seu papel e a criar condições para que essa pessoa não seja discriminada e tenha oportunidades. As áreas que carecem de intervenção devem ser muitas. Mas se tivesse que identificar aquelas que exigem, neste momento, uma intervenção mais urgente e mais profunda, quais indicaria? Eu costumo dizer que esta é a matéria mais transversal. Para fazermos um trabalho bem sucedido temos de trabalhar em articulação com diversas áreas, diversos ministérios. Educação, Saúde, Cultura, Infraestruturas, Desporto. Não existe área com a qual não tenhamos que trabalhar. Temos um conjunto de metas estabelecidas e que queremos alcançar, mas se tivesse que assinalar áreas nas quais temos de nos focar diria que são a empregabilidade e a questão das acessibilidades e das barreiras arquitetónicas. São estas as questões que mais podem condicionar as hipóteses de inclusão de uma pessoa com deficiência. Sem trabalho e sem uma remuneração não podemos falar em autonomia ou independência.

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“TEMOS COISAS BOAS E COISAS MENOS BOAS, MAS A VERDADE É QUE TEMOS DADOS QUE PROVAM QUE ESTAMOS NO CAMINHO CERTO. O SALTO QUE CONSEGUIMOS DAR NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA, MUITO EMBORA POSSA TER LACUNAS, É MUITO BOM. TEMOS 97% DAS CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA NA ESCOLA. É PRECISO QUE SAIBAMOS VALORIZAR O QUE JÁ FIZEMOS PARA CONSEGUIRMOS CONTINUAR A EVOLUIR.”

Também no âmbito da Justiça, a preocupação com as barreiras arquitetónicas está mais desperta? Temos desenvolvido um trabalho em articulação com o Ministério da Justiça, com vista a encontrar soluções para situações em que ainda existam esse tipo de barreiras. Os avanços tecnológicos têm sido um parceiro interessante? Podem contribuir para a inclusão das pessoas com deficiência? Podem ajudar, mas não eliminam a necessidade que temos de garantir o acesso das pessoas aos locais. Não sabemos em que momento é que a pessoa precisa de aceder e qual a sua necessidade. Têm existido parcerias interessantes, mas é preciso mais.


ENTREVISTA COM ANA SOFIA ANTUNES

Em comparação com o contexto internacional, nomeadamente com a Europa, como é que podemos classificar Portugal no que diz respeito às políticas de inclusão? Não quero que me entendam como uma falsa otimista, mas entendo que, em Portugal, não valorizamos o que temos. Somos, tradicionalmente, pessimistas. Achamos que está sempre tudo a tender para o mal, quando, muitas vezes, não conhecemos a realidade de outros países. Temos coisas boas e coisas menos boas, mas a verdade é que temos dados que provam que estamos no caminho certo. O salto que conseguimos dar na educação inclusiva, muito embora possa ter lacunas, é muito bom. Temos 97% das crianças com deficiência na escola. É preciso que saibamos valorizar o que já fizemos para conseguirmos continuar a evoluir. E, em Portugal, procura-se incentivar a autonomia e a independência? Sim, de várias formas. Não apenas com os mecanismos de incentivo à contratação de pessoas com deficiência, através de uma taxa social única reduzida em 50% permanente e vitalícia, mecanismos do IEFP para contratação de pessoas com deficiência, mas também ao nível da criação da figura do assistente pessoal que a apoia na realização de tarefas. Tudo isto são

formas de criar incentivos à construção progressiva de uma vida cada vez mais independente. Essas medidas visam também a quebra de barreiras e de preconceitos derivados da falta de conhecimentos? A sociedade tem de conhecer a deficiência e, cada vez mais, isso é um facto. Durante muitos anos tivemos a deficiência segregada e trancada dentro de portas. Estava escondida. Qualquer um de nós compreende, sem grande esforço, que o primeiro contacto com uma realidade que se desconhece em absoluto é estranho. A tendência natural do ser humano é a de rejeitar aquilo que desconhece. Progressivamente, a nossa sociedade vai conhecendo melhor a deficiência. Neste momento, as nossas crianças contactam de perto com a deficiência desde muito cedo. No futuro, estas crianças serão os empregadores, os colegas de trabalho, os amigos, etc. Tudo passa pela capacidade de reconhecermos a realidade e de interiorizarmos o que significa não discriminar. A sua tomada de posse como Secretária de Estado também demonstra que Portugal começa a ter “mais respeito por si próprio”? É um começo. É um passo significativo no meio de um percurso. Espero trazer visibilidade à causa e não perco uma oportunidade para o fazer. Estou a fazê-lo por todos. : :

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IMPRENSA NACIONAL CASA DA MOEDA, S. A. +351 217 810 870 26TDRE@INCM.PT WWW.DRE.PT | WWW.INCM.PT


PROFISSÃO

TRESPASSE UMA BREVE REFLEXÃO

Por Luís Rua Teixeira, Solicitador e Vogal do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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utilização do trespasse comercial decaiu com a reforma do arrendamento urbano, introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, a qual operou significativas alterações relativamente às relações locatícias para fins não habitacionais. A atualização imediata da renda no caso de trespasse, bem como a possibilidade do senhorio poder denunciar o contrato de arrendamento ao fim de cinco anos são motivos preponderantes à diminuição drástica da utilização deste instituto, tendo funcionado como um fator de desincentivo à modernização do estabelecimento. O trespasse ocorre através de transmissão inter vivos com carácter definitivo da propriedade de estabelecimento. No que respeita à forma, o contrato de trespasse exige pelo menos documento particular. Para que se possa falar em trespasse, é necessário que a transmissão seja acompanhada de transferência, em conjunto, dos elementos que integram o estabelecimento, isto é, dos bens que, combinados, projetem no público a imagem de uma nova organização. Existem também bens que naturalmente se transferem para o trespassário, tais como as prestações laborais ou a posição de arrendatário. Do trespasse fazem também parte todos os elementos empresariais que as partes acordem entre si. Já se colocam dúvidas em saber se do trespasse podem fazer parte as transmissões de dívidas contraídas antes da celebração do trespasse. Com efeito, a transmissão automática de dívidas só pode ocorrer mediante acordo entre trespassante e trespassário, com ratificação do credor, e a transmissão singular da dívida só exonera o trespassante havendo declaração expressa do credor (cfr. artigo 595.º do CC). Note-se, contudo, que as dívidas aos trabalhadores e as resultantes de coimas pela prática de contraordenações laborais são da responsabilidade do trespassário (cfr. artigo 285.º do Código do Trabalho), pese embora o trespassante responda solidariamente pelas obrigações vencidas até à data da transmissão, durante um ano. Importa também debruçarmo-nos sobre a obrigação de não concorrência, que decorre implicitamente deste negócio, sem necessidade de qualquer estipulação ad hoc. Esta obrigação contém limites objetivos, espaciais (raio de ação do estabelecimento trespassado) e temporais, caso contrário haveria violação do princípio da liberdade de iniciativa económica e das regras de defesa da concorrência. Em caso de violação da obrigação de não concorrência, o trespassário pode exercer os seus direitos, designadamente exigir indemnização (artigo 798.º CC), resolver o contrato (artigo 801.ºCC), intentar ação de cumprimento (artigo 817.º CC), exigir que o novo estabelecimento seja encerrado (artigo 829.º CC) ou requerer sanção pecuniária compulsória (artigo 829.º-A CC). Note-se, para terminar, que a obrigação implícita de não concorrência pode ser afastada por estipulação contratual, uma vez que o trespassário, enquanto titular do direito protegido pela obrigação, dele pode dispor livremente. : :

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DO I AO VII CONGRESSO A HISTÓRIA DE UMA INSTITUIÇÃO Entrámos na máquina do tempo e recuámos nos anos. Primeiro, até 2000. Mais precisamente até ao mês de outubro. Daí seguimos para junho de 2002, novembro de 2005, outubro de 2008 e de 2011 e, por fim, de 2014. Mas porquê? A resposta não podia ser mais fácil. Em ano de Congresso dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e em que se assinalam nove décadas de vida desta Associação de Direito Público, revisitámos aqueles que nos fizeram chegar até à sétima edição. Texto André Silva / Fotografias OSAE

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máquina do tempo fez-nos parar exatamente no dia 20 de outubro de 2000, na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Este novo milénio trouxe o primeiro congresso da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, ainda Câmara dos Solicitadores. Mas tudo começa no dia 4 de outubro de 1999, quando o Presidente do Conselho Geral, o Presidente do Conselho Regional do Norte e o Presidente do Conselho Regional do Sul foram recebidos em audiência pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, na qual foi aceite o convite para presidir à sessão solene de abertura. Assim, no dia 20, numa sala composta por mais de 250 solicitadores, a sessão de abertura do primeiro congresso ficou marcada pela presença de inúmeras figuras de destaque no panorama da Justiça em Portugal. No seu discurso, o Presidente da República classificou os solicitadores como “um grupo profissional importante, que (…) exige cada vez mais da sua formação e que se reúne para debater a sua situação, os problemas que existem e a dimensão do futuro”. Os temas propostos para debate estavam divididos em três grandes áreas: “Deontologia e Garantias do Cidadão”, “Acesso e Valorização Profissional” e “O Futuro da Classe”, tendo havido ainda oportunidade para a entrega dos emblemas de 25 anos e dos diplomas aos novos solicitadores. Mas a viagem tem de continuar e a próxima paragem é no II Congresso dos Solicitadores e no dia 6 de junho de 2002. Estamos na cidade de Coimbra, mais precisamente no auditório do Hospital da Universidade de Coimbra. Jorge Sampaio, Presidente da República, voltou a presidiu à cerimónia de abertura e Celeste Cardona, Ministra da Justiça, à sessão

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O I Congresso ocorreu em outubro de 2000, em Lisboa. Em junho de 2002, na cidade de Coimbra, teve lugar o II Congresso.

A terceira edição aconteceu em Vilamoura, em novembro de 2005.

Neste mesmo dia, o Presidente da República, realçando a grande importância que via no papel dos solicitadores, concedeu o título de Membro Honorário da Ordem de Mérito à então Câmara dos Solicitadores. O IV Congresso decorreu na Cidade Berço de Portugal, Guimarães, em outubro de 2008.

solene de encerramento. Neste mesmo dia, o Presidente da República, realçando a grande importância que via no papel dos solicitadores, concedeu o título de Membro Honorário da Ordem de Mérito à então Câmara dos Solicitadores. Os principais temas deste congresso, o qual decorreu em simultâneo com o VI Congresso dos Postulantes Europeus, dividiram-se, também, em três grandes áreas: “O Solicitador e a Comunidade”, “A Formação” e “O Solicitador no Processo Judicial”. Partindo de Coimbra rumamos até ao dia 11 de novembro de 2005. Vilamoura foi o local escolhido para o III Congresso dos Solicitadores. Este congresso ficou marcado pelo surgimento de uma nova profissão na Justiça: o Solicitador de Execução (surgida a 15 de setembro de 2003, com a reforma da ação executiva). Por esse motivo, os temas em discussão estavam divididos em duas áreas: “Perspetivas da Profissão” e

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A capital nacional acolheu o V Congresso, em outubro de 2011.

Aveiro foi palco da sexta edição do Congresso, tendo esta ocorrido em outubro de 2014.

“O Solicitador e o Processo Executivo”. Esta terceira edição, que contou com as presenças de João Tiago Silveira, Secretário de Estado da Justiça, na cerimónia de abertura, e de Rogério Alves, Bastonário da Ordem dos Advogados, e Odete Santos, deputada, na sessão solene de encerramento, garantiu mais uma importante pedra na construção desta história. Paremos agora na cidade onde Portugal nasceu: Guimarães. Este foi o local escolhido para o IV Congresso dos Solicitadores que arrancou no dia 17 de outubro de 2008 e que esteve alicerçado no tema “A Solicitadoria, Justiça e Cidadania em tempos de mudança”. Realizada em paralelo com o IX Congresso dos Postulantes Europeus, esta quarta edição do congresso contou com João Tiago Silveira, Secretário de Estado da Justiça, na cerimónia de abertura. Durante a cerimónia de encerramento, foi proposta a atribuição do cargo de Presidente

Honorário ao antigo Presidente da Câmara dos Solicitadores, Daniel Lopes Cardoso. Tal foi aprovado com a aclamação de todos os presentes. Chegámos ao dia 7 de outubro de 2011 e ao V Congresso dos Solicitadores. Lisboa foi o palco desta edição. As cadeiras não chegaram para os participantes e a sessão de abertura, presidida por Paula Teixeira da Cruz, Ministra da Justiça, representou um marco no percurso de ascensão da organização. Neste mesmo evento, teve lugar o 1º Fórum dos Jovens Solicitadores e a homenagem a duas personagens que marcaram a história desta associação de direito público: Fernão Botto Machado e Carlos Cordeiro. A sessão de encerramento contou com a presença de várias figuras reconhecidas no seio da Justiça, com destaque para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Luís Vaz das Neves.

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E assim chegamos ao presente. E, neste presente, falamosde futuro e relembramos o passado. É disto que vai ser feito o VII Congresso dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – o primeiro sob a égide da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.

Num moliceiro, seguimos para Aveiro, onde decorreu o VI Congresso dos Solicitadores. Desta vez, no dia 16 de outubro de 2014, assinalou-se o Dia Europeu da Justiça com um Colóquio Internacional, no âmbito do qual ocorreu a entrega do prémio Crystal Scales of Justice. Este colóquio contou com as participações de António Costa Moura, Secretário de Estado da Justiça, Hebe-Del Kader Bicalho, Presidente da Federação Nacional das Associações de Oficiais de Justiça, Françoise Andriuex, Presidente da Union Internationale des Huissiers de Justice, Leo Netten, antigo Presidente da Union Internationale des Huissiers de Justice, Semoa Will, adjunta da Ministra da Justiça de São Tomé e Príncipe, entre muitos outros nomes nacionais e internacionais. O dia 17 de outubro coincidiu com arranque dos trabalhos do VI Congresso, tendo a sessão de abertura sido presidida pela Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, e contado com a presença de muitas outras figuras relevantes no panorama da Justiça. Também nesta sessão, José Luís da Silva Queiroz foi reconhecido, pela dedicação à classe, como Solicitador de Mérito. A cerimónia de encerramento foi presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Silva Henriques Gaspar, que terminou a sua intervenção felicitando a Câmara dos Solicitadores “pelo êxito dos trabalhos do Congresso e pelas reflexões e conclusões que certamente ajudam a encontrar e a tornar menos árduo o caminho do futuro da profissão de solicitador ao serviço da justiça”.

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E assim chegamos ao presente. E, neste presente, falamos de futuro e relembramos o passado. É disto que vai ser feito o VII Congresso dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – o primeiro sob a égide da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. O Congresso decorrerá entre os dias 22 e 24 de junho, em Viana do Castelo, em diferentes espaços da cidade: Centro Cultural, Teatro Municipal Sá de Miranda, Forte de Santiago da Barra, Navio-Hospital Gil Eannes e Biblioteca Municipal. Embora se trate de um evento que procurará ter os olhos postos na tecnologia, no futuro e na busca de novas soluções e áreas de intervenção, coincidirá também com o momento em que se assinalarão os 90 anos de existência desta associação de direito público. . Os debates sobre Justiça, a apresentação de novas ferramentas para os associados, as demonstrações de tecnologia de ponta que o futuro revelará como obrigatórias, as discussões sobre o amanhã do exercício das profissões, o Fórum Ideias Jovens, o aprofundamento de novas áreas, os momentos de convívio e descontração, o Congresso aberto à comunidade, as análises em torno do caminho da solicitadoria e das competências dos agentes de execução, o seminário sobre a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, a entrega do prémio Daniel Lopes Cardoso e… Tanto mais. O melhor mesmo é participar! Encontramo-nos por Viana do Castelo? : :


PROFISSÃO

PERDA DE CHANCE – UMA NOVA VIA?

N Por Luís Paiva, Jurista

Tendo surgido em França em finais do século XIX, num acórdão da Cour de Cassation que se debruçou sobre a responsabilidade civil de um ato de um huissier de justice, que impossibilitou a prossecução de uma ação judicial, a doutrina da perda de chance reporta-se aos atos ou omissões de alguém que conduzam a que outrem perca a hipótese de obter um benefício ou evitar um prejuízo. A doutrina portuguesa tem sido renitente em aceitar o ressarcimento dos danos advindos da perda de chance enquanto dano autónomo, o que decorre do facto de estar ligada aos requisitos da responsabilidade civil, designadamente ao nexo de causalidade. Embora sem consagração legal no nosso ordenamento jurídico, a jurisprudência dos tribunais portugueses tem-se debruçado e aplicado esta teoria em processos de diferente natureza, designadamente em casos de responsabilidade no âmbito do patrocínio judiciário, na responsabilidade por ato médico ou na responsabilidade do Estado (por inexecução de sentença ou por indemnização ao abrigo dos procedimentos de contratação pública). A este respeito, podemos encontrar quer decisões que negam a aplicação da doutrina da perda de chance, por se entender que esta teoria viola o princípio da causalidade adequada, ou por contrariar o princípio da certeza e previsibilidade dos danos, quer decisões que admitem esta teoria, podendo referir-se que tem vingado a teoria da ressarcibilidade da perda de chance como dano autónomo. Quanto aos processos por responsabilidade civil do mandatário forense, aqueles em que existem mais decisões, tem vindo a prevalecer, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), uma corrente favorável à ressarcibilidade da perda de chance, que se reconduz à ideia de que a falta cometida pelo mandatário que resulte na perda da possibilidade de conservação ou de satisfação do direito do cliente constitui um dano indemnizável. Quanto às condições para determinação da indemnização, o STJ tem afirmado, maioritariamente, que tal depende da prova de uma probabilidade de sucesso razoável na ação perdida ou não proposta. Quanto à responsabilidade por ato médico, merece destaque a sentença proferida em setembro de 2015 pela Instância Central Cível do Tribunal de Lisboa que, pela primeira vez, afirmou inequivocamente esta teoria, ao afirmar que existe responsabilidade civil quando alguém se dirige a um hospital em estado de poder sobreviver à doença de que é portador, se for pronta e adequadamente assistido, e o hospital, por via de atos e/ou omissões, lhe retira essa oportunidade de sobrevivência. O instituto da responsabilidade civil tem vindo a mudar o seu paradigma, tendo a doutrina vindo a apresentar um novo desenho da responsabilidade civil, mais solidário para com o lesado que reclama, por vezes, uma solução paralela à da relação entre facto e dano, de forma a abranger outras realidades que a teoria da causalidade adequada não consegue proteger. Isto para obter maior verdade e justiça material. É esse o caso da perda de chance. : :

Sollicitare 33


ENTREVISTA

“Temos lutado muito pelo reforço da humanização processual”

ARMANDO A. OLIVEIRA PRESIDENTE DO CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS AGENTES DE EXECUÇÃO DA ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

Entra, senta-se. Temos o tempo contado. Deixou Braga e encontrou-se com Lisboa pouco depois das oito horas da manhã. Pousa o telemóvel. Abre a pasta, tira o computador. O telemóvel já está em silêncio. Liga o computador. A entrevista começa. Do outro lado da mesa está Armando A. Oliveira, atual Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Agentes de Execução da Ordem dos Solicitadores e do Agentes de Execução. Defensor de uma transparência sem “ses”, de uma Justiça que se entenda e de uma tecnologia que humanize, hoje, mais de uma década passada sobre o início de uma caminhada chamada “ação executiva”, Armando A. Oliveira, ainda se lembra do primeiro processo que deu entrada no então GPESE, atual SISAAE. E o que agora parece algo tão simples e óbvio foi, naquele dia de setembro de 2003, a maior das conquistas e o início de uma viagem. Para onde? O destino reinventa-se a cada chegada. A isso se chama “evolução”.

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Sollicitare 35


ENTREVISTA COM ARMANDO A. OLIVEIRA

Como é que um dia se lembrou de ser solicitador? Costumo dizer que, na vida, tudo me aconteceu por acaso, os caminhos foram surgindo sem preocupações de maior em decidir qual era o próximo destino. E a solicitadoria também foi assim. Surgiu depois do serviço militar, em resultado de um contexto familiar. O meu Pai encaminhou-me devagarinho. Sem pressão. Acabámos os dois a tirar o curso juntos. Foi assim que me tornei solicitador.

serviço público negue o exercício de determinado direito com a escusa de que a informática não o permite. Trata-se de uma nova realidade kafkiana que, para se evitar, é necessário que os práticos do direito conheçam as metodologias da informática. Contudo, os informáticos também têm que saber interpretar as particularidades do direito. E também é importante que os políticos se preocupem em garantir a exequibilidade prática das medidas.

E é expectável um solicitador apaixonar-se por máquinas e por informática? O gosto pela informática nasceu aos 13, 14 anos, com a primeira consola. Depois, veio o spectrum, as primeiras “formações” em informática promovidas pela Universidade do Minho, tinha 15 ou 16 anos. E, claro, muitos jogos, revistas brasileiras sobre informática – na altura era o que existia. Aos 18, mais cursos de informática, no boom do Fundo Social Europeu, e a oportunidade de ter o primeiro PC, um olivetti com processador 386, com 40mb de “disco” - o espaço, equivalente a duas fotografias de agora, servia para guardar tudo que tínhamos, para mim, para o escritório e para a minha irmã. Nesse computador, a primeira coisa que fiz foi criar uma solução para não ter de fazer recibos de renda à mão – na altura fazia mais de 200 por mês.

