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EDITORIAL
Neste número 30 da Sollicitare damos capa a Vital Moreira, constitucionalista. No ano em que a Constituição da República Portuguesa de 1976 comemora os seus 45 anos, é primordial conhecer uma das figuras que marcaram a viragem na história constitucional portuguesa. Na entrevista que nos concedeu, o constitucionalista falou-nos da sua experiência enquanto deputado à Assembleia Constituinte de 1975 e como foi vivido o grande desafio de participar, após a queda do Estado Novo, na elaboração da primeira Constituição democrática portuguesa. Admite pertencer a uma geração única que mudou o rumo do país e que marcou, para sempre, a história de Portugal. O o cumprimento da norma constitucional sobre a Segurança riquíssimo debate online, no qual participou a convite da Social porque se asseguram vantagens evidentes para o fuOSAE, a propósito dos 45 anos da Constituição, foi pleno turo. Mas o tempo urge… e os sinais não são encorajadores. de exemplos históricos e de apelos para que os cidadãos se No que concerne às reportagens, salientamos a “E depois mobilizem mais em torno das suas causas. da prisão”, na qual se lança um olhar sobre as dificuldades, os Quanto às restantes entrevistas, é de realçar a de Mari- desafios e as oportunidades de quem sai da prisão e procura na Gonçalves, Secretária de Estado da Habitação, que nos recomeçar a sua vida do zero. Deixo um especial agradecirevela tudo o que está a ser feito para fazer face ao proble- mento à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ma da habitação e o que ainda falta fazer para garantir que (DGRSP) e à Associação de Proteção e Apoio ao Condenase cumpre o artigo 65.º da Constituição. Para a Secretária do (APAC Portugal) por nos terem guiado nesta temática. de Estado é necessário garantir uma política estável e du- Igualmente importante é a reportagem sobre “A nova Coradoura de promoção de políticas públicas que não se alte- missão de Jovens da OSAE”, que tem um papel determinanre ou termine em função do ciclo político. te não só como elo agregador entre todos os associados, mas Continua a prevalecer o debate sobre o futuro da Cai- essencialmente na integração dos mais novos e na dinamixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) zação das nossas atividades. Reportagens a ler com atenção. e foi recentemente divulgado, a 5 de abril, o relatório fi- Esta edição é ainda marcada pela continuação da rubrica nal do grupo de trabalho que analisou a CPAS, merecendo ‘especial religião’, que tem o intuito de revelar os credos com destaque a entrevista a Tânia Lima da Mota, presidente maior representatividade no nosso país. Após explorarmos deste grupo. Vale a pena analisar como se desenrolou esta os fundamentos da Igreja Lusitana, é tempo agora de partirmissão, bem como conhecer as principais metodologias e mos à descoberta da Associação das Testemunhas de Jeová. conclusões alcançadas com o relatório desenvolvido. Nes- O espaço dedicado aos Conselhos Regionais, criado na ta senda, destacamos o debate “CPAS: que amanhã?”, que passada edição, mantém-se no número 30 da Sollicitare. contribuiu, uma vez mais, para discutir o futuro desta Cai- Nesta revista, desvendamos como é que os Conselhos Rexa de Previdência. Para os nossos associados é essencial gionais da OSAE e os seus associados se têm adaptado às ter conhecimento da forma como se chegou até aqui e das mudanças decorrentes do cenário de crise pandémica em hipóteses que o amanhã poderá trazer. Os associados da que vivemos. OSAE já se pronunciaram em assembleia geral. As conclu- Sobre a vida da nossa Ordem, além das referidas confesões do grupo de trabalho evidenciam que a manutenção do rências, salientamos a visita do Secretário-Geral da Conatual sistema é difícil de defender. Os mais novos a pagar ferência de Ministros da Justiça dos Países Ibero-Americontribuições desajustadas dos seus rendimentos, os mais canos (COMJIB), que nos deu uma riquíssima perspetiva antigos e com mais rendimentos a pagar o mesmo que os ibero-americana da Justiça e a participação da OSAE nos recentes contribuintes, percentagens elevadas de colegas projetos europeus FAB III, FILIT e LEILA. fora do sistema que não têm quaisquer regalias e que terão Por fim, não poderíamos deixar de prestar, nesta edipensões ainda mais fracas… Vantagens ilusórias, como a ção, uma honrosa homenagem a Jacques Isnard, que faleque está implícita no anúncio de uma idade de reforma an- ceu no passado dia 23 de novembro, vítima da COVID-19. tecipada, a serem suportadas por um esforço contributivo O antigo presidente da Union Internationale des Huissiers mal distribuído e penalizador dos novos associados! Fomos de Justice (UIHJ) e da Chambre Nationale des Huissiers defensores da CPAS enquanto estivemos convencidos de de Justice será sempre recordado como um homem exceque esta era vantajosa para os associados. Talvez ainda haja cional e um profissional de grande mérito a quem a OSAE um caminho, muito estreito, para a CPAS convencer os seus deve a integração da UIHJ. contribuintes e beneficiários de que vale a pena adiar mais Votos de boas leituras. : :
José Carlos Resende
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Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
Labor Improbus Omnia VincitSollicitareíndex N.30 \ FEVEREIRO – MAIO 2021
VITAL MOREIRA
Constitucionalista
Entrevista 4
E DEPOIS DA PRISÃO
Reportagem 14
MARINA GONÇALVES
Secretária de Estado da Habitação
Entrevista 22
Fotografia capa: Rui Santos Jorge
EDITORIAL
1
SOCIEDADE
Os 45 anos da Constituição em debate na OSAE 10 Supremo Tribunal Federal / Brasília 20 Adeus a Jacques Isnard... 28
OSAE
OSAE promoveu debate "CPAS: Que amanhã?" 37 Conselho Regional do Porto 40 Conselho Regional de Coimbra 42 Conselho Regional de Lisboa 44 A nova Comissão de Jovens da OSAE 48 OSAE participa nos Projetos Europeus FAB III, FILIT e LEILA 65 OSAE promoveu sessão de esclarecimento sobre o novo regime SISPACSE 71
Labor Improbus Omnia Vincit Labor Improbus Omnia Vincit
TÂNIA LIMA DA MOTA
Presidente do Grupo de Trabalho da CPAS TESTEMUNHANDO JEOVÁ
Reportagem 54
MIGUEL OLIVEIRA
À velocidade de um campeão
Entrevista 72
BONECOS DE ESTREMOZ
Reportagem/ Produtos com História
Reportagem 78
Entrevista 32
PROFISSÃO
Citação – Pedra angular de um processo justo e equitativo 46 Da sanção à “moralização” em matéria disciplinar 61 Entrevista com Fernanda Gomes 62 Solicitadores ilustres António Moura e Silva 66 Tecnologia 68 O processo extraordinário de viabilização de empresas: Uma miragem no deserto? 76
ORDENS
O que é um economista? O que faz um economista?
