10 minute read

JOÃO TIAGO SILVEIRA

Next Article
DUBAI

DUBAI

A reforma da ação executiva é um dos marcos mais relevantes da história da Justiça em Portugal. Resolveu problemas, trouxe soluções, diminuiu a pendência, aumentou a celeridade, reforçou a confiança e consolidou a transparência. Mas, para que as reformas se cumpram, têm de existir pessoas que as pensem, que as executem e que as acompanhem. A Sollicitare, à beira da data em que se assinalam os 20 anos da ação executiva, esteve à conversa com João Tiago Silveira, um dos nomes que faz parte da história desta reforma. Advogado, antigo Diretor do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, quando esta reforma foi pensada, e antigo Secretário de Estado da Justiça, quando, em 2006, aconteceu a grande alteração ao Código de Processo Civil, a qual permitiu o sucesso da ação executiva. Uma conversa sobre, claro, estes 20 anos. Sobre as vitórias, mas, também, sobre os desafios que tiveram de ser ultrapassados. Mas, mais importante, falou-se sobre o que será preciso fazer, nos próximos 20 anos, para que esta reforma continue a ser lembrada como um sucesso.

Advertisement

O que o atraiu no universo da Justiça? O que o levou a optar pela profissão que hoje exerce?

O que me atraiu, em primeiro lugar, foi fazer qualquer coisa que mudasse a vida das pessoas para melhor. Ou seja: políticas públicas, como é que as coisas podem ser mudadas para que as pessoas tenham melhores serviços públicos. Em segundo lugar, e em relação à área da Justiça, foi o facto de achar que grande parte das abordagens clássicas, nesta área, não resultaram. Estou a falar de alterações legislativas, de grandes reformas de códigos, da existência permanente de reivindicações de mais meios e mais recursos humanos… Isso nunca melhorou problema nenhum. Estudei o assunto e achei que a abordagem deveria ser outra. Mais focada na inovação, na simplificação de processos, na inovação das políticas e na injeção de gestão na área dos tribunais e da justiça. Este modelo começou a ser utilizado quando o António Costa, o Eduardo Cabrita e o Diogo Machado foram membros do Governo na área da Justiça e, nessa altura, observei, estudei e, na faculdade, foquei-me mais nessa parte e entendi que fazia falta uma política na Justiça que contemplasse estas questões.

Como é que descreveria a ação executiva antes de 2003?

De forma muito simples: estava bloqueada. As pessoas começaram a viver melhor e a ter um acesso ao crédito que não tinham. Por causa disso, começaram também a ter dívidas. Quem se recorda desses tempos, tem noção dos litigantes. Por exemplo, lembro-me de uma sapataria na baixa que vendia sapatos a crédito. O sistema dos tribunais não dava resposta para a cobrança de dívidas. Não estava preparado, não estava dimensionado, não tinha as técnicas que podiam fazer com que a ação executiva fosse mais rápida. Por isso mesmo, bloqueou e não dava resposta. Na altura, a única solução que se encontrava era mais meios e mais Oficiais de Justiça e todos desconfiámos de que isso não iria resultar. Optou-se por seguir outra via mais inovadora e mais virada para a efetividade dos processos.

Era Diretor do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento quando esta reforma foi construída. Qual foi o seu papel na altura?

Nessa altura, tinha três grandes funções. Em primeiro lugar, montar a discussão pública. Houve um grande debate em torno desta reforma, com a participação de todos. Em segundo lugar, construir as alternativas e as melhores soluções jurídicas para esta alteração na ação executiva, sempre em diálogo com os gabinetes dos membros do Governo que estavam a trabalhar nesta área, particularmente o gabinete do Secretário de Estado Adjunto da Justiça, Eduardo Cabrita. E, em terceiro lugar, a avaliação legislativa. Ou seja, avaliar o impacto daquela mudança que projetávamos fazer, de todos os pontos de vista possíveis. Esse era o grande objetivo do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento: fazer reformas não só a olhar para as Leis, mas, sobretudo, a olhar para os números, para os seus efeitos e para os seus impactos.

Sente que o que, na altura, pensava ser o caminho... veio a confirmar-se como tal?

Foi. Infelizmente, demorou muito tempo. A criação dos meios necessários para poder funcionar demorou muito tempo e isso foi um problema. Mas acrescento: no início, o diploma que foi colocado em anteprojeto era mais arrojado do que a versão final que veio a ser aprovada. Em grande medida, por resistências do Sindicato dos Juízes, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e da Ordem dos Advogados. Tinham uma perspetiva muito conservadora sobre como a reforma deveria ser. Isso também foi um contributo para que, no início, as coisas não tivessem funcionado bem. Depois, mais tarde, em 2008, com o diploma de desbloqueamento da ação executiva, as coisas mudaram. Até porque se foi aproveitar um conjunto de soluções mais arrojadas.

Foi a alteração do Código de Processo Civil de 2006 que permitiu o sucesso da ação executiva?