E como é que chega à então Câmara dos Solicitadores? Foi também por acaso. A primeira ligação à OSAE veio pela mão do José Manuel Oliveira, então Presidente do Conselho Regional do Norte. Antes de fazer cinco anos de cédula fui suplente de Vogal nesse Conselho Regional, não tendo, porém, desempenhado funções. Entretanto, já não me lembro bem como, mas possivelmente em resultado da organização de um ou dois eventos regionais, o José Carlos Resende convidou-me para a revista Sollicitare. Foi ali que escrevi pela primeira vez sobre informática. Mais tarde, em 2006, realizaram-se as eleições para o Conselho Geral e acabei por saber que integrava a lista no dia em que o meu filho mais velho nasceu. Estava eu no hospital e recebi um telefonema a avisar que não tinha enviado a declaração conforme aceitava integrar a lista. Segundo percebi, vários colegas tinham sugerido o meu nome e cada um ficou convencido que o outro iria falar comigo.

“No direito, a tecnologia continua a ser vista com desconfiança. Acontece que a tecnologia é estrutural em todos os ramos e o direito tem que aprender a lidar com esta realidade.”

E só gostando muito destes dois mundos – Solicitadoria e Informática – é que se consegue criar pontes entre eles? Li recentemente que “não interessa o curso que tens, mas sim as competências que adquires”. Sou um solicitador de “old school”, sem curso superior, mas sempre procurei aproveitar aprender sobre as mais diversas áreas, nomeadamente na informática, o que permitiu ter uma visão diferente sobre a prática do direito. Num mundo onde se caminha cada vez mais em direção aos especialistas, eu acredito que precisamos de especialistas na generalidade. Ou seja, ser especialista em conhecer um pouco de tudo e conseguir ligar todos esses mundos diferentes. No direito, a tecnologia continua a ser vista com desconfiança. Acontece que a tecnologia é estrutural em todos os ramos e o direito tem que aprender a lidar com esta realidade. Da mesma forma que se pede às pessoas para que tentem compreender a informática, estamos numa fase em que também se pede aos informáticos para compreenderem o resto do mundo? É algo absolutamente essencial. Temos lutado muito pelo reforço da humanização processual. Não é admissível que um

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Como é que se olha para trás e se interpreta toda a legislação na ação executiva? Cumpre-me antes de mais dizer que, até ao ano 2000, a minha experiência no processo executivo resumia-se a acompanhar processos de despejo e uns quantos processos de execução, sempre votados ao insucesso. Desenvolvia a minha atividade essencialmente na área do registo, do notariado e da fiscalidade ligada ao imobiliário. Um dia, o José Carlos Resende convidou-me para integrar o grupo de trabalhado que havia sido criado para apresentar uma proposta de introdução em Portugal da figura do Huissier de Justice. Vi-me assim forçado, mais uma vez sem ser o expectável, a aprender o que era, de facto, um processo de execução, com a desvantagem de não conhecer o negócio, mas com o benefício de não estar amarrado a nenhum pré-conceito. A reforma do processo executivo, falhada em 2002 e concretizada em 2003, é absolutamente marcante na Justiça Portuguesa. Naquele momento, mudou-se a forma de encarar a Justiça, com introdução de um novo ator que, ainda por cima, passou a desempenhar o papel principal em mais de metade do movimento processual cível. Esta drástica alteração foi difícil de concretizar, claramente deixada ao abandono por vários governos, tendo tido como únicos impulsionadores da reforma os solicitadores de execução, a Câmara dos Solicitadores e uns quantos abnegados oficiais de justiça, da informática e do centro de formação, que fizeram o que podiam em prol da estabilização da reforma. Ainda hoje pagamos o preço do abandono e da falta de estruturas daquele tempo. Foram momentos difíceis, com alguns apoios e muitos boicotes.


A reforma do processo executivo, falhada em 2002 e concretizada em 2003, é absolutamente marcante na Justiça Portuguesa. Naquele momento, mudou-se a forma de encarar a Justiça, com introdução de um novo ator que, ainda por cima, passou a desempenhar o papel principal em mais de metade do movimento processual cível.

Podemos dizer que colocar os servidores na antiga sede da então Câmara dos Solicitadores foi o menor dos problemas? Só quem viveu aqueles dias é que consegue perceber. Os servidores estavam numa casa de banho, tivemos de desmontar portas para os conseguir colocar no terceiro andar da sede no Largo de Dona Estefânia. A ligação à rede judiciária foi conseguida através de uma ligação wireless com o edifício da Polícia Judiciária (isto para evitar um custo fixo de mais de 1.500 Euros). Os manuais do primeiro CESE (Curso de Especialização para Solicitador de Execução) estavam a ser escritos dois dias antes do início da formação. Cada página escrita era levada para as fotocopiadoras e um conjunto de voluntários (solicitadores) tratavam de fotocopiar, ordenar e colocar nas capas. A formação em GPESE foi

ministrada com os servidores a serem instalados e, no dia 15 de setembro, o GPESE era um vislumbre muito ténue do que é hoje. Recordo-me do Engenheiro David Lopes, nos primeiros dias ao serviço da Câmara dos Solicitadores, estar à procura de um fornecedor que conseguisse garantir 30 placas wireless para os computadores da formação. Ao longo de mais de um ano reunimos às sextas-feiras em Braga, onde apareciam colegas de todo o país para discutir e tirar dúvidas. Foram tempos difíceis, mas em que o espírito era combativo e de entreajuda. Se pudesse, revivia esse momento? Não. Mas se tivesse a oportunidade, faria o que faltou fazer e corrigiria o que se fez mal ou menos bem. E aqui reforço que os solicitadores que se dedicaram a lutar contra todas as barreiras que existiam na reforma de 2003 viveram um período durante o qual foram ostracizados, considerados maus e fracos. Foram criticados quando, na verdade, foram os únicos capazes de assumir aquele risco. Os mais novos devem agradecer pelo que hoje têm. Tudo o que hoje existe deve-se ao trabalho de todos aqueles que ajudaram na construção do atual paradigma. A velocidade de funcionamento da Ordem, anterior Câmara, mudou? Completamente. Até 1999 o Conselho Geral tinha dois funcionários, um computador e uma impressora. Nas reuniões, as discussões centravam-se na procuradoria ilícita. Reunir com a tutela era um momento de “festa” em que todos queriam

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participar. Hoje temos uma estrutura com amplos recursos, que é reconhecida e está representada nos mais diversos fóruns, que é consultada num conjunto significativo de matérias, não só nas áreas ligadas à Justiça, mas também no contexto da Economia, ordenamento do território, etc. No entanto, haverá sempre desafios e, entre os que marcam os próximos tempos, temos o de melhorar o nível de eficiência da OSAE. Sente-se surpreendido perante os percursos que a solicitadoria e a ação executiva construíram? Surpreendo-me se me colocar na posição de cidadão. No nosso dia a dia não nos apercebemos da mudança, tudo foi ocorrendo de forma gradual, fomos aprendendo a lidar com tudo que foi acontecendo. Mas se compararmos o dia 1 ao dia 1000, a mudança que encontramos é radical. E nesse que foi o percurso da ação executiva, quais os marcos que destacaria? O primeiro prende-se com o acesso à informação. O segundo, também muito importante, coincide com a penhora eletrónica de saldos bancários. Estes é um dos grandes momentos de viragem e com um enorme impacto na ação executiva. O PEPEX é importante pela mudança de paradigma. Conseguimos mostrar que há alternativas mais céleres e com custos mais reduzidos. A importância do e-Leilões extravasa a área da ação executiva. É uma nova face da Justiça. Uma face ainda mais transparente. Apoiámos a solução e esperámos que o mercado funcionasse. A dado momento, como ninguém tomou a iniciativa, decidimos avançar. É uma forma diferente de olhar para a Justiça, mais dinâmica e com uma linguagem que o cidadão entende. Mas a mais recente conquista coincide com a plataforma de acesso público ao processo executivo. Estamos perante um marco histórico. Haverá o antes e o depois de maio de 2017. Dentro de dez anos vamos olhar para trás e vamos assinalar o momento em que a

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Justiça iniciou o caminho da transparência. Esta singular e discreta alteração legal é o ponto de partida para um destino para o qual todos os demais vão ter que apontar: transparência, responsabilidade e “humanização processual”. A informática tem que ser o catalisador de mais e melhor direito. A passagem a Ordem teve algum peso nesta história que se continua a contar? Na minha opinião, teve um peso mais externo. Vivemos num país em que se dá importância ao título. Às vezes, tenho saudades de dizer “Câmara dos Solicitadores”. Mas faz parte. Temos de nos adaptar. A verdade é que faz alguma diferença. As pessoas, inconscientemente, reagem de outra forma quando falamos em Ordem. Olhando agora para o futuro. Podemos prever uma ação executiva em que as tecnologia continuará a fazer parte do dia a dia, mas sempre em prol de um nível mais elevado de humanização? Para mim, isso é essencial. A componente tecnológica permite retirar, ao ser humano, o trabalho inútil, garantindo que haverá mais tempo para se dedicar aos aspetos verdadeiramente importantes. Eu não tenho de perder tempo a envelopar cartas, a imprimir documentos ou a realizar determinado ato inútil. A tecnologia tem que me dar a oportunidade de ter tempo para pensar no processo. Gostava que a sua história fosse contada através da história dos projetos que ajudou a nascer? Não, a minha história quero-a familiar. A minha história é a minha mulher, são os meus três filhos, os meus pais. Esta é a minha história. A história da Ordem sim, essa deve ser contada pelos seus projetos e pela sua capacidade de se renovar e de encontrar novas soluções. : :


PROFISSÃO

BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS E EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

N Por Elisabete Couto, Chefe do Gabinete de Apoio ao Bastonário e Direção da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

um momento em que estamos próximo de completar uma década da entrada em vigor da Lei n.º 25/2008, de 6 de junho, está já plasmada em novas propostas legislativas a evidência da necessidade de revisão desta lei. Este diploma estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo. Transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas n.os 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro, e 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de agosto, relativas à prevenção da utilização do sistema financeiro e das atividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, procede à segunda alteração à Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto, e revoga a Lei n.º 11/2004, de 27 de março. Se há 10 anos tais termos poderiam parecer relativamente longínquos para uma grande parte da população, os factos noticiados no passado recente levam-nos a estar mais atentos a esta temática, o que também deve levar as entidades sujeitas e os profissionais designados naquele diploma a uma especial previdência na sua atividade profissional. Veja-se que os solicitadores que exerçam atividade em território nacional estão sujeitos às disposições desta lei, ao abrigo do artigo 4.º, enquanto entidades não financeiras. A evolução legislativa nesta matéria foi também acompanhada em matéria penal. Se, por um lado, na versão do Código Penal de 1995 optou-se por manter objeto de legislação extravagante a punição do branqueamento de capitais por razões de técnica legislativa, por outro, em 2004, foi aditado o artigo 368.º-A que estabelece o crime de “Branqueamento”. Em 2017, o governo apresentou à Assembleia da República algumas medidas no que respeita ao combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, designadamente: · Proposta de lei que estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, por transposição parcial da Diretiva (UE) n.º 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, bem como da Diretiva (UE) n.º 2016/2258 do Conselho, de 6 de dezembro de 2016, que altera a Diretiva n.º 2011/16/UE, no que respeita ao acesso às informações anti branqueamento de capitais por parte das autoridades fiscais. Pretende melhorar a cooperação e resposta aos pedidos de informação das autoridades competentes para efeitos de prevenção, deteção e investigação de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo; · Proposta de lei que aprova o Regime Jurídico do Registo Central do Beneficiário Efetivo (RCBE), a ser gerido pelo Instituto dos Registos e do Notariado, com o objetivo de facilitar a identificação das pessoas singulares que detêm o controlo de pessoas coletivas ou entidades equiparadas. Também o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro, veio introduzir novidades neste âmbito. O artigo 106.º vem considerar a condenação de associado da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução por crime de branqueamento de capitais, por considerar-se desonroso para a profissão, critério para a apreciação da inidoneidade para o exercício da profissão de solicitador ou de agente de execução. : :

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OSAE

Nas estantes estão os livros, as memórias, as fotografias, as histórias. Os quadros fazem desaparecer as paredes. Numa pequena vitrina, estão as medalhas que não deixam esquecer tudo o que foi. Pedro Gonçalves Grade ajudou a escrever a história da Ordem que, um dia, foi Câmara.

PEDRO GONÇALVES GRADE UMA VIDA QUE NÃO CABE EM ESTANTES

“E

Texto Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

m 1954 fui professor num colégio e, em 1955, entrei para 7.º Juízo Cível de Lisboa, para o tribunal. Tinha um irmão que já lá estava, que era escrivão. Aí ao fim de 9 anos, resolvi fazer o curso para solicitador e foi assim que entrei, logo nomeado para aqui. Eram só duas vagas. Mas tive uma boa nota e fui logo nomeado para aqui. Vim inaugurar o tribunal de Cascais que só abriu no final de 1963.” Assim começou a viagem que hoje recorda sentado na sua poltrona. Os tempos eram outros e também a profissão era diferente: “Era interessante, mas muito trabalhosa. Nós trabalhávamos muito com os advogados, algo que desapareceu totalmente depois do 25 de Abril. Tinha uma boa relação com centenas de advogados. E a vida no tribunal era quase como se fosse uma família, não era como agora. Nós agora vamos a um tribunal e sentimos que os juízes estão isolados numa torre de marfim. Naquela altura, as pessoas davam-se muito bem. Depois de almoço, era normal irmos todos tomar café”. Foram cerca de 48 anos dedicados à solicitadoria. Uma agenda “fabulosa”, uma fotocopiadora “complicada e que funcionava com uns líquidos” e funcionários que passavam longas temporadas nos tribunais a passar, à mão, elementos dos processos. Era assim quando tudo começou. E, ao longo dessa caminhada, foram várias as paragens. Começou por ter um escritório na avenida marginal, num primeiro andar. Depois, arrendou um outro escritório no centro de Cascais, junto à doca. Só em “2000 e picos” é que veio para aquele que é atualmente o seu espaço de trabalho e reflexão. A voz, hoje mais cansada, em tempos defendeu, com argumentos e convicção, as causas dos solicitadores, tendo integrado a direção da então Câmara. “Era por idealismo. O Dr. Paulo Cruz era o Presidente e resolveram indicar-me para primeiro para Vogal da Assembleia Geral. Nessa altura, a Assembleia Geral era constituída por 30 elementos, 10 por cada distrito das Relações. E foi assim que eu comecei, com entusiasmo, a trabalhar para dar aos solicitadores um estatuto um pouco mais elevado, em termos da admissão e das qualificações académicas.”

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“Tenho muito júbilo pela progressão da Ordem e que hoje seja considerada assim: Ordem. Para mim é muito agradável. Provavelmente, se tivesse ido para um sindicato hoje não seria a mesma coisa. A história poderia ter sido completamente diferente”.

Homem de ideias fixas, Pedro Gonçalves Grade chegou a Presidente do Conselho Geral da Câmara dos Solicitadores em 1975. Mas, ainda antes disso, no verão de 1974, um novo desafio nasceu: “O primeiro Estatuto surgiu porque, depois do 25 de Abril, houve uma corrente de solicitadores, mais esquerdista, que desejava que a Câmara desaparecesse e que desse lugar a um sindicado. Eu insurgi-me contra isso porque acreditava que uma associação de direito público tinha um grau muito mais elevado de prestígio. Esse grupo resolveu organizar um plenário em Leiria, no verão de 74. Apresentei um esboço de um outro Estatuto nesse plenário. No fim, deliberou-se começar a trabalhar partindo dessa base. Houve várias reuniões para se procurar compreender as orientações que se pretendiam para aquele Estatuto. Depois, eu fiz um texto que acabou por ir para o Ministro Francisco Salgado Zenha, tendo sido ele a nomear um grupo de trabalho no qual eu me incluía. Foi esse grupo de trabalho que, durante aproximadamente um mês, no Conselho Superior da Magistratura, ali no Terreiro do Paço, reuniu à noite. Foi aí que elaborámos este trabalho. O Estatuto saiu com 120 artigos logo em 1976. Este Estatuto previa que, ao fim de um ano, os

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solicitadores, em assembleia, podiam modificá-lo. A regra da democracia”. Contudo, foi este o Estatuto que norteou a vida da Câmara e dos solicitadores ao longo de 23 anos. Lutou por mais e melhor formação e por um prestígio que a profissão transformou em imagem de marca, em cartão de visita. Hoje, em pleno ano de 2017, já perante a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, Pedro Gonçalves Grade não esconde o orgulho por ter feito parte deste percurso: “Tenho muito júbilo pela progressão da Ordem e que hoje seja considerada assim: Ordem. Para mim é muito agradável. Provavelmente, se tivesse ido para um sindicato, hoje não seria a mesma coisa. A história poderia ter sido completamente diferente”. Hoje, tantos anos passados sobre aquele dia 2 de janeiro de 1964, o dia da sua inscrição Pedro Gonçalves Grade continua a achar complexo explicar a profissão em “meia dúzia de palavras”. Todavia, não recusa o desafio: “Na minha opinião, é um mediador entre as pessoas e a máquina da Justiça, visando resolver problemas”. Antes da despedida, o antigo solicitador apresenta o resto do espaço. Fala da paixão pela filatelia, mostra o rádio antigo que ainda funciona e oferece uma publicação onde consta o trabalho que defendeu aquando do I Congresso dos Advogados, sobre a Caixa de Previdência. Já junto à porta, é o “até à próxima” que fica a pairar. Afinal de contas, vidas como esta não têm lombadas, nem moldura. Vidas como a de Pedro Gonçalves Grande devem ser partilhadas e inspirar quem por elas passa. Por isso mesmo, nas estantes é que esta vida não pode ficar. : :


PROFISSÃO

A CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES

UMA TRAJETÓRIA ASCENDENTE Por António Costeira Faustino, Presidente da Direção da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores

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Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) está numa trajetória ascendente, no que respeita à sua sustentabilidade. Todos nós, Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução, vamos poder orgulhar-nos da nossa CPAS que, nos seus 70 anos de existência, está a renovar-se e tem condições para se afirmar como uma entidade de referência no plano das instituições de Previdência (sobretudo quando os Sistemas Gerais de Previdência Pública estão atualmente sob forte escrutínio e em relação a estes surgem permanentes preocupações quanto à capacidade de se assegurar a sua sustentabilidade). Para isso, os Beneficiários devem creditar confiança na CPAS, permitindo que a necessária e indispensável relação fiduciária se desenvolva e fortaleça, no melhor interesse de todos. Os documentos de prestação de contas, relativos ao exercício de 2016, espelham já uma inversão da tendência negativa, registada nos anos anteriores, em relação aos principais indicadores económico-financeiros, sendo notório o ressurgimento de elementos que atestam a retoma da vitalidade e do percurso de sustentabilidade da CPAS. Constatam-se como indicadores relevantes, no exercício de 2016: · O incremento do número de novos Beneficiários inscritos (1556), representando uma variação no ano de +330 Beneficiários e um aumento de 26,92%, face ao ano de 2015 (1226), o que sugere uma vitalidade do processo de renovação; · A subida do rácio do número de Beneficiários contribuintes por pensionista de 5,525 (em 2015) para 5,658; · O terem optado por descer de escalão apenas 4,47% dos Beneficiários (com emissão de contribuições em 2015), sendo que apenas 3,13% dos Beneficiários optaram por descer para o escalão mínimo (5º Escalão); · A notória desaceleração na curva descendente dos últimos anos do resultado operacional que se situou em cerca de - 32 000 M Euros;

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A forte inflexão favorável do resultado financeiro (positivo em cerca de + 13 789 M Euros), em relação ao resultado de 2015 (negativo em cerca de - 457M Euros); O incremento dos resultados extraordinários positivos (cerca de + 7 113 M Euros), em relação aos de 2015 (cerca de + 5 557 M Euros); O forte decréscimo do resultado líquido negativo, em relação ao resultado líquido negativo de 2015 (- 11 143 M Euros, em 2016, vs. - 19 721 M Euros, em 2015), determinando já uma menor erosão do Fundo de Garantia; A redução, em relação aos anos anteriores, da percentagem de incumprimento no pagamento de contribuições para 19,57%, sendo que, num horizonte de 5 a 10 anos subsequentes a cada emissão, a percentagem de incumprimento acaba por se situar em cerca de 10%, rácio este que melhorará com a firme atuação desta Direção, no sentido de recuperar dívida.

Neste contexto, importa sobretudo sublinhar que esta tendência geral positiva é claramente reforçada pelos resultados trimestrais (1º trimestre de 2017) da CPAS, que apontam, inequivocamente, para uma situação de recuperação da sustentabilidade do Sistema. Aliás, esta recuperação encontra-se em linha com as estimativas prospetivas (conservadoras) do Relatório Atuarial e de Sustentabilidade, emitido por entidade independente e de reputado prestígio a nível internacional que, no período de análise até ao ano de 2031, considera uma melhoria da sustentabilidade do Sistema, em particular a médio prazo, bem como o próprio crescimento do valor dos ativos financeiros da CPAS. Tudo isto sem considerar, sequer, a implementação e respetivo impacto positivo de medidas complementares que a Direção da CPAS oportunamente divulgou e tem em estudo avançado. Reitere-se que a CPAS tem condições para emergir como uma referência, no âmbito dos Sistemas de Previdência. Os Beneficiários da CPAS podem contar com a sua Instituição. : :

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AQUI CONSTROEM-SE PONTES SÓLIDAS COM TODAS AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR QUE GARANTEM A FORMAÇÃO DAQUELES QUE PODERÃO DEPOIS ABRAÇAR AS PROFISSÕES DE SOLICITADOR OU DE AGENTE DE EXECUÇÃO. NESTE ESPAÇO CHEIO DE ESPÍRITO ACADÉMICO, O QUAL IRÁ PERCORRER PORTUGAL E CONTINUAR A MARCAR PRESENÇA NAS PRÓXIMAS EDIÇÕES, CONTAM-SE OS DESAFIOS, AS CONQUISTAS, AS ASPIRAÇÕES, A “PERSONALIDADE” DE CADA UM DESTES CURSOS.

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

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ENSINO SUPERIOR

“O ensino é uma grande responsabilidade. Estamos a ajudar a construir o futuro das pessoas.”

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt

Que adaptações têm sido levadas a cabo para que a formação em Direito dê resposta às necessidades dos novos tempos? Nos últimos anos, o panorama de internacionalização alterou-se bastante e isso projetou-se muito na área do Direito. Por outro lado, o processo de Bolonha também introduziu grandes alterações no ensino. Estes dois fatores foram muito importantes para estas mudanças. A Faculdade de Direito da Universidade Católica esteve na vanguarda dessa transformação porque antecipou as reformas de Bolonha e avançou para modelos de ensino mais personalizados. Além disso, lançou a Global Law School com cursos voltados para a internacionalização e para a captação de alunos estrangeiros. O processo de Bolonha trouxe ainda uma maior procura em relação aos mestrados, os quais passaram a ser exigidos para certas profissões jurídicas. Considera que um dos aspetos diferenciadores da Universidade Católica passa por essa abertura à sociedade, tanto em termos nacionais, como internacionais? Eu diria que sim. A Universidade Católica, quer em Lisboa, quer no Porto, pelo facto de ser mais jovem do que as outras instituições mais clássicas, teve uma maior facilidade de adaptação – algo natural, pois trata-se de uma instituição menos pesada e mais ágil. A visão adotada passou a ter um carácter mais global? E o mesmo se poderá dizer sobre a própria a Justiça? Sem dúvida, os próprios alunos vêm com outra visão das coisas. É muito importante perceber como é que funcionam as coisas nos outros países. Para pensar fora da caixa é preciso olhar para outras caixas, conhecer novos mundos, sem se perder de vista a realidade nacional. (…) Trata-se de uma gestão difícil para que se alcance um equilíbrio. É preciso que os estudantes percebam que o seu futuro pode não passar por Portugal, que existem outros caminhos e que devem ter uma visão aberta disso. Os nossos estudantes são cada vez mais qualificados, até porque as médias de acesso têm vindo a aumentar e são, comparativamente a outras universidades, muito requisitados pelo mercado.

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

“As faculdades têm um papel muito importante na formação de um adulto que já está numa fase adequada para receber as ferramentas que lhe irão permitir ter uma visão estruturada do mundo e exercer uma profissão.” E tendo em conta essa realidade que se confunde com o fenómeno da globalização, como é que funcionam os protocolos com outras instituições fora de Portugal? No plano da internacionalização, há diversas iniciativas com parceiros estrangeiros. Ao nível do Erasmus, já existe uma experiência vasta e, na minha opinião, estamos perante um caso de sucesso. Nesse âmbito, o que se faz é programar os períodos de Erasmus para uma fase mais adiantada da licenciatura, pois o currículo é mais flexível, podendo o aluno escolher opções mais específicas do seu agrado. Existem muitos caminhos a explorar. E não podemos resumir estes projetos à ida dos nossos alunos para fora, uma vez que o mesmo também passa por captar estudantes estrangeiros. Como é que garantem o acompanhamento dos estudantes no momento da entrada no mercado de trabalho? Temos serviços de apoio aos estudantes que procuram garantir o acompanhamento em diversas matérias, ajudando na preparação de entrevistas, assegurando contactos com o mercado para colocação dos nossos licenciados, etc. Temos, ainda, um outro serviço que procura obter feedback por parte dos alunos, isto para que consigamos ter uma perceção mais exata da realidade. E no que toca à solicitadoria e à ação executiva, estas já são opções mais tidas em conta no âmbito do leque das muitas alternativas disponíveis?

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Eu penso que, hoje em dia, os estudantes de direito têm perceção das vias profissionais que estão abertas. Procuramos, inclusivamente, organizar iniciativas em que se divulgam as várias saídas profissionais. Começou de uma forma embrionária, mas, neste momento, já é um grande evento. Participar na direção de um estabelecimento de ensino representa um desafio constante pela gestão de expectativas e futuros a que obriga? O ensino é uma grande responsabilidade. Estamos a ajudar a construir o futuro das pessoas. Aliás, eu até considero ainda mais importante o ensino de base. Na minha opinião, esse, sim, molda as pessoas. As faculdades têm um papel muito importante na formação de um adulto que já está numa fase adequada para receber as ferramentas que lhe irão permitir ter uma visão estruturada do mundo e exercer uma profissão. E a dificuldade com que as universidades sempre se debateram passa, precisamente, pela conjugação destas dimensões. Por um lado, formar cabeças para o mundo e, por outro lado, prepará-las para o exercício das profissões. Quais são os caminhos e os destinos que se adivinham para o futuro? A internacionalização e o reforço da qualidade, pois aí está a chave de tudo. É preciso assegurar que se corresponde a essa confiança depositada por quem escolhe a Universidade Católica. Isso é um trabalho que temos de fazer todos os dias. : :


SOCIEDADE

CARTÃO ELETRÓNICO EUROPEU DE SERVIÇOS: UMA NOVA FERRAMENTA AO SERVIÇO DO MERCADO INTERNO No setor dos serviços representa 2/3 da economia da União e cria 90% das oportunidades de emprego. Os serviços jurídicos são um input na cadeia de valor das atividades económicas, em qualquer dos seus setores.

Por António de Sousa Maia,

perito nacional destacado na Comissão Europeia

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Diretiva Serviços (2006/123/EC) pretende reduzir os obstáculos à livre circulação de serviços no mercado único, incluindo serviços jurídicos. No entanto, apesar de avanços significativos nalgumas áreas, o seu impacto ficou aquém das expectativas. Dotada de um vasto âmbito de aplicação, a implementação da Diretiva por processos de infração não logrou, desde 2009, assegurar a sua plena implementação a nível nacional nos 28 Estados-Membros. Sem prejuízo da continuação dessa política, em particular face aos requisitos mais restritivos e prejudiciais para a economia, a Comissão Europeia adotou o “Pacote Serviços”1, cuja ambição é remover, a nível legislativo, um vasto número de barreiras que impedem a economia de serviços europeia de atingir o seu potencial de integração e assim de crescimento e emprego. O Cartão Eletrónico Europeu de Serviços é uma das iniciativas do Pacote, aplicável a serviços às empresas e de construção. A solicitadoria será abrangida, ainda que serviços de advogados e agentes de execução não o sejam. O principal objetivo do Cartão é a introdução de procedimentos administrativos harmonizados a para o acesso de prestadores de serviços ao mercado de outros Estados-Membros, seja de forma temporária ou para estabelecimento secundário. O Cartão terá um enfoque particular nas pessoas coletivas, uma vez que o reconhecimento de qualificações profissionais de pessoas singulares permanecerá regido pela Diretiva das Qualificações (2005/36/EC). O Cartão não pretende, contudo, alterar os princípios e regras gerais do Direito da União, nomeadamente da Diretiva Serviços, que enquadram as demais barreiras regulatórias presentes no Direito dos Estados-Membros. Aqueles continuarão a aplicar-se no âmbito dos procedimentos para a emissão do Cartão. Estes procedimentos, uniformes, eletrónicos, multilingues, em regra sem recurso a documentos, tributários do princípio “once-only”, com prazos específicos e papéis claramente atribuídos às autoridades, trarão uma redução dos custos e um aumento da certeza jurídica no cumprimento dos requisitos aplicáveis à entrada dos prestadores no mercado de destino. De sua parte as autoridades, coordenadas por uma autoridade central em cada Estado-membro, receberão toda a informação necessária ao exercício dos seus controlos de forma estruturada e saberão quando e como agir, com o apoio das suas homólogas, incluindo durante a fase de supervisão dos detentores de cartões já emitidos. O Estado-membro de origem terá um novo papel de apoio aos prestadores de serviços que pretendem expandir as suas atividades transfronteiras. Este incluirá ainda, na plataforma eletrónica fornecida pela Comissão, a possibilidade de submeter declarações relativas a profissionais regulamentados no país de destino e a trabalhadores destacados. Este será voluntário, pelo que os procedimentos administrativos aplicáveis nos termos do Direito nacional permanecerão em vigor como uma alternativa para que o prestador de serviços possa escolher a opção que mais vantagens e menos custos lhe trará. Para as sociedades de solicitadores, cujas atividades continuam, em grande parte, limitadas ao território nacional, é uma oportunidade única para beneficiarem do mercado único europeu.: : 1 http://europa.eu/rapid/press-release_IP-17-23_pt.htm

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ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO ACOLHE REUNIÃO DO CNOP COM PRIMEIRO-MINISTRO ANTÓNIO COSTA Texto André Silva / Fotografia Cláudia Teixeira

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sede da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução acolheu, no passado dia 20 de março, uma reunião do Conselho Geral do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), no âmbito da qual participou o Primeiro-Ministro António Costa. Ao longo deste encontro foram abordados temas transversais às 16 Ordens Profissionais que compõem o CNOP, revestindo-se da maior importância pela oportunidade de debate que representou entre estas e o Chefe do Governo. José Carlos Resende, Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, em tom de agradecimento pela presença, ofereceu ao Primeiro-Ministro um exemplar da Revista Sollicitare publicada em outubro de 2000, cuja capa dá destaque a uma entrevista a António Costa enquanto Ministro da Justiça. No final do encontro, todos os intervenientes consideraram essencial a manutenção de um debate participado e capaz de conjugar as perspetivas diferentes mas complementares das várias Ordens Profissionais – uma visão sublinhada por Orlando Monteiro da Silva, presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais e bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas. Já nas palavras de António Costa, Primeiro-Ministro, só apostando no reforço desta cooperação poderá continuar a ser garantida a prestação de melhores serviços aos cidadãos. : :

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PROFISSÃO

AUTO DE CONSTATAÇÃO PORQUE NO “CONSTATAR” É QUE ESTÁ O GANHO Por Rui Miguel Simão, Solicitador, Agente de Execução e 2.º Secretário do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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hegam diariamente, aos tribunais de todo o país, centenas de autos em que os agentes de execução descrevem realidades tão diferentes que vão desde o estado de conservação de um imóvel ao relato de uma diligência judicial. Os tribunais estão, por isso, muito familiarizados com a dinâmica de reconhecer e valorar estes relatos, feitos por um profissional que tem na sua natureza servir no terreno como auxiliar da justiça. A capacidade de um agente de execução se deslocar a um local para descrever uma realidade é tão relevante para o tribunal que o Código de Processo Civil prevê, no artigo 494.º, a possibilidade de serem realizadas verificações não judicias qualificadas. Ao contrário do que se possa pensar, o maior problema dos tribunais não é aplicar o direito. Não, isso os nossos tribunais sabem fazer e, faça-se-lhes justiça, na maior parte das vezes, muito bem. A grande dificuldade está em conhecer e apurar os factos que sustentam a contenda. Sem ter a certeza da dimensão dos danos causados por um locatário num imóvel, como poderá o juiz equacionar o valor justo da indemnização a receber pelo senhorio? Se não se sabe onde é a servidão de passagem, como é que esta pode ser judicialmente reconhecida? Como posso provar que o ruído provocado pelo café perturba e viola o meu direito ao descanso? A juntar a estas dificuldades, muitas disputas chegam à via judicial porque, sabendo disso, as partes jogam com o desconhecimento dos factos e a dificuldade destes serem apurados em tribunal. São os típicos casos em que o juiz não dispõe de outros meios para apurar a “verdade” para além de uma prova testemunhal instrumentalizada. Surgem então várias versões do mesmo acontecimento e cria-se a ideia de que é legítimo as partes refletirem este clima de constante suspeição e insegurança relativamente aos factos em juízo. Na justiça há lugar à discussão de todos os argumentos jurídicos e à construção dos mais belos edifícios teóricos na

defesa dos direitos conflituantes. Mas factos são factos e o seu apuramento é essencial ao proferimento de decisões justas. Conclusão: Muitos litígios não o chegariam a ser se não existissem dúvidas quanto aos factos. Nessa medida, a realização de verificações não judiciais qualificadas por agente de execução e de autos de constatação por solicitador são mecanismos adequados para impedir que muitos destes conflitos avancem para tribunal no pressuposto de aí ser possível distorcer os factos com alegações fantasiosas, testemunhos distantes (ou mesmo influenciados) e alterações aos factos difíceis de situar no tempo. Muitos destes conflitos estão, neste momento, a ser prevenidos por solicitadores no âmbito do GeoPredial. Aliando tecnologia, formação, contacto direto com a realidade e a capacidade de elaboração de um auto isento e tecnicamente capaz, os solicitadores têm perpetuado a memória de centenas de prédios rústicos. O GeoPredial é apenas uma das vertentes em que os solicitadores se socorrem dos autos de constatação. Juntam-se-lhe muitas outras, também estas necessariamente acompanhadas de capacidades técnicas e garantias de segurança jurídica. Acidentes de viação ou sinistros de qualquer outra natureza, podem ficar registados na memória perpétua de um auto de constatação. Ruídos podem ser medidos e gravados. Testemunhos podem ser recolhidos imediatamente no local desejado. Tempo e dinheiro estarão a ser poupados por quem se vê perante um prejuízo dos seus direitos, isto apenas por chamar um solicitador para o constatar imediatamente. E o mais interessante é que nada disto é novidade. A realização de autos de constatação, que agora começa a ganhar raízes em Portugal, é uma prática muito comum nos países francófonos em que os homólogos dos solicitadores e agentes de execução levam já muita experiência nesta matéria. Não deixa de ser curioso que alguns pedidos de constatação em território português cheguem às mãos de solicitadores por estrangeiros, para quem esta é uma ferramenta consensual e perfeitamente idónea. A própria comunidade de emigrantes portugueses representa, neste momento, uma fatia importante da população que já conhece esta solução preventiva, sentindo-se seguros em recorrer a ela. Resta-nos aderir à evidência de que esta solução testada já produz muitos e bons resultados, tendo espaço para crescer em Portugal. : :

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ORDENS

O CONSELHO NACIONAL DAS ORDENS PROFISSIONAIS QUAL O SEU PAPEL? Por Edite Gaspar, Solicitadora, 2.ª Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e membro da Comissão Executiva do Conselho Nacional das Ordens Profissionais

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ecorrendo ao que surge no próprio portal do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), convém salientar que estamos perante uma “associação representativa das profissões liberais regulamentadas, cujo exercício exige a inscrição em vigor, numa Ordem profissional ou em associação de natureza jurídica equivalente”. Assim, esta organização visa “defender os valores éticos e deontológicos das profissões liberais regulamentadas, bem como as suas características e interesses, criar e coordenar os meios de atuação destinados a fortalecer, promover e divulgar as profissões liberais regulamentadas, bem como o seu aperfeiçoamento, representar o conjunto das profissões dela participantes junto dos organismos públicos e privados e das organizações nacionais e internacionais, desenvolver e articular os organismos reguladores profissionais tendentes à melhoria efetiva da autorregulação e da qualidade do exercício dos poderes delegados pelo Estado”. Chamado a intervir nos momentos de decisão relacionados com as Ordens e os profissionais por estas organizações representados, não poderemos deixar de salientar, até pelo mediatismo que envolveu, todas as intervenções do CNOP junto da Assembleia da República, grupos parlamentares e tutelas respetivas registadas no âmbito da Lei n.º 2/2013, resultante do acordo com a troika. Esta estabeleceu o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, obrigando a alterações, algumas profundas, nos estatutos de todas as Ordens. A falta de decisão do Governo nesta matéria, levou o CNOP a produzir um anúncio para publicação na imprensa escrita, o qual contribuiu para a conclusão do processo em 2015. É certo que todas as intervenções mereceriam igual referência, contudo, creio que melhor se perceberá o papel do CNOP, quer no contexto nacional, quer no contexto europeu,

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olhando para algumas das iniciativas que marcaram o ano de 2016: – Assumiu intervenção no momento da apreciação e votação do projeto de parecer do Conselho Económico e Social (CES) sobre as Grandes Opções do Plano para 2016-2019, acompanhando também, desta forma, o pedido da Comissão Especializada Permanente de Política Económica e Social (CEPES); – No contexto da Estratégia Europa 2020, o Comité Económico e Social Europeu (CESE) solicitou ao Conselho Económico e Social a promoção de uma consulta junto dos Parceiros Sociais e da Sociedade Civil no âmbito da formulação e implementação dos Programas Nacionais de Reforma, tendo o CNOP participado no “Relatório Integrado-2016” que será submetido às Instituições Europeias pelo CESE; – Assegurou o acompanhamento da Comissão de Acompanhamento do Programa Operacional Temático Competitividade e Internacionalização (COMPETE2020); – Participou no Single Market Forum 2016 - reforming regulation of professions respeitante à regulação de profissões e ao respetivo exercício de avaliação mútua realizado pelos Estados Membros e pela Comissão Europeia; – No final do ano, a convite do CESE, teve intervenção no “Workshop Liberal Professions in Europe”. O Comité Económico e Social Europeu, através dos membros do Grupo III “Various interests”, debateu a definição conjunta de profissões liberais. Em sede de Conselho Geral, que reúne mensalmente, são ainda debatidos temas transversais a todas as Ordens, sem


prejuízo de serem também analisadas questões que respeitem apenas a “grupos” de Ordens mas que, pela sua abrangência, possam beneficiar de contributos derivados da discussão no seio do CNOP. Para além destes marcos, muitos outros poderiam ser referidos. No entanto, dever-se-á ainda destacar a promoção de reuniões, por iniciativa do CNOP, com diversas individualidades do cenário político nacional, tendo sido enviados convites a todos os grupos parlamentares (nalguns casos, aguardam-se as respetivas respostas e disponibilidades de agenda): Audiência com o Presidente da República As Ordens Profissionais representadas no CNOP foram recebidas em audiência pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Neste encontro, realizado em abril de 2016, foi destacado o papel do CNOP como parceiro social e a necessidade de o reforçar. Reunião com a Presidente do CDS-PP O CNOP reuniu com Assunção Cristas, Presidente do CDS-PP, em setembro de 2016, na sede da Ordem dos Economistas. A

uma exposição inicial da Presidente do CDS-PP, seguiu-se um período de questões e debate. Reunião com o Presidente do Partido Social Democrata Ocorreu, em outubro de 2016, na sede da Ordem dos Médicos, um encontro com Pedro Passos Coelho, Presidente do Partido Social Democrata. Após a intervenção assegurada pelo Presidente do PSD, houve a oportunidade de discutir diversos assuntos. Ainda no que respeita a esta ronda de audições e já no decurso do ano de 2017, o CNOP promoveu uma reunião com o Primeiro-Ministro António Costa, a qual teve lugar no dia 20 de março, na sede da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, no âmbito da reunião magna do Conselho Geral. Procurando pontes e promovendo o diálogo interinstitucional, o Conselho Nacional das Ordens Profissionais trabalha diariamente em prol das Ordens, dos profissionais e, claro está, dos cidadãos. Havendo certezas quanto a isso, a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução tem promovido todos os esforços por forma a contribuir para o cumprimento dessa missão. E assim continuará. : :

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SOCIEDADE

25 DE ABRIL DE 1974 HISTÓRIAS DE UM DIA QUE O PAÍS NÃO PODE ESQUECER ENTREVISTA A VASCO LOURENÇO, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO 25 DE ABRIL

Poder contar as histórias do dia 25 de Abril de 1974 é um daqueles dons que só pertence verdadeiramente a quem dele fez parte. Vasco Lourenço, hoje presidente da Associação 25 de Abril, viveu-o. Ansioso, distante de Lisboa para cumprir as ordens que contrariavam a vontade de estar perto, aguardou a repetição do comunicado. Festejou como quem vê nascer a liberdade. E viu. Durante aqueles dias de abril de 1974, o silêncio foi calado e o país coube nas ruas que transpiravam emoção e desejo de seguir em frente, sem medos, sem amarras. Vasco Lourenço percorreu-as com a sua farda de Capitão e chegou até aqui, ao presente. E agora, numa entrevista sem censuras, este Capitão de Abril conta-nos as histórias de um dia em que se fez História, na esperança de jamais virem a ser esquecidas. Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

Guardamos a revolução de 25 de Abril de 1974 como tendo começado com música e terminado com flores. Para quem a viveu: foi realmente assim? Acabou por ser assim. Os militares que fizeram o 25 de Abril saíram decididos a tentar resolver o problema sem que tivesse de haver sangue derramado, sem usar as armas, mas determinados a fazê-lo se fosse necessário. Todos os comandantes tinham tido experiência de guerra, o que ajudou nessa determinação. Normalmente, quem tem medo de usar a força, quando a usa é muito pior. Tudo correu de uma forma relativamente pacífica. Hoje, quando se olha para o que aconteceu, parece que foi tudo muito fácil. E assim parece porque correu tudo bem. Mas não foi fácil. Tudo acabou por correr bem e ser festejado com flores. Mas restaram as manchas causadas pelas mortes na PIDE/DGS, provocadas pelo seu último estertor. Só houve um oficial, na unidade da Guarda, que teve necessidade de dar um tiro. De resto, foi tudo aparentemente fácil, mas feito com muita determinação.

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Marcámos a diferença em comparação com outras tentativas de revolução noutros países? Mesmo em relação ao que vinha acontecendo dentro de Portugal: a primeira revolta que aconteceu foi em 1927, no Porto. Era para ser em simultâneo em Lisboa e no Porto, mas Lisboa atrasou-se. Existiram várias tentativas ao longo desses 48 anos. A que ocorreu em 25 de abril de 1974 foi a única que foi planeada com uma ordem de operações que envolveu unidades em todo o país que, à hora H, saíram para cumprir a sua missão sem olharem para o lado. Olhando só pela perspetiva militar: o 25 de Abril foi a operação melhor conseguida pelas Forças Armadas em toda a sua história.

“AS PESSOAS ESTAVAM ANSIOSAS, SEDENTAS DE LIBERDADE. EU COSTUMO CLASSIFICAR O QUE SE PASSOU A SEGUIR COMO UMA BEBEDEIRA COLETIVA. COMETEMOS EXAGEROS, MAS, DEPOIS DE 47 ANOS SEM LIBERDADE, AS PESSOAS ACORDARAM E COMEÇARAM A PERCEBER QUE TINHAM DIREITOS. FOI, DE FACTO, EXTRAORDINÁRIO.”

E quando se recua no tempo, que sentimentos é que pairam na memória? Ansiedade. Sair de casa, despedir da mulher e dizer: “Vai correr tudo bem”. E determinação acima de tudo. Estávamos convictos de que se estava a fazer o melhor para Portugal. E, por fim, o sentimento de libertação quando tivemos a consciência de que tudo tinha corrido bem. Respirámos de alívio e ficou também a sensação de realização pessoal. Estamos a falar de um investimento pessoal de muitos em prol de algo melhor para todos… Sim, é preciso ver que, por muito bem preparado que tudo estivesse, alguma coisa podia correr mal. A tensão era enorme. Por isso, a verdade é que a satisfação depois também foi maior. Eu não participei ativamente nas movimentações militares aqui em Lisboa. Teria sido eu a comandar as operações militares aqui, mas fui transferido compulsivamente para os Açores e fui substituído pelo Otelo. Costumo dizer que com o Otelo correu bem, comigo seria preciso fazer a prova. Combinei com ele o envio de uma mensagem a informar a data e hora. Dirigida à sogra do Melo Antunes. No dia 24 chegou um telegrama com o código que tínhamos combinado. “Tia Aurora segue EUA, 25. 03. 00, um abraço primo António”. Aquilo que interessava era o “25 03 00”. Nos Açores, aquilo que pensei foi: “Se fosse eu, a primeira coisa que faria seria ocupar um emissor de rádio para poder dar informações à população”. Provavelmente, o Otelo pensou o mesmo. Estava a fazer zapping e, a certa altura, a mudar de posto rádio, caí na parte final do primeiro comunicado. Naquele momento não sabia se o comunicado era nosso

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ou do Estado Novo. Não sei quantos minutos foram, mas eu fiquei a passear pelo gabinete até à repetição do comunicado. Só nesse momento é que ouvi: “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas…”. Dei por mim aos saltos e a gritar: “Já ganhámos!”. A partir daí, também por conhecer o nosso esquema, tive a certeza que iríamos ganhar. Foi um dia cheio… Mas se tivesse que escolher apenas um momento para reviver, qual seria? O momento em que tive a certeza que o comunicado era nosso. Eu vim no primeiro avião para o continente, cheguei às 2 horas da manhã do dia 29 de abril e já vivi o 1.º de Maio em Lisboa. Vim para a rua, fardado como capitão, e, nesse dia, a multidão quase levava o carro em ombros. Pensei que por aquele momento já tudo tinha valido a pena. E isso espelhava um país ansioso? Sim, sem dúvida. As pessoas estavam ansiosas, sedentas de liberdade. Eu costumo classificar o que se passou a seguir como uma bebedeira coletiva. Cometemos exageros, mas, depois de 47 anos sem liberdade, as pessoas acordaram e começaram a perceber que tinham direitos. Foi, de facto, extraordinário. Agora, quando dizem que a juventude já não se preocupa com a liberdade, eu respondo: “Ainda bem”. É sinal que a liberdade funciona. Contudo, deixo sempre o aviso que a liberdade não é um bem permanente. Existe sempre alguém a tentar tirar a liberdade aos outros para ficar com ela só para si. E o caminho da história está a mostrar-nos novos loucos que nos querem roubar a liberdade. Falando na Europa e no mundo – o que aconteceu por cá, em 25 de abril de 1974, teve impactos além-fronteiras? Após a gesta dos descobrimentos, o 25 de Abril foi o momento em que Portugal mais influência teve no mundo. Foi o primeiro ato da nova vaga de democratização que aconteceu no mundo. Teve influência direta na Grécia, em Espanha, na América do Sul e em África. O fim do apartheid também está relacionado com o 25 de Abril e com a independência das ex-colónias portuguesas. E eu acredito que o nosso pequeno país ainda pode vir a ter uma grande influência neste mundo. Basta que a “geringonça” funcione e o mundo nos siga, com soluções semelhantes… Este nosso presente revela o caminho que esperava depois do 25 de Abril? Nem para o nosso país, nem para o mundo. Em relação à situação política do nosso país, estou relativamente satisfeito. Encontrámos aqui um equilíbrio aceitável. Saímos de um governo em que só pensavam em destruir todas as conquistas que a população tinha conseguido com o 25 de Abril. A solução governativa atual está a funcionar e aliviou-nos. Pode ser que seja o caminho para melhorarmos. Neste momento, preocupa-me Portugal, mas estou mais preocupado com a Europa e o mundo.


ENTREVISTA COM VASCO LOURENÇO

Considera que os portugueses sabem usufruir da liberdade que o 25 de Abril trouxe? Portugal não é diferente dos outros países. É evidente que uma das mágoas que tenho é ver a população a participar pouco civicamente. Naquela altura, toda a gente, através de comissões de moradores, trabalhadores, etc., participava. Agora, cada vez menos. Os níveis de abstenção em Portugal não são muito diferentes dos do resto do mundo. E isso está relacionado com a descrença das pessoas em relação aos políticos.

“EU ACREDITO QUE AS VÁRIAS GERAÇÕES VÃO CONTINUAR A CONSEGUIR ENCONTRAR SOLUÇÕES PARA CAMINHAR NUM BOM SENTIDO. ACREDITO QUE OS JOVENS TÊM CAPACIDADE PARA TOMAR CONTA DE PORTUGAL.”

E a missão da Associação 25 de Abril acaba por ser relembrar a fragilidade destas conquistas preciosas? A nossa missão estatutária é continuar a defender os valores de Abril. Valores como a liberdade, a democracia, a justiça social, a justiça em si própria, a fraternidade, a paz, etc. Procuramos fazê-lo, às vezes com alguma dificuldade. Uma dificuldade que também deriva do facto de sermos radicalmente autónomos em termos partidários. Mas, francamente, considero que temos estado no caminho certo. Como é que vislumbra o amanhã? Os valores de Abril vão permanecer? Eu, por natureza, nunca alinhei nas ideias de que com esta geração está tudo perdido. Em cada geração, os “cotas” vão dizendo que com os novos está tudo perdido. Eu acredito que as várias gerações vão continuar a conseguir encontrar soluções para caminhar num bom sentido. Acredito que os jovens têm capacidade para tomar conta de Portugal. Com altos e baixos, mas vão sempre conseguir encontrar o caminho certo. : : Sollicitare 55


ENTREVISTA

PEDRO O juiz dentro das quatro linhas HENRIQUES ANTIGO ÁRBITRO DE FUTEBOL

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

Em campo, Pedro Henriques era o juiz. A entrada em jogo trazia a adrenalina da incerteza que transformava a pressão em vontade, garra e corrida. Sabia que, a cada decisão, teria que pedir calma às emoções que se ergueriam dentro e fora do relvado. Mas, eventualmente pela carreira militar que o levou até Tenente Coronel, não se deixava esquecer de princípios como a disciplina e o bom senso, assistentes de uma racionalidade que não pode ser cega, nem se deixar fintar por paixões. Consciente do que estava para lá da bola nos pés, Pedro Henriques, dentro das quatro linhas, entre cartões amarelos e vermelhos e apitos que soavam ao anúncio da sentença, geria expectativas, sonhos e pessoas. Nunca era só mais um jogo. Era sempre muito mais do que isso. Afinal de contas, é desse “mais” que se faz o futebol. Ser jogador de futebol é um daqueles sonhos muito comuns entre miúdos. Para o Pedro Henriques também foi assim ou a arbitragem sempre dominou a sua atenção? Nem uma coisa nem outra. Todas as pessoas têm uma recordação mais viva da sua infância e a minha passa pelo desporto. Sempre fiz desporto e com o objetivo de competição. Nunca pensei em ser jogador de futebol e árbitro muito menos. A arbitragem chegou até mim por acaso. Fui para a academia militar, terminei lá a minha licenciatura ligada à área do desporto e surgiu a hipótese de tomar conta das equipas de futebol e futsal do exército. Por esse motivo fui fazer o curso de treinador de nível 1 e um curso de árbitro. E foi aí que surgiu o amor pela arbitragem. Passados uns meses após ter terminado o curso de árbitro, recebi uma nomeação para o jogo do Damaiense contra o Estrela da Amadora. Não era esse o caminho que queria seguir, mas experimentei a sensação e, de repente, tinham passado 20 anos. Qual era o sentimento que pairava nesse primeiro jogo? Principalmente curiosidade por experienciar o sentimento de dirigir um jogo de futebol. Gostei muito da experiência e de toda a gestão que temos de garantir durante aqueles 90 minutos. Lidar com as pessoas num momento de tensão, tomar decisões no momento, etc. Claro que a minha carreira como militar ajudou muito nas minhas funções como árbitro. As coisas começaram a correr bem e eu fui continuando.

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Podemos dizer então que a carreira militar contribuiu para o desempenho da sua missão enquanto árbitro? Sim, direta e indiretamente. Contextualizando: eu apareço na arbitragem em 1990 e, nessa altura, poucos eram os árbitros licenciados. Ser oficial do exército deu-me valor aos olhos das pessoas. Quando cheguei à primeira divisão, era Capitão do exército e, durante essa etapa, fui promovido a Major e, depois, a Tenente-Coronel. Este lado e a minha ligação ao desporto traziam-me prestígio e isso era uma mais-valia perante as outras pessoas. Lidar com a incerteza de cada jogo é sempre o principal desafio? O desafio passa por se conseguir, em primeiro lugar, aplicar as leis do jogo e essas leis são muito subjetivas. As leis do futebol, ao contrário das dos outros desportos, são as mais subjetivas. Se uma lei começa com “Se na opinião do árbitro…”, significa que há sempre um critério subjetivo. Existem leis que um árbitro não as consegue aplicar, porque não são viáveis. Por exemplo, um lançamento de linha lateral nunca é executado no local onde saiu a bola. Ou os árbitros conseguem aplicar a lei ou, então, a lei tem de ir ao encontro da realidade. O futebol tem muito essa ambiguidade. Costumamos dizer que o futebol tem 17 leis, mas a mais importante é a número 18, ou seja, o bom senso. É preciso cumprir as regras, mas também é fundamental perceber a essência do futebol, compreender as pessoas e, sem tentar deturpar a lei, ter bom senso. Este é o maior desafio de um árbitro e admito que não é nada fácil. Ser árbitro de futebol traz ainda mais exigência pelas paixões que mobiliza? Sim, sem dúvida. Também pelo mediatismo que tem. É algo cultural e social. Vale a pena tentar perceber o que é que o futebol tem e tentar replicar noutras modalidades. Toda a gente já deu um chuto numa bola. O futebol tem essa característica. Que outro evento mobilizou tanta gente no nosso país como a final do campeonato europeu de futebol? O futebol no nosso país é um fenómeno único. E, enquanto árbitro, torna-se difícil ficar indiferente a esse entusiasmo? No desempenho da função é diferente. Por exemplo, num jogo que aconteceu em 2008 ou em 2009, Liga de Honra, entre Freamunde e Felgueiras. De repente, estou tão envolvido no jogo que não percebo o que se passa fora das quatro linhas. Teve de ser o meu assistente a dizer para parar o jogo, uma vez que a GNR tinha entrado pelas bancadas e estava a fazer detenções. Tinham ocorrido problemas entre adeptos com armas brancas e eu, que estava tão concentrado na minha função, nem me apercebi do que se estava a passar nas bancadas. Assim que o árbitro apita e começa o jogo, só existe o que se

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passa dentro daquelas quatro linhas. Não interessa se a vida corre bem ou mal, se não paguei a conta da eletricidade, etc. A envolvência e a pressão são tão grandes numa liga profissional que nós estamos só ali, completamente focados. Olhando para trás, alguma vez teve vontade de alterar uma decisão? Assumo que sou daquelas pessoas que não tem saudades de nada. Posso ter muitas coisas para fazer, mas, quando estou envolvido em alguma coisa, estou de corpo e alma. A questão que se coloca é: tive opções erradas? É claro que sim. Dentro dessa perspetiva é claro que não gostava de as ter feito, mas, mesmo assim, não fico a pensar nos momentos que passaram. Como avalia a introdução de tecnologia como auxiliar do árbitro? Completamente a favor e acho que é fundamental. Quantos árbitros é que ficaram conhecidos por uma única tomada de decisão errada? Com a introdução de uma tecnologia tão simples tudo seria mais fácil. Por exemplo, num jogo do Paços de Ferreira contra o Sporting, um jogador introduz a bola na baliza com a mão, uma daquelas situações que dizemos que é escandalosa. Passados 30 segundos, as repetições já estavam na televisão, todas as pessoas em casa já sabiam do erro, no estádio também e, no fundo, só existiam quatro pessoas que não sabiam que se tinha cometido um erro: a equipa de arbitragem. Isto faz algum sentido? Toda a tecnologia que possa ajudar à melhor decisão da equipa de arbitragem é bem-vinda e é um falso problema a questão da perda do lado emocional. Estamos a falar de casos muito concretos que poucas vezes acontecem num jogo. A figura do árbitro tem passado por várias fases na opinião pública. Como é que podemos explicar essas variações? Explicam-se muitas vezes com a necessidade de justificar os fracassos de uma época desportiva de algum clube. Primeiro culpa-se o árbitro, depois demite-se o treinador, etc. Existe um caminho que tem que se percorrer para se justificar uma derrota desportiva. Ao nível do futebol esta é uma das problemáticas: os árbitros têm de ter formação, os jogadores têm de provar no campo a sua qualidade, os treinadores têm formação e estão obrigados a ganhar, a equipa médica igual, até os diretores desportivos já têm que ter formação. Só os dirigentes é que não precisam de ter formação. E os dirigentes cometem muitos erros. Acontece que, no campeonato nacional só ganha um clube e os outros precisam de justificar as derrotas. Atualmente assume um outro papel: o de avaliar e comentar o trabalho dos árbitros. É uma gestão complicada?


ENTREVISTA COM PEDRO HENRIQUES

“É PRECISO CUMPRIR AS REGRAS, MAS TAMBÉM É FUNDAMENTAL PERCEBER A ESSÊNCIA DO FUTEBOL, COMPREENDER AS PESSOAS E, SEM TENTAR DETURPAR A LEI, TER BOM SENSO. ESTE É O MAIOR DESAFIO DE UM ÁRBITRO E ADMITO QUE NÃO É NADA FÁCIL.”

“TODA A TECNOLOGIA QUE POSSA AJUDAR À MELHOR DECISÃO DA EQUIPA DE ARBITRAGEM É BEMVINDA E É UM FALSO PROBLEMA A QUESTÃO DA PERDA DO LADO EMOCIONAL. ”

É uma gestão pensada. Penso muito na forma como vou comunicar o que quero. Nunca deixarei de dizer se considero que foi penálti ou não. A questão está na forma como o irei dizer. É na forma de comunicar que se faz a diferença. Algum jogo ou algum lance que o tenha marcado mais do que o que seria normal? As minhas grandes recordações são pela positiva. Uma final da Taça de Portugal no Jamor, por exemplo. A primeira vez que apitei um Benfica-Sporting. Um jogo da Liga de Honra, o Estoril contra o Santa Clara. O Santa Clara estava a ganhar 1-0 no Estoril. Estava a ser transmitido na televisão e o meu árbitro assistente dá indicação que foi mão na bola na grande área, marco o penálti e mostro cartão amarelo ao jogador. Percebi, pelo público, que não tinha sido penálti. Passados alguns minutos, o mesmo jogador faz falta para amarelo e expulsei-o. O Santa Clara acaba por perder esse jogo por 5-1. No final, o expectável seria que os jogadores reclamassem comigo. Mas não… Reuniram-se todos no centro do terreno e vieram, um a um, despedir-se de mim e desejar uma boa viagem. Jamais na minha vida irei esquecer este momento. Como é que será arbitrar um jogo daqui a dez anos? A grande diferença estará na utilização do vídeo-árbitro. Contudo, as decisões continuarão a ser tomadas pelo árbitro. : :

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PROFISSÃO

SOLICITADORES ILUSTRES ÁLVARO VALENTE (1886-1965) "Ao passo que há muitos temas, doutrina, partidos, seitas e dogmas, para ti só há uma religião: A HUMANIDADE”

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lvaro Zeferino de Campos Valente nasceu em Tomar, no ano de 1886, e veio ainda muito novo para o Montijo, onde viveu até à sua morte, no ano de 1965. Foram 79 anos de vida preenchida de lutas por causas que abraçou, podendo adivinhar-se que, no ocaso da sua vida, teria dito como Pablo Neruda: confesso que vivi. Álvaro Valente inscreve-se na antiga Câmara dos Solicitadores no dia 15 de Janeiro de 1919, mas atrás já trazia muitos anos de participação pública e militância politica, para além do curso de Farmacêutico. Desde muito cedo, participou nas lutas Republicanas. Maçon, tendo sido, até, um dos fundadores, em 1913, na então Aldeia Galega, hoje Montijo, da Loja da Virtude, (1) no rito Francês, seguindo a ideologia Republicana, ao lado das grandes figuras do Partido Republicano, e tendo recusado o convite do então Presidente da República António José de Almeida para o prestigiante cargo de Ministro Plenipotenciário de Portugal em Paris, dizendo: “Vivi para a República e não para viver à custa dela” (2). Para qualquer ser humano, a política e a botica já lhe preenchia – e de que maneira – a sua vida. Mas Álvaro Valente queria muito mais. Inscreve-se em 1919 na então Câmara dos Solicitadores mas, um ano mais tarde, em Setembro de 1920, um incêndio na ainda Aldeia Galega reduz a cinzas o cinema local e algumas habitações. Viu “in loco” a coragem de poucos bombeiros com fraco material e as angústias da população. “Foi por causa deste incêndio que me tornei Bombeiro” (3). Rapidamente ganhou protagonismo no Voluntariado a nível nacional e, já como Comandante dos Bombeiros do Montijo, funda, juntamente com outros camaradas, em 18 de Agosto de 1930, a Liga dos Bombeiros Portugueses. A partir desta data, viaja por todo o País, dando conferências sobre o voluntariado e sobre o que é ser Bombeiro. É o pai da divisa dos Bombeiros Portugueses “VIDA POR VIDA” e é o autor do “Decálogo dos Bombeiros”, a cartilha que todo o Bombeiro Voluntário tem de cumprir e que está exposta em todos os quartéis dos Bombeiros Portugueses, de Norte a Sul do País, com o título:


Por Miguel Ângelo Costa Solicitador, Agente de Execução e Presidente do Conselho Fiscal da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

LEGENDA DO BOMBEIRO I Nunca te esqueças de que envergas uma farda que vigia os teus actos e que te condena se a não respeitares. II No momento do perigo esquece a tua família e a ti próprio e põe defronte da nossa divisa: VIDA POR VIDA. III Se for um inimigo que precise de ti, apressa os teus passos e abre ainda mais o teu coração. IV Recorda-te que és o verdadeiro amigo que aparece quando os outros fogem e por isso não demores. V Não frequentes lugares que manchem a tua farda; lembra-te de que há nódoas que nunca mais se apagam. VI Onde estiver um bombeiro deve estar sempre um amigo dos animais, um amparo dos fracos e um protector das crianças, dos velhos, das mulheres e dos humildes. VII Traz sempre na ideia esta palavra: DISCIPLINA. As suas letras constituem TODO o alfabeto do Bombeiro. VIII A farda deve andar tão limpa como a consciência; quem as traz sujas não pode nem deve ser bombeiro. IX Um camarada é um irmão. Abraça-o com a tua lealdade, porque ele sofre as tuas dores e vive as tuas alegrias. X Ao passo que há muitos temas, doutrina, partidos, seitas e dogmas, para ti só há uma religião: A HUMANIDADE. (4) Começa a partir de 1933, por inspiração que lhe vinha já dos tempos da infância, a escrever poemas, romances, contos, e vários artigos para jornais (foi correspondente do Diário de Lisboa), dando grande relevo aos Bombeiros. Também colaborou no Boletim da Câmara dos Solicitadores, a convite do seu então Director, Ayres de Oliveira. Começou por escrever: “Habituado a escrevinhar acerca de assuntos diferentes, nunca tracei, no entanto, duas linhas em prol da classe que

me honro pertencer há perto de 30 anos” e, mais à frente, num acto de humildade: “(…) Sou um simples solicitador de aldeia, sem pretensões e sem aquela cultura intelectual e aquela bagagem que outros distintos colegas possuem; mas assim mesmo não me demito de vir juntar a minha desvaliosa prosa, cá do cantinho ignorado, onde exerço a minha profissão, aos desejos dos que só procuram mais prestígio, mais dignidade e mais bem-estar para toda a classe”. Acrescentando: “(…) e creio ainda não exagerar se disser que aos solicitadores da província, mais do que os dos grandes centros cabe uma gratidão maior para este acontecimento, em virtude dos magros proventos que auferem e do isolamento em que sempre viveram” (5). No Boletim n.º 9, em Dezembro de 1941, já com o pseudónimo de Solicitador de Aldeia, como gostava de se afirmar, escreve um interessante artigo sobre a fuga dos trabalhadores agrícolas para as minas (possivelmente de volfrâmio, pois estávamos em plena II Guerra Mundial), deixando a agricultura sem mão-de-obra, justificando este fenómeno com os baixos salários pagos à jorna, contrastantes com os salários pagos nas minas. Premonitoriamente, defendia um salário mínimo para a jorna, uma Lei da proteção da agricultura e do trabalho, dado que a exploração mineira era efémera, como veio a verificar-se (6). É muito difícil, em tão curto texto, escrever sobre a vida multifacetada deste nosso Colega. A narração da sua vida já deu um livro (7), mas outros livros daria para se compreender o que trazia consigo este Homem, sendo um farol de vida para qualquer cidadão que lute pela liberdade. E, como bem dizia num dos seus livros que lhe servia de inspiração e que nos faz pensar: “Quando o primeiro homem inventou a primeira grade, criou as suas algemas eternas”. Conhecer a vida de Álvaro Valente, ajuda a quebrá-las. : : Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico. NOTAS: 1 – “A República nos Concelhos da Margem Sul” (pág. 20); C. M. Moita 2 – “Álvaro Valente – O homem e a Obra” de Artur Vaz (pág. 45); Ed. C. M. Montijo 3 – Idem (pág.46) 4 – Boletim da Liga dos Bombeiros Portugueses (Julho de 1934) 5 – Boletim da Câmara dos Solicitadores, n.º 3, Fevereiro de 1941 (pág. 4 e 5) 6 – Idem, n.º 9, Novembro/Dezembro de 1941 (pág. 5, 6 e 7) 7 – Para maior conhecimento, aconselho a leitura do livro, já citado, de Artur Vaz

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INTERNACIONAL

L’ UNION EUROPÉENNE DES HUISSIERS DE JUSTICE : A VOZ EUROPEIA DOS AGENTES DE EXECUÇÃO Nascida a 14 de julho de 2016, a nova organização europeia dos agentes de execução - Union Européenne des Huissiers de Justice (UEHJ) - encerra o fim de um longo processo de maturação entre a gestão das necessidades e expectativas destes profissionais no que ao espaço europeu concerne.

Por Sónia Sénica da Costa Moura, Colaboradora do Gabinete de Comunicação e Relações Externas da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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esde há muito que a necessidade de existir uma entidade formalmente criada, que pudesse concertar posições divergentes, veicular posições comuns e negociar questões que à profissão do agente de execução são caras no plano europeu, é um facto assumido. Em bom rigor, o moroso e conturbado processo da sua criação, pela narrativa crítica de que poderia não apenas esgotar uma parte importante da raison d´être da própria Union Internationale des Huissiers de Justice (UIHJ), como ainda exacerbar eventuais interesses nacionais, acabou por dar lugar à perceção clara de que o ganho seria maior se o consenso imperasse e se os agentes de execução tivessem uma voz europeia em exclusivo. Com este mecanismo de atuação política, tenta-se, pois, não apenas ir ao encontro das expectativas dos seus membros na sua concertação com as instâncias judiciais da União Europeia, como se consegue dotar a profissão de uma agenda própria para as questões europeias e de um plano estratégico a desenvolver no continente europeu. Sendo uma organização internacional de Direito belga, a UEHJ reflete a vocação tendencialmente europeísta da profissão e o facto de a escolha da sua sede recair em Bruxelas reforça essa mesma linha estruturante de atuação. De entre os seus membros fundadores, constam 25 países dos atuais que pertencem também à UIHJ e dos quais se destaca Portugal com a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. A primeira reunião do seu Comité Executivo ocorreu em Bruxelas, em 31 de janeiro do corrente ano, e teve como principal ponto na agenda de trabalho a transmissão formal do legado dos assuntos europeus da UIHJ para a UEHJ. A sua moldura normativa rege-se pelos seguintes princípios formuladores: – o desenvolvimento, promoção e representação da profissão do Agente de Execução (AE) no seio dos Estados-membros da União Europeia; – a representação da profissão de AE junto das instituições da União Europeia mediante a expressão de uma posição comum; – o reforço da colaboração das diferentes profissões que pertençam ao mundo jurídico com a profissão de AE; – a participação dos representantes da profissão de AE nas consultas públicas organizadas no quadro da União Europeia; – a participação da profissão de AE nos projetos financiados pela União Europeia, nomeadamente em matéria de cooperação judiciária; – a coordenação da profissão de AE no âmbito da União Europeia a fim de promover os princípios mundiais e as melhores práticas no seio da profissão; – a organização de atividades relativas à formação dos AE da UEHJ; – a representação da profissão de AE junto de outras organizações e instituições internacionais ou Estados terceiros; – todas as atividades e prestações de serviços em favor dos seus membros que relevem, direta ou indiretamente, do seu objeto social. In: tradução livre do publicado no portal oficial da UIHJ (http://www.uihj.com/fr/-l-uihj-passe-le-relais-a-l-uehj-pour-les-affaires-europeennes_2166639.html)

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SOCIEDADE

CONVENÇÃO DE AARHUS: CIDADANIA ECOLÓGICA Ecocidadania, democracia ambiental, acesso à informação, à participação na tomada de decisão e acesso à Justiça em matéria ambiental – são estes os principais vetores subjacentes à Convenção de Aarhus. Por Marta Silva, Colaboradora do Gabinete Jurídico da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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Convenção da Comissão Económica para a Europa das Nações Unidas (CEE/ONU) entrou em vigor em 30 de outubro de 2001 e vincula Portugal desde 7 de setembro de 2003. Desafiando os princípios do atual Direito Administrativo, com o seu carácter inovador, permite fazer a ponte entre os direitos ambientais e os direitos humanos, reconhecendo a essencialidade daqueles para a adequada proteção dos segundos. Todavia, se, por um lado, se assume como o garante dos direitos dos cidadãos em matéria ambiental, este diploma reconhece também o necessário compromisso e empenhamento de todos, cidadãos e autoridades públicas, no crescimento e desenvolvimento sustentáveis. Como tal, não se visa um mero compromisso formal, antes sim, a construção de uma cidadania ativa, participada, responsável e transparente, mediante a atribuição de recursos de intervenção, que permitam fazer das palavras e dos objetivos realidades presentes no dia a dia de cada cidadão. Em linhas gerais, a primeira dimensão da triologia de Aarhus prevê a disponibilização de informação ao requerente, de forma gratuita e no mais curto espaço de tempo, sem que, todavia, penda sobre este o ónus de provar qualquer interesse qualificado na questão concreta, bem como vincula as partes a deveres de recolha e divulgação de informação em matéria ambiental. O segundo vetor da Convenção traduz-se em duas vertentes: na participação efetiva e atempada do cidadão na produção de instrumentos normativos com impacto significativo no ambiente e na participação na tomada de decisão num variado leque de setores, privilegiando a sua audição e intervenção. A previsão de um eficaz acesso à Justiça encerra o círculo de Aarhus, acautelando o recurso aos tribunais, acompanhado do acesso ao respetivo processo administrativo e decisão judicial. Em Portugal, a aplicação prática deste instrumento deu lugar a inúmeras e marcantes medidas, das quais importa destacar: a Reforma da Fiscalidade Verde, que alterou as normas fiscais ambientais em setores como a energia e emissões, florestas e biodiversidade, introduzindo regimes de tributação dos sacos de plástico e de incentivo ao abate de veículos em fim de vida; no setor dos transportes, a promoção de um modelo de mobilidade mais eficiente e sustentável, através do programa U-Bike e do transporte em veículos geradores de menos emissões; a criação da linha “SOS Ambiente e Território”, destinada a receber reclamações e denúncias de situações violadoras da legislação ambiental 24 horas por dia, todos os dias do ano; o Projeto da Literacia do Mar; o Programa Ar Limpo; e os orçamentos participativos. Despertar para esta nova cidadania é reconhecer que a preservação do ambiente nada mais é do que a preservação dos nossos direitos mais caros, como a vida ou a saúde. : :

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REPORTAGEM

REPORTAGEM

Artimúsica

Artimúsica Artimúsica

A ARTE FAZER A DE ARTE DE FAZE O QUEOFAZ QUEMÚSICA FAZ MÚS O rádio está ligado e é música em português que se escuta sempre rádioexistentes está ligado é música em português que se escuta sempre que as poucas máquinas porOaqui se ecalam. O cheiro a que as poucas máquinas poreaqui existentes se calam. O cheiro a madeira invade o espaço, toma conta dos sentidos. Jovens menos madeira invade o espaço, toma conta jovens, de mãos calejadas e olhar apaixonado, assim são aquelesdos sentidos. Jovens e menos de de mãos e olhar de apaixonado, assim são aqueles que vão moldando as formas jovens, elegantes maiscalejadas um instrumento vão moldando as formas cordas que não esconde a suaque origem. Na Artimúsica é comelegantes as mãos de mais um instrumento de cordas que não esconde a sua origem. que se fazem nascer as “amarantinas, as toeiras, as violas de arame, as Na Artimúsica é com as mãos queaçorianas se fazemde nascer asou “amarantinas, as toeiras, as violas de arame, as beiroas, as campaniças, as violas 12, 15 18 cordas, as beiroas, as campaniças, as violas açorianas de 12, 15 ou 18 cordas, as braguesas, os cavaquinhos, as guitarras de Lisboa, de Coimbra e do cavaquinhos, as guitarras Porto, os violões, as guitarras braguesas, clássicas e os muitas outras.”, afirma com de Lisboa, de Coimbra e do Porto, os violões, as guitarras clássicas orgulho Miguel Alves, atual gerente desta empresa com contornos e muitas outras.”, afirma com orgulho Miguel Alves, atual gerente desta empresa com contornos de família. de família. Texto Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt Texto Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira / assista ao vídeo em www.osae.pt

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ER SICA

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ARTIMÚSICA

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história começa longe de quem a vive no presente. Manuel Carvalho é um dos netos do Mestre José Machado que tocou os primeiros acordes deste sonho. Hoje, aos 64 anos, ainda olha para este trabalho com o mesmo amor: “Comecei a aprender esta profissão com 9 anos. Mesmo quando estudava, vinha à noite fazer uns bandolins ou uns cavaquinhos. Isto é uma arte de família. Começou com o meu avô e foi com ele que eu aprendi”. O início foi difícil mas o negócio cresceu. Hoje, quem tem feito disto a sua vida percebe que muito mudou. Mas há aqueles pequenos segredos nos quais não se mexe. “Nós primamos por apostar na produção artesanal. É esse o nosso orgulho e razão de ser. Artesanalmente e com esta dimensão, somos os únicos”, diz, sem hesitações, Nilsa Alves, irmã de Miguel Alves e também responsável por cuidar desta casa. E Manuel Carvalho não tem dúvidas quanto ao motor do sucesso: “Para nos tornarmos assim, conhecidos, foi só preciso manter a qualidade que os nossos instrumentos têm”. Para lá das fronteiras deste país de músicos e de músicas, que hoje tenta recuperar tudo que faz dele único, também se toca com os instrumentos que por cá se fabricam. Mas antes de seguirem viagem, é Manuel Carvalho que sobre cada um deita o último olhar minucioso e, ao mesmo tempo, nostálgico como se de uma despedida se tratasse: “Todos os detalhes fazem a diferença, pois o produto final é que conta. E quando estou a

afinar uma das guitarras dou logo conta se ela tem algum defeito. Se eu achar que tem algum defeito, essa guitarra não sai daqui. Volta a ser aberta e percebe-se qual o problema. É o selo de qualidade desta casa. E são instrumentos únicos. Confesso-vos: muitas vezes custa-me ver sair daqui alguns instrumentos. Orgulhamo-nos de fazer coisas bonitas, mas, acima de tudo, instrumentos com muita qualidade. Não adianta nada o instrumento ser bonito se a escala não estiver em condições”. É este sorriso do futuro que inspira todos que aqui trabalham de quem se conhecem os nomes e as histórias. “Aqui ninguém sabe tocar mas todos conseguem reconhecer quando é que um instrumento está no ponto. Basta um toque no tampo, um olhar sobre para as cordas…”, conta Nilsa com um entusiasmo que contagia quem ouve. Tal e qual como uma música. E talvez por isso seja tão difícil encontrar quem queira dedicar-se a esta arte sem pauta. “Nem toda a gente dá para isto. A lixa rompe a pele”, explica José Carvalho, também ele neto de José Machado, também ele dono de um dom que apenas em parte se aprende. “Trabalhamos com muitas madeiras: pau-santo, ébano,… Há madeiras muito mais caras. Mas a base de uma boa guitarra é a forma como é construída. A madeira pode ajudar, mas o trabalho do artesão é o mais importante”, acrescenta, apontando para os muitos instrumentos musicais que decoram um espaço que a eles pertence, alguns ainda a serem prensados por amarras para assim ganharem a forma desejada e serem livres. A madeira, o seu corte, os moldes, os materiais utilizados, as técnicas… Tudo é pensado e testado. E, embora respeitando a

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ARTIMÚSICA

Em cima, Nilsa Alves, irmã do atual gerente, Miguel Alves, e também responsável por cuidar desta casa. À esquerda, Manuel Carvalho e José Carvalho, netos do Mestre José Machado, fundador deste sonho.

“Para garantirmos o futuro, precisamos de guardar o passado e a nossa tradição. O meu avô nasceu em 1898 e, até hoje, o produto continua a ser feito da mesma forma. Claro que comum pouco mais de modernidade. Mas é o produto dele que está nas nossas mãos”, reforça Manuel Carvalho sem parar o trabalho que o move.

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tradição, não se nega uma nova ideia. “Nós sabemos construir guitarras, mas gostamos de ouvir a opinião de especialistas. Todos os anos fazemos reuniões com especialistas para que possamos melhorar o nosso trabalho. São 40 anos disto, mas aprendemos todos os dias. Sempre que alguém nos dá uma ideia diferente daquilo que normalmente fazemos, nós testamos e percebemos se funciona. Nunca dizemos não a uma opinião e a algo novo”, esclarece Nilsa. Também graças a essa capacidade de inovar, a Artimúsica tem conseguido chegar a públicos mais jovens, resgatando o gosto pelo que é português: “As pessoas não têm ideia da quantidade de instrumentos portugueses que existem. O cavaquinho português deu origem ao rajão madeirense, à braguinha madeirense, ao ukulele, ao cavaquinho brasileiro, cabo-verdiano, japonês e indiano, etc.”, avança Miguel que, no seu gabinete, guarda alguns dos instrumentos que, tendo ali sido produzidos, ajudam a compor a banda sonora de uma história que não aceita que a silenciem. Eleva-se um cavaquinho à altura do olhar. Aqui é preciso ter bom ouvido, mas também boa vista. Tanto para criar como para curar as feridas de alguns que cederam aos males do tempo. De bancada em bancada, quem passa vai assistindo ao nascimento, delicado e sem menosprezo pelos detalhes, de algo que, com textura de madeira e alma de artista, guardará em si todos que tocarem e conhecerem as suas cordas. “Para garantirmos o futuro, precisamos de guardar o passado e a nossa tradição. O meu avô nasceu em 1898 e, até hoje, o produto continua a ser feito da mesma forma. Claro que com um pouco mais de modernidade. Mas é o produto dele que está nas nossas mãos”, reforça Manuel Carvalho sem parar o trabalho que o move. Olhando já de longe, basta ouvir para perceber, para sentir. Batem-se os martelos, serra-se a madeira, batem-se os pés, lixam-se as ilhargas, bate-se no tampo, canta-se a canção da rádio, batem os corações. O ritmo não é o mesmo. E que interessa? Cada um sente como quer, como entende. Mas todos sentem e disso fazem dom. Por isso se sabe que, enquanto aquela melodia cardíaca se ouvir entre martelos e serrotes, arte continuará a deslizar, a escorrer, com amor, por aquelas cordas. E, mesmo sem aplausos no fim, nada poderá calar um trabalho que se confunde com a vida. : :


SOCIEDADE

UM MANIFESTO EXERCÍCIO DE MEA CULPA Inúmeras seriam as razões para escrever sobre os Cátaros, os seus ideais e modos de vida. Uma delas – muito recente despertou essa vontade de os trazer ainda mais à luz do dia, dando-os a conhecer melhor, ou pela primeira vez.

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o passado dia 17 de outubro de 2016, a Igreja Católica de Ariège (departamento administrativo francês localizado na região dos Midi-Pyrénées, tendo como capital a cidade de Foix) promoveu a realização de uma missa, com o singular propósito de apresentar um pedido de perdão pelo massacre dos “Parfaits”, outra das designações usadas para identificar os Cátaros. Entre outros factos reveladores de uma intolerância inqualificável e ânsia de domínio absoluto, um deles constitui uma marca indelével. Ao abrigo da acusação de heresia, o massacre em causa da responsabilidade direta da Igreja Católica, sob o auspício do seu braço inquisitorial, ocorreu em 16 de março de 1244, data em que foram queimados vivos, numa fogueira coletiva, cerca de duzentos Cátaros. São múltiplas as designações que se podem encontrar para identificar os Cátaros: publicanos, bougres; patarinos, arrianos ou albigenses, estes hereges assim tidos pela Igreja Católica, apelidavam-se a si próprios como apóstolos ou Bons Cristãos. Embora o seu último reduto coletivo – Castelo de Montségur – se situasse no atual sudeste francês, a sua presença foi visível em quase toda a Europa, estendendo-se até à Ásia Menor. Repudiavam a Igreja Católica e rejeitavam o dogma da Santíssima Trindade e também os sacramentos, como o batismo, a eucaristia e o matrimónio.

Por Paulo Teixeira, Solicitador e 1.º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

Inocêncio III (Papa), em 25 de março de 1199, aprovou a bula Vergentis in senium que, destinada essencialmente à criação de modos de combate aos hereges, constituiu os alicerces do que mais tarde vira a ser conhecida por “Santa Inquisição”. Com a presença de Arnaldo Amalrico – emissário de Inocêncio III e o beneplácito de Simon de Monfort (autoridade local), a cidade foi saqueada e a população massacrada. É particularmente dramática e demoníaca a resposta dada por Amalrico quando confrontado com o facto de não haver sinais distintivos e identificadores dos Cátaros, separando-os dos Cristãos: “Matem todos. Deus acabará por reconhecer os seus”. Durante os anos seguintes, a perseguição dos Cátaros foi uma constante e a completa erradicação consubstanciou uma concretização de um desígnio traçado. Sujeitos a condenações sumárias e a tortura, em especial para renegarem a sua fé e/ou para delato dos seus pares, o seu desaparecimento (quase em absoluto) está intimamente ligado a este momento de martirização coletiva aos pés do seu último bastião – o Castelo de Montségur. Sendo genuíno, o perdão não deixa de ser virtuoso, ainda que clamorosamente tardio. : : Leitura recomendada: – “La vie quotidienne des Cathares du Languedoc au XIII Siècle” – René Nelli - Editora Hachette; – “Massacre at Montségur – A history of the Albigensian Crusade” – Zoé Oldenbourg – Editora Phoenix; – “Le livre des sentences de l’inquisiteur Bernard Gui” – Julien Théry – Editora CNRS Editions; – “The Friar of Carcassonne – Revolt against the Inquisition in the last days of the Cathars” – Stephen O’Shea –Editora Profile Books; – “The Cathars – The most successful heresy of the Middle Ages” – Sean Martin – Pocket Essentials.

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CULTURA

E N T R E V I S TA A

RUI VELOSO MÚSICO

“Sou filho das músicas que fui ouvindo durante a minha vida”

PORTUGAL AINDA SENTIA OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO, QUE HAVIA DEVOLVIDO A LIBERDADE DE SENTIR E CANTAR, QUANDO RUI VELOSO LANÇOU O “CHICO FININHO” NAS RÁDIOS NACIONAIS. ESTE “FILHO DO ROCK”, QUE UM DIA APRENDEU SOZINHO A TOCAR GUITARRA, E A MÚSICA QUE FEZ EM SEGREDO PERCORRERAM AS RUAS, O PAÍS E OS OUVIDOS DO MUNDO. EM PORTUGUÊS. E, UMAS DÉCADAS PASSADAS, RUI VELOSO AINDA GUARDA A PRIMEIRA GUITARRA, TÃO BEM QUANTO AS PESSOAS GUARDAM AS CANÇÕES QUE CONTINUA A CANTAR, TRAUTEANDO-AS E SENTINDO-AS COMO SUAS.

Entrevista Ana Filipa Pinto / Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt

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Numa entrevista que deu contrariava a ideia de ser o “pai do rock”. Dizia ser antes o “filho do rock”. Como é que nasce este filho e que pais é que alimentam este nascimento? Musicalmente, todos somos filhos dos nossos pais musicais. Também está relacionado com a minha formação empírica na música. Sou um autodidata. Não sei ler cifras, não sei ler notas, etc. Tudo o que fiz foi de ouvido. Sou filho das músicas que fui ouvindo durante a minha vida. E, em plena década de 80, fervilhava vontade de fazer coisas diferentes? Sim, é verdade. Foi uma época muito criativa. Hoje em dia, as pessoas têm acesso a tudo e as coisas são menos criativas. Na altura, existia muita dificuldade em conseguir ter acesso à música. Dependíamos muito da rádio, mas íamos de descoberta em descoberta. A verdade é que, sendo um jovem naqueles anos, descobria muito mais do que agora com esta idade. Até onde jurava chegar no início disto tudo? Não era um desígnio da juventude portuguesa ser músico popular. Nem sequer havia esperança de que isso fosse alguma vez uma profissão. Ninguém imaginava que, trinta e tal anos depois, estaria aqui ainda a tocar. Não havia tradição disso em Portugal. Não havia público, espetáculos, música portuguesa, educação musical, etc. E teria sido uma viagem muito diferente se a sua mãe não tivesse ido entregar aquelas bobines aos estúdios da Valentim de Carvalho? Neste momento torna-se difícil imaginar outra forma de tudo ter acontecido, mas acho que, mais cedo ou mais tarde, por causa das pessoas que andavam à minha volta, chegaria até aqui. Nunca achei aquilo que fazia nada de especial, mas, pelos vistos, as pessoas à minha volta tinham uma opinião diferente. Eu tinha vergonha de tocar à frente de pessoas... Tocar sempre foi uma coisa íntima, só minha. Resumia-se quase só a uns amigos e à cave dos meus pais. Íamos para lá fumar, tocar e ouvir umas músicas e, no fundo, divertirmo-nos. Era um momento de partilha. Essa fase da descoberta da música coincide com a fase em que Portugal também se está a descobrir? Exatamente. Tudo era novidade. Por exemplo, havia pouca gente com um gira-discos em Portugal. Não tínhamos acesso a essas coisas. Um disco importado era um máximo. Eu fiz o meu primeiro disco e, de repente, ele vendeu 30 mil edições. Era um número impensável. A editora teria ficado contente se tivessem sido vendidos cinco mil. Isto abriu uma porta que não se voltou a fechar. Qual o impacto de uma música como “Chico Fininho” num Portugal acabado de sair de uma ditadura? Estávamos acostumados a não poder dizer coisas e, de repente, passámos a poder dizer tudo à vontade. Havia uma

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“COM 23 ANOS COMECEI A ANDAR PELO PAÍS A TOCAR. ALGO PARA O QUAL NÃO ESTAVA PREPARADO. PORTUGAL ERA MUITO DIFERENTE. NÃO SE DANÇAVA, AS PESSOAS FICAVAM SÓ A OLHAR. NAQUELA ALTURA NÃO EXISTIA NADA MAIS DO QUE “ATIREI O PAU AO GATO” OU “Ó RAMA, Ó QUE LINDA RAMA”. NÓS CRIÁMOS UM NOVO ESTILO DE MÚSICA PORTUGUESA QUE DEPOIS TAMBÉM FOI AGARRADO POR GENTE MAIS VELHA. ”

franja que achava que aquilo era completamente idiota. O “Bairro do Oriente” e o “Chico Fininho” não tocavam na Rádio Renascença, mesmo depois do 25 de Abril. Isto porque a letra do “Bairro do Oriente” dizia “vem rebolar na cama e no jardim” e algumas mentes pensavam que isto ultrapassava as normas da moral. Mas, mesmo assim, as coisas naquele tempo eram mais interessantes. Agora, com a internet, tudo ficou menos entusiasmante. Como é que se lembra do Portugal que, naquela época, ouvia essa música? Não esquecer que, quando gravei aquilo, tinha 22 anos. Era pequenito. Com 23 anos comecei a andar pelo país a tocar. Algo para o qual não estava preparado. Portugal era muito diferente. Não se dançava, as pessoas ficavam só a olhar. Naquela altura não existia nada mais do que “Atirei o pau ao gato” ou “Ó rama, ó que linda rama”. Nós criámos um novo estilo de música portuguesa que depois também foi agarrado por gente mais velha. Hoje oiço o disco e sinto que tem personalidade. Não há nada muito parecido com aquilo. Tem conteúdo, tem uma forma. Foi tão forte que, hoje em dia, ainda tenho de tocar o “Chico Fininho”.


ENTREVISTA COM RUI VELOSO

Olhando para trás: houve muitos momentos sem estrelas no céu ou poderia dizer que teve o dom de escolher ser feliz? Houve altos e baixos na carreira que nunca estiveram desligados dos altos e baixos da vida. Uma coisa que me condicionou sempre foi a fama. Para mim é uma condicionante em todos os aspetos da vida normal. E, hoje em dia, é isso que conta: a fama. Não importa se sou bom ou mau músico. Importa a minha vida de todas as maneiras e feitios. Alguma guitarra à qual dissesse: “nunca me esqueci de ti”? Sim, tenho uma. A guitarra com que aprendi a tocar. Está muito bem conservada. E um momento? Aquele momento em que o B. B. King disse em palco: “Agora começas tu uma música”. Eu que nunca tinha ensaiado com ele… Foi um momento inesquecível. Felizmente, tenho muitos momentos inesquecíveis. Esse com o B. B. King foi… Ia morrendo.

ESCOLHAS… DE RUI VELOSO

O “lado lunar”, contrariamente ao que se imagina, é o mais inspirador? É o lado escuro, todos nós temos uma parte negra. Eu, pelo menos, sempre me inspirei mais à noite. A noite é mais silenciosa, mais tranquila, mais nostálgica e, também, mais depressora.

Um livro: A Estrada do Tabaco, de Erskine Caldwell Um filme: Woodstock Uma música: Uma das boas do Stevie Wonder Um museu: Museu de História Natural de Nova Iorque Um lugar: Inle Lake, na Birmânia

Há coisas para as quais sempre teve “todo o tempo do mundo”? Sim, claro. Tenho pena de não ter todo o tempo do mundo para a minha guitarra e para ler. Eu gostava muito de poder ler mais. Para mim, férias são sinónimo de passear e ler. E, apesar de gostar aqui da calma deste recanto, gosta de regressar ao “Porto Sentido”? Sim, gosto muito. Mas está como Lisboa. Os centros estão insuportáveis. O Porto, como é uma cidade mais pequena, tem gente em todo o lado. Está sobrelotada. Acha que já não há canções de amor ou acredita que pode haver amor até quando não se ouve a mesma canção? Hoje em dia as canções de amor são algo mais parecido com: “Eu te amo”, “Eu te quero” ou “Tu és a minha baby”. E pronto. Em inglês ou português… É por aí que estamos. Imaginar um futuro em que a cultura será mais valorizada… Isso já são sonhos a mais? Eu não tenho grande esperança. Vai continuar a passar pelo fenómeno da massificação. : :

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SOCIEDADE

Dentro da caixa Por JSR Ilustração Félix Rodrigues

O

lha!?! Está ali uma caixa… Vou abri-la. Humm… Calma. Não será perigoso? Olho de novo. Lá está ela, quieta, ostentando a sua sobriedade retilínea. Que mal me poderá causar? Não são conhecidos muitos ataques de caixas a pessoas. Poderá saltar-me para a cara? Não creio. Porém, ao contrário de um leão, de um tubarão ou mesmo do Sebastião, o pitbull do vizinho do rés-do-chão, as caixas não são, em si, perigosas. Não. A ameaça das caixas vem do seu íntimo, daquilo que encerram. E esta pode bem prender grandes males. Uma bomba, talvez. Quem é que quer, na flor da idade, morrer despedaçado numa explosão? Gostaria de fazer tantas coisas antes de morrer… Não vou assim, sem medo, abrir esta caixa. Era o que falava! Matava a curiosidade e o quarteirão inteiro, que irresponsabilidade! Mais vale deixar a caixa sossegada. O prémio parece-me demasiado pequeno para justificar tamanho risco. Não é que eu faça a mais pequena ideia do que possa estar a perder, mas vivi tão bem até hoje sem conhecer o que a caixa guarda, aguento bem mais um tempo de saudável ignorância. A verdade é que não sabia sequer que a caixa existia. E era tão mais feliz assim. Que diabo! É só uma caixa. Fechada, é certo, mas que até pode estar vazia. Embora seja muito pouco provável. Quem é que iria fechar uma caixa sem lhe meter nada dentro? Não faz sentido. Se a caixa estivesse vazia, estaria aberta. Está fechada, logo, contém algo. O que será? É melhor não a abrir, tenho de descobrir de outra forma. Fecho os olhos e concentro-me em busca de um som proveniente da caixa. Eh! Lá! Não faltam ruídos: as obras no prédio em frente, …que martelo irritante, um autocarro a arrancar, vizinhos nas escadas (o elevador deve estar avariado outra vez), aquela maldita torneira do bidé, que não uso, mas que está sempre a pingar… E da caixa? Da caixa, nada. Creio eu. Estou tão concentrado que detetei um zumbido, mas acho que é no meu ouvido, ou na minha cabeça, …sei lá. Só sei que me impede de ouvir bem a caixa. Na falta de um estetoscópio, o melhor é usar um copo, como quando tento ouvir as conversas da Joana, lá no escritório. Ela sim, uma verdadeira bomba! Quem me dera… Até simpatiza comigo, mas aposto que anda enrolada com o chefe. Pego num copo e retorno à caixa. Que estranho! Agora parece-me maior. Será possível? Só pode ser fruto da minha imaginação: as caixas não aumentam de tamanho, muito menos em poucos segundos. Nem mesmo dando-lhes mais tempo ou até fermento. Bom! É claro que não ignoro que os corpos crescem com o calor. Ainda há poucos dias comprovei isso mesmo, num interessantíssimo documentário sobre pontes, em que o narrador discorreu longamente sobre as juntas de dilatação… Estará a caixa quente? Eu não lhe vou pôr a mão. Estou estafado. Parece que não durmo há dias. Tenho de fazer alguma coisa! Bem. Para já, vou manter-me a uma boa distância da caixa, embora agora ela me pareça do tamanho de sempre, silenciosa como sempre, imóvel como sempre. Mas nunca fiando. : :

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SOCIEDADE

“Como seria um amanhã perfeito?!

NÃO SE FALARIA EM DEFICIÊNCIA”

ENTREVISTA A JOSÉ PATRÍCIO, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE PARALISIA CEREBRAL ALMADA SEIXAL

Na Associação de Paralisia Cerebral Almada Seixal (APCAS) fala-se em capacidades. Diferentes, é certo. Mas nunca em incapacidades. E o desporto é a língua universal que por aqui se aprende a dominar. Sem medo de tentar e com a certeza de todos terem o direito à autonomia. Assim, ensina-se que o desporto é para todos, sem remendos, só adaptações. E é isso que a APCAS quer fazer a esta bola gigante que é o mundo: tirar-lhe os remendos e adaptá-la para que todos possam ser felizes por cá. Como é que surge a Associação de Paralisia Cerebral Almada Seixal (APCAS)? A APCAS surgiu, há mais de uma década, com um grupo de pais de crianças com paralisia cerebral que se juntaram de uma forma informal e entenderam que deveriam dar um primeiro passo nesta matéria. Não nos conhecíamos. Quem nos juntou foi a médica dos nossos filhos. Ela era o elo de ligação entre todos. Sentou-nos numa mesa e assim começou a surgir a ideia: constituirmos uma associação. Na altura, formámos um núcleo da associação de paralisia cerebral de Lisboa e só em 2011 é que a APCAS é constituída. É uma associação muito jovem, que surgiu muito recentemente aqui nesta área. Ainda continuam a existir imensas lacunas nas respostas a pessoas com deficiência aqui na margem sul e nós quisemos ocupar esse nicho e ter um papel ativo nessa matéria.

Entrevista Ana Filipa Pinto Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt

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Falamos de uma associação que tenta responder às necessidades locais e regionais ou também tem uma intervenção nacional? Começámos por dar uma resposta local, aqui no concelho do Seixal. Fomos crescendo e rapidamente passámos a dar resposta no distrito de Setúbal, na área metropolitana de Lisboa, depois a nível nacional e agora também a nível internacional com vários projetos que estão a decorrer. Tem sido um processo de crescimento muito sustentável, baseado em projetos muito inovadores, ocupando espaços ainda vazios e trabalhando fora de casa. Trabalhamos muito com a comunidade, escolas, professores, com outras instituições, trabalhamos para as autarquias, etc. Pouco trabalho fazemos aqui no nosso espaço. Neste momento em que estamos a fazer esta entrevista, tenho os técnicos a circular. Uns nas escolas a trabalhar na área do desporto, outros estão em casa das pessoas a fazer sessões de fisioterapia. Isto tudo em prol do aumento do nível de autonomia que é o grande objetivo. Queremos que estas pessoas possam ter a sua vida, estudar, trabalhar e contribuir para a sociedade.


São essas as missões que explicam o que acontece nesta casinha amarela, aqui mesmo à beira do rio? Esta casinha amarela representa o ponto de onde tudo parte. Esta casinha foi cedida pela Câmara Municipal do Seixal em 2013. Não estava nas melhores condições, os recursos também não abundavam e continuam a não abundar. Assim, mais de 30 famílias abdicaram do mês de agosto em férias para todos juntos reconstruirmos esta casa. Hoje é acessível a pessoas com deficiência e tem todas as condições para receber as pessoas e para as podermos acompanhar. O facto de ter sido reconstruída só pelas famílias faz com que todos sintam a casinha amarela como sua e isso é fantástico. Existe uma grande cooperação institucional? Tem de existir. Nós começámos a trabalhar com as escolas porquê? Sou pai de uma jovem com paralisia cerebral e sentia a pouca participação dos nossos filhos na escola, nomeadamente no que diz respeito à prática desportiva. Podíamos ficar na situação confortável de apenas assistir e criticar a escola ou, então, podíamos tentar fazer algo diferente: O que podemos fazer para ajudar as escolas? As escolas estão lotadas de professores com 40 ou 50 anos que nunca tiveram, na sua formação inicial, conteúdos relacionados com a deficiência. Temos, neste momento, oito formações creditadas para professores e já formámos cerca de 350 professores em diferentes áreas desportivas. Levamos, ainda, algumas modalidades adaptadas e pensadas para pessoas com deficiência, numa perspetiva de inclusão inversa. Por exemplo, o boccia, que é a nossa modalidade mais forte,

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“A NOSSA EXPERIÊNCIA DIZNOS QUE HÁ CADA VEZ MENOS ATOS DE DISCRIMINAÇÃO E QUE AS PESSOAS ACEITAM A DIFERENÇA QUANDO ESTÃO INFORMADAS, QUANDO PERDEM O MEDO E QUANDO COMPREENDEM A SITUAÇÃO.”

pode ser praticado por toda a gente e, quando passamos isso para a escola, o professor passa a ter uma ferramenta que não tinha: uma modalidade que pode praticar com todos os alunos. A isto chamamos de inclusão inversa, isto é, pegar numa modalidade pensada para a deficiência e juntar os alunos sem deficiência com os alunos com deficiência. Nas escolas da península de Setúbal, em 2011, não existia nenhuma equipa de boccia nas escolas. Hoje temos mais de 30 e, quando fazemos torneios, juntam-se mais de 250 miúdos, com e sem deficiência. A inclusão é isso: trabalhar com todos. Olham para o desporto como uma forma de chegar a todos? Sem dúvida, é um veículo extraordinário de inclusão. No desporto existem regras e, logo aí, conseguimos passar valores de cidadania que são importantes. Todas as crianças precisam de correr e de brincar. Neste momento, todas as escolas do país têm material desportivo fornecido por nós, bastando recorrer às coordenações locais de desporto escolar. Tudo de forma gratuita. Lançámos uma edição de 21 livros de desporto adaptado. Entendemos que os professores precisavam de ferramentas de trabalho e isto representou uma grande ajuda. Estes livros ensinam estratégias e metodologias para os professores poderem adaptar a modalidade a vários tipos de deficiência. Portugal já mantém uma relação mais saudável com a diferença ou considera que o caminho ainda é longo? O caminho ainda é longo, mas o caminho começa em nós próprios e nas famílias, pois só assim conseguiremos chegar aos outros. As pessoas com deficiência, muitas das vezes, não assumem o seu papel na sociedade. O seu papel devia ser mais ativo. Muitos estão expectantes e aguardam que lhes resolvam os problemas todos, são muito reivindicativos em relação aos direitos e esquecem-se que também existem deveres. Aliás, algumas famílias podem ser barreiras à autonomia das pessoas com deficiência. Existe sempre a tendência para a proteção e isso não contribui para a autonomia e independência das pessoas e depois, claro, lá fora existe um

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mundo de inacessibilidades, de ausência de possibilidades, de mobilidade, etc. Por exemplo, a minha filha está na faculdade e está numa cadeira de rodas. Todos os dias tenho de a deixar na faculdade às 7 horas da manhã. E porquê? Por causa da limitação dos transportes. Como é que a estação de metro da Cidade Universitária é a mais inacessível da cidade de Lisboa? Alguém consegue explicar isso? Autonomia significa que a pessoa não necessitará de terceiros para poder fazer a sua vida. Já que falamos no ensino – podemos afirmar que os alunos com deficiência já estão realmente integrados no contexto escolar? Sim, mas ainda há muita coisa que é preciso mudar. Estão lá, o que já é uma vitória. Se falarmos com uma criança com 10, 12 ou 15 anos, já é normal ter um colega com deficiência dentro da sala de aula. Passou a ser uma situação normal. Não há essa discriminação entre os mais novos, contrariamente ao que se verifica com os mais velhos. E esse trabalho de combate à discriminação começa nas famílias? Antigamente, as pessoas com deficiência ou estavam em casa ou estavam fechadas dentro de instituições. Neste momento, têm de estar na escola e ainda bem. Temos de atingir estas mudanças porque é assim que as mentalidades se vão alterando devagarinho. A nossa experiência diz-nos que há cada vez menos atos de discriminação e que as pessoas aceitam a diferença quando estão informadas, quando perdem o medo e quando compreendem a situação. O contacto e a compreensão fazem parte desse combate ao preconceito? A paralisia cerebral é das deficiências mais incompreendidas. Temos pessoas dentro de um corpo que não mexe, a maior parte das vezes não falam e, depois, percebemos que a maioria das pessoas com paralisia cerebral tem uma atividade cognitiva normalíssima. Nós temos imensos jovens que não conseguem movimentar ou controlar uma parte do corpo,


ASSOCIAÇÃO DE PARALISIA CEREBRAL ALMADA SEIXAL

é capaz de fazer? E, se calhar, naquilo que ele é capaz de fazer, é muito melhor do que os outros.

”A PARALISIA CEREBRAL É DAS DEFICIÊNCIAS MAIS INCOMPREENDIDAS. TEMOS PESSOAS DENTRO DE UM CORPO QUE NÃO MEXE, A MAIOR PARTE DAS VEZES NÃO FALAM E, DEPOIS, PERCEBEMOS QUE A MAIORIA DAS PESSOAS COM PARALISIA CEREBRAL TEM UMA ATIVIDADE COGNITIVA NORMALÍSSIMA. NÓS TEMOS IMENSOS JOVENS QUE NÃO CONSEGUEM MOVIMENTAR OU CONTROLAR UMA PARTE DO CORPO, QUE NÃO CONSEGUEM FALAR, MAS QUE CONTROLAM O COMPUTADOR SÓ COM OS OLHOS E QUE SÃO ALUNOS DE NÍVEL ALTO NA ESCOLA.”

que não conseguem falar, mas que controlam o computador só com os olhos e que são alunos de nível alto na escola. Temos que conseguir forcar a nossa atenção nas capacidades e não nas incapacidades. Aí, sim, estaremos finalmente a falar de inclusão. Quando uma pessoa tem uma determinada deficiência, toda a gente se centra na deficiência e no que ele não é capaz de fazer. Não nos deveríamos centrar naquilo que ele

De que forma é que os cidadãos, os associados da OSAE podem ajudar a APCAS? Das mais diversas maneiras. Fazendo voluntariado, por exemplo. Precisamos sempre de voluntários pontuais, nomeadamente quando fazemos um torneio com 250 a 300 miúdos, e de voluntários regulares, muito associado ao desporto e aos nossos atletas. Nós garantimos toda a preparação e formação. Claro está que o apoio financeiro a algum projeto específico, que seja do agrado do doador, é muito bem-vindo, contribuindo assim para a sua continuidade e sustentabilidade, que são sempre as primeiras preocupações. Todos os doadores podem aferir, em qualquer momento, onde está a ser aplicado o seu donativo. Olhando para o futuro, são muitos os projetos? Há sempre muita coisa prevista e muitas ideias que ainda estão na gaveta e que vão surgindo aos poucos. Estamos envolvidos numa candidatura que pode ser muito interessante, com parceiros internacionais, sempre na área do desporto para todos. Temos uma ideia que acreditamos que, um dia, sairá do papel: criar um centro de alto rendimento desportivo visto na perspetiva do indivíduo como um cidadão e não apenas como atleta. E como seria um amanhã perfeito? Como seria um amanhã perfeito? Não se falaria em deficiência e estaríamos todos a olhar para as capacidades e não para as incapacidades. Quando todas as coisas estiverem preparadas para todos, não vamos falar em deficiência. Há o branco, o preto, o amarelo, o azul às bolinhas, há um que está numa cadeira de rodas, há outro que é cego, outro que é surdo, depois há outro que parece não ter nada… Mas, nesse dia perfeito, quando olharmos para todos, não falaremos em deficiência, não falaremos na diferença de um modo pejorativo, mas sim como um valor acrescentado para uma sociedade plural e civilizada. : :

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SUGESTÕES

LIVROS JURÍDICOS COM A COLABORAÇÃO DA EDITORA ALMEDINA

Formulários BDJUR Processo Civil | Procedimentos Cautelares e Requerimentos Diversos Pedro Pineiro Torres e Luísa Pinheiro Torres Os procedimentos cautelares constituíram a primeira preocupação deste trabalho, tendo sido elaboradas propostas de requerimentos iniciais de procedimentos inominados (os procedimentos cautelares comuns) e de procedimentos especificados, quer os previstos no Código de Processo Civil, quer outros previstos em legislação avulsa. Integram, ainda, este trabalho, outras minutas relativas a atos processuais praticados por escrito, selecionadas de acordo com a nossa convicção de que se tratam de peças com interesse para os leitores, quer pela recorrência das situações que os determinam, quer pela especificidade própria desses atos.

O Adicional ao IMI e a Tributação Pessoal do Património José Maria Fernandes Pires O Adicional ao IMI (AIMI) é um tributo inovador na ordem tributária portuguesa, porque se trata do primeiro tributo pessoal sobre o património, apesar do seu caráter parcial. Este livro analisa, de forma pormenorizada, o seu regime jurídico, bem como a fundamentação teórica, jurídica e económica, da tributação pessoal do património imobiliário. O autor é licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra e em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Integrou o Grupo de Trabalho que concebeu a Reforma da Tributação do Património de 2003 e coordenou a nível nacional a sua implementação. É autor de vários livros e publicações jurídicas, sendo também docente em várias instituições do ensino superior. Na administração tributária liderou ainda a Reforma da Justiça Tributária, o Plano para a Qualidade no Serviço ao Contribuinte e a implementação do sistema e-fatura.

COM A COLABORAÇÃO DA EDITORA QUID JURIS

Códigos Penal e de Processo Penal e Legislação Complementar – 9.ª edição

Lei dos Julgados de Paz Anotada

Edição atualizada de acordo com as Leis n.os 40-A/2016, de 22 de dezembro, e 8/2017, de 3 de março No Código Penal transcrevem-se as redações anteriores dos artigos alterados. Inclui, entre outros, diplomas complementares: • Estatuto da vítima • Identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor • Identificação criminal • Ilícito de mera ordenação social • Tráfico e consumo de estupefacientes • Condução sob o efeito do álcool • Investigação e prevenção criminal ao tráfico de droga • Investigação criminal.

José António de França Pitão e Gustavo França Pitão, Advogados

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• Remissões • Anotações Jurisprudência • Legislação Complementar

Este livro é um instrumento de trabalho fundamental ao prático do direito. É também uma obra de consulta para o cidadão comum, interessado em conhecer a forma de intervir diretamente. Proporciona-se ainda o acesso à legislação complementar mais significativa e atual para a aplicação do regime adjetivo apreciado pelos Julgados de Paz. «Em suma os juristas portugueses encontram nesta obra informação direta e extensa, assim como outros elementos, com base nos quais podem desenvolver a temática sobre os Julgados de Paz.» Do prefácio da Juíza de Paz Margarida Simplício.


COM A COLABORAÇÃO DA PORTO EDITORA

Condomínio – Tudo o que precisa de saber, 2.ª Edição Maria Augusta Fernando, Lourença de Sousa Rita Esta segunda edição, revista e atualizada com novas perguntas relacionadas com veículos elétricos, continua a responder de uma forma simples e prática àquelas que são habitualmente as dúvidas de todos os que vivem em frações autónomas, paredes meias com outras famílias de hábitos e rotinas diferentes. A organização numa estrutura de pergunta/resposta, com vários exemplos práticos, documentos de apoio e remissões para a legislação relevante, faz deste livro um verdadeiro guia prático para todos os condóminos, sejam arrendatários ou proprietários, e também para os que têm a responsabilidade de administrar o condomínio.

Novo Código de Processo Civil – Edição Académica, 4.ª Edição Coleção Legislação A Coleção Legislação é feita a pensar tanto nos profissionais como nos estudantes de Direito, tendo como objetivo oferecer uma seleção dos textos mais relevantes, devidamente consolidados e organizados, tendo sempre em conta as últimas alterações legais. Esta 4.ª Edição da obra Novo Código do Processo Civil – Edição Académica contempla, entre outras atualizações, as alterações à Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 40-A/2016, de 22 de dezembro) e ao Mapa Judiciário (Decreto-Lei n.º 86/2016, de 27 de dezembro).

cartoon: Samuel Sousa

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PROFISSÃO

A TECNOLOGIA AO SEU DISPOR E porque a tecnologia está mesmo em todo o lado… Aqui ficam algumas sugestões que irão, certamente, tornar a sua vida mais “user friendly”.

Boomerang O Boomerang é uma extensão para o Gmail que lhe permite agendar o envio de um e-mail. Se pensa que isto é pouco, pense melhor. Com esta ferramenta de produtividade é possível escrever a sua mensagem, introduzir o destinatário e selecionar a data em que pretende que a sua comunicação seja enviada. Permite-lhe ainda que, ao enviar um e-mail, indique se pretende que este volte para a sua caixa de entrada caso não obtenha resposta em determinado prazo. Assim nunca vai deixar de responder no timing certo, nem perder o rasto a um determinado assunto porque a resposta não veio. Se devidamente agendado, o assunto simplesmente vai e vem sozinho da sua caixa de entrada. Tal e qual um boomerang.

Chave Móvel Digital A chave móvel digital permite-lhe autenticar-se em portais e sítios na internet de entidades públicas através de um código de segurança numérico e temporário recebido por SMS ou e-mail. Para criar a sua chave móvel digital vá a www.autenticacao.gov. pt. Só precisa de ter um leitor de smartcard e os códigos do seu cartão de cidadão no primeiro acesso. Introduza os seus dados necessários à criação da chave móvel digital e, a partir daí, será muito mais fácil autenticar-se com segurança onde quer que esteja.

Router Xiaomi MI R1D A Xiaomi é uma marca chinesa de tecnologia que tem conquistado o mercado asiático de smartphones. A par disso, vem ganhando seguidores nos mercados ocidentais e tem diversificado a sua oferta de produtos. O Xiaomi Mi R1D é um router e, por isso, pode ser usado simplesmente para expandir o sinal de internet sem fios em casa ou no escritório. A par disso – e esta é a parte mais interessante - conta com um disco

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de 1TB de armazenamento, funcionando igualmente como uma NAS, ou seja, uma cloud pessoal. Como não podia deixar de ser, funciona através de uma app e permite gerir as configurações de sincronização de ficheiros para a nossa cloud particular, bem como definir com quem queremos partilhar aos ficheiros lá armazenados. Este e outros equipamentos da marca podem ser adquiridos na loja online GearBest.

Amazon Echo Dot

BOOMERANG

CHAVE MÓVEL DIGITAL

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NUNCA ESTEVE TÃO PERTO Cozmo O Cozmo parece ser só mais um brinquedo mas é muito mais do que isso. Criado por uma startup de São Francisco, este robot não só consegue reconhecer expressões faciais como reclama ter inteligência artificial suficiente para demonstrar emoções, aprender, jogar e planear sozinho. Se quiser ter a companhia deste gadget, prepare-se: o Cozmo é um robot “hiperativo” e com personalidade própria. O seu objetivo principal é interagir com os seus donos, provar-lhes a evolução das suas capacidades. Para isso, vem com três cubos que permitem fazer vários jogos, sendo capaz de reconhecer sozinho os membros da família e o jogo que cada um deles mais gosta de jogar. Está equipado com uma câmara e vários sensores, mas o sistema de processamento de informação é feito através de uma aplicação disponível para Android e IOS. E desengane-se quem acha que vai conseguir esgotar a energia do Cozmo. Quando ele estiver “cansado” vai sozinho “dormir” para a estação de recarregamento e volta quando tiver os níveis de energia renovados.

ROUTER XIAOMI MI R1D

É um equipamento controlado por voz que podia ser apenas uma simples coluna, não fosse o facto de estar munido do sistema de inteligência artificial desenvolvido pela Amazon - Alexa. No fundo, trata-se de uma coluna que “ouve” e “fala” através de um sistema concorrente do Google Home, que permite gerir os equipamentos inteligentes que temos em casa. A par disso, faz o papel de um assistente pessoal com o qual é possível comunicar, pedindo informações ou dando instruções para, por exemplo, nos ler notícias ou definir o alarme. Pode também pedir à Alexa que envie uma mensagem por si, chame um UBER ou interaja com outras aplicações compatíveis. Prevê-se que este sistema venha a ser implementado noutros equipamentos de casa, como televisões ou outros aparelhos. A Apple prepara-se para entrar neste mercado até ao fim do ano com a sua própria coluna HomePod, na qual contaremos com a Siri como assistente pessoal. Para já, está disponível na coluna Amazon Echo Dot em amazon.com.uk.

Grammarly COZMO

AMAZON ECHO DOT

GRAMMARLY

Para já, apenas está disponível em inglês mas esta extensão de browser promete aprender consigo e, à medida que a for usando, ajudar a melhorar a sua comunicação escrita. O Grammarly será tanto mais útil quanto mais o usar, pois adapta-se à sua linguagem, prevendo ou sugerindo palavras que estejam de acordo com o seu uso habitual. Mais do que um corretor ortográfico comum, o Grammarly vai analisar a construção gramatical das suas frases e sugerir redações alternativas sem alterar o sentido do texto. Para quem não se sente seguro ao comunicar por escrito em inglês, esta é uma ferramenta indispensável. : :

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SUGESTÕES

O BOM VÍCIO DA LEITURA

Ler é um prazer e os livros são o melhor presente que posso receber, qualquer que seja o tema. Quero sempre ter mais. É uma espécie de vício bom. Partilhar as informações e as emoções que os livros me provocam é um privilégio e foi com agrado que aceitei o convite para participar nesta edição da revista Sollicitare. Foi inevitável a escolha destas duas obras literárias. Falo de dois livros que li em simultâneo e que terminei recentemente, estando ainda latente o entusiamo e a sensação de que, por um lado, fui transportada no tempo e, por outro, de que alterei e desenvolvi o meu pensamento. Apesar de serem duas obras ligadas ao direito, uma foi escolhida por motivos profissionais mas rapidamente se integrou no plano social e das vivências próximas e a outra foi apreciada nos escassos momentos de lazer. Por coincidência, são duas obras da renascida Petrony, editora desde sempre associada às publicações de direito.

A FAMÍLIA DAS CRIANÇAS NA SEPARAÇÃO DOS PAIS - A Guarda Compartilhada de Joaquim Manuel da Silva (Juiz de Direito de Família e Menores do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste - Mafra)

Por Débora Riobom dos Santos, Solicitadora e Delegada Concelhia de Loures da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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Quando adquiri o livro, tive o privilégio de receber uma mensagem do autor “Espero que este livro a ajude e inspire”. O certo é que, além deste duplo efeito, sinto ainda hoje a necessidade de assistir às conferências do autor, para o ouvir falar brilhantemente do tema, centrado muito mais nos afetos do que na questão jurídica. Trata-se de um livro inspirador, que vai para lá da simples leitura, obrigando-nos a fazer uma reflexão sobre o conflito parental, transversal a todos os processos, e sobre as consequências desse mesmo conflito no desenvolvimento cognitivo, emocional e, até mesmo, da saúde física das crianças. A alteração do paradigma da preferência maternal, pela pretensa vocação natural e da pessoa de referência, é difícil por ser cultural e, na maioria dos casos, irracional. Por isso, o autor, defensor da guarda compartilhada, desenvolveu esta obra em que apresenta um conhecimento interdisciplinar das questões da família, estudos e casos concretos, dandonos conta da sua experiência enquanto juiz e explicando-nos os motivos pelos quais ele próprio, opositor inicial da guarda compartilhada, é hoje um dos seus maiores defensores. Para o autor, os pais têm de matar o casal conjugal para fazer nascer o casal parental, porque a guarda compartilhada mantém os pais implicados nas vidas dos filhos, gerando um envolvimento total e impedindo abandonos parentais. As crianças não perdem qualquer ligação, criando laços de vinculação que lhes permitem um desenvolvimento da inteligência emocional a partir de uma base segura. Joaquim Manuel Silva é um caso de sucesso que, desde 2009, só realizou dois julgamentos. A sua obra é uma valiosa contribuição para pais e profissionais, explicando o impacto do conflito conjugal na vida das crianças e contribuindo para a mudança de paradigma.


CASOS E CAUSAS – A História também se repete… Carlos Pinto de Abreu

O livro de Carlos Pinto de Abreu, advogado, é de leitura agradável e empolgante e contém algumas publicações do autor no Boletim da Ordem dos Advogados. Escreve sobre os processos e julgamentos que ficaram na história da humanidade, da Grécia Clássica ao fim do século XIX, sobre casos que marcaram uma época, que são bandeiras de ideais, outros que dão a conhecer personagens, avivando-nos a memória sobre tantos outros episódios, apresentando heróis e momentos de coragem, dramáticos, e as suas vítimas, recordando julgamentos sem defesa, condenações sem prova, crimes perpetrados por uns e permitidos por outros, casos injustos e chocantes face à realidade atual. Excluindo, por opção, os casos nacionais, deparamo-nos com conspirações, estratégias, instigadores, cúmplices, privações de liberdade, execuções, tempos em que os direitos dos

indivíduos e a liberdade de expressão eram inexistentes e em que pairava o livre arbítrio dos julgadores, o poder da imprensa e a lei como arma do poder. No livro podemos encontrar 21 processos judiciais, dos mais antigos aos mais recentes, todos com uma questão transversal: Será que se fez justiça? De entre estes, destaco cinco casos: Joana D’Arc (1931) - a heroína, beatificada e canonizada, foi presa, vendida, julgada sem advogado e condenada à morte por heresia, morrendo na fogueira a 29 de maio de 1931; Os Amotinados da Bounty (1792) - supõe-se ter sido o primeiro caso judicial mediático, publicitado pelos jornais de todo o mundo; Dr. William Palmer (1856) – alegadamente, o primeiro serial killer da história e o processo mais célebre do século XIX, em que, pela primeira vez, se mostrou fulcral a produção da prova pericial; Óscar Wilde (1895) - condenado a dois anos de prisão porque viveu numa época em que não era respeitado o direito à diferença, as aparências tinham existência própria e, através delas, se teciam juízos de valor quanto ao carácter moral de cada um; O Caso Lindbergh (1935) - o primeiro aviador civil que sobrevoou o Atlântico sem qualquer paragem e que passou pelo drama do rapto e morte do seu filho mais velho, com apenas 20 meses. A questão que fica: Será que algum dia saberemos a verdade? Algum dia alcançaremos a justiça plena?

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SOCIEDADE

SE O CINEMA É A SÉTIMA ARTE… ENTÃO QUAIS SÃO AS OUTRAS? Apesar da dificuldade em obter uma resposta satisfatória, há algo inquestionável: o cinema é apelidado de sétima arte, pois, antes do seu nascimento, eram reconhecidas seis. Visitámos todas. MÚSICA A arte das musas.

Diana Andrade Jurista

A clave de sol que enfeita a pauta acompanhada pelas notas que sobem ou descem, consoante a melodia. Quantas vezes associamos uma música a uma pessoa ou a um momento? Há uma espécie de magia na música. Ela manipula o som e organiza-o no tempo. Procura-nos, invade-nos, diverte-nos, entristece-nos, mas nunca nos deixa indiferentes. Pode vestirse de várias formas, com ou sem intervenção de instrumentos musicais. E ainda é democrática: há para todos os gostos. E os gostos discutem-se e também se aprendem.

DANÇA A arte que traduz o sentimento em movimento. A dança pode adotar a forma de manifestação artística ou de divertimento. E quem nunca passou por aquele momento em que a pista de dança se transforma em grito do Ipiranga? Quando dançamos, o nosso corpo segue movimentos previamente estabelecidos ou improvisados. Na maioria das vezes, com a sintonia entre passos e compassos, exprimimos sentimentos que a própria música potencia.

PINTURA A arte de pintar uma superfície. A pintura distingue-se do desenho pelo uso de pigmentos líquidos e pelo recurso constante à cor. Quem consegue evitar o fascínio pela obra de Rembrandt ou de Van Gogh? Podemos não ser daquelas pessoas que ficam horas a contemplar uma tela, um papel ou uma parede. Mas há um quê de fascinante na maneira como os pintores nos transmitem a sua mensagem. Algo misterioso que tentamos percecionar e que nos faz imaginar a vida e a alma daquela pessoa, que durante algum tempo pegou em tintas e chegou até nós.

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ESCULTURA A arte que dá relevo às imagens plásticas. A escultura é usada desde a pré-história como manifestação artística. Moldando determinados materiais - madeira, argila, pedra, metais - o escultor vai usando a sua criatividade, sentimentos e ideias. Ele vai criando volumes, formas e definindo espaços no seu processo de produção escultural, utilizando técnicas como a fundição ou a moldagem. A escultura, por tradição, costuma representar o corpo humano, ou a divindade numa forma antropomórfica, mas pode seguir outros objetivos.

ARQUITETURA A arte que é música petrificada. No meio de todas as opções técnicas e de todos os cálculos, entre o início do projeto e a conclusão da obra, há um intenção plástica protagonizada pelo arquiteto. A arquitetura concede precisamente essa margem de escolha, sendo isso que permite distingui-la da simples construção. E é nesse instante que o sentimento do arquiteto é revelado, que ele mostra o seu lado artístico, que a sua obra nasce, espaços internos e externos organizados, de acordo com critérios de estética, conforto e funcionalidade.

LITERATURA A arte de escrever de forma artística. Em poesia ou em prosa. O texto literário pretende emocionar e, para tal, utiliza a língua com liberdade e beleza. Descobrirmos que alguém, algum dia, em algum lugar, já pensou o mesmo que nós, e transmitiu-o daquela forma, com aquelas palavras, é maravilhoso. Para nossa alegria, há imensos livros que valem a pena. Leiam, visitem livrarias e bibliotecas. Haverá companhia melhor?

CINEMA

A sétima arte, aquela que devemos agradecer aos irmãos Lumière. Sentados numa sala de cinema, com ou sem pipocas, as luzes apagam-se e o filme começa. E já não somos nós. Estamos dentro da cena, fazemos parcour, damos a volta ao mundo e temos efeitos especiais à nossa volta. Ou não. Porque nesse dia até escolhemos um filme clássico e focamo-nos essencialmente no argumento e nas interpretações. Há eventos que destacam os melhores filmes, mas para nós importam aqueles que nos fazem voar para outra dimensão. Sollicitare 87


SUGESTÕES

VESPAS Por Carla Franco Pereira, Advogada, Agente de Execução e Vogal do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

UMA PAIXÃO SOBRE RODAS

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“Tem uma traseira larga, cintura fina e faz um zumbido que lembra uma vespa.”

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oi com estas palavras que Enrico Piaggio batizou aquele que viria a ser o meio de transporte usado por milhões de pessoas: a Vespa. Localizada em Potedera, na Toscânia Italiana, a Piaggio fabricou, em 1946, com a colaboração do inventor do helicóptero, Corradino D’Ascanio, um estranho veículo de duas rodas, robusto, fácil de conduzir e económico, que se transformou num sucesso imediato. A pequena “scooter” italiana, construída essencialmente para servir no período pós-guerra, tinha como objetivo ser um meio transporte prático, simples e resistente, mas também confortável e elegante. Viajar de Vespa tornou-se sinónimo de liberdade e, ao mesmo tempo, de moda visto que a cultura italiana faz parte dela. Atores famosos circulavam regularmente pelas ruas de Hollywood ao volante destas pequenas máquinas italianas, concedendo à Vespa um encanto de classe, elegância e cosmopolitismo que nunca mais a abandonaria, tornando-se num ícone. John Wayne, Marlon Brando, Charlie Chaplin, Henry Fonda e Antony Hopkins foram vistos a passear pela cidade na sua Vespa.


E de onde vem esta minha paixão? É mais rápido, prático, económico, clássico, rebelde, tem estilo, é romântico, relaxante, intenso, porque é lifestyle! É símbolo de juventude, identidade, design, arrojo, de charme e alegria de viver com um estilo muito próprio e característico. Andar de Vespa dá-me uma sensação única de liberdade, de bem-estar, de prazer, de anonimato, de equilíbrio, de glamour e de proximidade com a cidade, com as ruas, com os monumentos, com as pessoas, que não sinto quando circulo de carro. A Vespa tem um contacto muito forte com a cidade, é uma forma diferente de vivê-la e de ver os seus pormenores. Não tenho qualquer dúvida que andar de Vespa faz as pessoas mais felizes! Poder estacionar em qualquer lugar, andar no meio trânsito, por ruas estreitas ou locais pouco acessíveis, sentir o ar fresco ou o sol na cara, os cheiros dos locais… Estes são alguns dos motivos que me levam a andar de Vespa. Quando estou chateada ou ansiosa, vou dar uma volta na minha Vespa e tudo esqueço, é verdadeiramente terapêutica esta sensação de tranquilidade que andar de mota me transmite. Quando conduzimos uma Vespa não há lugar para pensamentos negativos, os nossos sentidos têm de estar bem alertas para os sentimentos daquele momento. Alivio o stress e sinto-me renovada. Todos me dizem que andar de mota é muito perigoso, que nós somos os nossos próprios para-choques, que podem roubá-la, que tem pouca capacidade de carga, que não protege da chuva, que só leva, no máximo, duas pessoas e que ainda temos de carregar com o capacete e eu sei disso tudo. Há muitos anos que oiço isso, pois tive a minha primeira mota aos 14 anos e, infelizmente, já sofri algumas quedas. Mas as vantagens superam os pontos negativos. Andar de Vespa é uma paixão e as paixões não se explicam, sentem-se e vivem-se! O segredo está no cuidado que temos. Bem, podem acreditar que só de estar a escrever este artigo já estou cheia de vontade de andar de Vespa. Aliás, vou andando que é tempo de aproveitar a vida! Vrum, vrum... : :

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SUGESTÕES

THESE BOOTS ARE MADE FOR WALKING CAMINHOS FRANCESES II Por Daniel Sales, Solicitador, Agente de Execução, Secretário do Conselho Superior da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

L

á chegados a Roncesvalles, foram feitas as inscrições no albergue local - a “Collegiata”, gerida por Holandeses. Era um primor de organização. Tudo a funcionar em pleno. Roncesvalles é uma pequena aldeia e, dado o enorme número de peregrinos, nos poucos restaurantes existentes janta-se por turnos. Acabámos por dividir a mesa com dois cidadãos polacos, o Jedd e a Emilia, ele emigrante na Alemanha e ela a trabalhar num supermercado do grupo Jerónimo Martins, na Polónia. Mundo pequeno. À saída do restaurante, deparo-me com um casal francês, cada um na sua Solex, com os alforges cheiinhos. Meto conversa. Saíram de Dijon e, sim, vão para Santiago, obviamente que por estrada. Rica sugestão. Quem sabe... Regresso à Colleggiata. Era tempo de dormir e retemperar o corpinho. Os primeiros 27,10 quilómetros estavam feitos. Venha a SEGUNDA ETAPA prevista para atingir Larrasoaña. Nunca me acontecera despertar daquela maneira. Às seis da manhã em ponto, são acesas as luzes da camarata e somos

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acordados por três hospitaleiros a cantar Alleluia Alleluia. Banhinho tomado, pequeno-almoço tomado, retomamos a caminhada, tendo sido, à despedida, premiados com uns rebuçados de “cannabis” distribuídos pelos hospitaleiros. Tanto de brincalhões como de simpáticos. Esta etapa revelar-se-ia incomparavelmente mais acessível do que a primeira: com ligeiras descidas, entre arvoredo generoso que nos protegeu do sol. Revemos pessoas com quem nos cruzáramos no dia anterior, nomeadamente o Jedd e a Emilia, mas também a Mary, uma cidadã americana de provecta idade, dona de uma energia surpreendente. Relembro sítios por ande “voei” há quatro anos, incluindo o local onde me espalhei ao comprido com a amarelinha, tanta era o lismo existente. Chegados a Larrasoaña, aldeola com poucas infraestruturas, instalámo-nos no albergue local. A mesa era composta, para além de nós, por um casal australiano, duas alemãs, dois franceses e dois neozelandeses. Sim, os mesmos que repartiram o táxi connosco em Bayonne. Quatro voltas à aldeia para


ajudar na digestão da sopa de alho e recolha aos aposentos. Noite calma, sem grandes ressonadelas - o que não é muito comum. Mais 28,71 quilómetros percorridos e para a TERCEIRA ETAPA fui acordado por gatos com cio. Que coisa mais rústica. Para esta etapa estavam previstos apenas 17,19 quilómetros, pelo que fomos mesmo nas calmas. Deu tempo para ao passar em Arre, vila com alguma importância e posto de correios (aproveitámos para embalar e devolver 3,950 quilos de bagagem inoportuna). A ver vamos se não nos arrependemos. Chegámos, como previsto, a Pamplona, cidade em festa e, de tão cedo que era (ainda não era meio dia), o albergue ainda não tinha aberto. Aguardou-se um bocado, instalámo-nos e, depois de uma rica banhoca, lá fomos para as calles curtir e tapear. Estava um mar de gente devido às festividades, ranchos, animação por tudo quanto era praça. Enfim, para a diversão já nem doem as pernas. O tempo, que estava excelente, ao final da tarde mudou completamente e virou tempestade. Chuva, vento e trovoada. Arrependi-me imediatamente do envio do quispo quentinho e protetor… Já estava a caminho de Viana. Nada que me impedisse de jantar um belo dum chuleton. Depois, caminha, que o dia seguinte seria o de chegada a Puente de La Reina. Esta seria a QUARTA ETAPA, a mais longa até àquele momento, a atingir os 30,20 quilómetros e com algum grau de dificuldade. O próximo osso, duro de roer, foi o Alto del Perdón, com péssimos acessos e solo argiloso em que se patina. Subida íngreme, mas bem mais fácil do que quando lá cheguei em bike. Mas, como as horas para caminhar são muitas, já que se sai ainda de madrugada dos albergues, acabámos por chegar a Puente de La Reina relativamente cedo, na companhia de Marcelo Milanezi, um brasileiro de São Paulo, filho de português e de italiana, muito simpático, cordato e conversador, que por lá ficou. Nós, dada a hora, decidimos avançar um pouco mais e fomos até Mañeru. O albergue apenas para 12 utentes, donos 5 estrelas, servia jantar, mas muito cedo, pelo que fomos a outro restaurante. Esta etapa ficou marcada pelo desvio para visitar uma capela octogonal lindíssima em

Muruzabal, dedicada à Virgem de Eunate. Valeu a pena. Regressados ao albergue, acedo às redes sociais, nas quais tinha começado a publicar algumas das ocorrências e pasmei com a quantidade de incentivos recebidos que ajudaram a ganhar coragem para encarar o resto da aventura. E, no próximo número da Revista Sollicitare, mais histórias serão contadas… : : Texto escrito segundo o antigo acordo ortográfico

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ROTEIRO GASTRONÓMICO

Su ges tõ es

Por João Aleixo Cândido, Solicitador, Agente de Execução e Vice-Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

O BATOQUE

Aqui reina a boa comida portuguesa

O BATOQUE Restaurante Batoque Rua 1.º de Dezembro 19, Seixal Aberto de segunda a sábado das 8h às 22h Encerra ao domingo

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Poderíamos estar a falar de uma espécie de rolha que tapa o orifício das pipas ou dos tonéis, ou, simplesmente, a falar de uma pessoa baixa e gorda. Nada disso. Na verdade, estamos a falar de boa gastronomia. O Batoque é um restaurante onde a comida tradicional portuguesa se impõe e é uma constante. Situado na margem sul, mais concretamente na cidade do Seixal, próximo da sua esplendorosa Baía Natural – de onde, noutros tempos, a frota de Vasco da Gama, aqui construída, saiu em direção a Belém -, o restaurante “O Batoque” apresenta uma variedade de pratos que nos fazem crescer água na boca e uma vontade imensa de prolongar a hora da refeição. Uma ementa recheada de bons pratos, entre os quais se destacam, as apetitosas favas com entrecosto, a mão de vitela com grão, o ensopado de borrego, o arroz de cabidela, a feijoada, a dobrada, o cozido à portuguesa e talvez a melhor chanfana da zona e arredores. Nesta lista não podem faltar os grelhados no carvão, quer no inverno, quer no verão (costeleta de vitela, bochechas de porco, piano, picanha, secretos, alheira e o bitoque na frigideira…). O peixe, sempre fresco, é do melhor e, nesta altura, já temos as fantásticas sardinhas a cair no prato e os suculentos carapaus. Passando às sobremesas, podemos dizer que a variedade dificulta a escolha. E, para concluir, venha a continha: um menu completo custar-lhe-á 10 euros. Este é um ponto de encontro para quem quer bem comer, sendo partilhado por operários, funcionários públicos, profissionais liberais e, até, por alguns estrangeiros que nos visitam na época mais quente, durante a qual a paisagem conta com muitos velejadores que passeiam no seu barco e atravessam a baía até ao Seixal. Aqui encontrarão um ambiente familiar, por vezes um pouco agitado. Mas, como diz o chefe Ljubomir Stanisic, restaurante com barulho é sinónimo de clientela satisfeita. De tal modo é a procura que, sempre que o tempo permite, a esplanada exterior ganha vida. Falamos de um restaurante de comida tipicamente portuguesa, onde o vinho é à discrição. Na sala, o Fernando faz as honras da casa e, na cozinha, manda a patroa D. Maria Idalina. Aberto todos os dias, comemorará 40 anos de funcionamento em 14 de janeiro de 2018. E, pelo que já lá comi, acredito que muitos mais virão. : :


Por Marco Santos, Solicitador, Agente de Execução e Membro da Assembleia de Representantes do Colégio dos Agentes de Execução da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes deExecução

TABERNA DE SANTO ANTÓNIO

Felicidade servida à mesa Parabéns… Não, hoje não é o meu dia de aniversário, mas, apesar de não o ser, se fosse (o que não seria novidade nenhuma este ano), teria um imenso gosto em convidá-lo para o festejar comigo na Taberna de Santo António, ali mesmo ao lado do Palácio da Justiça do Porto. Localizada num dos sítios mais aconchegantes do Porto (a zona das Virtudes), a Taberna de Santo António presenteia quem entra, incansavelmente e todos os dias, com a mais fantástica comida tradicional que se possa provar. Não é de todo raro avistarem-se por ali turistas a degustarem-na, nas suas mais diversificadas formas, bebendo os excelentes TABERNA vinhos que compõem a garrafeira da DE SANTO casa e saindo sempre com a felicidade ANTÓNIO estampada no rosto. Destacar qualquer um dos pratos Rua das Virtudes, 32 – Porto que a D. Hermínia cozinha (como quem Aberto de terça a domingo das 12h às 15h30 cozinha para um filho) ou mesmo qual- e das 19h30 às 22h quer uma das sobremesas, que obriga- Encerra à segunda toriamente devem rematar o repasto, será de uma injustiça tremenda. E é bem possível que não gaste mais que 15 euros por pessoa. Por tudo isto lhe digo: fosse hoje o meu dia de aniversário, a festa seria na Taberna de Santo António. Sairíamos, certamente, muito satisfeitos. Mas, se restarem dúvidas, espreite as fotografias. : :

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VIAGENS

Por Sara Gonçalves, Colaboradora do Departamento de Administração Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

ALJEZUR "O PARAÍSO DA COSTA VICENTINA"

ASSIM CLASSIFICAM AQUELES QUE MELHOR ENTENDEM O QUE É QUALIDADE DE VIDA. EU CÁ VOU MAIS LONGE E DIGO QUE O ROGIL É UM PEQUENO DIAMANTE A SER EXPLORADO, NO CONCELHO DE ALJEZUR. E SIM, ACREDITEM OU NÃO, JÁ PERTENCE AO ALGARVE. E É POR ISSO MESMO QUE ESCOLHI ESTE DESTINO COMO SENDO A PRÓXIMA AVENTURA PARA AS SUAS FÉRIAS DE VERÃO.

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stamos no centro de Aljezur. Aqui, descubra relíquias entre a serra e o mar. São muitas as festividades religiosas ou populares, festivais, feiras ou mercados para todos os gostos. E se for amante de surf e de farra, As praias da Amoreira, de Monte Clérigo e da Arrifana esperam por si. A verdade é que o Algarve não se resume à vida agitada e citadina de Vilamoura, Albufeira ou Portimão. Para os amantes da natureza, de ar puro e tranquilidade, o Rogil é o local indicado para desvendar paisagens donas de uma beleza avassaladora. Rumemos na sua direção. Podemos começar com um mergulho numa das várias praias desertas, mesmo em pleno mês agosto, acabar a tarde com um “sunset” privado e uma churrascada entre amigos a comer uma mariscada, a frequentar aulas de surf ou a dar um pezinho de dança naqueles típicos bailaricos de verão no largo 1º de Maio… É só preciso estar. E se, durante a noite, não houver bailarico, aproveite a companhia, a paz e viva o momento. A natureza foi prodigiosa com o Rogil e a nossa Praia Vale dos Homens, mesmo obrigando a percorrer 200 degraus, apresenta uma beleza inigualável juntamente com a Praia da Carriagem. Duas verdadeiras pérolas, das paisagens mais belas e únicas da região da costa vicentina. E deixem-me que vos diga que o silêncio que se escuta é reconfortante, serve de companhia e permite-nos esquecer a velocidade estonteante com que a nossa vida acontece no dia a dia. Aqui a palavra de ordem é “Calma”. Esqueça o relógio e os horários, esqueça a rotina, os planos detalhados e as obrigações. Deixe-se levar pela tranquilidade, algo bem conhecido pelos que aqui moram, e desfrute. E a comida? Bom, escusado será dizer que Aljezur é a terra da batata-doce e, portanto, onde quer que se sente, poderá deliciar-se com iguarias cuja estrela principal é este ingrediente, sejam pastéis de nata, pratos com feijão ou couvada (uma delícia, até mesmo para os amantes do fit). Convido-o agora a entrar no café “Três Arquinhos”. Sairá de lá maravilhado com o serviço, não fosse este considerado o café com as melhores bifanas da costa, que perfaz a cereja no topo do bolo após um dia de praia. Garantindo ainda uma esplanada para relaxar enquanto se delicia com uns petiscos tipicamente algarvios como, por exemplo, os perceves (mais conhecido como os “understands” entre os “camones”), a moreira frita e, claro, os caracóis… Confesso que nunca comi melhores, sempre servidos com uma simpatia que deixa saudade. Aliás, como tudo que por aqui se viva… : :

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ISLÂNDIA

A ILHA DE GELO E FOGO

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VIAGENS

Por Luís Goes Pinheiro, Secretário-Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

A ISLÂNDIA É UM PARAÍSO NA TERRA. PERDIDO NO ATLÂNTICO NORTE, JUNTO AO CÍRCULO POLAR ÁRTICO, ENTRE A GRONELÂNDIA E AS ILHAS FAROÉ, ENCONTRA-SE ESTE PEDAÇO DE CHÃO, POUCO MAIOR DO QUE PORTUGAL, QUE OS VULCÕES FIZERAM BROTAR DO MAR.

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em a dimensão do texto, nem a arte do autor são bastantes para fazer jus à variedade e formosura do que este lugar tem para oferecer, mas ficará com uma boa ideia da Islândia se percorrer de carro a via que a circunda, ligando as principais zonas habitadas do país, a Hringvegur. Com partida em Reiquiavique – a capital mais a norte do mundo e o único aglomerado populacional islandês a que, sem corar, se pode chamar cidade – seguindo os ponteiros do relógio, dê a volta à ilha com os olhos e o coração bem abertos para absorver o desfilar das paisagens mais espantosas que a natureza tem para dar. Faça-se à estrada e entre num mundo de penhascos vertiginosos, quedas de água encantadas, rápidos furiosos, vulcões a dormitar, fumarolas sulfurosas, lamas borbulhantes, geysers ruidosos, glaciares serenos e icebergues errantes, que o transportam para o universo enfeitiçado da mitologia nórdica, bem retratado nas Eddas islandesas. Não é preciso ser mago para antever que a Islândia é para visitar no verão, com dias intermináveis e temperaturas amenas. Saia da capital e contorne o país para norte, passando pela península de Stykkishólmur e pelos fiordes do oeste, uma das partes menos exploradas, mas que é obrigatória para os ornitólogos amadores. Akureyri, a “capital do norte”, é um bom porto para ir a Grimsey, uma ilhota que emerge sobre o Círculo Polar Ártico, ou observar baleias, já que a costa norte é zona de pasto destes gigantes dos mares. Se é fã de monstros aquáticos, não deixe de rumar para leste em busca do imaginário verme de Lagarfljót, o Nessie da Islândia. Enquanto andar pelo norte, faça rafting nos rápidos, beba chocolate quente com água aquecida pelo vulcão, passeie a cavalo na tundra e assombre-se com a bela Goðafoss, a “Catarata dos deuses”, ou a poderosa Dettifoss, a queda de água com maior caudal da Europa, ambas alimentadas pelo degelo do glaciar Vatnajökull, a maior massa de gelo fora dos polos, com três vezes a área do Luxemburgo. Já no sul do país, caminhe pelo glaciar em Skaftafel e não perca o lago azulado de Jökulsárlón, onde os icebergs vagueiam até encontrar a estreita saída para o Oceano Atlântico. Se estiver em boa forma, aventure-se em busca dos dois

montes criados pela erupção do Eyjafjallajökull, o vulcão de má memória para o tráfego aéreo que paralisou a Europa em 2010. Estas duas crateras foram batizadas com os nomes dos filhos de Thor, Móði e Magni, e surgem como dois troféus negros, despontando do gelo, a meio de uma caminhada de dia inteiro, de Skógar a Þórsmörk, entre dois glaciares. O caminho Fimmvörðuháls é um dos mais populares da Islândia, pois começa numa das mais bonitas quedas de água do país, a Skógafoss, e segue, junto ao rio, até ao topo da montanha, acompanhando, num cenário fantasista, mais de duas dezenas de cascatas que competem entre si em esplendor. Vale mesmo a pena, até pelo inusitado regresso num autocarro feito anfíbio que, com as suas rodas vitaminadas, surpreende os montanhistas com travessias radicais dos rios que rasgam a montanha. No retorno a Reiquiavique, leve um banho de excursionistas enquanto visita as principais atrações da ilha, em especial as do “Círculo Dourado”, como a famosa catarata Gullfoss ou Geysir. O primeiro repuxo de água quente conhecido pelos europeus (e que lhes dá nome) está hoje adormecido, mas os visitantes não saem defraudados, pois o seu primo Strokkur atira água a uns impressionantes vinte metros, a cada dez minutos. É também aqui que pode visitar Þingvellir, o primeiro parlamento democrático, datado de 930 d.C., que fica situado num cenário único: a fronteira entre as placas tectónicas norte-americana e eurasiática. Aproveite para mergulhar na fissura de Silfra, uma das fendas abertas pelo afastamento de 1 a 18 mm por ano, ou atravessar a “Ponte entre dois continentes”. Por fim, retempere forças na invulgar “Lagoa Azul”, uma piscina geotermal em que hordas de turistas se banham em água quente pintada pela sílica e pelo enxofre. Recoste-se e desfrute de uma bebida, com água quentinha pelo peito, enquanto espreita o quadro alienígena à sua volta. Se estiver com saudades de civilização, vá a um bar trendy na capital e beba uma cerveja à luz do sol da meia-noite, enquanto tenta pronunciar sem se enganar: Ey-já-fjal-la-jö-kul-l. Eu consegui! : :

Sollicitare C


Com o apoio de: D

Mais informações em: www.osae.pt


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