SUGESTÕES
Leituras 52
77
ROTEIRO GASTRONÓMICO
Restaurante Abrigo do Pastor Copo 3 – Petisqueira 84 85
VIAGENS
Caldas da Rainha. Um concelho para descobrir 86 Carcassonne 88
VITAL MOREIRA
CONSTITUCIONALISTA
A 2 de abril de 1976 era aprovada a Constituição da República Portuguesa. Redigida pela Assembleia Constituinte eleita na sequência das primeiras eleições gerais livres no país em 25 de abril de 1975, é considerada a mais vasta e mais complexa de todas as Constituições portuguesas. 45 anos depois, entrevistamos uma das figuras que, durante 10 meses, transformaram em mais de 32 mil palavras o “sonho de Abril”. Falamos de Vital Moreira, o deputado constituinte que se diz pertencer a uma geração feliz. A dos que fizeram uma Constituição que passou o teste do tempo.
Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Rui Santos Jorge
Assista ao vídeo em www.osae.pt
Foi, aos 29 anos, um dos juristas mais influentes da Assembleia Constituinte. Como é que um jovem se sente por fazer parte do primeiro Parlamento português eleito por sufrágio livre e universal?
Para mim foi natural, porque já participava nas lides da oposição democrática desde 1969. Tinha ligações ao Partido Comunista Português (PCP) e fazia parte da redação da “Vértice”, uma revista de esquerda ligada ao PCP. Quando se deu a Revolução eu estava em Londres a tirar um doutoramento. Vim imediatamente para Portugal para passar o 1.º de Maio e regressei a Londres com a ideia de retomar os estudos. Entretanto constituiu-se o I Governo Provisório e o então Ministro do Trabalho, Avelino Gonçalves, que era militante do partido e alguém com quem eu tinha uma ligação muito especial, enviou-me um telegrama que continha as seguintes palavras: “Precisamos de ti. Vem.”. E eu vim. Entrei na Revolução.
Tinha noção, na altura, de que o trabalho que estava a desenvolver – elaborar a primeira Constituição democrática para a República Portuguesa após a queda do Estado Novo em resultado da revolução de 25 de Abril de 1974 – determinaria o futuro do país?
Todos nós, deputados constituintes, tínhamos a noção clara de que estávamos a fazer História. Depois de 40 anos de ditadura, tínhamos uma oportunidade de mudar o país. Todos aqueles que conheciam um pouco da História constitucional de Portugal sabiam que, até aí, as únicas Constituições duradoras não eram as Constituições feitas em Assembleia Constituinte, mas sim as Constituições outorgadas, como a Carta Constitucional de 1926 e a Constituição de 1933. Por isso sim, tínhamos a noção de que podíamos estar a fazer História. Claro que isso dependia do sucesso da Revolução, mas nessa altura havia um grande otimismo, acreditava-se que a Revolução ia mesmo por diante, como foi. Obviamente não de acordo com o que o PCP nessa altura queria, mas de acordo com uma democracia avançada, o Estado social. As grandes conquistas da Revolução estão na Constituição e penso que dei o meu contributo para a tornar numa certidão de consolidação jurídica da transição democrática em Portugal. A Constituição da República Portuguesa não é apenas uma Constituição que estabelece os princípios básicos da democracia liberal; ela também estabelece os direitos sociais como nenhuma outra o fez. É esse casamento entre a democracia liberal e o Estado social que, na minha visão, faz a grande força da nossa Constituição. Se tínhamos consciência disso? Tínhamos, seguramente que tínhamos.
Como é que os trabalhos se foram desenrolando ao longo de 10 meses, num tempo de conflito entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática?
Nós sabíamos um pouco sobre como é que tinham sido feitas as Constituições anteriores. O método é lógico: primeiro, começou por se aprovar o plano da Constituição. Depois, apresentaram-se os projetos partidários. De seguida, estabeleceram-se comissões especializadas para cada capítulo. E, portanto, durante muitos meses, o trabalho constituinte era o trabalho das comissões. No plenário acontecia apenas o debate político do chamado período “antes da ordem do dia”. E, à medida que os relatórios das comissões foram sendo apresentados, o plenário ia debatendo esses projetos. No final, apurado tudo, fez-se uma Comissão de Redação, à qual eu também pertenci. Assim, renovou-se a Constituição, uniformizou-se o estilo, estabeleceram-se as remissões de uns artigos para os outros, escreveu-se o preâmbulo (que, curiosamente, e ao contrário do que a palavra indica, foi a última coisa a ser feita) e fez-se a votação final global.