Foram, sobretudo, três momentos. Em primeiro lugar, ter sido feita a reforma, que era uma coisa absolutamente fundamental. Nos primeiros tempos, a reforma não tinha os meios para poder funcionar e só em 2005/2006 é que foram desbloqueadas diversas questões muito práticas, que possibilitaram o bom funcionamento. Nessa altura, havia uma crítica generalizada aos Agentes de Execução. Recordo bem que, na altura, a Ordem dos Advogados sugeria que o sistema voltasse ao que era antes e que os Advogados passassem a ser os Agentes de Execução. O que fizemos foi procurar onde estavam os problemas e desatar os nós górdios que faziam com que as coisas não funcionassem. Primeiro, em 2005/2006, adotámos um conjunto de medidas muito práticas para desbloquear a ação executiva e, depois, em 2008, fizemos uma revisão legislativa com algumas medidas que tinham sido pensadas no início, mas que não avançaram. Estes três passos foram muito importantes para que a ação executiva funcionasse.

Em 2006, registou-se, pela primeira vez em mais de 10 anos, mais processos terminados do que entrados, ou seja, uma efetiva redução da pendência processual. O segredo disto também esteve no Plano de Ação para o Descongestionamento dos Tribunais?

Sim, foi exatamente isso. E foi a prova de que, muitas vezes, as melhorias no sistema não se conseguem com injeções de mais meios, resolvem-se com medidas ino- vadoras de simplificação que permitam gerir melhor os tribunais. E foi exatamente isso que fizemos na altura: um plano de descongestionamento dos tribunais para tirar assuntos que não precisavam de lá estar e que estavam a ocupar espaço e prejudicavam a sua gestão. Por exemplo, os contratos de seguro renovavam-se automaticamente e só tinham de ser pagos até trinta dias depois. Por isso mesmo, havia muitas ações para cobrança de montantes não pagos relativamente a seguros. As pessoas deixavam renovar o seguro, sem saber, e depois não pagavam. O que decidimos fazer foi muito simples: não agimos no processo, agimos a montante. Isto é, dissemos que os prémios do seguro tinham de ser pagos antes da renovação. E, assim, deixou de existir este tipo de processo no tribunal. No fundo, passou a existir mais espaço nos tribunais para que pudessem gerir processos nos quais não há condições para haver pagamento da dívida. Outro exemplo: dívidas pequenas relativas à vida quotidiana tinham de ser julgadas em tribunal. Circulação num autocarro sem bilhete ainda precisava de ser julgada no tribunal. O que fizemos foi converter estas transgressões em contraordenações para que, em primeira linha, passasse a ser uma coima e, só depois, se necessário, haver recurso ao tribunal. Existiam muitas coisas que os tribunais não precisavam de fazer. E foi isso que fizemos no plano de descongestionamento: identificar estes elementos de bloqueio e dar espaço aos tribunais para conseguirem terminar mais processos.

Temos hoje uma Justiça cível melhor?

Sem dúvida. Uma das grandes falácias que existe na comunicação social e no discurso de vários atores políticos é resultante de não olharem com atenção para os números e para as estatísticas. O prazo médio da ação declarativa cível era de 29 meses em 2008. Em 2009, passou a ser de 18 meses. No quarto trimestre de 2022, foi de 13 meses. Em 10 anos, esta descida é muito boa. Cerca de um ano numa ação declarativa cível, em qualquer país, é um bom indicador. Os prazos médios de resolução dos recursos são cerca de três meses nos tribunais superiores. E porque é que houve esta mudança entre 2008 e 2009? Por causa do CITIUS. Mas só se destacou nas estatísticas anos mais tarde. As reformas da Justiça demoram tempo a ser percecionadas e concretizadas. Atualmente, temos uma justiça cível bastante rápida. E, na minha opinião, a ação executiva tem indicadores estatísticos maus por causa de um erro estatístico e que necessita de ser urgentemente corrigido. Os processos que, na prática, já estão terminados porque não se encontraram bens penhoráveis, mas que estão pendentes, à espera de que se encontrem bens, ou porque houve um acordo entre credor e devedor. Ou seja, são contabilizados como processos pendentes quando, na verdade, estão parados. Esta é uma questão puramente operacio- nal que não está resolvida, mas que contamina todas as nossas estatísticas oficiais. O problema é que contamina também os relatórios internacionais, nos quais Portugal é avaliado e onde os investidores vão ver os números na nossa justiça cível.

O que ainda há para melhorar?

O mundo evolui rapidamente e, à custa disso, a Justiça tem de evoluir ainda mais depressa para dar uma resposta àquilo que o mundo exige. E o que exige são processos rápidos, mas também uma Justiça mais compreensível e transparente. Quando se recebe uma notificação, uma citação ou uma decisão do tribunal, não se percebe o que lá está escrito, nem o porquê da decisão. Os tribunais já hoje poderiam ter, nas citações e nas notificações, uma indicação sobre o prazo médio de duração de um processo daquele tipo e daquele tribunal. Era uma informação valiosa para qualquer agente da justiça ou para qualquer utente. Há um imenso mar de iniciativas que podem ser feitas ao nível da resolução alternativa de litígios, para uma Justiça mais próxima. E, para terminar, a Justiça precisa de adquirir práticas de gestão para proporcionar resultados mais efetivos.