No meu caso, participei em três comissões. Uma delas foi a Comissão de Organização do Poder Político, que teve a seu cargo grande parte da Constituição, nomeadamente toda a terceira parte. Era uma comissão de alto gabarito, na qual os partidos colocaram os seus especialistas em Direito Constitucional. Basta dizer que dessa comissão faziam parte Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, do PPD, Carlos Candal, do PS, eu, do PCP, entre outros. Em geral, a Assembleia Constituinte era um mix da velha guarda da oposição democrática.
Devo salientar que nós fizemos a Constituição durante o período mais crispado da Revolução. No entanto, não houve conflitos nem situações delicadas na Assembleia Constituinte. Diria, até, que as relações pessoais eram amistosas. Tratávamo-nos por tu, o que mostra que, para além das diferenças partidárias, se estabeleceu um clima propício ao entendimento pessoal. Para tal, contribuiu, em primeiro lugar, o facto de existir uma rede académica — havia muitos académicos na Constituinte e estes, pese embora as diferenças políticas, têm algo em comum: lidam com a mesma coisa, têm conceitos e noções comuns. Depois, o facto de a oposição democrática estar em quatro partidos: PCP, MDP, PS e PPD. Essa rede de oposição democrática estabelecia uma solidariedade política e pessoal muito grande e que permitia estabelecer pontes. Havia uma separação entre a Revolução, cá fora, e o trabalho da Constituinte, lá dentro. Só assim foi possível existir um enorme consenso entre os vários partidos.
Aconteceu, no entanto, o chamado “cerco à Constituinte”. Como é que se viveu esse momento?
Foi, sem dúvida, um momento marcante, no qual, durante um dia e meio, os deputados ficaram confinados no Parlamento em virtude de uma manifestação feita por milhares de trabalhadores da construção civil. Este episódio criou, de facto, tensões políticas graves e vários partidos planearam mesmo mudar a Constituinte para o Porto. Foi um momento de grande insegurança. Na verdade, os grevistas nunca tentaram invadir a Assembleia, mantiveram-se sempre fora. E é de salientar que, mesmo nesse momento de tensão, não houve nenhuma relação de conflito pessoal no Parlamento.
Como é que caracteriza a Constituição de 1976?
Diria que é um feliz compromisso. Claro que a primeira versão da Constituição é muito influenciada pela chamada Plataforma de Acordo Constitucional, um pacto entre o Conselho da Revolução e os partidos políticos. É a revisão constitucional de 1982 que dá a versão atual da Constituição, sobretudo em matéria de organização do poder político: põe fim ao Conselho da Revolução, altera o sistema do Governo, o Presidente da República deixa de poder demitir livremente o Governo e o Governo deixa de ser responsável perante o Presidente da República. Portanto, a primeira revisão procede à reconsideração da constituição política. Depois há a reconsideração da constituição económica, feita na revisão de 1989. De facto, a primeira versão da Constituição era muito marcada por um compromisso difícil entre, por um lado, a liberdade de empresa, o direito de propriedade e de concorrência e, por outro, a ideia de apropriação coletiva dos meios de produção e a predominância da propriedade social. Assistimos a uma coabitação complicada entre duas lógicas diferentes de organização do poder económico. Esta tensão entre a lógica da economia de mercado e a lógica da coletivização não podia manter-se. É a segunda grande revisão da Constituição, a de 1989, que traz a revisão profunda, a metamorfose da constituição económica.
Quais são as principais diferenças entre o texto original aprovado pela Assembleia Constituinte em 1976 e o texto atual, cuja última revisão data de 2005?
Hoje, a Constituição que temos é a Constituição de 1976 reformulada quanto à constituição política em 1982 e reformulada quando à constituição económica em 1989, 1992 e 1997. A Constituição proporcionou os meios da sua adaptação à mudança política. Isso foi inteligente, a meu ver. É curioso perceber que os Constituintes de 1976, ou uma parte deles, como é o meu caso, foram aqueles que também estiveram nas reverificações seguintes. A Constituição é, claramente, a mesma: os seus grandes traços fundamentais — Estado de Direito, Estado Democrático, Estado Laico, Estado Social — tudo isso estava originariamente na Constituição. O que há então de novo? Para além da readaptação da constituição política e das reformulações da constituição económica, diria que a grande alteração da Constituição é exógena e
prende-se com a entrada de Portugal na União Europeia. Tal significa que o Direito da União passa a gozar de imunidade constitucional já que, ao ter primazia na ordem interna, não está sujeito a escrutínio constitucional.
Na sua opinião, qual foi a grande vitória que a Lei Fundamental trouxe a Portugal?
Se até 1976 as Constituições eram consideradas, sobretudo, como estatutos de organização do Estado — a constituição política —, a partir desse momento ela passou a ser também a norma suprema da ordem jurídica. E isso deve-se a vários fatores. Os principais estão na própria Constituição: o facto de ter, pela primeira vez, duas normas que imediatamente implicaram a alteração da ordem jurídica do Código Civil, do Código Penal e das leis laborais. A Constituição alterou imediatamente o Código Civil em capítulos inteiros, desde o Direito da Família às Sucessões. Basta dizer que o Código Civil estabelecia uma diferença radical entre homem e mulher, quer na família, quer na vida profissional. A privação dos direitos das mulheres era inacreditável até 1974: as mulheres não podiam ser juízes, não podiam ter carreira no Ministério Público, nem nas forças de segurança, nem na diplomacia. As mulheres estavam excluídas. Na família, o marido era o chefe de família, era ele que determinava a morada familiar e a educação dos filhos. A mulher, para se deslocar ao estrangeiro, precisava de uma autorização do marido. O mesmo para ser comerciante ou empresária. Havia discriminação dos filhos conforme tivessem nascido no casamento ou fora do casamento, existindo uma distinção clara entre filhos legítimos e ilegítimos. Os segundos não tinham os mesmos direitos, nem sequer sucessórios. Hoje imaginamos que essas situações pertencem a outra galáxia, mas não. Era assim em 1976! A Constituição pôs fim a tudo isso. No dia 25 de Abril, uma parte importante da ordem jurídica foi ao ar. A Constituição passou a ser chamada à regulação das relações entre privados, quer familiares, quer laborais.
Até 1976, a Lei Fundamental da ordem jurídica era o Código Civil e a Constituição não contava para nada. Primeiro, porque o próprio poder político não a respeitava, segundo, porque não tinha estes preceitos que tornavam a Constituição imediatamente aplicável às relações privadas. E é por isso que, a partir da Constituição de 1976, passou a haver um Direito Constitucional Penal, um Direito Constitucional Laboral, um Direito Constitucional Administrativo, um Direito Constitucional Processual. Todos os principais ramos do Direito passaram a ter a Constituição como primeira fonte jurídica. A Constituição não só se estendeu e se tornou diretamente aplicável, como passou a haver uma instância superior da Justiça Constitucional — primeiro a Comissão Constitucional (entre 1976 e 1982), depois o Tribunal Constitucional, ao qual, aliás, tive a honra de pertencer.
O facto de o Direito Constitucional se ter tornado o principal ramo da ordem jurídica e estar em todos os Direitos é, a meu ver, um dos grandes sucessos da Constituição de 1976. Hoje, nenhum Juiz, nenhum Advogado, nenhum operador do Direito pode dar-se ao luxo de ignorar a Constituição.
Acredita que os portugueses estão conscientes da importância da Constituição?
Penso que a generalidade dos portugueses sim. A Constituição faz parte da nossa vida democrática e os portugueses, e bem, a meu ver, identificam a Constituição com os sucessos do atual regime, em termos de democracia estável, de direitos sociais, da descentralização regional, da autonomia regional dos Açores e da Madeira… Tudo isso é devido à Constituição. Até mesmo aquilo que já damos como garantido, como o sufrágio universal. Este só foi conseguido depois da Revolução. Celebrámos, em dezembro passado, os 200 anos das primeiras eleições em Portugal — eleições para a Assembleia Constituinte de 1911 — e essas eleições até foram, na época, por um sufrágio bastante alargado: sufrágio quase universal masculino. As mulheres, durante o século XIX e grande parte do século XX, nunca tiveram direito de voto. Mas não eram só as mulheres que não podiam votar. Mes-
mo os homens, tirando essas primeiras eleições, só o podiam fazer se soubessem ler e escrever — o que, na altura, significava afastar 70 por cento das pessoas — ou se tivessem propriedade e rendimento — o que afastava outra grande fatia da população. Mesmo na República, período de grandes avanços em vários aspetos, só tinham direito de voto os homens que soubessem ler e escrever. A igualdade eleitoral da mulher, ainda que num contexto de alta limitação, só se conseguiu em 1969, no período da chamada liberalização marcelista. Nessa altura, a lei eleitoral equiparou as mulheres aos homens pela primeira vez, mas ainda assim só votava quem soubesse ler e escrever. Nessa aparente igualdade havia desigualdade, já que eram poucas as mulheres que tinham oportunidade de ir à escola.
Hoje, se perguntarmos a uma jovem portuguesa se se imagina numa situação em que no casamento o marido é o chefe e em que precisa da autorização dele para sair do país ou para trabalhar, ela julga que isso aconteceu no século XV. Mas não, era assim em 1976! No início deste regime. Fomos nós que pusemos fim. Já para não falar na segurança no emprego, no direito à greve ou à liberdade sindical. Algum trabalhador, hoje, concebe uma situação em que é privado desses direitos? Não, mas só os tem desde 1976. Se vivemos numa sociedade livre e numa democracia liberal, devemo-lo à Constituição. Nos direitos sociais, tudo o que temos é criação da Constituição, desde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) à Segurança Social. E quando houve uma tentativa, em 1983/84, de descartar o SNS, o Tribunal Constitucional travou-a.
O que acontece é que nós só damos conta do que devemos à Constituição quando algo que nela está garantido fica em risco ou é ameaçado. Vejamos algumas propostas populistas a que assistimos recentemente: quase todas são inconstitucionais e param logo na Assembleia da República, nem sequer chegam ao Tribunal Constitucional, de tão radicalmente inconstitucionais que são. A ideia de retirar a cidadania, a ideia de castração química, a ideia da prisão perpétua… todas elas são incompatíveis com a Constituição. E, nessa altura, nós lembramo-nos que a Constituição existe.
Em 45 anos, a Constituição Portuguesa mostrou-se à altura dos desafios?
As Constituições têm sempre uma luta: não deixar que a realidade se desgarre delas. Por isso é que existe a revisão constitucional. Penso que atingimos, com essas grandes revisões, o estado de relativa paz constitucional. As grandes querelas constitucionais que houve durante este regime foram sendo apaziguadas e a prova é que já não temos uma revisão constitucional há 16 anos. E mesmo em 2005 foi uma revisão de pormenor. Sabe há quanto tempo, na história de Portugal, é que não temos um período de 16 anos sem alteração constitucional? Desde 1885. E estes 45 anos de Constituição são feitos sem nenhuma tentativa de golpe de estado e sem nenhuma alteração da normalidade democrática. O primeiro estado de sítio é declarado agora, não por alteração da normalidade democrática, mas por causa de uma pandemia. Nunca tínhamos vivido 45 anos de estabilidade democrática, sem nenhum assomo ou conspiração. Nós, portugueses, resolvemos as grandes querelas da história constitucional: a religiosa, que existiu desde 1820 e se manteve até 1976; a militar: é a primeira vez que temos os militares subordinados ao poder civil de forma absolutamente indiscutível. Os militares sempre fizeram parte da nossa vida política e as suas últimas intervenções foram a 25 de Abril de 1974 e no Conselho da Revolução, até 1982. Haver 45 anos de subordinação pacífica e indiscutível dos militares ao poder civil é uma das grandes vitórias; a querela do regime: no Estado Novo houve várias conspirações para restabelecer a monarquia. E, agora que há liberdade política, a questão monárquica despareceu; a questão da identidade nacional: é a primeira vez que não temos dúvidas sobre a nossa identidade. Durante séculos tivemos essa dúvida, que o Estado Novo levou ao paroxismo do estado pluricontinental e plurinacional; a questão espanhola: nunca tínhamos resolvido a questão espanhola desde 1640. Tínhamo-la resolvido pela alienação recíproca, a Espanha para nós era um lugar por onde tínhamos de passar para chegar a França. Alterámos isso completamente com a entrada na União Europeia. Hoje convivemos diariamente com os espanhóis e tudo isso são realidades que pensamos que são naturais, mas são produto da mudança democrática.
Tem o sentimento de missão cumprida?
Considero que pertenço a uma geração feliz. Fiz parte da oposição democrática contra a ditadura e a ditadura acabou. Trabalhei numa Constituição que vingou: é a segunda mais duradoura Constituição portuguesa e, em período democrático, é a primeira. Os meus antepassados deputados constituintes não chegaram a celebrar 45 anos da sua obra, nem 40, nem 30, nem 20. De maneira que pertenço, em conjunto com os meus colegas constituintes, a uma geração única na história de Portugal: a dos que fizeram uma Constituição que passou o teste do tempo. Penso que é o teste mais difícil de passar. : :
Os 45 anos Constituição da
EM DEBATE NA OSAE
Texto Dina Teixeira / Fotografia OSAE Assista ao vídeo em www.osae.pt
AOrdem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) organizou, no passado dia 7 de abril, a conferência online “Os 45 anos da Constituição”, iniciativa que teve como intuito assinalar o aniversário da aprovação da Lei Fundamental, a 2 de abril de 1976, dez meses depois do início dos trabalhos da Assembleia Constituinte.
Este evento, moderado por José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, reuniu na sua sede em Lisboa, e através da plataforma Zoom, o seguinte painel de oradores: Vital Moreira, constitucionalista, professor universitário, jurista e ex-eurodeputado; Jorge Silva, Bastonário da Ordem dos Notários; Mário Barroco de Melo, Psicólogo na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; Luciano Amaral, Professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e Doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença; Luís Silveira Rodrigues, Vice-presidente da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO); Raquel Maudslay, Presidente do Instituto de Apoio aos Jovens Advogados (IAJA); e Débora Riobom dos Santos, Solicitadora e membro da direção do Instituto de Formação Botto Machado (IFBM) da OSAE.
Dando início à conferência, José Carlos Resende deixou uma mensagem de boas-vindas e de agradecimento pela presença de todos os oradores, clarificando que o objetivo da sessão consistia em fazer uma análise histórica da Constituição, que comemora 45 anos. Introduzindo o professor Vital Moreira, o Bastonário da OSAE mostrou-se grato pela presença do constitucionalista, que acredita ser de enorme relevância para este debate, deixando ao convidado uma questão: “Algum dia imaginou que a Constituição duraria 45 anos?”.
Começando por felicitar este evento, Vital Moreira salientou a importância histórica da Constituição e, em resposta ao Bastonário da OSAE, afirmou que nunca imaginou que a Constituição tivesse esta duração, embora hoje acredite que “a Constituição vai durar indefinidamente”. A seu ver, “uma das razões do seu êxito está ligada ao seu caráter democrático. A Constituição soube, desde o início, englobar os principais pilares políticos e doutrinários”, indicou. Outra razão que contribuiu para o seu sucesso foi “a sua capacidade de adaptação, pois foi modificada várias vezes, mas há 16 anos que não é mudada”. Portanto, “desde 1985, nunca houve tanta estabilidade constitucional, o que mostra claramente que a Constituição deixou de ser um problema”. Reconhecendo a grandeza da Constituição, realçou ainda que “é um organismo vivo que se assume, hoje, como a norma suprema da ordem jurídica”, mas admitiu que esta carece de uma revisão minimalista. “A Constituição é uma norma de organização do poder e é isso que ela deve continuar a ser”, acrescentou.
Seguiu-se a intervenção de Débora Riobom dos Santos, que revelou que “urge defender a democracia” e deixou, nesse sentido, duas questões em cima da mesa. Relativamente à igualdade de género, afirmou ser necessário “por termo à desigualdade jurídica entre homens e mulheres” e, portanto, “quantos mais anos serão precisos para chegar à equidade entre homens e mulheres?”. Já sobre a proteção social, no caso dos Solicitadores e dos Agentes de Execução a contribuição é feita para a CPAS e durante a pandemia estes profissionais viram-se desamparados. Logo, “como é que a Constituição da República pode defender estes profissionais?”. Vital Moreira esclareceu que, no que concerne à igualdade de género, “a igualdade na Justiça poderá demorar mais 20 ou 30 anos, mas não podemos negar que nestes 45 anos sempre houve uma evolução. Sempre estivemos a caminhar no bom sentido”, destacou. Quanto à proteção social, realçou que “o sistema da CPAS não tem lugar constitucional. A Constituição diz claramente que o sistema de Segurança Social é unificado. Não pode haver profissões que têm um sistema de Segurança Social próprio”.
Mário Barroco de Melo mencionou que as “atualizações legislativas foram importantes porque motivaram algumas alterações na estrutura das prisões”. No entanto, “temos vários reparos da insuficiência da Justiça” e, por isso, lançou algumas perguntas: “será que o nosso sistema estará a
funcionar de modo eficiente?” e “de que forma é que o entendimento da Constituição pode contribuir para esta questão?”. Em resposta, Vital Moreira assegurou que “a Constituição, no que diz respeito aos reclusos, foi mais longe do que qualquer outra”. “A meu ver, a evolução tem sido extremamente positiva”, acrescentou ainda.
Luís Silveira Rodrigues começou a sua exposição afirmando que “a primeira lei da defesa dos consumidores surgiu em 1981, cinco anos depois da aprovação da Constituição” e que “a Constituição sempre apoiou o consumidor, de início timidamente, mas sempre apoiou”, revelou. Na sua opinião, “a consagração constitucional dos direitos dos consumidores foi fundamental”. O mesmo defendeu Vital Moreira, ao destacar que “a Constituição é importantíssima na afirmação dos direitos dos consumidores”.
Já Raquel Maudslay deixou algumas questões sobre matéria jurídica: “será que o atual regulamento das custas judiciais pode limitar o acesso dos cidadãos à Justiça?” e “existirá uma certa impunidade na violação do segredo de Justiça?”, ao que Vital Moreira clarificou que “o segredo de Justiça tem proteção constitucional” e afirmou ser “contra a ideia da Justiça gratuita”, referindo ainda que “o estado só tem a obrigação de a pagar às pessoas que não têm possibilidades de acesso à mesma”. Também abordou a questão da CPAS, questionando o seguinte: “entende que a CPAS, tal e qual se encontra configurada, não tem base constitucional?” e “a sua resposta mudaria se a CPAS, em vez de ser um regime obrigatório, fosse um regime facultativo?”. Vital Moreira sublinhou que “o opting out da Segurança Social, mantendo a CPAS facultativa, é a meu ver inconstitucional”, revelando
que “o serviço de segurança social é obrigatório para toda a gente, portanto não pode haver a opção de não estar no sistema de Segurança Social único existente no país. A CPAS quanto muito poderia ser um serviço complementar, não um serviço alternativo ao da Segurança Social”.
Luciano Amaral ressaltou “o caráter longevo da Constituição e a sua natureza democrática”, pois foi “a única constituição democrática e isso explica muito o facto de ser tão estável”. Admitiu que “é difícil pensar em substituí-la, apesar de haver algumas inconstitucionalidades”. Terminando o seu contributo, deixou a seguinte questão: “será que uma Constituição federal poderia substituir a atual Constituição?”, ao que Vital Moreira clarificou que “a substituição da Constituição portuguesa por uma Constituição federal não está em causa”.
Jorge Silva, por sua vez, frisou que “a Constituição trouxe, acima de tudo, a democracia no acesso ao Direito”. Por exemplo, “houve uma evolução das escrituras, ou seja, passou a haver o direito ao conhecimento dos atos jurídicos que são realizados pelos notários”. Na visão do Bastonário da Ordem dos Notários, “ultrapassou-se o ponto em que as escrituras eram meramente lidas e passaram então a ser explicadas”. Jorge Silva conclui a sua participação com a seguinte questão: “até que ponto será possível termos partidos políticos a fazer propostas anticonstitucionais?”. Vital Moreira mostrou-se discordante, assegurando que “numa democracia liberal é possível defender todas as ideias, mesmo as inconstitucionais”.
O encerramento do debate ficou a cargo do Bastonário da OSAE, que agradeceu uma vez mais a presença de todos os palestrantes e de todos os que assistiram à conferência. : :
Vital Moreira
E DEPOIS DA PRISÃO.
O PORTÃO ABRE DEVAGAR, AO SOM DO RANGIDO QUE INTERROMPE O SILÊNCIO E OS PENSAMENTOS. A TARDE ESTAVA A TERMINAR. MAS AINDA SOBRAVA UMA RÉSTIA DE LUZ DO DIA. OUVE-SE O PORTÃO A FECHAR. A.S. ESTAVA CÁ FORA. ESTAVA LIVRE, EMBORA AINDA NÃO O SENTISSE. “SAÍ DA PRISÃO, ALUGUEI UM CARRO E FUI SOZINHO PARA CASA DOS MEUS PAIS QUE AINDA FICAVA A ALGUMAS HORAS DE DISTÂNCIA. SEM PENSAR NAS HORAS. É UMA DAS COISAS QUE TRAZEMOS DA PRISÃO. O DESLIGAR DAS HORAS.” CONTUDO, QUANDO OLHA PARA TRÁS, A.S. AFIRMA QUE A LIBERDADE NÃO CHEGOU NO INSTANTE EM QUE PISOU O CHÃO PARA LÁ DA PRISÃO. O SENTIMENTO DE LIBERDADE VEIO MAIS TARDE. “CONFESSO: NUNCA MAIS ME VOU ESQUECER DO MOMENTO EM QUE ME SENTEI AO VOLANTE, AJUSTEI O BANCO, LIGUEI O CARRO E O SENTI COMEÇAR A ANDAR. FOI UMA SENSAÇÃO MARAVILHOSA SER EU A GUIAR E A SEGUIR O CAMINHO QUE EU QUERIA FAZER. SER EU A DECIDIR. AÍ, SIM, SENTI-ME LIVRE.” ESTA REPORTAGEM É SOBRE OS DESAFIOS QUE SE SEGUEM A ESTA VIAGEM. E, PARA MELHOR OS COMPREENDERMOS, FALÁMOS COM A.S., UM EX-RECLUSO, COM A DIREÇÃO-GERAL DE REINSERÇÃO E SERVIÇOS PRISIONAIS (DGRSP) E COM A ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E APOIO AO CONDENADO (APAC PORTUGAL).
Texto André Silva
A.S.
foi condenado a 10 anos de prisão efetiva. Co-autor moral de associação criminosa, furtos qualificados, falsificação e receptação. Cumpriu seis anos e um mês. Passou pela Prisão da Polícia Judiciária de Lisboa, pela Prisão de Caxias e pelo Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Nas suas palavras, uma etapa dura, a mais dura da sua vida, marcada por um sofrimento que disse “impossível de descrever”. Afirma ter perdido tudo, inclusive a família. “Perdi tudo, menos a dignidade. Senti uma revolta muito grande, uma enorme insatisfação perante o que vi e o que vivi. Mas saí da prisão mais maduro e a pensar mais em mim”. Mas nada do que passou dentro da prisão o faz esquecer o primeiro dia que saiu em liberdade: “Foi uma sensação indescritível. Os nervos eram tantos que, em 15 minutos, bebi um litro e meio de água. Uma ansiedade enorme. A verdade é que uma pessoa, quando está presa, cria uma ideia de que está tudo diferente cá fora, que mudou tudo. Mas, na realidade, não está. Lembro-me perfeitamente da minha primeira saída, ainda em precária, e que foi muito complexa em todos os aspetos”.
O tempo de liberdade, para A.S., foi também o tempo de recomeçar. O tempo de (voltar a) dar os primeiros passos, de (re)aprender a viver. Emprego, habitação, família, dinheiro. Coisas simples, banais, que fazem parte da vida de todos. Mas que, quando a prisão também é parte da história de vida, ganham outros contornos. Segundo A.S., a sua história foi solitária e o seu caminho foi feito sem apoios. “Os primeiros tempos de liberdade foram complexos e solitários. Tive o apoio da Associação de Proteção e Apoio ao Condenado (APAC Portugal)”. Associação, esta, que tem como missão implementar abordagens inovadoras e capazes de transformar a vida de pessoas que estão ou estiveram em reclusão, fornecendo-lhes ferramentas e estímulos necessários à sua reinserção. Um trabalho que também integra a missão da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP): “Acompanhamos os reclusos que se encontram em licença de saída e os cidadãos que, cumprida a pena de prisão, regressam à sociedade em liberdade condicional. A estes cidadãos acresce ainda o acompanhamento das penas e medidas não privativas de liberdade, como sejam as de trabalho comunitário”, explica fonte da DGRSP. A.S. afirma não ter sentido esse apoio, considerando que “todo o sistema funciona de uma forma contrária. O sistema prisional quer fidelizar as pessoas. Quer que se cometam mais crimes para voltarmos para a cadeia.”
Para a APAC, o desafio da reinserção começa ainda dentro da prisão. “Não é razoável acreditar que a institucionalização de uma pessoa numa prisão de larga escala, provavelmente sobrelotada, com recursos escassos e fortemente isolada de qualquer comunidade local, seja a forma adequada de proporcionar a essa mesma pessoa a compreensão das condutas saudáveis e exigíveis em sociedade. Como defendem as Regras de Mandela, ‘a privação de liberdade deve aproximar-se, tanto quanto possível, dos aspetos positivos da vida em sociedade’. Seguindo este princípio, vários países europeus – de entre os quais Bélgica, França, Holanda e Itália – têm implementado, com sucesso, soluções em que a privação de liberdade, ou parte dela, é vivida em casas, ou seja, espaços inseridos numa comunidade local, com uma dimensão tendencialmente pequena, que possibilita um acompanhamento diferenciado de cada pessoa.” A DGRSP reconhece a sobrelotação de alguns estabelecimentos prisionais, mas esclarece que essa situação acontece porque “tomam em consideração, para além da disponibilidade de lugares, a proximidade aos locais de pertença de cada um, por forma a facilitar as visitas, os Tribunais em que decorrem os processos (no caso dos preventivos) e, naturalmente, também a segurança e a dimensão das penas”. Para esta Direção-Geral, a integração social depende tanto de cada um dos libertados, como da sociedade e da sua preparação para os acolher e proporcionar trabalho. E acrescenta: “Procuramos fornecer os instrumentos para que cada um tenha, no mínimo, a capacidade de decidir o que pretende fazer e quais as consequências possíveis e previsíveis das decisões que toma quando retorna à liberdade. Na área do tratamento prisional, disponibilizamos aos cidadãos, privados de liberdade, o acesso a várias atividades que permitem a aquisição de competências pessoais, sociais e profissionais, tendo por objetivo a sua reinserção social e, consequentemente, a prevenção da reincidência”.
A.S. admite que, quando o assunto é trabalho, prefere guardar o seu passado. “Uma das minhas grandes preocupações foi avaliar o que as pessoas pensavam de mim e de ter estado preso. Avaliar a recetividade das pessoas. A verdade é que para a maioria não existem rótulos, nem obstáculos. E isso surpreendeu-me muito. As pessoas não tocam no assunto. Agora, no mundo laboral, a situação é diferente e tenho de admitir que quando, numa entrevista de emprego, me perguntam porque estive parado durante seis anos, tenho sempre vontade de inventar uma desculpa.” A Associação de Proteção e Apoio ao Condenado, pela sua experiência, corrobora a existência deste estigma. “Essa perceção existe e é validada pelos beneficiários que a APAC Portugal acom-
inventar uma desculpa.” A.S.
Aplena garantia da segurança jurídica, como valor essencial do direito, exige a proteção dos direitos e dos bens dos cidadãos, a qual, por seu turno, não dispensa um sistema de justiça criminal que, atuando dentro dos limites constitucionais e legais, seja, ao mesmo tempo, eficaz na descoberta da verdade material dos factos e justo na punição dos culpados, na proteção das vítimas e na execução das sanções criminais.
Mas a segurança jurídica e, particularmente, a prevenção do crime e a diminuição das taxas de reincidência também pressupõem que se afirme a relevância ímpar da reinserção social, indispensável à reintegração de indivíduos na sociedade.
É comumente observado que a reinserção social requer a existência de apoio a diversos níveis nomeadamente educativo, psicológico, emocional, de capacitação profissional, prática desportiva e desenvolvimento humano, sendo o respetivo processo condicionado por múltiplas e complexas variáveis, que ditam o seu maior ou menor sucesso.
Consciente da relevância do tema e dando cumprimento ao seu desígnio de colaborar na administração da Justiça, zelando pela defesa e salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos, a Sollicitare inicia com esta reportagem uma série de artigos sobre o sistema de justiça criminal e reinserção social. panha. E é por isso que a APAC trabalha em duas grandes áreas: na área de impacto social, incluem-se os programas de competências pessoais, sociais e laborais implementados em estabelecimentos prisionais, de que já beneficiaram mais de 160 pessoas reclusas. Quanto ao apoio à empregabilidade de pessoas que estão ou estiveram reclusas, este é garantido através do Gabinete de Inserção Sociolaboral e do negócio social Reshape Ceramics. E destacam-se, ainda, os programas de mentoria para acompanhamento na transição para a liberdade; Já na área de impacto sistémico, incluem-se as iniciativas de advocacy, tendentes à visão da APAC Portugal, o diálogo com os vários intervenientes e decisores do sistema prisional português, a promoção e divulgação de dados sobre o setor prisional e a organização do evento internacional Prison Insights, que divulga casos de estudo e soluções inovadoras para o sistema prisional.”
Neste contexto, a pergunta torna-se inevitável: se a reintegração pode ser sinónimo de dificuldades, designadamente, na procura de emprego e na constituição de família, poderá também conduzir os ex-reclusos à reincidência? Na perspetiva da APAC, “na génese da prática de um crime estão, não raras vezes, contextos sociais e financeiros desfavoráveis. Nessa medida, a perceção existente é a de que a prática do crime – seja ou não em situação de reincidência – pode ser
é o sistema indicado. Não é.” A.S.
potenciada por um contexto de exclusão social, de falta de apoios à inserção. Nesta mesma linha de raciocínio, uma reintegração falhada pode contribuir, sim, para a reincidência”. De acordo com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que se apoia num estudo em curso, desde 2014 e até 2025, com base numa amostra de 947 ex-reclusos aos quais foi concedida a liberdade condicional (art.º 61 do Código Penal) e a adaptação à liberdade condicional (art.º 62 do Código Penal), com início entre 1 de janeiro e 26 de agosto de 2015, a reincidência passa pela cabeça e pela vida de quem passou pela prisão: “Tratando-se de um estudo longitudinal, o período de observação é a duração da medida e prolonga-se durante cinco anos após o seu termo. Os acontecimentos utilizados para indicar a ocorrência de reincidência são os novos pedidos entrados na DGRSP, relacionados com a execução de pena ou medida pela prática de crimes cometidos durante ou após a libertação. Os dados provisórios, atualmente disponíveis, permitem dizer que, entre os reclusos que tinham idade entre 16 e 21 anos, registaram-se ocorrências indicadoras de reincidência na ordem dos 32,1% e que, no grupo constituído por maiores de 21 anos, essa proporção foi de 22,9%”, explica a DGRSP.
Para A.S., estar preso foi “o maior dos pesadelos”. Mesmo assim, lá dentro arranjou um emprego, fez muitas formações e ainda tentou o reingresso no ensino superior para terminar a licenciatura. Mas nem sempre é este o retrato descrito pelos reclusos. “O meu dia a dia era muito rotineiro. Tentava ocupar o meu tempo o máximo possível. Era uma forma de tentar que o tempo passasse mais depressa. Mas nem todos o fazem. Muitas pessoas que estão nas cadeias entregam-se ao desespero. Não se levantam, não tomam banho, passam o dia na cama. Autênticos homens das cavernas. Depois envolvem-se em problemas. É, realmente, um terror. Este não é o sistema indicado. Não é.”
E é olhando para o presente que se assume imperativo pensar sobre o que será o sistema prisional do futuro. Aos olhos da DGRSP, “considera-se que este deverá, cada vez mais, sustentar-se no respeito dos direitos de quem se encontra privado de liberdade e na aposta na formação e preparação dos reclusos, bem como no reforço da ligação à envolvência social e familiar de modo a que, no retorno à vida em sociedade, estes cidadãos venham munidos de instrumentos que lhes permitam uma integração mais célere e ajustada”. Neste contexto, a APAC defende alternativas ao conceito de prisão como hoje o conhecemos: “É urgente redesenhar a privação de liberdade à luz do século XXI, através de soluções radicalmente diferentes, que possam prevenir a reincidência e promover a reinserção de cada indivíduo na sociedade, já que é essa a principal finalidade da pena. Defendemos a implementação, em Portugal, de casas de transição para a liberdade, onde residirão pessoas reclusas que se encontram na fase final do cumprimento de pena que antecede a liberdade condicional, pois acreditamos que a finalidade ressocializadora da pena privativa de liberdade será alcançada, com maior eficiência e humanidade, se a reclusão for vivida em casas, ou seja, espaços inseridos numa comunidade local, com uma dimensão tendencialmente pequena, que possibilite um acompanhamento diferenciado de cada pessoa, assente na valorização humana, na responsabilização pessoal, na formação e na integração profissional”.
Por cá e para lá do portão, entre degraus e obstáculos, a vida tem de continuar. E, por isso, a última pergunta não poderia ser outra. “Como está neste momento?” A resposta é simples e dura. Reveladora de uma jornada difícil chamada “segunda oportunidade”: “Estou vivo. Consigo respirar bem. E, apesar do sofrimento e da revolta, estou a lutar por tudo o que sempre fui e tive.” Uma jornada que começou há cerca de um ano, naquele dia em que, sozinho, voltou a olhar para o relógio, agarrou o volante e conduziu a liberdade, certo de que o destino estava nas suas mãos. : :