Como avalia estes 20 anos de ação executiva? Que marcos destacaria?

Foi um percurso de transformações, inovações e mudanças. Muitas delas feitas há bastante tempo, mas que só tiveram resultado à medida que o tempo se foi desenvolvendo. E que mostram que a solução da injeção constante das grandes reformas de códigos não era, verdadeiramente, o que resolvia problemas. O que vejo que ajudou a mudar foram as penhoras eletrónicas de saldos bancários, o CITIUS, o e-Leilões, etc. Mas também o facto de ter começado a existir alguma gestão nos tribunais. Com a reforma do mapa judiciário, os presidentes dos tribunais passaram a ter poderes de gestão e isso fez uma grande diferença. Destaco políticas que ajudem a retirar dos tribunais assuntos que não tinham de estar lá e, por isso, falamos em descongestionamento dos tribunais. Recordo as pequenas alterações, que parecem menores para os juristas, mas que são grandes pelos efeitos que produzem. Lembro-me logo do PEPEX, que permite que se faça uma averiguação de bens do devedor antes de propor a ação executiva. Vejo estes últimos anos como o resultado de políticas apontadas para a inovação e simplificação e que, sem dúvida, produziram resultados. Os processos entrados descem, mais processos terminados do que entrados, menos processos pendentes, etc. Com tudo isto não quero dizer que a Justiça não tem problemas, porque os tem e temos de os encarar. Por exemplo, a área da investigação criminal precisa de mudanças reais, os tribunais administrativos e fiscais também, mas, na justiça cível, as coisas estão muito melhores.

O mundo evolui rapidamente e, à custa disso, a Justiça tem de evoluir ainda mais depressa para dar uma resposta àquilo que o mundo exige. E o que exige são processos rápidos, mas também uma Justiça mais compreensível e transparente.

Como podemos prever que venha a ser a ação executiva daqui a 20 anos?

Terá de existir uma consolidação e um aperfeiçoamento deste sistema. Continuamos a ter de fazer evoluir o processo eletrónico. Por exemplo, ainda não existem penhoras eletrónicas de ordenados e que poderiam ajudar a tornar a ação executiva ainda mais efetiva. Acrescentaria que o sistema tem de evoluir para ser adaptável e gerível a situações de crise. Não me refiro a crises financeiras, mas a crises no sistema. Ele tem de ser capaz de responder rapidamente a um aumento ou a uma redução significativa do número de processos entrados. E aqui devemos refletir sobre outro tema: não é aberto há muito tempo um concurso para Agentes de Execução. O sistema tem de arranjar uma forma rápida de isso poder acontecer, caso aumente muito o número de processos. E, muitas vezes, os processos aumentam por existir um desenvolvimento económico e não por uma crise. Eu diria que, nos próximos 20 anos, o sistema vai ter de criar alguns mecanismos de gestão e adaptação para poder, rapidamente, responder a oscilações.

Como analisa o papel dos Agentes de Execução no cumprimento desta reforma?

São o meio para a realizar e cumprir esta função. Os Agentes de Execução são absolutamente essenciais, sob pena desta reforma não existir ou não funcionar. Grande parte da reforma baseou-se na circunstância de deixarem de ser os Oficiais de Justiça a realizar as diligências de execução e passarem a ser agentes privados, no início, solicitadores, depois, juntaram-se os advogados e, agora, licenciados em Direito, na órbita da Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça e da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Agora, temos de refletir sobre o que é preciso fazer para que continue a funcionar bem. Quatro medidas: estarem habituados a usar as mais modernas e inovadoras ferramentas eletrónicas, terem um comportamento disciplinar e deontológico excelente e não existirem tendências corporativistas na gestão do sistema. Por fim, estar à frente do tempo. A ação executiva envolve muitas ações mecânicas e há uma certa tendência para a máquina substituir o homem. Aqui, como em todas as profissões jurídicas, temos de estar à frente do nosso tempo, temos de saber onde vai estar o nosso valor acrescentado no futuro e onde é que vamos fazer mais falta, melhorando os nossos procedimentos e automatizando o mais possível para nos dedicarmos a tarefas mais importantes.

E pensando no que é o funcionamento da Justiça em Portugal, que desafios e oportunidades antevê?

O desafio da, cada vez maior, utilização de meios eletrónicos para automatizar os processos judiciais e torná-los mais rápidos. O desafio de encontrar o valor acres- centado da intervenção humana e de não a dedicar a tarefas maquinais. O desafio da comunicação e de falar a língua das pessoas. O desafio de dar um papel mais relevante para a resolução alternativa de litígios. E o desafio de utilizar mais a gestão nos tribunais e na Justiça.

This article is from: